2003

Soberania do povo, poder do Estado

por Carlos Frederico Marés

Resumo

O final do século XX assistiu com incredulidade à relativização da soberania popular e da propriedade privada, em decorrência da criação de blocos econômicos e da necessidade de reconhecer direitos coletivos, como os do meio ambiente. Sinais de uma sociedade doente. Afinal, em dois séculos, o que houve foi o acúmulo de riqueza e a consequente produção de miséria.

Com efeito, no Vietnã, os Estados Unidos criaram um governo fantoche, que, sob pretexto de ser defendido, demandou muito sangue. Já, no Chile, os Estados Unidos depuseram à força um governo legitimamente instituído, a que se seguiu uma ditadura extremamente cruel.

Casos parecidos aconteceram no Panamá, Golfo Pérsico ou Kosovo.

O Estado contemporâneo nasceu na Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII. Foi realmente um parto, que demandou guerras, revoluções, e imposições severas, que resultaram em noções de ciência, religião e política completamente novas. Copérnico, Lutero, Hobbes, Locke, Morus, Rousseau, Bodin, Calvino, Galileu, Montesquieu, Bartolomé de las Casas…

A Revolução Francesa inaugurou formalmente o novo estado de coisas, sobretudo ao instituir uma “Constituição”. O poder passou a desempenhar um papel social, seu por direito natural e, a partir de então, tal criação ocidental encontrou no expansionismo sua força e na verdade única sua marca.

De fato, força e marca confundem-se em tal tradição. Tanto que, em dois séculos, o mundo foi dividido em Estados nacionais, inclusive nas mais inóspitas regiões, a exemplo da Antártida.

Há hoje, contudo, algo de superior a tal força. É o bloco econômico, de que a União Europeia é exemplo. E isso à revelia da vontade do povo, do cidadão, já que é como se o Estado estivesse criando sua própria forma de dissolução.

Para que se entenda melhor tal processo, é preciso pensar a soberania e a propriedade, já que são tais os fundamentos do Estado contemporâneo.

A soberania foi constituída para ser una, indivisível, inalienável, imprescritível e de domínio popular. Por isso, ela deveria ser um constructo racional, embora envolvesse tanta paixão. Por isso, afirmava Locke que o Estado deveria preservar a liberdade e a propriedade individuais, por meio de julgamentos e pleitos, de acordo com as leis. Não foi o que aconteceu. Não, pelo menos, em grande parte do Ocidente. Antes, o povo foi, progressivamente, entregando-se à submissão, de modo a, através da transferência dos poderes, ser esquecido, exceto em seu direito de exercer a individualidade a partir de um sentimento próprio de cultura conjunta. O que houve, enfim, foi que, amparado numa constituição absoluta e na lei como argumento de legitimidade, o Estado transformou a propriedade em meio de exclusão. Até porque ele, mais do que se ir instituindo, foi criado. Mais: passou de um instrumento regulador a um sistema de exploração do homem pelo homem, que se autolegitima por meio de normas obrigatórias como se elas fossem de interesse geral.

Já no que se refere à propriedade privada, o direito foi-se instituindo a partir dela como um bem que pudesse ser usado, fruído, gozado. Uma vez que tal propriedade é material, concreta, disso decorre que o direito individual também o é. Por isso, a minúcia do código civil, que trata de questões que vão desde o caso do fruto de uma árvore plantada numa propriedade que cai em outra até a transmissão por hereditariedade de uma fazenda de 100.000 hectares. O código civil brasileiro, por exemplo, dedica um capítulo inteiro à propriedade. Nele, há nada menos do que 50 artigos sobre o assunto, sem que haja uma única definição dele, dispondo-se, nesse sentido, que: “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar, dispor de seus bens, e de reavê-lo do poder de quem quer que injustamente os possua”.

Fato é que até John Locke, primeiro defensor do modelo social burguês, a civilização – cristã, note-se – entendia propriedade como uma “utilidade” (ou um “utendi”). Já, para Locke, ela assume um caráter subjetivo independente. Certo que tal definição pressupõe, como fundamento, o trabalho, já que cada indivíduo é dono de seu corpo; logo, do que ele produz. Como há em Locke um lastro de Tomás de Aquino a contradição permanece; afinal, segundo se lê no “Tratado do governo civil”, tudo que alguém pode usar para o bem de sua vida, antes que se deteriore, será o que lhe é permitido possuir através do trabalho. Mas tudo que exceda será de outro.

Há, contudo, uma diferença fundamental entre as noções de propriedade para Tomás de Aquino e para Locke. É que, para este, não basta a falta de uso ou o excesso de propriedade para ela seja alienada; é preciso, também, que ela esteja se deteriorando. Sob qualquer outra condição, é permitido o acúmulo de terras, por exemplo. Até porque elas podem ser trocadas por ouro, que não se deteriora.

Justifica-se a acumulação capitalista.

Daí que se privilegiou o indivíduo em detrimento do povo. Foi assim que a soberania emprestada ao Estado usurpou a coletividade. Não que haja em Locke tal caráter absoluto da propriedade.

De todo modo, seria preciso que Rousseau invertesse a relação, ao afirmar que “o direito de cada particular sobre sua propriedade está subordinado ao direito da comunidade sobre todas as coisas”.

Não foi, claro, o que aconteceu.

Se desde o começo do século XIX a propriedade absoluta foi sofrendo restrições – administrativas, urbanísticas, trabalhistas etc. –, a questão, hoje, é mais complicada. Isso porque o objeto do direito, inicialmente material e físico, começa a tornar-se inatingível, como os direitos de autor e, mais recentemente, os de marca, sobretudo depois do surgimento da esfera virtual. Junto, surge o direito coletivo, seja homogêneo, como o de um grupo de consumidores, seja difuso, como o de manutenção de um meio ambiente equilibrado.

O capital, sobretudo em sua expressão imaterial, globaliza-se. E isso em detrimento dos Estados, do conhecimento tradicional, dos ecossistemas e das culturas regionais, à maneira de soberanias locais. Por isso, a urgência do seguinte dilema: ou tais soberanias mantêm-se, ou voltam-se para o sistema internacional.


Introdução

O mundo assiste, neste final de século, temeroso, estarrecido ou incrédulo à relativização dos dois pilares do Estado contemporâneo: a soberania, formalmente apresentada como supremacia das constituições nacionais, e a propriedade privada, maior expressão dos direitos individuais. A criação de supra-estados, como a comunidade europeia, enfraquece o conceito de soberania, e a necessidade de reconhecer direitos coletivos, como os de meio ambiente, limitam o exercício do direito individual de propriedade.

Esta profunda crise é o corolário da doença congênita do sistema. Na realidade, tanto a soberania como a propriedade privada nasceram como ideais libertários, mas nunca conseguiram passar de falaciosos e inatingíveis programas inseridos nas normas jurídicas. A soberania foi concebida como a verdadeira representação da vontade de todo o povo expressa em leis legítimas por justas. A propriedade privada foi oferecida a cada cidadão, trabalhador livre, senhor de seu trabalho, de sua força e de seu patrimônio. Mas, mesmo recentemente, a manutenção da idéia da soberania somente resistia a duvidosos pretextos, como a formação de governos de mentira, formais e não populares, como o Vietnã e o Chile. A livre propriedade em dois séculos, longe de ser a conquista do trabalho, foi o objeto de acumulação de riqueza e produção de miséria, as pessoas não foram integradas como cidadãos, nem a propriedade foi socialmente útil à felicidade geral.

