2014

Silêncio da História: experiência, acontecimento, narração

por Marcelo Jasmin

Resumo

Da história se diz que narra o que aconteceu. Mas, também, que é o que acontece? Desde o século XIX, estabeleceu-se com clareza essa ambivalência. Hegel o diz em sua Filosofia da História: “Em nossa língua, história une o lado objetivo e o subjetivo”, significando tanto historiam rerum gestarum quanto res gestae”. Em várias outras línguas europeias modernas também. A descoberta desta confluência trouxe consigo consequências relevantes. Por exemplo, o que não foi narrado (rerum gestarum) parece não pertencer à história (res gestae). No limite, não aconteceu. Ou, se aconteceu, não importou à posteridade. No mesmo registro, importou apenas o que fez “mover o mundo”, em geral “para frente”. O que escapou a tal cadeia de causalidades tornou-se irrelevante, ficou fora da história. Por isso, falou-se em povos sem história cuja existência acabaria aproximada daquelas de plantas e animais incapazes de constituírem uma moralidade objetiva (Hegel), organizada sob a forma de Estado.

Mais do que discutir a redução da história à política ou à ação no âmbito do Estado (o que foi a tradição historiográfica ocidental, de Tucídides até meados do século XVIII), importa pensar como as tentativas de conferir à história uma direção e um sentido terminaram por reduzir a história a uma racionalidade que silenciou sobre a maior parte do que foi experimentado no tempo. Sem dúvida, qualquer narrativa histórica exige seleção de documentos e eventos, momentos e ações, o que parece inevitável, se não quisermos confundir a história com o mapa de Borges. Mas ao se enunciar que se narra a História, com frequência a História Universal, exclui, pelo silêncio, boa parte do acontecido em nome de uma razão filosófica ou científica e da necessidade de um sentido. Há muitos silêncios na história. Maquiavel reclamava da ausência do lado obscuro dos homens na descrição das ações dos heróis imortalizados pela historiografia clássica romana. Rousseau acusava os historiadores de terem um pendor para a catástrofe e de apreenderem os homens apenas quando vestidos para aparecer (“vêtements de parade”). Tocqueville acusou o realismo historiográfico e as filosofias da história de, ao narrarem apenas a sequência das mudanças que se encadearam na constituição do presente, silenciarem sobre alternativas que, embora derrotadas nos contextos diversos conflitivos, poderiam ser portadoras de traços superiores de dignidade ou de ensinamentos. A realização fática de uma dada alternativa ou posição não deveria ser confundida com a sua superioridade ética ou racional.

Historiadores, hoje, falam das histórias dos vencidos, da necessidade de atentar para os fenômenos que não apareceram com clareza consciente na documentação ou na linguagem de determinada época. Retorno do recalcado (LaCapra), latência (Gumbrecht), presença (Runia), tempo comprimido (Diner), entre outros, são termos que têm sido mobilizados para lidar com esses fenômenos que a narrativa historiográfica silenciou. A percepção contemporânea da impossibilidade de registros literários de experiências traumáticas como a dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial (Sebald), e as dificuldades de se narrar o que aconteceu sob a ditadura militar brasileira, especialmente no que respeita ao destino dos desaparecidos, são temas centrais de uma reflexão que, apesar de reconhecer a necessidade do silêncio, não quer calar sobre a experiência do sofrimento do século XX.

Lidar com o silêncio na história, numa perspectiva que não seja a de tudo iluminar, tudo fazer aparecer sob o signo da verdade, parece um desafio novo e instigante, num contexto em que a História não pode mais ser concebida como a narrativa verdadeira.


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O tema deste ensaio poderia ser enunciado, na sua delimitação mais abrangente, como o das linguagens que silenciam o mundo. Na sua expressão primeira e mais simples, a linguagem que silencia se expressa na forma da ordem: “Silêncio!” – é a prescrição imediata, simples e direta que quer obrigar o silêncio de outrem. Contudo, ao olharmos com mais atenção, vamos descobrir que mesmo este enunciado direto não é tão simples e imediato assim. Pois para ser feliz, isto é, para alcançar o efeito desejado de silenciar o outro, o enunciado tem de ser dito de certa maneira, e em determinado contexto, para que produza uma-recepção pelo ouvinte que o faça calar. Para produzir silêncio, a ordem requer uma autoridade especial daquele que a emite e que seja reconhecida como tal por aquele que a recebe. O enunciado, neste caso, embora aparentemente tão simples e direto, não se reduz a uma frase gramatical composta de uma palavra cujo significado podemos facilmente reconhecer. Enunciada como uma ordem, a frase só terá o efeito de silenciar se aquele a quem se dirige recebê-la como uma ordem.

Imaginemos a mesma palavra dita de outro modo: “Silêncio…”. Aqui, o sentido mudou para o de uma constatação, ou o da produção da atmosfera de uma determinada cena, uma floresta enevoada na madrugada, por exemplo, ou a espera de um assassino que sabemos que vai adentrar o quarto de casal no segundo andar da casa de alguém num romance policial. Se ouvirmos a frase dita assim, “Silêncio…”, sabemos que não se trata de uma ordem, embora se trate da mesma palavra. Escrita, a primeira expressão é grafada com um ponto de exclamação; a segunda, com reticências. Mas na fala, na oralidade, diferimos as duas frases pela entonação, pela forma de dizer ora “Silêncio!”, ora “Silêncio…”.

A produção de efeitos distintos resultantes de modos variados de se enunciar uma locução qualquer foi objeto das investigações da linguagem e dos “atos de fala” estudados pelo filósofo inglês John Langshaw Austin em seu livro How to do things with words (literalmente, Como fazer coisas com as palavras), traduzido para o português por Danilo Marcondes com o sugestivo título Quando dizer é fazer[1]. Austin percebeu que além da função descritiva, de constatação ou de representação do mundo exterior, a linguagem, especialmente aquela falada, é portadora de inúmeras outras capacidades – a de informar, a de sugerir, a de ordenar, a de surpreender etc. – que se expressam não na estrutura da frase gramatical, mas no modo de enunciá-la, no que o filósofo chamou a força ilocucionária da linguagem. Podemos não apenas referir às coisas com a linguagem, mas também fazer coisas com a linguagem. E mais, há certas coisas (things) que só fazemos com a linguagem: “Eu te batizo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” é uma declaração que, dita nos devidos protocolos contextuais, produz uma alteração no mundo social, um efeito não linguístico na experiência cotidiana – no caso, a transformação do pagão em cristão, o ingresso formal de uma criança numa dada comunidade religiosa que a aceita como seu novo membro. Ou então: “Eu vos declaro marido e mulher”, outra dessas frases que no contexto protocolar, enunciada por quem de direito – um juiz, um sacerdote -, altera, de fato, o estado civil dos cônjuges, produz uma alteração na vida social, autoriza determinadas ações, proíbe outras, impõe obrigações legais ou religiosas ao casal etc. Mais uma vez, a “felicidade” de um ato de fala como este, a produção dos efeitos no mundo fora da linguagem, depende de circunstâncias protocolares e contextuais determinadas. Fora de seus contextos protocolares a mesma frase, “eu vos declaro marido e mulher”, pode não ter qualquer outro efeito real no mundo senão provocar uma risada.

