1987

Sobre o medo

por Marilena Chaui

Resumo

O medo está ligado ao mistério e à finitude. Medo da morte. Medo também do incontrolável, do feminino (Lilith, Eva, Sereias, Medusa…). O medo está na origem das paixões e é a mais triste das paixões tristes, diz Espinosa, por ser caminho da servidão. Para exorcizar o medo os antigos exaltavam a coragem, os cristãos a luta contra o inimigo externo (o Mal) que a modernidade vai deslocar para dentro da consciência e para o horror à plebe, amorfa e irracional. Diante do medo e das paixões há três atitudes possíveis: a repressiva, calvinista, que pretende suprimir o passional; a astuta, maquiaveliana, que quer transformar as paixões em forças civilizatórias; e uma terceira, realista, que introduz o princípio de “paixões equivalentes contrárias”. Espinosa corrige essa ideia: o que há são paixões contrárias mais fortes. Para ele, corpo e alma têm iguais fraquezas e forças (porque há conexão entre mente, corpo e desejo): alegria é passagem de uma perfeição menor a outra maior, tristeza é diminuição de nossa capacidade para existir e agir de maneira autônoma. Ele diz também que o medo e a esperança estão sempre juntos, e que o perigo é a superstição tornar-se alívio para o medo, adorando-se reis como se fossem deuses. Na visão política de Espinosa isso gera a tirania, o mais fraco dos regimes porque mantido por medo e ignorância. A democracia é o mais forte e o mais difícil: trata-se de fortalecer a esperança, mas não é qualquer esperança que vence o medo. No livro IV da Ética ele escreve: “Tudo quanto é belo é tão difícil quanto raro”.


I

O alto celestial que nos vigia, o baixo infernal que nos espia. Paradiso das esferas ascendentes, glória já esquecida dos longínquos círculos cadentes, Inferno, abandono de toda esperança. A esquerda, “o outro lado do lado”, kelippah, concha cabalística das trevas, morada feminina; sinistro lado do mau agouro, onde Boheme depositou a mão irada do Senhor e, como no Credo, colocou à sua direita o implacável Juiz dos vivos e dos mortos que há de proferir a sentença final. A encruzilhada sempre fatídica. O fechado, propício à emboscada e o aberto que nos expõe ao nada. Onírico e mítico, ser dos confins inalcançável pela geometria, o espaço é mistério absoluto. Além de cada paisagem somente outra paisagem, além de cada horizonte apenas outro horizonte. Rasteado de sinais, dá medo.

Círculo do retorno eterno, reta do fim do fim. Velho dos Dias, profetiza Daniel, o tempo nos assegura que Verdade é filha sua e Falsidade dissipará, rompendo o selo do Livro dos Segredos do Mundo quando for chegada sua vez e sua hora. “Vigiai e orai, pois é chegado o tempo.” Afortunado portador de infortúnio, desfiando o tecido por ele tecido, alvas e longas barbas, foice na mão, dispara célere o Velho Tempo — tempus edax rerum, tempo que tudo devora, “hora irrevogável que deu, chora,/ prevê a que há de dar e a que conta,/ que numa mesma hora/ cresces e te ausentas […]/ fundas toda essa máquina admirada/ numa corda enferma e delicada,/ que como a saúde no mais são,/ se gasta com suas rodas e sua mão […]/ a cada sol que passa, a cada raio,/ a morte de um contador, o tempo um aio”.[1] Chronos-Kronos que destrona a oportunidade benfazeja — propício kairós — e a fertilidade promissora — benévolo aiôn —, deixa-nos à mercê de Saturno, ontem zodíaco e relógio, hoje cronômetro; campanário sempre. Senhor dos dias, da vida, do esquecimento e da morte, aduladora imagem do progresso, dor irremediável da saudade, o tempo é curandeiro, abismo e treva, “hora dos corvos/ bicando em mim, meu passado/ meu futuro, meu degredo./ Desta hora, sim, tenho medo”.[2]