De fato, no Vietnã, os Estados Unidos criaram um governo fantoche em Saigon e imediatamente, à guisa de defendê-lo e protegê-lo da ameaça interna, promoveram uma das mais sanguinárias guerras deste século. Assim foi também o Chile, os Estados Unidos promoveram um golpe de estado interno, com apoio clandestino, emprestando pilotos de esmerada pontaria, para combater o avanço do socialismo pelo voto que estava sendo promovido por Salvador Allende. Derrotado o governo constitucional, os EUA esperaram que fosse instalado e institucionalizado o governo militar para reconhecê-lo e festejá-lo abertamente. A soberania, a autodeterminação, a supremacia das constituições nacionais estavam formalmente defendidas, mas o povo de cada um desses países tivera sua vontade soberana duramente violada.

Poucos anos se passaram e essas sutilezas não foram mais utilizadas e o mesmo império não hesitou em entrar no Panamá para sequestrar uma cria sua, o presidente Noriega, que por qualquer razão lhe havia escapado ao controle, nem precisou de pretextos beneméritos para travar a guerra do golfo ou promover uma invasão em Kosovo.

NASCIMENTO E OCASO DO ESTADO CONTEMPORÂNEO

O sonho que inspirou o estado contemporâneo nasceu na Europa e foi sendo disseminado por todo o mundo não sem guerras, revoluções e imposições, tornando-se em alguns lugares e para alguns povos em longo pesadelo. Foram trezentos anos de elaboração teórica e luta prática que marcaram os séculos XVI, XVII e XVIII na Europa e que mudaram os conceitos de ciência, religião e política. Copérnico, Lutero e Hobbes são apenas três nomes que apresentaram e demonstraram teorias e propostas de inovação ao mundo a que se convencionou chamar de civilizado. Outros nomes foram se agregando, Locke, Morus, Rousseau, Bodin, Calvino, Galileu, Montesquieu, Bartolomé de Las Casas e uma interminável lista completando um pensamento que teria como resultado a criação do estado contemporâneo assentado num sistema jurídico que pretendia ter regras claras e de execução pronta.

No final do século XVIII, a revolução francesa inaugurou formalmente este Estado, fundado na Constituição que o organiza e descreve, garantindo os direitos dos cidadãos. Chamar este ato formal de “Constituição” revela a idéia de que antes dele, Estado não havia. Constituir quer dizer fazer, organizar, dar nascimento. Um Estado que tem constituição é o que foi feito, organizado, nasceu.[1]

Os pensadores deste novo Estado imaginavam que ele não poderia existir se o povo não lhe outorgasse livremente suas prerrogativas e poderes, isto quer dizer que todos os poderes e todas as prerrogativas pertenciam ao povo, como direito natural. No começo do século XVI, na Espanha, Bartolomé de Las Casas reconhece esta situação como fato:

“Viendo los hombres que no podían vivir en común sin jefe, eligieron por mutuo acuerdo o pacto desde un principio alguno o algunos para que dirigieran gobernaran a toda la comunidad y cuidaran principalmente de el bien comun. Y así se evidencia que el dominio del hombre sobre el hombre tuvo su orgen y procedencia en y procedencia en el derecho natural, y fue perfeccionado y confirmado por el de ias gentes”.[2]

A concepção da organização social imediatamente anterior, dos reis despóticos, era fundada em direitos divinos, místicos ou religiosos e portanto a soberania descenderia não dos poderes do povo e de sua vontade, mas de inspiração divina, ainda no século XIV havia autores que defendiam esse direito divino dos reis. A ideia nova era de que o direito dos governantes não podia mais provir dos deuses, mas dos governados, aliás exatamente contra essa tese se insurge Locke no Primeiro Tratado Sobre o Governo Civil. Locke dizia que para se admitir esta tese haveria de se considerar que os homens não nascem livres, nem nunca o serão. Isto mostra que desde Locke a idéia da gênese do poder civil, do governo, está plantada na liberdade individual. Exatamente por isso, esse direito dos governantes é humano, civil, fruto de mútuo acordo ou pacto, como dizia Las Casas.

Ao pacto, no século XVIII, se deu o nome de constituição. Todos os poderes do povo livre seriam transferidos ao Estado ou expressos na sua Constituição, que, por sua vez, não poderia admitir nenhum poder que a subjugasse, salvo a vontade do próprio povo. Entretanto, o povo somente poderia expressar sua vontade pelos meios que a própria Constituição estabelecesse, isto quer dizer, a soberania popular se transferiria para a Constituição que não poderia admitir nada que lhe fosse superior. A supremacia da Constituição, nesta concepção, seria a única garantia da manutenção da soberania popular.

O nascimento deste Estado, ou sua constituição, tem, portanto, data e lugar certos: é europeu dos séculos XVIII/XIX. Isto diz muito e não apenas que não é africano, nem asiático, nem indígena das Américas, é fruto de uma tradição judaico-cristã que se auto-intitulou civilização e que tem no expansionismo sua força e na verdade única a sua marca.

Força e marca se confundem nesta tradição, porque a cultura que a encerra, exatamente por acreditar ser a verdade revelada, única, tem propósitos expansionistas. E de tal forma expansionista que dois séculos bastaram para que todo o mundo fosse dividido em estados nacionais submetidos cada um a sua própria Constituição, revelando a força dominante da ideia. Não há um único pedaço da terra que não esteja sob a jurisdição de um Estado, mesmo as mais inóspitas e inabitadas regiões e, quando se descobre uma nova possibilidade de território, rapidamente se distribui entre os estados existentes, como a Antártida.

Neste final de século, porém, estão sendo criados supra-estados, como a União Europeia, que estabelecem um poder acima das constituições nacionais. Estas criações rompem com a tradição porque não nascem, nem teoricamente, da vontade do povo, dos cidadãos, mas da vontade dos próprios Estados. O rompimento se dá na base teórica da criação, porque não aproveitaram a soberania popular emprestada aos Estados.

A ideia evoluiu da seguinte forma: os teóricos afirmavam que a soberania era do povo, que a entregaria aos Estados por meio de um hipotético contrato social. Na prática o Estado fez da soberania a supremacia da constituição, isto é, transformou o ideal em forma jurídica que poderia ser alterada formalmente e sem a participação do povo. A criação dos supra-estados anula a supremacia das constituições, isolando o novo estado dos povos que habitam o território jurisdicionado.

Por outro lado, não é apenas a organização estatal e a supremacia da constituição que estão à prova neste final de século, o direito individual que é a razão de ser do próprio Estado constitucional, também. O surgimento de direitos coletivos e o seu reconhecimento pelos ordenamentos jurídicos trouxe à discussão a essência do direito individual de propriedade. O direito coletivo ao ambiente sadio, ao patrimônio cultural, ao desenvolvimento segundo cânones culturais locais põe em cheque a manutenção do direito de propriedade tal como foi concebido no final do século XVIII e organizado no século XIX.

Assim, a crise do Estado contemporâneo, ou seu ocaso, se dá em um lado pela globalização e, portanto, pelo enfraquecimento da supremacia das constituições ou da soberania, e de outro, pelos direitos coletivos constitucionalizados que abrem fissuras no sistema, levando para o mundo local o que antes era universalmente reconhecido como direito individual. Quer dizer, o global fere a constituição e o local arranha a propriedade individual, essência do velho sistema.