A pesquisa de Austin vai muito além desses exemplos rituais. Quando dois torcedores, por exemplo, apostam uma caixa de cerveja na vitória de seus times, a fórmula mundana “eu aposto” tem de ser dita para que a aposta se realize. E assim por diante. O que eu gostaria de salientar, a partir destes poucos casos, é como o uso da linguagem tem consequências para além da própria linguagem, opera mudanças não linguísticas no mundo e pode, inclusive, produzir o silêncio.

Sem dúvida, não é necessário que a linguagem seja tão direta e focada como numa ordem de silêncio para que alguém se cale. Quantas vezes não somos silenciados pelo impacto, inclusive físico, em nossos corpos, de nossas emoções, do dizer de uma poesia, da palavra sincera de um amigo, de uma declaração de amor. Ainda que seja por um instante breve, o silêncio se faz ao ouvirmos algo que nos parece vir da sabedoria, da beleza, do carinho ou do amor. Se há palavras que precisam do silêncio para ser ouvidas, como aquelas de uma conferência, ou as sussurradas ao pé do ouvido pelo segredo ou pelo amante, também há as que, enunciadas, produzem silêncio no mundo.

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Deixo agora este âmbito geral da discussão sobre a linguagem que silencia para me aproximar de meu tema específico. Quero pensar como a História, enquanto uma forma da linguagem vocacionada a dizer o que aconteceu, muitas vezes, no seu esforço de narrar, também silencia a experiência vivida pelos homens comuns, mesmo que não o queira ou não o saiba.

Da história se diz que narra o que aconteceu. Mas, também, que é o que aconteceu e acontece. Desde o século XIX estabeleceu-se com clareza esta ambivalência. Hegel o diz em suas Lições sobre a Filosofia da História: “Em nossa lingua, história une o lado objetivo e o subjetivo, significando tanto historiam rerum gestarum (o narrado) quanto res gestae [o acontecido]. Ela é tanto fato quanto narrativa” [2]. A descoberta desta confluência trouxe consigo inquietações agudas e relevantes. Por exemplo, se a História é o que foi narrado, o que não o foi parece não pertencer à História. No limite, embora absurdo, pode-se pensar que não aconteceu. Digamos de outra maneira: o que houve, mas não foi narrado, não se tornou acontecimento, não importou a ponto de ser registrado para a posteridade e, por isso, como a vida das plantas e das pedras, ficou excluído da História. No mundo clássico, a História se importou basicamente com a ação política dos homens, na cidade e na guerra, deixando na penumbra todo o resto. À era moderna importou principalmente o que parecia fazer mover o mundo, em geral para a frente. O que escapava a tal cadeia de causalidades tornava-se irrelevante e, por isso, ficava de fora da História. Assim se pôde falar de povos sem história, aqueles que viveram uma existência concebida (metafisicamente) como natural, aproximada daquela de plantas e animais, incapazes de constituir o que Hegel concebeu como a moralidade objetiva organizada na forma do Estado.

A hipótese que eu gostaria de explorar é como certas tentativas de se conferir à história vivida por homens e mulheres no tempo uma direção e um significado terminaram por reduzir a História a uma racionalidade discursiva que silenciou a maior parte do que foi experimentado no tempo.

Penso que é bom começar por descartar a objeção geral que afirma ser inevitável a redução da experiência quando apreendida numa linguagem que a quer representar e compreender. Quero descartá-la não porque seja falsa, mas porque não há como escapar dela, dada a sua ululante obviedade. Sabemos que a linguagem é um conjunto finito de signos que temos para lidar com a indefinidamente extensa experiência do mundo. Não podemos esquecer a finitude que constitui a condição humana, e esta consciência já é parte estruturante, inescapável, de nosso saber contemporâneo. Por outro lado, sabemos também que, quando a linguagem se apropria de uma experiência qualquer, pode fazê-lo de tantas formas que a experiência é potencializada. Ao recriar, poeticamente ou não, o que se viveu, ao lhe dar uma forma, a linguagem confere ao vivido uma dignidade que antes não possuía. A linguagem que se apropria de uma experiência para dizê-la lhe acrescenta dimensões e sentidos só existentes pela palavra, de modo que potencializa a infinitude dessa mesma experiência. Na escrita da História, a palavra imortaliza, torna perene, o que em sua natureza própria é o efêmero, o mortal, o que está destinado a desaparecer e a ser esquecido pelo passar do tempo. Em termos ideais, o que a História não diz não se pode saber que se passou, desaparece do patrimônio registrado (mas não do vivido) pela memória humana e, por isso, temos a impressão de que não aconteceu.

Aqui eu gostaria de dar um pequeno passo adiante no argumento, um deslocamento nem sempre percebido, mas que traz consequências relevantes. Podemos dizer, também, que quando enunciamos algumas palavras, uma frase, produzimos, no ato deste enunciado e por causa dele, um silêncio. Na linguagem que quer representar algo do mundo, é inevitável que ao falarmos de algo e o iluminarmos, por assim dizer, pela palavra, deixamos na sombra aquilo sobre o que nada dissemos. Este fenômeno ganha dramaticidade especial quando o pensamos nos relatos da História. Sem dúvida, enquanto forma discursiva de representação do mundo, a narrativa histórica jamais poderá dizer tudo que há e que houve no tempo. Ao querer representar o mundo, a linguagem tem de escolher, recortar, reduzir, de algum modo simplificar sua pluralidade, pois, se não o fizer, perde-se na infinitude do real e nada pode conhecer. Descartemos, pois, desde logo, a pretensão de narrar tudo o que aconteceu.

Imaginemos um exercício: cada um dos ouvintes reunidos num auditório para uma conferência resolve lembrar-se do que lhe sucedeu em cada minuto daquele dia. Quanto tempo cada um demoraria para narrar o seu dia completo? Tudo o que se passou, tudo o que se pensou, tudo o que se sentiu… Agora imaginemos um historiador que quisesse narrar só esse dia e representar o que aconteceu somente com as pessoas que estão ali. Como o faria? Quanto tempo demoraria? Bem mais que um dia, e isso para não falarmos daquilo que não poderia contar, seja porque lhe escapou, seja porque lhe foi ocultado. Então, se fosse para fazer isso, não precisaríamos de um historiador, mas talvez de uma espécie de artefato digital de memória com uma enorme capacidade de armazenamento de dados. Por isso penso que podemos deixar ao lado, justamente porque dela não podemos escaper, a objeção de que a linguagem histórica, como toda linguagem da representação, seleciona, interpreta, condensa e, neste sentido, reduz a experiência do mundo.