Do que se tem medo? Da morte, foi sempre a resposta. E de todos os males que possam simbolizá-la, antecipá-la, recordá-la aos mortais. Da morte violenta, completaria Hobbes. De todos os entes reais e imaginários que sabemos ou cremos dotados de poder de vida e de extermínio: da natureza desacorrentada, da cólera de Deus, da manha do Diabo, da crueldade do tirano, da multidão enfurecida; dos cataclismos, da peste, da fome e do fogo, da guerra e do fim do mundo. Da roda da Fortuna. Da adversidade. Da repressão, murmuram os pequenos; da subversão, trovejam os grandes. Do que se tem medo? Da morte inglória e infame num mundo aristocrático e agonístico para o qual o supremo valor é a coragem nos campos de batalha. Do que temos medo? Da morte seca e nua como um osso, sem mediação, Terror no despencar da guilhotina, no “suicídio acidental” dos calabouços, no grito abafado dos fornos crematórios. Da morte, senhora absoluta, enfrentada pelo herói hegeliano para descobrir que não era, afinal, a verdadeira morte, pois passou por ela e não morreu, deixando a vitória àquele que realmente tremeu de horror diante dela — o escravo, capaz de construir a liberdade. Da morte mandada, a ser cumprida sem motivo e sem razão, morte absoluta de que é capaz somente o herói da fé, Abraão erguendo o punhal para aniquilar o fruto de sua velhice e esperança, sem nada perguntar.

Temos medo do grito e do silêncio; do vazio e do infinito; do efêmero e do definitivo; do para sempre e do nunca mais. É também nosso o medo de Riobaldo, pois como ele tememos a metamorfose, tanto ou mais do que o Cão. “Aqueles ali eram com efeito os amigos bondosos, se ajudando uns aos outros com sinceridade nos obséquios e arriscadas garantias, mesmo não refugando a sacrifícios para socorros. Mas, no fato, por alguma ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães — eles achavam questão natural que podiam ir salientemente cumprir por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem — o senhor me entende? Eu tinha medo de homem humano.”[3]

Temos medo da delação e da tortura, da traição e da censura. Da urdidura cerrada onde a violência captura a linguagem — esforço humano nosso de renúncia à violência — para enredá-la no poderio do censor, na perfídia do delator e na força nua do torturador que, paradoxo horrendo, desintegra a vítima para que dela brote uma palavra íntegra, livre, verdadeira e pura, como se ela lhe pudesse ofertar o dom fantástico que o absolveria ao fazê-la submergir no silêncio da fala traidora. Temos medo da culpa e do castigo; do perigo e da covardia; do que fizemos e do que deixamos de fazer; dos medrosos e dos sem-medo; das alamedas e dos becos onde “até a canção medrosa/ se parte, se transe e cala-se”.[4]

Temos medo do esquecimento e de jamais poder deslembrar. Da insônia e de não mais despertar. Do irreparável. Do inominável e do horror à perda do nome próprio, essa “doença mortal” que, um dia, Kierkegaard chamou de desespero humano. Do labirinto de espelhos, fantasmas nossos e os alheios, sonhados sonhos de “ruínas circulares” em noite fatídica quando “o mago se lembrou bruscamente das palavras do deus. Lembrou-se que, de todas as criaturas do orbe, era o fogo a única a saber que seu filho era um fantasma. Teve medo que o filho meditasse sobre esse privilégio anormal e descobrisse, de algum modo, sua condição de simulacro […]. Numa aurora sem pássaros, o mago viu cingir-se contra os muros o incêndio concêntrico. Por um instante pensou em refugiar-se nas águas, mas depois compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo dos labores. Caminhou contra as chamas. Não morderam sua carne, o acariciaram e o inundaram, sem calor e sem combustão. Com alívio, humilhação e horror compreendeu que ele também era uma aparência, que um outro o estava sonhando”.[5]

Temos medo do ódio que devora e da cólera que corrói, mas também da resignação sem esperança, da dor sem fim e da desonra. Da mutilação dos corpos e dos espíritos, da Clevelândia, de Auschwitz, do Gulag, do Juqueri. Do abismo entre O Poço e o Pêndulo, quando já não tememos olhar o horrendo porque o horror é “que nada houvesse para ver […] negror da eterna noite”.