SOBERANIA E PROPRIEDADE

A soberania e a propriedade são dois lados da moeda chamada Estado nacional, ou constitucional, ou burguês, ou capitalista. Os dois conceitos são filhos do processo criativo dos intelectuais europeus dos séculos XVI, XVII e XVIII, ambos estão plasmados nas Constituições que vieram organizar os estados. Para a existência do Estado é necessário que ele seja soberano, isto é, possa decidir por si mesmo o seu destino e suas mazelas. E ele existe, soberanamente, para garantir aos cidadãos seus direitos. Resumindo as contas dos direitos individuais, chegamos facilmente à propriedade como o direito que fundamenta todos os outros e dá, afinal, sentido às normas jurídicas, portanto, os Estados nacionais foram criados exercendo a sua soberania para garantir os direitos individuais de propriedade. Isto explica a sincronia e coerência da liberdade, igualdade e fraternidade com a propriedade privada.

Por esta mesma razão os estados nacionais latino-americanos foram criados a partir de guerras de libertação, nacionalistas, individualistas e protetoras da propriedade privada, por elites locais que se apoiaram nos povos indígenas, nos negros a quem prometeram liberdade, e na massa de pobres das cidades e dos campos. Os ideais libertários apenas fizeram com que todos os trabalhadores livres pudessem vencer sua força de trabalho e quem a pagasse poderia acumular riquezas porque seria livre a aquisição de propriedades.[3]

Os Estados constituicionais nasceram, assim, sob o signo da esperança de construir comunidades de indivíduos, todos iguais em direitos, fraternal e mutuamente respeitados e livres para manifestar suas vontades individuais e soberanas, cujo único limite seria a individualidade e liberdade alheia.

Ao Estado, a função só de garantir estas liberdades e os direitos. O objetivo da república é a segurança dos particulares, dizia Hobbes no Leviatã, o Estado-protetor, como o chamou, estaria apto para defender as pessoas dos ataques e dos prejuízos que outros lhes causassem. É bem verdade que o século XIX e suas contradições se incumbiram de desmanchar o sonho: nem todos os homens e mulheres conseguiram ou quiseram ser cidadãos e nem o Estado pôde garantir a todos os que chegaram a sê-lo mais direitos que a garantia do patrimônio adquirido. A propriedade seria para poucos porque o processo de acumulação acelerado possibilitado pelos direitos garantidos pelos estados nacionais geraria na outra ponta um exército de miseráveis. Os índios, negros e pobres seriam sumariamente esquecidos nas novas leis.

Nas lutas de independência na América Latina, que criaram os estados nacionais do continente, sempre ficaram muito claros estes dois lados, a soberania nacional e o direito, a lei, a propriedade. Inscrita com letras douradas no frontispício do Palácio da Justiça, na Praça Bolivar, em Santafé de Bogotá, está a frase do General Santander, herói da libertação: “Colombianos: las armas os han dado la independencia, las leyes os darán libertad.”[4]

É exemplar a frase de Santander. As lutas realmente criaram países independentes, soberanos, que foram constituídos no modelo europeu, portanto escreveram suas Constituições e adotaram leis garantidoras de direitos, especialmente os de propriedade. A liberdade de que falava Santander nada mais era do que a liberdade de adquirir propriedade com a venda de sua força de trabalho, para isso ele era livre. Cada homem livre que adquirir propriedade pode contar com a organização estatal que o garantiria com um forte aparato burocrático e policial.

Dizia, textualmente, a Constituição francesa do ano 1(1793): “O Governo existe para garantir ao homem o gozo dos seus direitos naturais e imprescritíveis.” (artigo 1º). O artigo 2º esclarecia quais eram estes direitos naturais e imprescritíveis: “a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade”.[5] A Constituição de Cádiz[6]estabelecia claramente que a propriedade era o direito individual mais importante: “A Nação tem o dever de conservar e proteger, por meio de leis sábias e justas, a liberdade civil, a propriedade e os demais direitos legítimos de todos os indivíduos que a compõem.”[7] Direitos legítimos seriam aqueles propriedade estava criada, como direito, na Constituição, lei superior, isto deixa claro que nenhum direito pode ser contrário ao direito de propriedade.

A primeira Constituição portuguesa, de 1822, dispunha: “A Constituição Política da Nação Portuguesa tem por objeto manter a liberdade, segurança e propriedade de todos os portugueses.” E mais adiante definia que a propriedade é um direito sagrado e inviolável de se dispor à vontade de todos os bens (artigo 6º). A brasileira de 1824 seguia o mesmo tom, menos apaixonado, mas de semelhante conteúdo:

Art. 179: A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:

XXII — é garantido o direito de propriedade em toda sua plenitude. Se o bem jurídico legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção, e se dará as regras para se determinar a indenização.

Assim, soberania e propriedade são as duas bases do estado contemporâneo, mas foram pensadas de forma diferente pela teoria formadora, por isso vale a pena ir às origens e evolução destes dois conceitos para melhor entendermos a sua crise atual.

A SOBERANIA É DO POVO

A soberania foi pensada como uma criação dos homens em sociedade como uma construção ou invenção que os fizesse gerir seu próprio destino, teria, para isso, que ser una, indivisível, inalienável, imprescritível e pertencente ao povo. Neste sentido, a ideia de soberania sempre esteve enlaçada à razão, embora tanta paixão a envolva. Dizia Locke que o Estado tem a função de preservar a liberdade e a propriedade de cada um, julgando as disputas e pleitos de acordo com as leis que forem feitas, mas que o limite da execução destas leis é o próprio país e, em relação ao estrangeiro, dizia: “… si se trata de relaciones con el extranjero, debe impedir o castigar ias injurias que vengan de fuera, proteger a la comunidad contra incursiones e invasiones”.[8] Com esta afirmação Locke conclui o raciocínio explicativo de como um povo renuncia à vida natural de total liberdade para se submeter ao Estado, à organização civil, daí que a soberania do Estado faz parte do pacto social ou nasce a transferência da soberania ou dos poderes do povo.

O povo, titular da soberania, poderia entregá-la a um rei ou constituir um Estado. O rei, sem Estado constituído, seria um déspota, e o Estado se não garantisse os direitos do povo transformaria o governo em tirania. Mas, mesmo uma soberania usurpada e exercida com mão de ferro, continuava tendo o povo como titular e, então, lhe caberia o direito de reivindicá-la, lutar por ela, reconquistá-la de quem injustamente a detivesse, para libertá-la, ganhando de volta sua liberdade.
Um século depois de Locke, Rousseau escreveria O contrato social em que desenvolveria esta ideia de soberania popular com mais precisão. A soberania era, assim, o poder que o povo transferia pelo pacto ao Estado (soberano), que escrevia as leis para exercício interno e garantia externa. “Como a natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e este poder é aquele que, dirigido pela vontade geral, leva, como já disse, o nome de soberania.”[9]

Na concepção de Rousseau, a soberania pertence ao povo que a empresta ao Estado ao constituí-lo, mas não a aliena, nem a transfere definitivamente, continua sendo seu titular e se o Estado descumprir o mandato poder soberano que lhe é emprestado, é legítimo ao povo reivindicá-lo de volta, se insurgir contra a tirania usurpadora, por isso mesmo a soberania é imprescritível, inalienável e indivisível. Esta ideia está presente desde Santo Tomás, passando pelos mais importantes pensadores dos séculos de formação do Estado contemporâneo.