A melhor descrição que conheço da absurda pretensão de uma linguagem que tudo quisesse representar foi elaborada por Jorge Luis Borges, no livro O fazedor, em texto sugestivamente intitulado “Do rigor da ciência”.

[…] Naquele Império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios dos cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao estudo da cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas (Suárez Miranda, Viajes de Varones Prudentes, livro quarto, cap. XLV, Lérida, 1658)[3].

Acompanhando a ironia de Borges, abandonemos aqui qualquer postulação de uma linguagem que todo mundo possa falar. Mas preservemos a indagação sobre o fenômeno da palavra que, por ser pronunciada, produz o silêncio.

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Pensemos, a partir de agora, alguns dos muitos silêncios da História. O primeiro deles é o silêncio da ausência, da lacuna, aquele que se produz porque não há como saber que algo aconteceu. Sua fisionomia imediata é aquela em que a História silencia porque não há vestígios que permitam saber. É um silêncio constitutivo da própria atividade historiadora, uma espécie de silêncio legítimo, pois de outro modo não há como ser. As historiografias contemporâneas acerca da Antiguidade e da Idade Média, por exemplo, são elaboradas em constante trabalho com estes silêncios. A maior parte dos vestígios da Antiguidade, especialmente suas fontes escritas, se perdeu pelo trabalho silencioso do tempo e dos vermes. O mundo europeu moderno, na sua elaboração do clássico como valor do antigo, interessou-se progressivamente pela preservação da informação não só de seu passado, como também de seu presente, na perspectiva do que poderia instruir os herdeiros futuros. Os Estados nacionais adquiriram o hábito da preservação dos arquivos e, posteriormente, dos monumentos e edifícios, enfim dos traços da presença humana no tempo. A noção moderna de civilização não poderia se constituir sem a sua inscrição num processo temporal e, por isso, preserva o que, no tempo, permitiu a sua identidade e garantiu sua autoproclamada superioridade. Desde o final do século passado vivemos o afã de tudo preservar em nossos discos rígidos, nas mídias de memória e mesmo nas nuvens, como se nada pudesse mais se perder no tempo. Nesta primeira fisionomia, constituída da ausência de vestígios do passado, o risco do silêncio esteve na origem e foi propria mente o que motivou a invenção da historiografia pelos gregos do século V a.C. Foi para salvar das águas de Lethe, o Esquecimento, que Heródoto escreveu suas histórias.

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Há um segundo semblante do silêncio na História que deriva do trabalho consciente de determinados atores históricos, com poder de esconder ou destruir vestígios e fontes, para que não se conheçam determinados fatos. É um silêncio intencionado, quase sempre delinquente, por vezes um verdadeiro crime contra a História, contra a verdade, contra o saber do presente e das gerações futuras. Há deste tipo de silêncio formas brandas, mas outras de grande perversidade.

Há uma história, hoje bem conhecida, de que Karl Marx teve um filho com Helene Demuth, a empregada que a Sra. Westphalen, mãe de sua esposa Jenny, enviou a Bruxelas para ajudar a cuidar do bebê do casal Marx. Lenschen, como a chamavam carinhosamente todos do círculo dos Marx, não era propriamente uma criada, era parte da família e convivera com os jovens Karl e Jenny desde a infância. Durante uma viagem de Jenny a Holanda, se não me engano para tentar levantar fundos para as dívidas impagáveis da família Marx, Karl e Lenschen fizeram sexo e ela engravidou. A situação era potencialmente explosiva, tanto familiarmente como do ponto de vista da posição social de Marx no seio da liderança comunista, e a solução para o impasse foi fazer com que Engels, o eterno e leal amigo de Marx, e notório namorador, assumisse a paternidade da criança. E assim se fez. Durante muito tempo esta história foi silenciada, e, quando alguma informação vinha à tona, não se sabia ao certo se era falsa ou verdadeira. Com frequência, no mundo comunista do século XX, se disse que se tratava de uma história inventada por detratores para desmoralizar o pai do comunismo. Conta Mary Gabriel, em recente biografia focada na vida privada da familia Marx, que “havia cartas nos arquivos de Moscou em que membros do partido discutiam a paternidade de Freddy [o filho de Helene com Marx], mas [que] Joseph Stalin, quando ficou sabendo delas por David Ryazanov; diretor do Instituto Marx-Engels, referiu-se a essas cartas como um caso mesquinho e instruiu Ryazanov a ‘deixar que se perdessem no fundo dos arquivos’. As cartas não foram publicadas por cerca de cinquenta anos[4] Marx e Lenschen tinham motivos particulares para silenciar sobre a sua história. Stalin tinha outros, mas de qualquer modo nos fez o obséquio de não destruir aquelas cartas, gentileza esta que não se repetiu com frequência em inúmeras outras esferas da construção do comunismo soviético.

Há outros silêncios intencionais, claramente criminosos. Sabemos hoje, com as pesquisas históricas e arquivísticas, inclusive aquelas realizadas a pedido da Comissão Nacional da Verdade, que muitos dos fatos sistematicamente negados e desmentidos pelos militares, e que não encontravam comprovação independente dos testemunhos das vítimas, aconteceram desde o primeiro dia da ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964. Arquivos foram destruídos, outros escondidos, mas sabemos com certeza, hoje, que a tortura e o desaparecimento de pessoas nos porões da ditadura não foram, como tantas vezes nos quiseram convencer, uma reação de um governo em guerra contra a luta armada desencadeada por parte da esquerda a partir de 1968. Desde o primeiro dia do regime de 1964 prendeu-se e torturou-se neste país. Homens e mulheres, especialmente os sindicalistas de então, fossem comunistas, nacionalistas, trabalhistas, socialistas, ou não, sofreram à violência inominável da tortura por parte de agentes do Estado. Muitos deles perderam seus empregos e ficaram impedidos de conseguir outros pelo conluio entre governantes e dirigentes das empresas que os demitiram. O silêncio que se difundiu sobre a tortura e o desaparecimento de pessoas no início do período ditatorial, produzido pela covardia dos que apoiaram o golpe nas ruas, nas associações empresariais e patronais, na imprensa, nos quartéis, aqui e no exterior, contaminou, por muito tempo, a palavra de historiadores que silenciavam sobre o que não podiam comprovar: o terror do regime de 1964, que tomara o poder apoiado por aqueles que diziam falar em nome de Deus, da democracia e da paz social, palavras que, vistas depois da experiência histórica das últimas décadas, me parecem mais heterônimos de certas frações do capital.

