2005

Show, a coreografia do milagre

por Santuza Naves RibeiroIsaura Botelho

Resumo

A televisão brasileira adentra pelos anos 70 bastante associada com o espírito do momento, não só pela reprodução direta do discurso governamental, como também pela omissão. A Rede Globo, nos moldes das demais emissoras, consegue ser servil nesse período em que inicia o seu processo de expansão.

A Globo não se sobressaiu, nos anos 70, por ter contribuído, na área deshows,com alguma inovação em termos de conteúdo. A proposta da Globo é essencialmente técnica, essencialmente estética, o que não elimina o seu caráter ideológico, porque a sofisticação de sua imagem neutraliza qualquer tentativa de comunicação com o povo através da sua verdadeira linguagem.

Exemplar na categoria de show é o programa Fantástico — Oshowda vida (Rede Globo). Na década de 70, oFantásticoassume a condição de um programa “sério” em conteúdo e técnica, numa tentativa de atender a todos os gostos, ou seja, do público heterogêneo que assiste a ele aos domingos, às 20h.  O Fantásticoleva muito a sério o seu espaço informativo (o jornal da emissora, aos domingos, é veiculado através deste programa), com reportagens nacionais e internacionais; a sua produção musical, absorvendo talentos da música popular brasileira ao lado de cantores e compositores de produção mais comercializada; e seus quadros de temas aleatórios.

Mas o que importa é verificar que a Globo deu um salto a partir de 1973, substituindo a sua mensagem atrelada ao poder por uma linguagem própria, fazendo “média” com o seu público heterogêneo, neutralizando temas de interesse social através do “padrão global de qualidade”. Enquanto se refina a forma, desvia-se a atenção do conteúdo.


Talvez o termo “show” não seja o mais adequado para designar um segundo tripé da televisão brasileira, que consiste no show propriamente dito, no humor e no programa de variedades. Talvez também não se possa ser rígido na classificação dos programas de acordo com estas três divisões básicas, porque os gêneros se misturam, na realidade, e o exemplo mais concreto disso é o Fantástico — O show da vida (Rede Globo), pretensioso quanto aos seus objetivos de abordar a vida em seus aspectos sérios e divertidos.

E o que existe, além do entretenimento, nesta esfera da nossa televisão? Muito, pelo menos no que se refere às preocupações das emissoras em inserir — e aqui já contamos com a existência de uma defasagem entre teoria e prática — o dado artístico, cultural e /ou pedagógico na produção do lazer. O Fantástico, por exemplo, leva muito a sério o seu espaço informativo (o jornal da emissora, aos domingos, é veiculado através deste programa), com reportagens nacionais e internacionais; a sua produção musical, absorvendo talentos da música popular brasileira ao lado de cantores e compositores de produção mais comercializada, e tapes de apresentações sobretudo norte-americanas (como Burt Bacharach, Stevie Wonder etc); e seus quadros de temas aleatórios (por exemplo, Marília Pêra, participando intensamente do programa nos seus primórdios, em 1973, interpreta tanto Valdinete Santos, personagem que é presidente do fã-clube de Jerry Adriani, como Joana d’Arc).

Com relação a esse eventual compromisso com o sério, os critérios que a televisão utiliza para conceituá-lo se formam a partir do ponto de vista do mercado, produzindo-se então a polarização entre o “sério” e o “popularesco”. O Fantástico assume, neste sentido, a condição de um programa “sério” em conteúdo e técnica, numa tentativa de atender a todos os gostos, ou seja, do público heterogêneo que assiste a ele aos domingos, às 20h. E o próprio programa confirma o relativismo das definições sobre o gênero, pois a sua realização efetiva consegue resultar exatamente no contrário.