Assim, é claro que para toda a teoria política formadora, a soberania, em toda sua dimensão interna e externa, nasce de um pacto de todos os homens para formar um governo que garanta suas propriedades internamente de quem injustamente as reivindique e externamente dos outros países que injustamente os queira subjugar. O sentido da soberania do Estado contemporâneo está ligado à idéia da democracia ou da participação popular.

Os Estados nacionais ao se constituírem, porém, arrebataram para si a soberania do povo e esqueceram a teoria formadora, assim como esqueceram os próprios povos. O argumento lógico, racional e de aparente coerência para o esquecimento é que o Estado, ao traçar seus limites na Constituição escrita por todos, de legitimidade reconhecida por todos, amada por todos, certamente não seria usurpador, mas legítimo depositário da soberania popular. Se o povo, em contrato social firmado com liberdade e consciência, entregara ao Estado a soberania, nada mais justo que, fundado no direito, a exercesse com dignidade, garantindo internamente os direitos individuais e externamente a autodeterminação sobre todo o território. Ao povo restaria o direito de ser indivíduo, cidadão e não coletividade organizada, com sentimento próprio e cultura conjunta. O reconhecimento da cidadania individual implicava, assim, a desconstituição de qualquer ente coletivo que não fosse o próprio Estado.

Assim se constituíram os Estados nacionais contemporâneos, distanciando-se dos povos e criando um governo teoricamente independente, tendo a Constituição acima de tudo e a lei por argumento de legitimidade. Os governos mudam, são bons ou maus, o povo, por seus representantes, expressa sua vontade constituinte, faz leis que os órgãos do estado cumprem e os governantes obedecem e o Estado sobrevive a estas idiossincrasias humanas.

O pressuposto lógico desta verdade estatal era o de que todos os homens e mulheres, crianças ou velhos, participariam da vontade soberana na constituição do poder. Triste e teimosa a realidade, porém, nunca se amoldou ao pressuposto. Ao contrário, a Constituição “constitui” o Estado nacional e garantiu direitos, mas escolheu como direito principal a propriedade e a partir dela construiu o arquétipo jurídico contemporâneo, tentando evitar que as necessidades do povo soberano obnubilassem o brilho do sistema proprietário. A propriedade, tal como concebida, não poderia ser instrumento de coesão porque era instituto da exclusão.[10]

A soberania, interna e externa, passou a ser coisa do Estado e com o passar do tempo foi totalmente esquecida a sua origem e as discussões atuais a tratam fora do âmbito do povo. Até mesmo o termo autodeterminação dos povos passou a ser tratado como coisa do Estado, porque somente se reconhece esta autodeterminação quando o povo deseja se constituir em Estado, como o povo palestino, mas se já há um outro Estado que o engloba, o direito é postergado, como ao povo basco, e se o povo não se propõe a constituir Estado menos ainda se lhe reconhece este direito, como aos povos indígenas da América. Imediatamente constituído o Estado, dele é a autodeterminação e soberania.

O paradoxo deste Estado, porém, é que foi criado exatamente porque não há unidade do povo, porque as contradições internas são tão profundas e irreconciliáveis que foi necessário inventá-lo para que as contivesse, mas para ter legitimidade, ser reconhecido como coisa de todos, ou, dito em bom latim, ser res publica, necessitava se dizer depositário da vontade de todo o povo. O Estado contemporâneo separou os homens e mulheres em nos que vendem o fruto de seu trabalho e nos que o compram e, para isso, elaborou um sistema que se autolegitima por normas jurídicas que estabelecem a forma de criar normas obrigatórias para todos como se fosse do interesse geral.

A arrumada lógica de um Estado que se apresentava como fiel depositário da soberania não passa de um sofisma cruel: com a prestidigitação da representatividade excluiu os não-proprietários da participação efetiva no poder. Por um passe de mágica tantas vezes denunciado, a soberania de todos se transforma em poder de alguns, tão forte que não permite aos sem-terra e sem-patrimônio alcançarem o poder e tão fraco que se o alcançarem nada poderão fazer contra a força dos proprietários.

O Estado constitucional, ou contemporâneo, inventado para satisfazer os interesses econômicos da burguesia, vive em crise desde seu nascimento porque não consegue suportar a contradição que ele mesmo engendrou: prometeu liberdade e entregou livre aquisição dos frutos do trabalho alheio, prometeu igualdade e entregou meios contratuais que legitimam a vontade soberana individual, prometeu fraternidade e entregou formas viciadas de representação política.

O povo, que se redescobre plural neste final de século, começa a reivindicar o retorno da sabedoria para si, enquanto o Estado, que cada vez mais quer ser uno, a vai abandonando, descartando como roupa velha cujo uso revela apenas formas ultrapassadas de se vestir.

A PROPRIEDADE NOS CLÁSSICOS E NAS LEIS

O direito se construiu sobre a idéia da propriedade privada capaz de ser patrimoniada, isto é, de ser um bem, uma coisa que pudesse ser usada, fruída, gozada. Portanto esta propriedade é material, concreta, significando que o direito individual é, ele também, físico e concreto.

Neste sentido, o direito privado, também chamado de civil, detalhou os direitos individuais, centrando-os na propriedade, de tal forma que os Códigos contêm cláusulas para solucionar disputas de propriedade sobre todas as coisas. Imagina situações como, por exemplo, a de um fruto que, pendente da árvore que nasce em uma propriedade, cairá, ao amadurecer, em outra. Ou ainda situações de transmissão de propriedade causa mortis quando sucessor e sucedido morrem ao mesmo tempo, ou ainda, quem será o proprietário do álveo do rio que seca. Estes detalhes revelam a preocupação extrema e cuidadosa do legislador com o direito individual de propriedade.

Apesar do esmero dos legisladores para com a propriedade, é raro que a definam. O Código Civil Brasileiro (Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916) dedica um capítulo com 50 artigos à propriedade, mas não a define, dispondo tão-somente que a “lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”.[11]

John Locke (1632-1704) foi o grande pensador da propriedade contemporânea, analisou a sociedade em mutação e com grande ênfase a propriedade e preparou a defesa teórica da propriedade burguesa, absoluta, que viria a se transformar no direito fundante das constituições liberais próximas. Até Locke a civilização cristã entendia a propriedade como uma utilidade, um utendi; a partir dele e na construção capitalista, passa ser um direito subjetivo independente. Locke retoma a ideia de que a origem ou o fundamento da propriedade é o trabalho humano, isto é, o poder sobre as coisas se exerce na medida em que se agrega a elas algo de si, o trabalho. Isto sob o argumento de que cada um é proprietário de seu corpo, sendo o trabalho uma extensão dele. A apropriação está limitadaporém, à possibilidade de uso, dizendo que a ninguém é lícito ter como propriedade mais do que pode usar. Diz que tudo o que uma pessoa possa reter será sua propriedade, mas se alguma coisa se deteriora sem uso, fere o direito natural de todos a usar das coisas que Deus criou na natureza. Estabelece, portanto, um limite estreito à propriedade: “Todo lo que uno pueda usar para ventaja de su vida, antes de que se eche a perder, será lo que le está permitido apropiarse mediante su trabajo. Mas todo aquello que exceda lo utilizable, será de otro.”[12]

Nesta perspectiva, Locke aprofunda a ideia de Santo Tomás de que o direito de propriedade se restringe ao uso, porque tudo o que exceda ao utilizável será de outro. Entretanto, Locke agrega um conceito, o de corruptível, deteriorável, e afirma que o excedente, para não pertencer ao proprietário, tem que estar em risco de se deteriorar. Afirma então que não é a falta de uso que descaracteriza a propriedade, mas a possibilidade de que a falta de uso o ponha em deterioração. Se uma pessoa colhe mais frutos do que pode comer está avançando na propriedade comum, mas se não são frutos deterioráveis, se são bens duráveis que não se deterioram, pode os ter à vontade. Normalmente os bens permanentemente duráveis não manufaturados, como a pedra, não têm utilidade humana e, portanto, não há interesse em se discutir a propriedade.[13] Por isso, e para isso, a sociedade inventou bens não deterioráveis com valor universal, como o ouro, a prata e, finalmente, o dinheiro, já, então, passível de acumulação.