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A terceira manifestação do silêncio na História que eu gostaria de discutir é uma de suas formas mais dramáticas, aquela que advém do silêncio dos testemunhos dos que tiveram o infortúnio de experimentar diretamente a catástrofe. Neste terceiro caso, não há a destruição interessada de fontes indesejadas, mas é a própria fonte que não chega a se constituir. Ela inexiste pelas dificuldades da lembrança e da fala em exteriorizar o horror, pelo impulso de autopreservação, de querer esquecer o que se passou consigo, em resumo, pela força do trauma que paralisa e cala muitos dos que viveram os limites ininteligíveis de uma contingência absoluta. O exemplo mais conhecido é, certamente, o dos prisioneiros dos campos de concentração e de extermínio na Alemanha nazista, e dele muito se falou nos últimos tempos, embora jamais se falará o bastante a ponto de exaurir o horror de uma experiência como esta.

Escolhi, todavia, como exemplo, um dos reversos da mesma moeda: a experiência das vítimas civis do intenso bombardeio aéreo dos Aliados sobre as áreas residenciais das cidades alemãs nos anos finais da Segunda Guerra Mundial. Recorro aqui às conferências do escritor alemão Winfried Georg Maximilian Sebald, apresentadas no final do ano de 1997 em Zurique, e posteriormente editadas no livro Guerra aérea e literatura. Nelas, Sebald, nascido no ano de 1944, estranha o fato de a literatura alemã do imediato pós-Segunda Guerra não se referir diretamente à catástrofe provocada pelos bombardeios de aniquilamento da aviação aliada sobre cidades e populações civis alemãs. O silêncio dos sobreviventes é, em certa medida, retumbante, eloquente, especialmente quando consideramos os números da destruição registrados nas fontes oficiais, tanto dos Aliados, como de alemães. Só a Royal Air Force britânica lançou, em cerca de 400 mil voos, em torno de 1 milhão de toneladas de bombas sobre 131 cidades alemãs. Foram destruídos 3,5 milhões de residências, houve 600 mil vítimas civis e 7,5 milhões de desabrigados. Na cidade de Colônia, após os bombardeios, havia 31,4 metros cúbicos de escombros por habitante e, em Dresden, 42,8.

Sobre tais horrores, pouco se sabe em detalhe, dado que foram poucos os sobreviventes que se dispuseram a relatar sua experiência. Mesmo quando o fizeram, com raras exceções, se limitaram a fórmulas genéricas, como “o diabo estava à solta”, havia “labaredas no céu”, “era o inferno” etc., sem se referirem ao detalhe e à concretude do acontecido, ao horror do vivido. O recurso a essas fórmulas gerais cumpririam, segundo Sebald, a função de “esconder e neutralizar os acontecimentos que extrapolam a capacidade de compreensão”[5]. A realidade imediata da “destruição total” desaparece do relato testemunhal ao tornar-se “inapreensível em sua extrema contingência”.[6] Neste sentido, segue o autor, “bastante dispersas umas das outras nos mais diferentes aspectos e, em regra, fragmentárias, a maioria das fontes sobre a destruição das cidades alemãs é de uma cegueira extraordinária para a experiência vivida”[7]. Fórmulas gerais silenciam, pela sua expressão na linguagem, a materialidade do que aconteceu.

Sabemos, hoje, dos muitos motivos dessa mudez, da apatia dos sobreviventes, desse “déficit em testemunhar as experiências de então”, enfim, desse silêncio. “Sob o choque do que fora vivenciado, a capacidade de recordação tinha sido, pelo visto, em parte suspensa, ou trabalhava compensatoriamente segundo um plano arbitrário. Os que escaparam à catástrofe eram testemunhas pouco confiáveis, acometidas de uma cegueira parcial”[8]. Os raros detalhes, quando presentes nas narrativas dos testemunhos, não eram confiáveis. O trauma da experiência bloqueara os sentidos.

E não era para menos. As descrições posteriormente reconstituídas, com dificuldade, dos ataques em massa por bombardeiros revelaram o horror. Para ficarmos ainda com os exemplos de Sebald, a Operação Gomorra, desencadeada pela Royal Air Force e apoiada pela Oitava Frota Aérea dos Estados Unidos, com o objetivo de “aniquilar e incinerar a cidade (de Hamburgo) da maneira mais completa possível”, despejou, em 28 de julho de 1943, 10 mil toneladas de bombas explosivas e incendiárias sobre a sua “zona residencial intensamente povoada”.

Seguindo um procedimento já experimentado, bombas explosivas de 4 mil libras [cerca de1.800 quilos] despedaçavam inicialmente todas as janelas e as portas, arrancando-as dos caixilhos; com dispositivos incendiários leves, atingiam-se então os sótãos, ao mesmo tempo em que bombas incendiárias com um peso de até quinze quilos penetravam nos pavimentos mais profundos. Dentro de poucos minutos, em toda a área atacada – cerca de vinte quilômetros quadrados -, queimavam fogueiras gigantescas que iam se juntando em tal velocidade que, quinze minutos após o lançamento das primeiras bombas, todo o espaço aéreo formava um mar de chamas contínuo, até onde se podia enxergar. E, cinco minutos depois, à 1h20, se ergueu uma tempestade de fogo com uma intensidade que nenhum ser humano teria imaginado possível até aquele momento. Chamejando por 2 mil metros céu adentro, o fogo arrebatava o oxigênio com tamanha violência que as correntes de ar atingiram a força de um furacão e trovejavam como órgãos poderosos cujos registros tivessem sido acionados ao mesmo tempo. Esse incêndio durou três horas. No seu ponto culminante, a tempestade levantou frontões e telhados de casas, revirou pelo ar vigas e outdoors inteiros, arrancou árvores do solo e açoitou as pessoas em fuga como se fossem tochas vivas. Por trás de fachadas que desmoronavam, as chamas atingiam a altura dos prédios, rolando pelas ruas como uma torrente numa velocidade superior a 150 km/h e rodopiando em ritmos bizarros pelos espaços abertos, como cilindros de fogo. Em alguns canais a água incandescia. Nos vagões dos bondes; as janelas de vidro derretiam; o estoque de açúcar fervia nos porões das confeitarias. Os que fugiam de seus abrigos caíam em contorções grotescas no asfalto derretido, que rompia em volumosas bolhas. Ninguém sabe ao certo quantos morreram nessa noite ou quantos enlouqueceram antes que a morte os atingisse. Quando a manhã despontou, a luz do sol não atravessava a escuridão de chumbo sobre a cidade. A fumaça subira até uma altura de 8 mil metros e lá se expandira como uma gigantesca nuvem cúmulo-nimbo em forma de bigorna. Um calor latejante, que os pilotos dos bombardeiros relataram ter sentido através da fuselagem de suas aeronaves, foi exalado ainda por muito tempo pelas montanhas de escombros em brasa. Bairros residenciais com uma malha de ruas totalizando duzentos quilômetros estavam completamente arrasados. Por toda parte havia corpos terrivelmente desfigurados. Em alguns ainda tremeluziam as chamas azuladas do fósforo, outros, assados, apresentavam uma cor marrom ou púrpura e tinham minguado a um terço de seu tamanho natural. Jaziam encolhidos nas poças de sua própria gordura já parcialmente resfriada. Em agosto, depois do arrefecimento dos escombros, quando as brigadas de prisioneiros e internos dos campos de concentração puderam dar início aos trabalhos de desobstrução no interior da zona da morte – decretada área interditada logo nos dias seguintes ao ataque -, foram encontradas pessoas que, tomadas pelo monóxido de carbono, ainda se encontravam sentadas à mesa ou apoiadas na parede; em outros lugares, havia pedaços de carne e ossos ou montes inteiros de corpos escaldados pela água fervente lançada pelas caldeiras que explodiram. Outros, por sua vez, foram carbonizados e reduzidos a cinzas pela brasa que atingira a temperatura de mais de 1000 ºC, a tal ponto que os restos mortais de famílias inteiras podiam ser retirados em um único cesto de roupa[9].