É realmente “fantástica” a capacidade desse programa em abordar permanentemente notícias que não são notícias, isto é, coisas que acontecem de fato, mas sem importância relativa no contexto dos acontecimentos sociais. É a presença do fait-divers que, na televisão, torna-se o próprio modelo de interpretação dos fatos. Muniz Sodré, a propósito, reelabora a ideia desenvolvida por Roland Barthes em “Structure du fait-divers”[1] de que ofait-divers (entenda-se: o crime passional, o fato extraordinário, as anomalias) tem uma significação fechada, imanente à própria informação. Assim, segundo Sodré, Roland Barthes demonstra que

A notícia 20 mil mortos na Guatemala constitui um fait-divers, porque o notável para o medium jornalístico é a relação entre a morte e um número elevado, ou seja, entre o ordinário e o cúmulo. (SODRÉ 1977:31)

O Fantástico fornece um bom exemplo dessa grade de fait-divers aplicada ao mundo. Um de seus responsáveis estabelece uma espécie de pauta geral na qual se baseiam para selecionar assuntos e temas “fantásticos”, como analisa Artur da Távola[2]:

Pessoas: uma matéria que envolva muita gente é sempre fantástica; Preeminência: uma notícia sobre algo ou alguém muito famoso; Ineditismo: algo nunca apresentado. Envolve também

exotismo; Humor: uma notícia que envolve um acontecimento muito engraçado; Contraste: por exemplo, um brasileiro, Guido Pascoli, revolucionou a arte de fazer violinos; Ação: uma corrida de

Fórmula 1; Dinheiro: notícias sobre Loteria Esportiva despertam interesse, pois envolvem muito dinheiro e muitas pessoas; Amor: fatos e acontecimentos de interesse humano; Recordes: a quebra de marcas já registradas; o homem se superando em qualquer campo.

O gênero “popularesco”, contraditoriamente, na medida em que se despoja de concepções hipócritas sobre o “bom gosto”, como o faz o Chacrinha (agora na TV Bandeirantes), consegue veicular uma imagem “sem retoques” na nossa realidade. Vejamos como Muniz Sodré analisa o apresentador:

O Chacrinha é o bobo da corte do consumo. Ele não nos impinge uma falsa verdade: seu programa não se disfarça como educador ou artístico. Ele nos faz ver (repetimos: apesar dele próprio) o ridículo de nossa seriedade como sociedade de consumo […] lá vai bacalhau na cara de quem não tem dinheiro para comprá-lo, mas consome televisão! O Chacrinha é, em suma, o palhaço adaptado à circuiticidade eletrônica. O bacharel quer fazer discurso em seu programa? Lá vai o dedo desmoralizador na boca do chato! (SODRÉ 1975:81)

E é exatamente o Chacrinha quem sai da Rede Globo para a Rede Tupi em 1972, em nome dos propósitos da emissora de veicular uma programação de “qualidade”. Nesse período, o Ministério das Comunicações interferiu diretamente nas televisões, exigindo “melhor qualidade” nas programações. Dizia então o ministro Hygino Corsetti, em entrevista à revista Veja (n° 175, de 12/1/1972):

Não é possível desconhecer o verdadeiro estágio cultural do povo. Não pensamos que se deva substituir abruptamente o atual tipo de programação. É preciso que a TV suba progressivamente a escada, acompanhada de seus atuais telespectadores. Portanto, sem se distanciar do gosto popular.

O ministro sugere então que se aproveite o poder de comunicação dos animadores:

Por que não usar a força de comunicação deles? Por que não fazê-los melhorar seus programas e torná-los densos de conteúdo, bom gosto, abandonando a linha de agressão à sensibilidade e de grosseria de alguns?