Temos medo da loucura roubando a placidez das simples coisas mesmas, cortando nosso corpo na dispersão de suas perdidas partes, estranhamento nosso alheio, vozes de lugar nenhum respondendo à nossa que vai a lugar algum, ecos do “coração denunciador” rangendo sob as pranchas do soalho em pancadas compassadas. “Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas ouvia. Do inferno. Como, então sou louco? Prestai atenção […]. Sim, era isso! Um de seus olhos parecia como o do abutre… um olho azul esmaecido que sofria de catarata. Enregelava-me o sangue sempre que caía sobre mim. Pouco a pouco, de mansinho, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e libertar-me para sempre daquele olho.”[6]

Desde sempre, em toda parte, tem-se medo do feminino, do mistério da fecundidade e da maternidade, “santuário estranho”,[7] fonte de tabus, ritos e terrores. “Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher é acusada pelo outro sexo de haver trazido sobre a terra o pecado, a infelicidade e a morte.”[8] Terror de sua fisiologia cíclica, lunática, asco de suas secreções sangrentas e do líquido amniótico, úmida e cheia de odores, ser impuro, para sempre manchada: Lilith, transgressora lua negra, liberdade vermelha nos véus de Salambô. Rainha da Noite vencida por Sarastro. Perigosa portadora de todos os males, Eva e Pandora; devoradora dos filhos paridos de sua carne, Medeia e Amazona; lasciva, “vagina denteada” ou cheia de serpentes, o que Freud chamou medo da castração e que em todas as culturas é assim representado. Fonte da vida, fertilidade sagrada, mas também noturnas entranhas: “Essa noite, na qual o homem se sente ameaçado de submergir e que é o avesso da fecundidade, o apavora”, o medo ancestral do Segundo Sexo. Que fez crer impossível a amizade nas e das mulheres e tudo faz para impedi-la. Perdição dos que se deixam enfeitiçar pelo poço sem fundo e lago profundo — Morgana, Circe, Lorelei, Uiara, Iemanjá. Deusa da sabedoria e da caça, imaculada conceição e encarnação de Satã, a proliferação das imagens femininas, medusa, hidra e fênix, é, para usarmos noutro contexto a expressão de Walnice Galvão, o sumidouro das “formas do falso”. Capitu. Diadorim.

Temos medo dos vivos e dos mortos. Dos subterrâneos infernais de onde sobem espectros rondando a festa imerecida. “Macbeth: Por certo, homem sou que ousa encarar sem pavor o que ao demônio empalideceria. Lady Macbeth: …Imagens vãs que vosso medo cria […]. Ó estes desvarios, senhor, estes vossos temores, diante do medo real nada são, meros impostores […]. Macbeth: Olhai, vos peço. Vede. Ali. Olá? Que dizes? Hein? Ora! que importa a mim? Se é que tua cabeça podes mover, também podes falar. Principia. Se covas e sepulcros, uma devolução devem fazer dos que lá deixamos, então será nosso túmulo o papo do milhano. Lady Macbeth: Foi-se o homem, senhor? Ficou somente o insano? Macbeth: Eu o vi, tão certo como estou aqui, senhora… Tudo o que homem pode ousar, ouso. E te enfrento… Toma um corpo qualquer, menos o humano e meus nervos fiéis não temerão, decerto. Quando não, volta à vida e à espada e, no deserto, convida-me a lutar. Se vires que medroso no palácio me escondo, então podes dizer que sou fantoche das crianças. Fora! Fora! Sombra horrenda! Visão irreal!…”