Friedrich Reck, que manteve um diário durante praticamente todo o período da guerra, de maio de 1936 a outubro de 1944 (quando foi preso pela primeira vez pelos nazistas; e, numa segunda vez, preso pela Gestapo em dezembro do mesmo ano, foi levado para o campo de Dachau em janeiro de 1945, onde morreu), relata, em 20 de agosto de 1943, o seu encontro com sobreviventes dessa catástrofe:

Eu não sou destes que acreditam em tudo o que lhes contam. Prefiro ver a coisa eu mesmo. E penso que, neste caso, o que eu vi com meus próprios olhos basta. Eu tinha ouvido muito falar sobre o comportamento completamente desorientado e selvagem das pessoas em Hamburgo conforme a cidade ardia, histórias de amnésia, histórias de pessoas vagando pelas ruas vestidas com os pijamas que usavam no momento em que escaparam de suas casas, com os olhos esbugalhados, carregando uma gaiola vazia, sem qualquer memória de um ontem, nem ideia de um amanhã. E isto foi o que eu vi num dia de calor escaldante, no início de agosto, numa pequena estação ferroviária na Alta Baviera, onde quarenta ou cinquenta desses miseráveis perambulavam e, a despeito dos urros raivosos do chefe da estação, invadiam um vagão por uma janela que quebraram, empurrando, pulando, gritando, acostumados agora a lutar por espaço. O que então se passou foi inevitável. Uma mala, um aglomerado miserável de papelão com as bordas rasgadas, [tendo sido lançada à janela] não acertou o seu alvo, caiu de volta na plataforma e se rompeu, revelando seu conteúdo. Havia um monte de roupas, um kit de manicure, um brinquedo. E havia o cadáver assado de uma criança, encolhido às proporções de uma múmia, que a mulher meio louca arrastava consigo como despojos macabros do que, apenas alguns dias antes, fora uma família[10].

Talvez devêssemos mesmo nos silenciar aqui. Não foi à toa que a “capacidade do ser humano de esquecer o que não quer saber” foi tão exercitada na Alemanha do período, tanto pelas vítimas dos nazistas nos campos de concentração e de extermínio, como pelas vítimas alemãs na experiência cotidiana de seus dias nos últimos anos da Guerra.

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A preocupação central das conferências de Sebald está voltada para a análise da literatura alemã do pós-guerra e para a possibilidade de uma “história natural da destruição” que pudesse se referir à materialidade e aos detalhes de tamanho horror. Mas um comentário seu nos ajuda a fazer a transição para o último tipo de silêncio da História de que quero me ocupar. Cito uma última vez o autor:

[…] evento da destruição de quase todas as suas maiores cidades e inúmeras menores – fato que não podia passar de jeito nenhum despercebido e que determina a fisionomia da Alemanha até hoje – constituiu-se como um não dizer nada, uma ausência, característico também de outros campos do discurso, desde uma conversa em família até a historiografia. Parece-me significativo que a corporação dos historiadores alemães, reconhecidamente uma das mais aplicadas, não tenha, até hoje, pelo menos ao que eu saiba, produzido nenhum estudo abrangente, ou mesmo básico, sobre este tema[11].

Esta ausência na historiografia é inquietante, especialmente se notarmos que ela não é exclusiva dos historiadores alemães ou daqueles que sofreram diretamente o trauma da catástrofe. É interessante notar, por exemplo, como o historiador britânico Max Hastings, com inúmeras obras publicadas sobre a Segunda Guerra, abre a introdução de seu livro de 2011, Inferno. O mundo em guerra (1939-1945), com a seguinte frase: “Este livro trata, principalmente, de experiências humanas!”[12] O leitor se espanta e lê novamente a frase para confirmar se é isto o que ali está escrito. Mas, afinal, de que poderia tratar um livro sobre a história da Segunda Guerra Mundial senão de experiências humanas? De modo geral, de que poderia tratar a História senão de experiências humanas?[13] Seria esta uma daquelas primeiras frases que fazem um leitor informado desistir da leitura de um livro? Talvez não se trate de uma bobagem inconsciente. Dita por um autor após escrever oito ou nove livros sobre a Segunda Guerra Mundial, a frase parece nos informar como Hastings se dá conta de que a maior parte das narrativas da guerra, incluídas as dele mesmo, se preocupou com as táticas e as estratégias militares, os combates e as linhas de comando, o números de soldados e de vítimas, os armamentos utilizados, a movimentação das tropas indicando avanço ou recuo etc., mas pouco se disse sobre a experiência dos homens comuns, daqueles que estavam, por assim dizer, debaixo dos bombardeiros e não dentro deles, dos milhões de civis que sofreram a invasão de suas terras, de suas casas, de seus corpos, ou que desapareceram do mapa sem sequer saber o que aconteceu.

Estamos falando aqui de um quarto tipo de silêncio, que é o que mais me interessa neste texto. Não se trata da ausência das fontes ou do silêncio dos testemunhos que dificultam a reconstrução histórica de determinado momento ou acontecimento, mas do fato de que a perspectiva escolhida ou adotada pelo narrador prodúz o silenciamento da própria experiência. O silêncio, neste caso, desloca-se daquele “não dizer nada” das fontes, para o “não dizer do dito” pela narrativa. A forma da história narrada, em suas escolhas, vieses, critérios de relevância, produz, ao ser enunciada, um silêncio que por vezes nem foi desejado.