Chacrinha choca os padrões estéticos da empresa, comprometida com um grande contingente da classe média em seu mercado de largo espectro. Ele não faz média com o público; ele divide mercado, pois a sua audiência é o “povão”. Isto se contrapõe aos projetos da Rede Globo de

veicular a cultura sincrética, definida por João Rodolfo do Prado nos seguintes termos:

Existe agora uma cultura universal, homogênea como os padrões de produção. Tanto serve para a elite como para as massas. Para atender a gente tão díspar ela precisa ser média, como média é a classe que consome com mais gula e eficiência seus produtos. (PRADO 1973:216)

Em que consiste esse sincretismo em televisão? Consiste na tentativa do veículo de “medianizar” a sua mensagem, ou seja, em transmitir valores que não sejam específicos de uma classe social. Retomando o exemplo do Fantástico, um laboratório para esse tipo de análise, observamos que este programa, transmitido em horário nobre aos domingos para unidades familiares distintas e

estratificadas socialmente, tenta descomprometer-se de uma realidade antagônica. As doenças do povo, portanto, jamais aparecem nas reportagens “científicas” de Cidinha Campos. Pesquisam-se

então as experiências desenvolvidas (principalmente nos Estados Unidos) na área das doenças e deformidades “neutras”, tais como a minicâmera de TV desenvolvida em São Francisco da Califórnia que possibilita aos cegos enxergarem novamente; o aparelho de TV desenvolvido em Nova Iorque pelo psicanalista Dr. Berger para a análise de seus clientes; etc.

A Rede Globo tem melhores condições que as outras emissoras para a utilização dessa linguagem, dado o maior desenvolvimento de sua infra-estrutura tecnológica. A Globo não se sobressaiu, nos anos 70, por ter contribuído, na área de shows, com alguma inovação em termos de conteúdo, mesmo porque esses projetos (pessoais, inclusive) preexistiram à absorção dos profissionais do rádio pela televisão. A proposta da Globo é essencialmente técnica, essencialmente estética, o que não elimina o seu caráter ideológico, porque a sofisticação de sua imagem neutraliza qualquer tentativa de comunicação com o povo através da sua verdadeira linguagem.

O humor chamado político não escapou deste destino. Os personagens criados por Max Nunes e Haroldo Barbosa para os programas de Jô Soares na década (Faça humor, não faça a guerra, Satiricom e Planeta dos Homens) são submetidos à assepsia técnica da emissora, assim como os tipos regionais de Chico Anysio. Não importa muito, no caso, a idealização original dos personagens pelos seus criadores, porque os tipos que aparecem nos vídeos perdem o seu cheiro (de povo, se for a proposta), a sua cor característica (para dar lugar às tonalidades carregadas e platinadas), as suas próprias raízes (para uma realidade exótica ou em meio-termo com o real).

O fato é que o show, o humor e o programa de variedades têm muito em comum, embora não apresentem uma linha geral de programação. Um primeiro ponto comum advém de suas origens: começam no rádio (nas rádios Nacional e Mayrink Veiga, sobretudo) e passam pelas TVs Rio, Excelsior, Record etc, emissoras mais artesanais que desconheciam o videoteipe e demais avanços técnicos da televisão atual.

Um segundo aspecto é que não houve a criação de uma nova estrutura para esses programas na televisão. Prevalecem, ainda hoje, a linguagem e a técnica do rádio. À pergunta de um repórter da revista Veja (8/12/1976) se o programa Planeta dos Homens (Rede Globo) não estaria ainda “muito preso a um velho esquema de humor radiofônico”, Max Nunes (um dos redatores do programa) responde: “Concordo. Se tirar a imagem ou ficar atrás do aparelho de televisão, só ouvindo, você entende perfeitamente o que está acontecendo.” O que ocorreu foi a adaptação, no sentido de lançar a fórmula de anedotas curtas e cortes rápidos em substituição ao tradicional esquete e, no geral, a padronização estética dos programas esteve a cargo do “padrão Globo de qualidade”.

A Globo então se sobressai pelo seu produto mais moderno: o “padrão Globo de qualidade”. É este um poderoso instrumento utilizado pela emissora para neutralizar a sua linguagem e o que a destaca, entre outras coisas, das demais emissoras, quanto à forma de veicular o discurso dominante. Pois a Globo, como empresa “moderna”, participa do sistema de dominação. Tanto ela não precisa submeter-se à veiculação de um discurso alheio — reproduzindo a ideologia dominante, ela reproduz a sua própria ideologia — como utiliza, para tanto, mecanismos mais sofisticados, condizentes com o seu status.