Temos medo da fala mansa do inimigo, mas muito mais, quão mais, do inesperado punhal a saltar na mão há pouco amiga para trespassar nosso aberto peito ou pelas costas nos aniquilar. É então, quem sabe, nesse “medo que esteriliza os abraços”[9] que descobrimos não termos medo disto ou daquilo, de algo ou de alguém, já nem mesmo medo de nossa própria sombra, somente medo do medonho. Susto, espanto, pavor. Angústia, medo metafísico sem objeto, tudo e nada lhe servindo para consumar-se até alçar-se ao ápice: medo do medo. Juntamente com o ódio, o medo, escreveu Espinosa, é a mais triste das paixões tristes, caminho de toda servidão. Quem o sentiu, sabe.

II

“Que em presença da morte choraste,

Tu, cobarde, meu filho não és”.

Gonçalves Dias

Nas sociedades agonísticas, o medo é supremo vício, castigo e abominação. “Medo, não, perdi a vontade de ter coragem”, diz Riobaldo. Toma a forma da covardia que, escreve Montaigne, “é a mãe da crueldade”, marca de toda tirania. Dos gregos à Renascença, a virtude oposta ao medo é a coragem, particularmente a bravura diante dos perigos da guerra. “Aquele que permanece imperturbável em meio a perigos e que se comporta diante deles como é preciso é mais verdadeiramente corajoso do que aquele que assim procede nas ocasiões seguras. É por sua firmeza diante das coisas que trazem sofrimento que um homem é corajoso.” Essas palavras de Aristóteles, que define a coragem como o meio-termo (portanto a virtude) entre as coisas que inspiram confiança e aquelas que inspiram medo, reencontram, noutro contexto, a concepção cartesiana do medo que, escreve Descartes, “é o contrário da ousadia”, um frio na alma que paralisa o corpo. “Perturbação e espanto da alma que lhe subtrai o poder de resistir aos males que ela pensa estarem próximos”, não chegando sequer a ser uma paixão propriamente dita, mas “um excesso de covardia, de espanto e de receio”.

A gesta carolíngia e o ciclo arturiano elaboram o correspondente cristão do herói grego, guerreiro moço, belo e bom a quem se ensina a desejar Kalós thánatos, a bela morte, euklèes thanatós, a morte gloriosa nos campos de batalha no esplendor da juventude. Amadis, Roland, Galahad, Percival, Bayard, cavaleiros “sem medo e sem mancha”, figuras do amor galante e dos torneios, da Demanda do Graal e da nova ordem que lança às brumas o antigo mundo pagão, mantêm o ethos da coragem como virtude aristocrática, mas deslocam o imaginário centrado no medo. Para os pagãos, o medo é divindade que se abate sobre os fortes, para sua vergonha, e sobre os fracos, para confirmá-los na desonra. Poderes divinos, Temor e Medo são cultuados para que, à maneira dos Exus, não baixem sobre corpos e espíritos na hora decisiva dos combates onde honra, fama e glória se decidem para sempre. O cavaleiro cristão, porém, vê-se jogado numa liça nova, desconhecida e inimaginável para seus predecessores. Nela, o medo não é o mal. Agora, o Mal faz medo. Erigida como cultura do medo, para usarmos a expressão de Delumeau, a cristandade concebe-se como cidadela permanentemente sitiada pelo inimigo do gênero humano: foi parido o Diabo.