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A percepção e a crítica deste problema têm uma história ilustre. Em seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Maquiavel criticava os historiadores antigos, e o grande Tito Lívio em particular, por deixarem de lado boa parte da vida histórica dos personagens e heróis que os antigos costumavam enaltecer. No afã de ser pedagógica e de oferecer exemplos perenes para a conduta de cidadãos e generais, a historiografia antiga acabava por sacrificar, em suas narrativas, a precisão e a completude das experiências narradas. Importavam mais as lições da história que serviriam às gerações futuras, os exemplos de virtude que deveriam ser imitados no presente, do que dar conta de aspectos contraditórios de uma experiência complexa. Assim, comentava Maquiavel, os homens que surgiam dessas narrativas antigas pareciam ser sempre superiores aos contemporâneos, exemplos inalcançáveis de virtude e heroísmo, o que produzia a sensação nos leitores modernos de que sua época vivia a decadência ou a diminuição do estatuto humano. Mas, para Maquiavel, os antigos não eram sueriores aos seus contemporaneous, e isso porque os homens, assim como os astros e os elementos da natureza, seriam sempre os mesmos, de modo que a diferença na qualidade da conduta entre antigos e modernos não estava nos seres narrados, mas no viés da própria narração. A verdade ética buscada pelo historiador clássico implicava, segundo Maquiavel, um desprezo não intencional pela verdade factual da experiência histórica. Daí a necessidade de corrigir os relatos dos antigos por uma crítica desenvolvida a partir da observação contemporânea da sempre idêntica natureza humana.

Rousseau também tinha grande implicância com os historiadores, mas por outros motivos[14]. No seu Emílio, livro em que discutia a educação dos jovens, criticou, em primeiro lugar, os objetos de estudo privilegiados pela historiografia. E isso em duas direções. De um lado, criticou a prevalência do que poderíamos chamar os “recortes maléficos”, no sentido de dispostos para o mal. A historiografia, dizia Rousseau, parecia ter uma tara especial pelas catástrofes e revoluções e nunca se preocupava com a “calma de um governo pacífico”[15]. De outro lado, a historiografia só tratava dos homens em ação e só os apreendia quando vestidos “em trajes de gala” (vêtements de parade): “ela só expõe o homem público que se arrumou para ser visto” e “só o pinta quando ele representa”. Nesse sentido, os relatos históricos nos diriam da aparência e dos hábitos, mas não das pessoas, o que enfraqueceria, para Rousseau, o recurso à história no desvelamento da contradição social fundamental entre o ser e o parecer. Em segundo lugar, Rousseau também criticava o processo de conhecimento dos historiadores. Cito: “Os fatos descritos na História (isto é, pela historiografia) não são a pintura exata dos mesmos fatos tal como ocorreram (na empiria histórica): eles mudam de forma na cabeça dos historiadores, são moldados sobre os interesses, ganham a tintura de seus preconceitos”. Por um lado, Rousseau denuncia uma ignorância que é insuperável, pois inerente ao conhecimento dos fatos, o que implica a impossibilidade de se reconstituir a totalidade dos eventos. Uma árvore ou uma lufada de poeira, nos diz o detalhista Rousseau, pode ser decisiva no desfecho de um combate sem que ninguém disso se aperceba. No entanto, o historiador nos explica a derrota ou a vitória nas batalhas como “se estivesse em todos os lugares”. De outro lado, estaria a parcialidade do conhecimento historiográfico que resulta da inevitável adoção de um ponto de vista por parte do historiador. “Coloque um mesmo objeto de diversos pontos de vista, quando muito parecerá o mesmo e, no entanto, nada mudou senão o olho do espectador”. A noção de ponto de vista em Rousseau opera como um deformador de um objeto dado, autônomo e exterior ao sujeito do conhecimento, mas abre caminho para a futura noção de que o ponto de vista é constitutivo do objeto narrado.

Se as críticas anteriores acerca dos recortes maléficos e do olhar exclusivamente público pareciam contornáveis, dado que se orientavam para as opções do narrador, as duas últimas, relativas à ignorância e à parcialidade, indicam elementos constitutivos do trabalho do historiador. O resultado da consideração rousseauniana sobre a historiografia é catastrófico para a pretensão de veracidade do conhecimento histórico e, por consequência, para qualquer uso deste que se justifique por essa exigência de verdade. Pois se a história conhecida só pode ser uma versão, o esforço da erudição e da crítica histórica é inútil. Pergunta-se o autor do Émile: o que é a crítica “senão a arte de conjecturar, a arte de escolher entre muitas mentiras aquela que melhor se assemelhe à verdade?”. Nesse sentido, Rousseau aproxima a historiografia do romance e se declara favorável ao segundo, pois, se tudo é versão, se não é possível conhecermos a razão verdadeira dos fatos, e se não se pode retirar lições de eventos cuja causa verdadeira se ignora, a fidelidade dos fatos importa menos que “a verdade dos costumes e do caráter” desde que o “coração humano seja bem pintado”.

Nesta tradição republicana e crítica, aquela que mais me interessa ao dizer como a História, ao narrar, silencia, está nas observações de Tocqueville, tanto no “Prefácio” de O Antigo Regime e a Revolução, quanto em sua correspondência. No prefácio do livro de 1856, que apresenta uma explicação para a Revolução Francesa de 1789 através do retrato extraordinário da corrupção do Antigo Regime, Tocqueville diz não se importar apenas com a morte do doente, mas que gostaria de compreender como este poderia ter-se salvado[16]. Numa primeira leitura, poderíamos ler tal afirmativa como algo da ordem da nostalgia daquela que fora a ordem social da aristocracia, a classe de origem de seus pais. Contudo, parece mais interessante perceber como Tocqueville está sugerindo um problema teórico bem mais abrangente e que denuncia o fato de que a História, quando narrada do ponto de vista de uma sequência causal explicativa da mudança e interessada em descrever o processo em direção a um ponto determinado de chegada, silencia sobre o que havia de alternativo no caminho, sobre o que poderia ter sido vitorioso, mas que, por motivos diversos, não o foi, se cala sobre a complexidade dos contextos e projetos em disputa a cada ponto do tempo. Saber como o doente poderia ter-se salvado é buscar uma narrativa que reconheça as possibilidades apresentadas pelos vencidos e não só pelos vencedores.