Locke, assim, admite que o excedente, desde que não seja corruptível, deteriorável, pode ser acumulado e, claro, o corruptível pode ser trocado pelos não corruptíveis, afirmando que a sociedade civil e o governo foram criados exatamente para garantir esta acumulação:

“… es claro que los hombres han acordado que la posesión de la tierra sea desproporcionada y desigual. (…) mediante tácito e voluntario consentimiento, han descubierto el modo en que un hombre puede poseer más tierra de la que es capaz de usar, recibiendo oro o plata a cambio de la tierra sobrante; oro y plata pueden ser acumulados sin causar dano a nadie (…). (…) en los gobiernos, ias ‘eyes regulan el derecho de propiedad, y la posesión de la tierra es determinada por constituciones positivas.”[14]

Locke em sua construção teórica justifica a acumulação capitalista, reconhecendo que a propriedade pode ser legítima e ilimitada se se transforma em capital, em ouro, em prata, em dinheiro. É evidente que não poderia imaginar o resultado dessa acumulação para o século XX, nem mesmo sonharia com a revolução industrial e a violentíssima acumulação primária do século XIX, mas defendia as ideias mercantilistas de então, garantindo uma legitimidade teórica e moral para a propriedade privada, acumulável, disponível, alienável, como um direito natural. Com a introdução da noção de bens corruptíveis, se afasta de Santo Tomás, que não admitia a acumulação qualquer que fosse, neste sentido é um verdadeiro mercantilista.[15] Deve-se notar que sobra como limite da propriedade em Locke, a ilegitimidade de se possuir bens corruptíveis não trocados, não é lícito a alguém possuir mais bens corruptíveis dos que possa usar sem transformá-los em capital. Sua teoria não veria com bons olhos a queima de estoques para manutenção de preço, por exemplo.

Locke une a propriedade ao trabalho, estabelecendo uma relação que seria, importantíssima para a economia política posterior, porque admite que a possibilidade de acumulação está diretamente relacionada com a possibilidade de adquirir, comprar, trabalho alheio. Mais tarde, Ricardo e depois Marx iriam estudar o trabalho como a medida de valor das mercadorias. Portanto, a relação estabelecida por Locke no século XVII é impressionantemente capitalista.

Quer dizer, Locke inicia sua reflexão afirmando que a única propriedade legítima é a produzida pelo trabalho e somente pode se acumular até a quantidade corruptível. Se o bem que não é corruptível é infinitamente acumulável, mas como se junta tantos bens? Com a possibilidade de pagar pelo trabalho alheio, já que o trabalho produz propriedade. Assim, afirmava que a única fonte legítima da propriedade era o trabalho, mas como admitia que o trabalho pode ser comprado por outro, o fruto do trabalho vendido será do comprador, isto quer dizer, o comprador do trabalho alheio não está comprando o produto, mas o próprio trabalho por preço certo, todo o produto será, então, do comprador. O trabalho vale menos que o produto, de tal forma que aqui há a apropriação para o comprador (capitalista) do lucro havido. Esta elaboração teórica e moral era tudo o que necessitava o pensamento burguês.

Já Voltaire, que foi um admirador de Locke, em seu dicionário filosófico foi muito mais direto ao considerar a propriedade da terra um direito natural e necessário ao bem-estar de todos. Aliás, o verbete propriedade é uma defesa apaixonada das virtudes da propriedade privada, de quanto a sua existência podia ser benéfica para todos, mesmo para os trabalhadores que não a podiam usufruir.

Voltaire dizia que a propriedade é liberdade. Exatamente essa era a contradição da terra, a propriedade feudal, relativa e ligada a servos não-proprietários, se contrapunha a outra propriedade nascente, de homens livres, que livremente contratavam sua força de trabalho, para proprietários absolutos, que determinavam o quê, como e quando plantar. A terra estava deixando de ser a fonte de todos os bens de consumo da família do servo e do nobre, para ser a produtora de mercadorias que deveriam render lucros aos capitais investidos na produção. A lógica da propriedade da terra estava sendo profundamente alterada: de produtora de bens de imediato consumo para quern a trabalhava, a produtora de bens que pudessem ser transformados na nascente indústria, que disso faria não bens consumíveis ou corruptíveis, mas capital infinitamente acumulável.

“Da Suíça à China, os camponeses possuem terras próprias. Somente o direito de conquista pode despojar os homens de um direito tão natural”,[16] dizia Voltaire em seu dicionário filosófico. Acreditava que a transformação da terra em direito de propriedade exclusiva iria expulsar os servos, os camponeses, transformando-os em homens livres, que livremente poderiam vender sua força de trabalho:

Todos os camponeses não serão ricos, e não é preciso que o sejam. Carecemos de homens que tenham seus braços e boa vontade. Mas até esses homens, que parecem o rebotalho da sorte, participarão da felicidade dos outros. Serão livres para vender o seu trabalho a quem quiser pagá-los melhor. A liberdade será a sua propriedade. A esperança certa de um justo salário os sustentará.[17]

É claro que a defesa de Voltaire está lastreada na idéia de que a sociedade civil e o governo baseados na propriedade e no trabalho livre trarão não só riqueza, mas felicidade aos homens, a todos os homens. E note-se que Voltaire sempre foi considerado um pessimista.

Na era dos direitos positivos, das constituições positivas, quando o estado foi “constituído”, as suas leis esqueceram os preâmbulos e pequenas diferenças entre perecíveis ou não perecíveis, toda a propriedade passou a ser direito subjetivo e até mesmo direito natural. Os tímidos limites que os pensadores imaginaram para a propriedade absoluta de terras e outros bens deixaram de existir, os Estados constitucionais reconheceram na propriedade a base de todos os direitos, e mais do que isso, o fundamento do próprio Direito.

Portanto, o Estado, absorvendo a soberania popular, construiu um sistema proprietário cuja legitimidade ficou fundada na propriedade privada e transportou para ela a idéia de soberania individual, o proprietário é soberano em relação à sua propriedade e o Estado, com seu aparato de largo alcance, é o garantidor desse poder.

SOBERANIA INDIVIDUAL OU SOBERANIA PROPRIETÁRIA

É claro que esta construção jurídica privilegiou o indivíduo em detrimento do povo, do coletivo. A soberania foi emprestada pelo povo ao Estado e este a usurpou para proteger a propriedade privada. O poder do proprietário passou a ser absoluto, embora este caráter não estivesse presente nem em Locke, nem em qualquer outro teórico anterior.