O tripé da área de shows adentra pelos anos 70 bastante associado com o espírito do momento, representando a década não só pela reprodução direta do discurso governamental, como também pela omissão. A Rede Globo, nos moldes das demais emissoras, consegue ser servil nesse período em que inicia o seu processo de expansão.

Como se dá a veiculação direta desse discurso via televisão? Observando o cenário da época, encontramos Flávio Cavalcanti (Rede Tupi) em seu programa de auditório, abrindo todo um espaço para a fala demagógica da política de integração nacional (com elogios à Transamazônica e a produtos semelhantes do milagre) e mostrando-se bastante cordial com os aparelhos repressivos. Quem não se lembra, por exemplo, de Nelson Duarte (um dos doze Homens de Ouro da polícia carioca) em seu programa, fazendo a campanha contra os tóxicos?
Só o amor constrói, na Rede Globo, exemplificando ainda o primeiro caso, explora situações de mobilidade social e antecede a mensagem individualista do Mexa-se (slogan do período pós-74, patrocinado pela Rede Globo e pelo Unibanco). O próprio título do programa é copiado literalmente da canção do mesmo nome de trovadores da corte na época do milagre econômico. Quem se omitiu acompanhou o clima geral do país pós-AI-5: a situação não é exclusiva da televisão. A sátira política de Max Nunes e Haroldo Barbosa, entre outros casos, teve que se adaptar aos novos tempos, dando lugar à sátira de costumes e coisas mais leves no gênero.

Mas o que importa é verificar que a Globo deu um salto a partir de 1973. Enquanto Flávio Cavalcanti é repreendido pelo sistema por veicular quadros sensacionalistas e os júris de televisão que institui na década de 60 não alcançam mais a significação de outrora, a Rede Globo substitui a sua mensagem atrelada ao poder por uma linguagem própria. Esta empresa tem agora condições de fazer “média” com o seu público heterogêneo, neutralizando temas de interesse social através do “padrão global de qualidade”. Enquanto se refina a forma, desvia-se a atenção do conteúdo.

Fantástico — O show da vida vem então substituir Só o amor constrói no mesmo horário aos domingos, inaugurando a cor na nossa televisão. E a partir de 1974, principalmente, as superproduções começam a aflorar na Rede Globo. Em março, o Boletim da Globo anuncia uma nova fase para os programas Satiricom (Jô Soares), Moacyr Franco Show e Chico City (Chico Anysio), justificando a mudança em termos da necessidade de se fazerem alusões mais diretas à sociedade do momento. Chico City é bem representativo disso, quando se vê que o vilarejo se transforma em cidade e se moderniza. E o que tem muito a ver com a implantação recente da TV a cores e com a ênfase, também decorrente disso, da emissora na qualidade da programação. Porque a referência à sociedade atual atende aos princípios estéticos da empresa. O provincianismo, o caipirismo, o regionalismo, enfim, a realidade telúrica imediata fere os critérios eugênicos da Globo.

MÚSICA,BRILHO E PURPURINA

No final de 1975, delineia-se a programação da Rede Globo para o novo ano com a entrada do

Sexta Super Show, programa semanal das sextas-feiras que alterna temas e formas:

Super parada: parada de sucessos;

Brasil especial: centrado no compositor brasileiro;

Sandra e Mièle: “muito luxo, figurino e ritmo de festa”, segundo o Boletim da Globo (1976);

O Brasil especial, a título de exemplo, estreou em março de 1976 com uma apresentação sobre

Ary Barroso. Antônio Chrysóstomo, crítico da revista Veja, assim avalia o seu programa de estreia

em matéria de 7/4/1976:

Seu paupérrimo roteiro nem chegou a mencionar a variedade de atividades de Ary Barroso — compositor, animador de auditório, locutor esportivo — e também não revelou nenhuma preocupação de mostrar as contradições que o levaram da condição de gênio musical à de compositor oficial dos tenebrosos sambas-exaltação exigidos pela ditadura do Estado Novo.