Curiosamente, esta defesa da consideração dos vários projetos em disputa não se dá como exigência erudita, mas como reivindicação ética. É interessante, deste ponto de vista, observar o juízo comum de Tocqueville sobre autores tão distintos quanto Maquiavel, Thiers e Hegel[17]. Tocqueville sentira um “horror singular e a mais violenta antipatia” em relação à Histoire de la Révolution de Thiers por seu “desgosto natural pelo bem”, característica que atribuía igualmente à História de Florença e ao Príncipe de Maquiavel na sua “indiferença pelo justo e pelo injusto”. Para Tocqueville, o “realismo” desses autores os levava a um tipo de História que, sob a capa da objetividade, ocultava uma “estima profunda pelos vitoriosos”. A perspectiva do registro naturalizado de acontecimentos e do estabelecimento de suas causas sem que se os julgasse eticamente, tratava os fatos históricos como dados de uma realidade contra os quais não haveria recurso ou contraditório na medida em que estavam consumados. Não se poderia acusar Maquiavel ou Thiers de ocultarem o lugar da política e o papel de indivíduos e grupos na construção de seus destinos, problema que para Tocqueville era central às narrativas processuais de seu tempo. Entretanto, a ausência de algum juízo eticamente orientado por parte desses historiadores, e a decorrente naturalização dos fatos em suas narrativas, implicavam, de outro modo, dificuldades semelhantes àquelas que ele tanto denunciava no fatalismo e nas doutrinas da necessidade. Tocqueville lamentava as historiografias “realistas” de Maquiavel e de Thiers por retirarem “dos homens sua liberdade e dos atos sua moralidade”.

Para os meus propósitos, o alcance teórico mais amplo da crítica de Tocqueville está em sua apreciação de Hegel, de quem afirmara certa vez ser o “protegido dos governantes”, e isto porque a sua Filosofia da História “estabelecia em suas consequências políticas que todos os fatos eram respeitáveis e legítimos pelo simples fato de terem se produzido e [que, por isso,] mereciam a obediência”, Em outras palavras, se o real é racional, e se a História Universal é a manifestação do espírito do mundo na realização de sua autoconsciência como liberdade, como afirmara a filosofia histórica de Hegel, o que esteve historicamente na contramão do caminho vitorioso que forma a sequência processual da História não teria a dignidade própria do que deve ser narrado. Ainda que tivesse existência no tempo, o que a Hegel não parecia contribuir para a elaboração do Estado de direito como o apogeu da autoconsciência da liberdade ficava fora da História, silenciado em sua irrelevância.

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O que eu gostaria de acrescentar à crítica tocquevilliana das concepções processuais de história poderia ser formulado da seguinte maneira: a busca de um sentido para a História Universal, tal como se deu no século XIX e em boa parte do século XX, resultou na exclusão, da narrativa da História, da maior parte da experiência humana na Terra e no silenciamento do que Hegel chamou a “prosa do mundo”.

Tocqueville tem razão ao acusar a filosofia histórica de seu tempo de buscar nos motores não humanos a origem do movimento da História. Hegel nos descreve a História Universal (ou mundial – Weltgeschichte) como o percurso realizado pelo Espírito no mundo, percurso cujo sig nificado está no processo dialético e contraditório de aquisição de sua autoconsciência. Poderíamos formular a tese em termos talvez mais adequados a nossa linguagem comum atual: a humanidade, ao realizer sua caminhada no tempo, encarnada em cada uma das grandes experiências civilizatórias – começando pelo Oriente, passando pelo nascimento da metafísica na Grécia, pelo Cristianismo em Roma, pela Reforma Protestante, pelo Século das Luzes-, conquista consciência de si própria, de sua condição material e espiritual, e realiza a razão na própria História. De modo tal que, olhada do ponto de vista da filosofia hegeliana, tornara-se possível reconhecer, pela primeira vez, a totalidade da História humana como algo dotado de sentido, isto é, tanto de direção como de significado. Vista dali, a História Universal aparecia como a autobiografia do espírito, uma história do que o espírito humano realizou no tempo, narrada pelo próprio espírito agora consciente de si e de sua história.

Como na maior parte das filosofias históricas do século XVIII e do XIX, para Hegel os homens fizeram a História sem saber que o faziam. Afinal, nem mesmo o conceito de uma História Universal, enunciada no singular coletivo para indicar a totalidade da aventura humana na Terra, existia antes de fins do século XVIII. Na filosofia hegeliana, o mecanismo de realização inconsciente do progresso da autoconsciência do espírito foi denominado a astúcia da razão. Apesar da inconsciência e da limitação do horizonte de expectativas dos atores históricos a cada ponto da encarnação do espírito numa experiência civilizatória, o resultado das ações humanas produziu a racionalidade de um processo que se tornou inteligível pela Filosofia da História. O real tornara-se racional e a razão se realizara no mundo, a despeito da inconsciência humana inicial. Este processo pode, então, ser descrito como originado da providência divina, e Hegel o diz, ou da razão que se faz História. Por isso Tocqueville pode dizer que a força que faz mover o mundo de Hegel não é humana, mas metafísica e abstrata. Daí também Tocqueville denunciar a filosofia hegeliana como uma espécie de História dos vencedores, dos poderosos, pois o que foi vencido a cada estágio do desenvolvimento do espírito deixa de ser relevante, deixa de ser racional, ainda que tenha colaborado, como oposição, como trabalho do negativo ou do contraditório, para a vitória da Razão. Para Tocqueville, e para mim também neste caso, esta concepção confunde a vitória contingente daqueles que tiveram o poder de vencer a cada ponto com um passo adiante da racionalidade, como consequência lógica do processo, e a concepção de que o real é racional acaba por legitimar o mundo tal qual se apresentava a Hegel em pleno século XIX.

Do meu ponto de vista, marcado pelos horrores do século XX e por toda a experiência do colonialismo europeu, importa salientar como esta concepção excluiu da História Universal o que se experimentou e se sofreu no Oriente, à exceção de seus primórdios, na África, na Oceania, na América Central e na do Sul, regiões que aparecem como incapazes de contribuir para o avanço da consciência de si do espírito, para a realização da Razão. O que ali se passou não importa, não é digno de narração, não foi necessário para a razão. Em sendo experiência sem autorreflexividade, ou sem metafísica, como exigia a universalidade hegeliana, aparece como pura contingência. São experiências vividas à margem da História, pois não se ordenam segundo o seu conceito.

Ora, nos aproximamos aqui, quase sem o percebermos, do cerne, na definição hegeliana, da prosa do mundo. No livro I de sua Estética, em capítulo dedicado a “O belo natural”, numa seção em que expõe o que denominou “A deficiência do belo natural”, Hegel define a prosa do mundo:

Esta é a prosa do mundo, tal como aparece à consciência tanto de um quanto de outro indivíduo, um mundo da finitude e da mutabilidade, do entrelaçamento no relativo e da pressão da necessidade à qual o indivíduo singular não é capaz de se subtrair. Pois cada vivente singular permanece preso à contradição de ser para si mesmo fechado enquanto este ser uno e igualmente depender dos outros; e a luta pela solução da contradição não consegue ultrapassar a tentativa e a continuação da constante Guerra[18].