Locke afirmava que a única propriedade legítima era a produzida pelo trabalho e poderia ser acumulada indefinidamente desde que se comprasse trabalho alheio, mas tinha como limite a corrosão do bem, exatamente por isso seria melhor trocá-lo por dinheiro (representação não corruptível de bens). Isto levava ao entendimento de que o bem acumulado não poderia ser destruído, porque a destruição é sua corrupção. Se o bem não pode ser destruído, o proprietário não tem poder absoluto sobre ele.

Se na concepção de Locke o proprietário não é absoluto, porque está subordinado à possibilidade de troca de seu bem por um bem não corruptível e só assim poderia guardá-lo, ainda mais radical era a posição de Rousseau, que entendia que a propriedade estava subordinada à soberania de todos; ou dito de forma mais jurídica, se submetia ao interesse coletivo, este sim absoluto e soberano. “Seja qual for a maneira por que se fizer a aquisição, o direito que cada particular tem sobre sua propriedade está subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todas as coisas. Sem isso não haveria solidez no vínculo social, nem força real no exercício da soberania”,[18] dizia ele.

Esta ideia de Rousseau se contradiz com o direito de propriedade que viria ser inscrito nas Constituições que lhe seguiram. As novas regras legais iriam estabelecer um caráter absoluto à propriedade privada, sem mais limite que a propriedade alheia. O proprietário viria a ser soberano no exercício de sua propriedade, desde que não ofendesse a propriedade alheia, note-se que o limite não estava no direito genérico de outrem, mas no específico de propriedade. A única exceção, dizia claramente a Constituição brasileira de 1824, era a possibilidade de desapropriação pelo poder público para uma utilidade do Estado, e mesmo assim com a devida reposição patrimonial.

A norma nacional não difere de suas antecessoras francesa, espanhola e portuguesa, nem, e muito menos, dos códigos civis que viriam depois. O código napoleônico, um dos principais paradigmas jurídicos do século XIX com forte influência no XX, também não deixa margem a dúvidas quanto à soberania ou poder absoluto do proprietário em relação ao seu direito individual.[19]
Com estas disposições legais toda a teoria formadora perde o sentido, porque a propriedade deixa de ser o produto não corruptível do trabalho. A lei não estabelece os modos de aquisição, mas não especula sobre a origem do dinheiro que serviria para o negócio jurídico, nem se importa com sua destruição ou corrupção. O título legítimo (fruto do trabalho humano, em Locke) passou a ser o negócio jurídico, isto é, a forma prescrita em lei (liberdade na manifestação de vontades). O título legítimo, por outro lado, daria ao titular poder absoluto sobre o bem, a ponto de ser livre para destruí-lo, desde que não causasse prejuízo a outro patrimônio individual. Esta formulação está muito além da subordinação da propriedade à soberania coletiva que preconizava Rousseau. Portanto, a propriedade, ao ser formulada livremente pela lei burguesa, rompeu com a tradição teórica anterior e criou um sistema de privilégios aos “legítimos” proprietários, que não precisavam mais explicar a origem da propriedade.

Para garantir-se o sistema criou o Estado, forte o suficiente para reprimir qualquer inconformidade com a norma jurídica. O Estado haveria de ser soberano, quer dizer, exerceria jurisdição sobre um território sem que qualquer outro Estado pudesse intervir, mas também quer dizer que suas leis não admitiram concorrência com qualquer outra norma de conduta que não estivesse formalmente legitimada pelo sistema estatal. Exatamente isso queria dizer a Lei Le Chapelier,[20] nenhum poder poderá existir entre o cidadão e o Estado, qualquer instância que agrupe pessoas e produza normas de conduta diferenciadas e especificas deve estar suprimida da convivência social. Na América Latina isto foi fatal para os povos indígenas que se viram na contingência de serem aceitos como cidadãos e perderam sua consciência de povo.

Mas a soberania, aquela que Rousseau dizia estar em cada um e que cada um transmitia à coletividade, continuou persistindo na propriedade privada. O proprietário, ao ser soberano em sua vontade não apenas para transferir a propriedade a outrem, mas também para mantê-la ou destruí-la (corrompê-la, diria Locke), mantinha aquela parcela de soberania, garantida de forma prioritária pelo Estado.

Na construção do Estado e Direito burgueses, e não nos teóricos formadores, a soberania do povo se transferiu ao Estado, que não a devolveu mais ao povo, mas a entregou ao indivíduo proprietário, aqueles que conseguissem acumular riquezas excedentes de seu sustento. Com isto, e em última instância, a soberania de todos se transformou em soberania do proprietário. Aliás, o mais usado argumento dos EUA para intervir em países estrangeiros violando sua soberania tem sido o da defesa da propriedade de empresas e cidadãos americanos.

A propriedade absoluta do começo do século XIX, porém, foi sofrendo restrições, de um lado de ordem administrativa, com as chamadas limitações urbanísticas, e de outro, pelas restrições dos direitos trabalhistas que limitaram a liberdade contratual e, por isso mesmo, o abuso na transferência da propriedade construída com o trabalho. Neste século, pressionado por revoluções como a russa e a mexicana, o direito absoluto de propriedade sofreu um golpe e passou a ser juridicamente subordinado ao que se convencionou chamar de interesse social ou função social da propriedade. Em pouquíssimos países, porém, isto se logrou regulamentar, a ponto de tornar-se uma limitação de fato.[21] A revolução russa aboliu a possibilidade de acumulação privada e a mexicana introduziu nos sistemas constitucionais a restrição à propriedade privada que poderia ser exercida em sintonia com os interesses sociais.

Só muito recentemente, e ainda com muita cautela, os sistemas jurídicos ocidentais começam a aceitar uma limitação ao exercício do direito de propriedade por interesses coletivos não estatais, como os relativos ao meio ambiente e patrimônio cultural. Na prática esta é uma longa construção que se inicia com o reconhecimento dos sindicatos e neste momento com a subordinação do exercício do direito de propriedade aos interesses coletivos. Esta nova postura pode fazer retornar a soberania ao povo.

PROPRIEDADE COLETIVA OU SOBERANIA COLETIVA

Há um processo de modificação no sistema. O objeto do direito, inicialmente material e físico, começa a ser intingível, como os direitos de autor, de invenção e mais recentemente os direitos de marca, que ganham o virtualismo da informática. Ao lado disso ganham relevância direitos cujos titulares não são indivíduos, mas coletivos, sejam homogêneos, como um grupo de consumidores de um determinado produto, sejam difusos, como o direito que todos têm ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A introdução de uma propriedade coletiva volta a pôr em discussão a soberania do povo porque, por um lado, quebra a soberania individual da propriedade privada e por outro reconhece direito a uma coletividade que, sendo soberana, novamente a empresta ao Estado para ser defendida, fazendo ressurgir a necessidade de um ente estatal capaz de exercer a proteção da soberania do povo e não da soberania individual.

O coletivo pensado na velha lógica era o conjunto ou soma de direitos individuais e chamados de pessoas jurídicas[22] inicialmente comerciais ou pias, mas que foram ganhando representação política de setores da sociedade porque passaram a incorporar direitos coletivos. É o caso dos sindicatos e dos partidos políticos.