Estes musicais sofreram sucessivas substituições em seus temas, passando pelo Levanta poeira (com a “intenção de mostrar os gêneros e ritmos mais regionais da MPB” — Boletim da Globo), Saudade não tem idade (apresentado por Djenane Machado e Ney Latorraca, mostrando “momentos e gêneros históricos da MPB” — BG), Brasil pandeiro (apresentado por Betty Faria, retomando o gênero revista) e Brasil 78 (“atualidade sob a forma de show, temas de interesse geral” — BG, apresentado por Bibi Ferreira).

Levanta poeira, em termos de realização, foi o que mais se aproximou da proposta de lidar com os gêneros de música popular, pois o programa subiu o morro, tentou aproveitar as pessoas locais, os instrumentos etc. Mas, de acordo com a produtora do programa, Maria Carmem Barbosa, “o programa não agradou e saiu do ar”[3].

Saudade não tem idade sofreu estilização em excesso. A abordagem que faz da música italiana, por exemplo, em abril de 1978, desvincula-a do seu clima original. A começar do título do programa, Te voglio tanto bene, extraído de uma canção de sucesso nada representativa da cultura italiana no Brasil; também os indefectíveis intérpretes Wanderley Cardoso, Vanusa, Moacyr Franco etc. conseguem dar uma conotação despersonalizada às canções italianas. Isso sem falar no critério utilizado para a escolha das músicas (sendo a maioria das canções de músicos mais recentes, como Sergio Endrigo, Rita Pavone etc.), o que leva a crer que a imigração italiana no Brasil tenha se dado a partir da década de 60.

Brasil pandeiro não passou de um ponto de vista estereotipado sobre o Brasil. Certas concepções acerca do homem brasileiro, como seu “espírito supersticioso” ou mesmo seu famoso “espírito de torcedor de futebol”, são pretensiosamente levadas ao ar em nome das chamadas “situações do cotidiano”. A difusão desta falsa visão do homem brasileiro, transformando-o num ser folclórico e destituído de profundidade, deslocando-o das suas reais condições enquanto ser social, só faz reproduzir um discurso escamoteador da verdade: a do alegre, pacífico e bonachão, enfim, o “homem cordial”.

Alcione comanda o musical mais recente, Alerta geral, que hasteia a bandeira da defesa da música popular brasileira, já tentada por programas anteriores.

Brasil 78 e seu substituto Brasil 79 tentam analisar temas diversos. Este último, inclusive, introduz a discussão de problemas relativos à mulher — o derradeiro grande produto da Rede
Globo de Televisão. Mulher 80 encerra a década trazendo definitivamente para a área dos shows o que havia sido ensaio em Brasil 79: a mulher brasileira. Melhor que isso, Malu mulher comanda o espetáculo. Duplamente personagem, Regina Duarte trata de assuntos incorporados por outros programas (inclusive nas séries brasileiras), como temas atuais da realidade do país.

25 anos depois:

Show, a coreografia do milagre, A televisão e o poder autoritário e A televisão e a política de integração nacional, artigos que escrevi em parceria com Isaura Botelho, resultaram da minha primeira experiência de trabalho no Rio de Janeiro. Em 1979, quando me integrei ao projeto desenvolvido na Funarte, coordenado por Adauto Novaes, que visava a avaliar a produção cultural brasileira da década, tinha apenas 27 anos e era recém-chegada de Brasília, onde terminara o curso de Ciências Sociais na UnB. Creio que minha participação neste projeto Anos 70, que reunia intelectuais do Rio e de São Paulo — alguns deles bastante conhecidos, como Heloisa Buarque de Hollanda, Jean-Claude Bernardet e José Miguel Wisnik —, se deva ao fato de que a reflexão acadêmica sobre a televisão brasileira estava ainda se constituindo no período e, de certa forma, afrontava os cânones institucionais fundamentados na análise de padrões da “alta cultura”. Até então, contávamos apenas com os trabalhos inaugurais de Muniz Sodré sobre o tema, A comunicação do grotesco: um ensaio sobre a cultura de massa no Brasil (Petrópolis, Vozes, 1975, 4′ edição) e O monopólio da fala (Petrópolis, Vozes, 1977); e Maria Rita Kehl, apesar de muito jovem, também de maneira inovadora já se dedicava a pensar a linguagem da telenovela brasileira.