Não posso discutir aqui o conceito hegeliano do Belo que dá sentido a esta afirmação. Gostaria, porém, de apreender alguns dos elementos citados na passagem como indícios do que, estando na base do conceito de História Universal, produzem o silêncio da prosa do mundo em Hegel. Notem-se os termos do que aparece como deficiente: a finitude, a mutabilidade, o entrelaçamento no relativo e a pressão da necessidade, enfim, a contradição entre ser uno, de um lado, e depender dos demais, de outro. Trata-se, aqui, do que é contingente, do que não é da ordem do necessário, do que não é conforme a Razão, do que não alcançou a totalidade, isto é, do que não condiz com o conceito do Universal e do Absoluto. A prosa do mundo é relativa e finita. enredada num cotidiano desprovido de dignidade racional, pois incapaz de sair de si, de ultrapassar os limites do prosaico, de realizar o espírito universal.

Devo dizer que minha admiração por Hegel é enorme. Quando olho sua dedicação à busca da ultrapassagem do finito e do relativo para encontrar uma verdade que não seja local, mas universal, que se imponha por sua própria grandeza e torne os homens livres, não há como não me emocionar. Quando percebo também o que seria da História se ficasse enredada nas infinitas necessidades de cada um, nos acontecimentos diários, ordinários, da vida privada de cada ser humano, tendo a concordar com a proposição de que a História, como conhecimento do humano, não pode confundir-se com o prosaico a ponto de perder-se na infinitude do mapa borgiano e, com isso, tornar-se inútil e irrelevante. Como bem disse Hannah Arendt em seu livro sobre a revolução: “O que salva os assuntos dos humanos mortais de sua futilidade inerente não é senão a incessante conversa a respeito deles, a qual, por sua vez, também permanecerá fútil a não ser que dela surjam certos conceitos, certos pontos de referência para uma lembrança futura ou mesmo uma mera menção”[19].

Mas não posso deixar de acusar neste tipo de concepção do universal a sua dependência a um absoluto metafísico que reivindica uma normatividade que se tornou inaceitável depois do século XX. Dizendo de forma talvez mais simples: a noção de universal ou de mundial que organiza a filosofia da História funda-se em critérios de seleção e de relevância que excluem da narrativa da História a maior parte do vivido, aquela parte que, segundo estes mesmos critérios, não evidenciam qualquer contribuição para a autoconsciência do espírito e a realização da razão na História, aquilo que se relega como prosa da História. Talvez, por isso, a História tenha se acostumado a narrar as grandes manobras militares da guerra, sem dar atenção ao bebê que cai da mala de papelão da sobrevivente de Hamburgo. Talvez por isso se tenha falado da democracia liberal como fim da História a despeito dos genocídios em terras africanas. Talvez por isso se tenha silenciado, nas histórias da Segunda Guerra, sobre os 15 milhões de chineses mortos desde o início do conflito sino-japonês. Talvez por isso não se devesse referir aos corpos assados no asfalto em derretimento no calor das bombas incendiárias dos Aliados, depois disso vitoriosos. Estes são, certamente, aspectos da finitude e do relativo da guerra, do que se passou com um ou outro indivíduo na particularidade de sua vida miserável. Mas foi isto também o que o humano experimentou naquele século que prometia ser o auge do progresso da ciência e da técnica modernas.

Deixo sem conclusão estes temas da palavra que produz o silêncio, da História que ao se apresentar como universal silencia a maior parte do que se viveu no mundo. E, como comecei com Borges, termino com ele. O nome do poema: “Uma bússola”, publicado no livro O outro, o mesmo, de 1964:

Uma bússola

Todas as coisas são palavras lidas

Na língua em que Algo ou Alguém, noite e dia,

Escreve essa infinita algaravia

Que é a história do mundo.
Em sua corrida

Passam Cartago e Roma, minha vida
Que não entendo, eu, tu, ele, a agonia:

Ser enigma, acaso, criptografia

E as vozes de Babel desentendidas.

Atrás do nome há o que não se cita;

Hoje senti sua sombra que gravita
Na lúcida agulha azul que circula
Leve, obstinada, até o fim do mar
Com algo de relógio num sonhar,

E algo de ave dormida que tremula[20].

Notas

  1. John Langshaw Austin, Quando dizer é fazer. Palavras e ação, trad. Danilo Marcondes, Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
  2. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Filosofia da História, 2. ed., trad. Maria Rodrigues e Hans Harden, Brasília: Editora UnB, 1999, p. 56.
  3. Jorge Luis Borges, Obras completas, v. II (1952-1972), São Paulo: Globo, 2000, p. 247.
  4. Mary Gabriel, Amor e capital. A saga da família de Karl Marx e a história de uma revolução, trad. Alexandre Barbosa de Souza, Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 15.
  5. Winfried Georg Maximilian Sebald, Guerra aérea e literatura, trad. Carlos Abbenseth e Frederico Figueiredo, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 30.
  6. Idem, ibidem, p. 31.
  7. Idem, ibidem, pp. 26-27, grifo do autor.
  8. Idem, ibidem, p. 30.
  9. Idem, ibidem, pp. 32-34.
  10. Friedrich Reck, Diary of a man in despair, trad. Paul Rubens, New York: New York Review Books, 2013, anotação de 20 ago. 1943. Fiz a tradução para o português desta edição em inglês.
  11. Winfried Georg Maximilian Sebald, Guerra aérea e literatura, op. cit., p. 66.
  12. Max Hastings, Inferno. O mundo em guerra 1939-45, trad. Berilo Vargas, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, p. 9.
  13. O original inglês traz a expressão This is a book chiefly about human experience, no singular, o que não altera o meu ponto aqui.
  14. Repito aqui, quase literalmente, trechos do que escrevi sobre Rousseau em: Marcelo Jasmin, Racionalidade e história na teoria política, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
  15. Todas as citações traduzidas de Jean-Jacques Rousseau, Émile ou De l’Éducation, Paris: Garnier, s.d. [1757], pp. 272 – 75.
  16. “Não quis apenas ver de qual mal sucumbiu o doente, mas como poderia não ter morrido. Fiz como os médicos que, em cada órgão destruído, tentam surpreender as leis da vida'”. Alexis de Tocqueville, Œuvres complètes, edição definitiva publicada sob a direção de J. P. Mayer, tomo II, v. 1, L’Ancien Régime et la Révolution, vol. 1. Paris: Gallimard, 1953, p. 73.
  17. Retiro os comentários de Tocqueville dos textos citados em: Marcelo Jasmin, Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política, 2ª ed., Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora da UFMG/luperj, 2005, pp. 212-16.
  18. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Cursos de estética, 2ª ed. rev., v. 1, trad. Marco Aurélio Werle, São Paulo: Edusp, 2001, p. 161.
  19. Hannah Arendt, On revolution, New York: Penguin Books, 1973, p. 220. Devo a lembrança desta citação a Eduardo Jardim.
  20. Jorge Luis Borges, op. cit., p. 276.

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