Os sindicatos são pessoas jurídicas unas, e por isso têm patrimônio próprio, são proprietários privados e exercem direitos individuais, mas, além de seu patrimônio particular, representam direitos de todos os associados ou de um setor social. Estes direitos são coletivos ainda quando invisíveis ao sistema jurídico que não os reconhece na lei. É muito comum os juristas e políticos entenderem as reivindicações coletivas dos trabalhadores como manifestações políticas e não jurídicas.

Assim, a cultura constitucional, solidificada no século XIX, construiu um sistema de garantias de direitos individuais relacionados aos bens físicos, patrimoniais, estreitando todos os espaços do coletivo, sempre os deixando fora do Direito. Por isso, no dizer clássico, os direitos coletivos são meta-jurídicos, vivem no espaço do sonho, do ideal, da utopia, e o Direito é concebido como sistema completo, que não poderia ter lacunas e quando omite, optou por omitir. Como afirmava Bartolomé Clavero, o silêncio da lei também é lei.[23] Kelsen considera as lacunas a diferença entre o direito positivo e uma ordem melhor, mais justa e mais correta.[24]

As mudanças vêm ocorrendo de forma acentuada, mas quase imperceptivelmente, sendo difícil localizar os pontos de mutação dentro do sistema, porque em grande medida, embora profundas, ocorrem ou se manifestam em leis isoladas. No Brasil, o Decreto-Lei 25/37, que instituiu o tombamento de bens culturais, foi um marco;[25] quase trinta anos depois, apareceu o Código Florestal, Lei 4.717/65[26], como outro marco, e em outros vinte anos surgiu uma lei procedimental, que permitia ao Poder Judiciário apreciar estes direitos como tais, a Lei da Ação Civil Pública, Lei 7.357/85.[27] Finalmente, a Constituição de 1988 reconheceu a existência de direitos coletivos. As leis posteriores já trazem a marca deste novo sistema, como, por exemplo, o Código do Consumidor.

O jurista italiano Mauro Capelletti entende que a grande diferença entre estes direitos e os tradicionais está na relação deles com o Estado. Os tradicionais são garantidos pelo Estado, estes devem ser promovidos pelo Estado. Textualmente:

“Diversamente dos direitos tradicionais, para cuja proteção requer-se apenas que o estado não permita a sua violação, os direitos sociais – como o direito à assistência médica e social, à habitação, ao trabalho – não podem ser simplesmente “atribuídos” ao indivíduo. Exigem eles, ao contrário, permanente ação do estado, com vistas a financiar subsídios, remover barreiras sociais e econômicas, para enfim promover a realização dos problemas sociais, fundamentos destes direitos e das expectativas por eles legitimadas.”[28]

Some-se a isto a cada vez menor relevância dos patrimônios físicos reais. Quer dizer, os bens jurídicos e não apenas o direitos sobre eles são cada vez mais intangíveis. O patrimônio de uma grande empresa não se conta mais pelo número de bens que tenha como proprietário, porque não lhe pertence as lojas, nem os locais, nem móveis que a adornam, porque tudo é franqueado, é de terceira pessoa. O patrimônio se conta, e vale, pela marca que ostenta ou o sabor que descobriu, ou a forma da embalagem que a contém.

Isto vale também para os patrimônios individuais; tem muito mais valor a cobrança de um dano moral do que um material; uma pessoa ofendida, especialmente se o ofensor for rico, poderá se tornar também rica com a indenização, independentemente dos absurdos e corrupções de sentenças judiciais.

Desta forma se pode dizer que os novos direitos são intangíveis, e a nova economia passa a valorar mais o conhecimento, sempre que ele possa ser transformado em produto de consumo de massas.

Nestes direitos intangíveis, há os individuais que continuam com toda sua característica de propriedade privada, e há os coletivos. Os coletivos têm como principal característica o fato de sua titularidade não ser individualizada, de não se ter ou não poder ter clareza sobre ela. Não são fruto de uma relação jurídica precisa mas apenas de uma garantia genérica, que deve ser cumprida e que, no seu cumprimento acaba por condicionar o exercício dos direitos individuais tradicionais.

Esta característica os afasta do conceito de direito individual concebido em sua integridade na cultura contratualista ou constitucionalista do século XIX, porque é um direito sem sujeito! Ou dito de maneira que parece ainda mais confusa para o pensamento individualista, é um direito onde todos são sujeitos. Se todos são sujeitos do mesmo direito, todos têm dele disponibilidade, mas ao mesmo tempo ninguém pode dele dispor, contrariando-o, porque a disposição de um seria violar o direito de todos os outros.

Os direitos coletivos são, portanto, função abstrata da lei que se concretiza independentemente da consciência ou vontade do sujeito. Não é necessário sequer ser fumante para ter direito a que os vendedores de cigarros estampem corretamente o seu produto. Nem o mais rigoroso inverno diminui o direito à precisa informação na venda de equipamentos de ar refrigerado. Não é preciso estar circunstancialmente sem casa para ter direito à moradia, nem ser filiado ao movimento dos sem-terra para ter direito ao trabalho no campo.

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Mas isto não restringe o direito aos que são ou podem ser afetados por um desequilíbrio. Todos têm direito à preservação dos bens culturais, ainda que não veja, não sinta ou não goste da cultura em questão.

Mas, note-se, quando estamos dizendo que todos têm direito a estas coisas, a palavra direito, aqui, está no preciso termo jurídico de ser seu titular. Dito de outra forma, cada um individualmente é titular do direito sobre a relação ou a coisa, mas essa titularidade não pode ser apropriada, transferida, alienada, quer dizer, este direito não integra o patrimônio individual de cada um. Por isso mesmo este direito é difuso, de titularidade difusa.

Ao mesmo tempo em que estas relações e bens têm pairando sobre si uma titularidade difusa, têm, concretamente falando, uma titularidade individual. Quer dizer, a relação entre produtor/vendedor/consumidor é uma relação concreta, real, juridicamente estabelecida, na qual pessoas adquirem, alteram, modificam, alienam bens e direitos que passam a integrar ou saem de seus patrimônios privados.

A dominialidade do bem ambiental ou culturalmente protegido também tem esta característica. Ele mesmo como bem individuado faz parte, integra um patrimônio — público ou particular —, mas há, do ponto de vista da sociedade, uma titularidade difusa que altera sua essência.[29]

Entre os direitos coletivos, não devem ser incluídos, portanto, aqueles que são mera soma de direitos subjetivos individuais, mas somente aquele pertencente a um grupo de pessoas, cuja titularidade é difusa porque não pertence a ninguém em especial, mas cada um pode promover sua defesa que beneficia sempre a todos.

Este direito não pode ser dividido por titulares, uma eventual divisibilidade de seu objeto fará com que todos os titulares do todo continuem sendo titulares das partes. Não são passíveis de alienação, portanto não podem ser reduzidos ao patrimônio de um indivíduo, são inalienáveis e, portanto, imprescritiveis, inembargáveis, intransferíveis. Não têm valor econômico em si para cada indivíduo, mas somente pode tê-lo para a coletividade, exatamente por isso é inapropriável individualmente.
CONCLUSÃO

Os conceitos de soberania e propriedade estiveram irmanados na cultura constitucional, somente fazia sentido um se fosse para a realização do outro. Com o passar dos tempos e a impossibilidade de realizar o sonho de felicidade prometida, o povo buscou a recuperação de sua soberania comprometida na propriedade privada e foi, paulatinamente, transformando o sistema. Reivindicou direitos coletivos, forçou a limitação dos poderes da propriedade, meteu-se nela.