Construindo minha identidade como socióloga, mostrava-me muito envolvida com as questões políticas e sociais do país e com as tensões geradas pelo governo militar. Acreditava, naquele momento, que a Sociologia me auxiliaria num tipo de missão — ou militância — a que me propunha, no sentido de me vincular aos projetos de libertação (econômica, política e social) das classes trabalhadoras, principalmente as rurais. E eis que a participação no projeto Anos 70: Televisão acabou me levando a optar definitivamente pela área cultural e não a social; algum tempo depois ingressei no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. É interessante observar que os textos escritos para o volume sobre televisão refletem esta transição de uma perspectiva teórica para outra. Assim, autores como Fernando Henrique Cardoso e Paul Singer, ambos vinculados ao Cebrap, cujas reflexões sociológicas eram avidamente absorvidas pela minha geração, convivem aqui com Roland Barthes e seus seguidores.

Sem dúvida, tive uma série de surpresas ao realizar esta pesquisa. Tendente a um pensamento maniqueísta, que colocava do lado do Mal (ou das superestruturas perversas do modo de produção capitalista) os produtores ligados à indústria cultural, como a televisão, surpreendi-me ao entrar em contato com pessoas como Walter Clark, Homero Icaza Sanchez e Paulo Afonso Grisolli, que, cada um a seu modo, não só me pareceram extremamente inteligentes como formuladores de propostas culturais interessantes. Assim, por exemplo, na entrevista realizada com Grisolli, causou-me espanto a revelação de que forças do Bem (isto é, pessoas como ele, identificadas com a “inteligência” de esquerda) passaram a trabalhar efetivamente na Rede Globo como diretores e roteiristas no início da década de 70.

Devo confessar que estranhei os textos ao relê-los. Neles não me reconheci, principalmente quando me vi preocupada com fenômenos como “descaracterização cultural”, “homogeneidade”, veiculação da “ideologia dominante” etc. Mas acredito que esses artigos, a despeito da qualidade da pesquisa, poderiam ser lidos não como verdades definitivas sobre a televisão brasileira da década de 70, mas como interpretações contaminadas com as tensões do momento.

/comentário de Santuza Cambraia Naves /

Reli os três textos e viajei no tempo, e me dei conta de que quase não me lembrava daquela televisão neles descrita. Lendo com os olhos de hoje, percebo que ali, naquele momento, não me parecia tão claro que a grande política cultural da ditadura se concentrava na implantação de todo o aparato de modernização tecnológica que permitiu a constituição das redes nacionais de televisão. Estava por demais envolvida nas mudanças e nos revigoramentos institucionais dos órgãos federais de cultura (como a criação da Funarte, Embrafilme, etc) para perceber que, de alguma maneira, isso significava que o governo, num jogo de compensações, dava atenção ao “nacional” no plano das práticas culturais tradicionais — de menor impacto político numa sociedade de massas —, enquanto criava as condições de infra-estrutura para a expansão da mídia eletrônica, sua cultura de mercado e seu jornalismo semi-oficial.

/ comentário de Isaura Botelho /

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BARTHES, Roland. Essais critiques. Paris, Ed. du Seuil, 1964.

PRADO, João Rodolfo do, TV quem vê quem, Coleção Medium, Rio de Janeiro, Eldorado, 1973.

SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco — Um ensaio sobre a cultura de massa no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1975, 4a edição.

. O monopólio da fala. Petrópolis, Vozes, 1977.

Notas

  1. In Essais critiques. Paris, Ed. du Seuil, 1964.
  2. Coluna de Artur da Távola ern O Globo, 24/6/1974.
  3. Em entrevista concedida às autoras deste trabalho.

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