As mudanças da sociedade, quebrando o caráter físico, material da propriedade, revelaram o caráter imaterial dos direitos coletivos; a ameaça de holocausto ecológico abriu os olhos da humanidade para a necessidade de impor freios ao uso incontrolado dos bens materiais garantido pelo caráter absoluto da propriedade.

Cresce a consciência, em nossos dias, de que o contrato de que nos falava Rousseau está rompido, a soberania abandonou o Estado para localizar-se agressivamente na propriedade privada. E quando o contrato se rompe, “violadas as suas normas, cada um entra na posse de seus primitivos direitos e recupera sua liberdade natural, perdendo a convencional”, dizia Rousseau.

Enquanto a propriedade ou o capital, sua expressão imaterial, se globaliza deitando por terra a soberania dos Estados nacionais, o conhecimento tradicional, os ecossistemas regionais e a cultural local ganham a dimensão de direitos coletivos e, portanto, a dimensão de soberanias locais. Os Estados nacionais, em crise, se colocam o dilema: ou se voltam ao capital internacionalizante, perdem sua soberania e ameaçam a vida no planeta, ou garantem os direitos coletivos locais, recuperam, sempre por empréstimo, a soberania dos povos e se repensam como nova forma de organização social.

A opção, dita de forma mais simples, mas muito mais dura, é entre a soberania usurpada, imposta, que leva necessariamente à morte ou o reconhecimento da frágil soberania do povo, construída na dificuldade da conciliação, tolerância e paz, que conduz à vida.

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NOTAS

  1. Os teóricos dogmáticos dizem que o Estado nasceu com a sua constitucionalização, o que significa dizer que a organização social anterior não era estado. Este equívoco é o mesmo e talvez menos grave que dizer que os povos ágrafos não têm história, porque antes da escrita a humanidade viveu numa pré-história. 
  2. Ver Casas, Bartolomé de Las. Obra indigenista. Madrid: Editorial Aliariza. 1985. 
  3. A história desta falácia está contada plástica e poeticamente no filme Queimada. 
  4. General Santander foi um dos artífices, com Bolivar, da independência da Venezuela, Colômbia, Equador. 
  5. Miranda, Jorge. Textos históricos do direito constitucional. Lisboa: Imprensa Na-cional/Casa da Moeda, 1980, p. 75. 
  6. Constituição espanhola de 1812. 
  7. Miranda, Jorge, idem, p. 108. Ver também a propósito a brilhante análise deste dispositivo pelo constitucionalista e historiador espanhol Clavero, Bartolomé. Propriedad como libertad: declaración del derecho de 1812. Madrid: Ministério de Justicia, 1990, 101 p. 
  8. Locke, John. Segundo tratado sobre el gobierno civil. Madri: Altaya, p. 136. Locke escreveu estas palavras no século XVII (1690). 
  9. Rousseau, J. J. O contrato social. São Paulo: Ed. e Pub. Brasil, 1960. O contrato social foi escrito no século XVIII (1762). 
  10. Ao se analisar mais adiante a gênese da propriedade privada se verá que toda a sua construção teórica se dá a partir da possibilidade de transferir a legítima parte de um para outro por meio da alienação. Este processo longe de levar à coesão excluiu os não proprietários. 
  11. Artigo 524 do Código Civil Brasileiro. 
  12. John Locke, Segundo tratado sobre el gobierno civil, p. 59. 
  13. Locke afirmava que aquilo que um homem produzisse com suas mãos, como um machado ou outra ferramenta, lhe pertencia por direito natural por ser fruto do trabalho, mas afirmava também que não lhe teria nenhuma utilidade possuir vários machados ou instrumentos que não poderia usar em seu cotidiano, por isso dizia que os bens duráveis, não corruptíveis, não tinham interesse ao homem. 
  14. Locke, op. cit. p. 74. Estudo mais profundo sobre este tema desenvolveu Macpherson em seu livro The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke. 
  15. Como o dizia C.B. Macpherson, em seu livro a Teoria política do individualismo possessivo: “E basta nos referirmos aos tratados econômicos de Locke para vermos que era um mercantilista para o qual a acumulação de ouro era um alvo correto da política mercantil, não como um fim em si mesmo, mas porque acelerava e aumentava o comércio”, p. 216. 
  16. Voltaire, Françoise Marie Aroeut de. Cartas inglesas; tratado de metafísica; dicionário filosófico. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 271. 
  17. Voltaire, ob. cit., p. 272. 
  18. Rousseau, Contrato social, p. 33. 
  19. O artigo 544 do chamado Código de Napoleão dizia: “A propriedade é o direito de fazer e de dispor das coisas do modo mais absoluto, contanto que dela não se faça um uso proibido pelas leis e pelos regulamentos.” 
  20. A lei Le Chapelier de 1791 proibia as corporações e afirmava que nada poderia existir entre o cidadão e o Estado. 
  21. Exemplo desta regulamentação jurídica é a lei agrária da Bolívia, escrita a partir da revolução boliviana de 1952: a terra ficaria sendo permanentemente propriedade do Estado que poderia conceder seu uso a quem efetivamente quisesse ou pudesse produzir. A concessão seria revogada se houvesse solução de continuidade na produção. 
  22. As pessoas jurídicas são uma ficção criada pelo Direito dando status de indivíduo a uma coletividade. O próprio Estado passou a ser considerado pessoa jurídica e com isso passou a ter direitos individuais e responsabilidades civis individuais. 
  23. Bartolomé Clavero, o historiador do direito constitucional espanhol, professor da Universidad de Sevilla, ao analisar o silêncio da constituição espanhola sobre certas atribuições do poder judiciário, diz: “la falta de la ley, también es ley”. Clavero, Bartolomé. El tercer poder. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann. 1992. 
  24. Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. 2ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1962. 
  25. O Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937, criou o tombamento como instituto para declarar protegidos bens históricos e artísticos, de tal forma que impunha aos proprietários conduta restritiva no exercício de seu direito. É um marco porque é a primeira lei brasileira que, com base na nova ordem constitucional que permite a intervenção do Estado na ordem econômica, impõe restrições ao exercício da propriedade privada, o que significa dizer, estabelece obrigações a este exercício, não apenas direitos. 
  26. O Código Florestal, Lei 4.717, de 15 de setembro de 1965, estabelece que o exercício do direito de propriedade sobre as florestas consideradas de preservação permanente, como as matas ciliares, topo de morro, encostas e outros, se dará com restrições, obrigando o proprietário a atos de preservação e conservação. 
  27. A Lei de ação civil pública, Lei 7.357, de 24 de julho de 1985, estabelece o processo judicial pelo qual se apura a responsabilidade civil pelos danos causados ao patrimônio cultural, ao meio ambiente e aos consumidores, mais tarde se agregaram a este elenco os “interesses difusos”. A legitimidade para propor a ação é das pessoas jurídicas de direito público, o Estado e suas organizações, incluído o Ministério Público. Esta legitimidade foi estendida às ONGs. 
  28. Capelletti, Mauro. juízes legisladores. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 1993, p. 41. 
  29. Ver a propósito o meu livro Bens culturais e proteção jurídica. Porto Alegre, UE/ Porto Alegre, 1997. 140p. 

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