Se, enveredando na travessia, Riobaldo conclui que “o diabo não há. Se for…” porque “existe é homem humano”, a cristandade, fincando pé no que fora deixado em suspenso — “se for…” — não cessará de elaborar o medo do humano e do divino. Nova, ímpar talvez, nessa elaboração é sua dificuldade teológico-metafísica para construir-se num contexto monoteísta. Escatologia e teodiceia, o cristianismo não pode conferir positividade ao mal sem correr, de um lado, o perigo de atribuir a Deus a origem dos males físicos e morais e, de outro, sem incorrer no dualismo com a posição de um princípio positivo para o bem e um outro, igualmente positivo, para o mal (desde muito cedo, a heresia alojou-se no maniqueísmo). Assim, o mal há de ser o não-ser. Pura privação e negação, o diabo é essa paradoxal não-entidade que só vem ao ser pela mediação de outrem, carecendo que alguém lhe faça a doação de si para que venha à existência e seja combatido pelo cavaleiro cristão. Porque necessita de ancoradouro onde depositar seu nada, o diabo vem ao ser através dos inimigos. Pagãos, judeus, bárbaros, sarracenos, mouros, turcos, negros, bruxas, feiticeiras, magos e hereges — outrora —, deístas, ateus, anabatistas, reformadores e papistas — mais tarde —, materialistas, comunistas, anarquistas — nos séculos por vir —, sempre estiveram destinados a doar-lhe o ser para que figurasse a interminável metamorfose do Anticristo, ameaçando tomar de assalto a Cidade dos Justos e Bons. Cruzados, templários, Santa Inquisição, sus!, correi!, eia, avante soldados católicos! Sínodos, “morte ao sectário”, a postos, exércitos protestantes! Bellarmino e Beza, satânicos um para o outro, comungam o mesmo medo e preferem a tirania à heresia. No século XVIII, Lisboa, dizimada por terremoto, inicia a reconstrução sob os auspícios dos autos da fé. Cavaleiro da fé, o herói cristão pilha, rapina, estupra e mata ad majorem Dei gloriam.

No entanto, ah! obra diabólica, lutando contra o flagelo do gênero humano, o herói da cristandade torna-se, afinal, seu maior inimigo. Para contê-lo será preciso criar inimigo novo. Não será difícil engendrar a nova criatura. Ali esteve sempre à disposição de Satanás, sempre foi sombra necessária ao corpo do herói, temendo-o e sendo por ele temida: a plebe.

Cultura do medo, há de ser também cultura da culpa. Iniciando-se como inimigo externo, o mal insinua-se, sorrateiro, na interioridade do espírito. O pecado, tentação demoníaca, já não precisa de figuras visíveis, nossos devaneios, sonhos e mais secretos desejos cindem nosso ser e o mal chama-se apenas paixão da alma. Emprestamos nosso corpo e nosso espírito para que o diabo seja, restando-nos o medo de nós mesmos. O inferno somos nós.

Se a cultura da culpa desloca o diabo de fora para dentro da consciência, a cultura do medo, alicerçada sobre horror à plebe, opera igual deslocamento. Com a plebe, o medo não aponta apenas para seu contrário — a coragem —, nem apenas exige inimigos externos, mas vem configurar, do lado dos grandes e poderosos, um novo desejo — o de segurança — identificado à ordem e suscitando o pavor quanto a tudo que pareça capaz de destruí-la internamente. Com a plebe, surge o medo do inimigo interno, fantasma da inconfessada percepção da cisão interna à própria sociedade. O inferno são os outros.

Valorização da coragem e desprezo pelo medo, os pilares da moral da valentia erguem um edifício onde coragem é virtude natural dos nobres e obediência, virtude própria da plebe, a que deve ser instigada pelo estímulo ao seu medo natural. Por natureza a plebe é covarde e por natureza seu lote é o medo. Porque, nas sociedades agonísticas, tyrannós se diz daquele que não possui competidores capazes de igualá-lo em destreza, golpe de vista e maestria, o tirano, inigualável, é marcado pelo estigma da solidão. Sem amigos, sem amar nem ser amado, o tirano é acossado pelo medo. Assim, para os grandes, tirano e plebe, o um e os muitos, polos extremos da divisão social, tornam-se figurações preferenciais do vício que os devora, o medo. Acovardados ambos, ela se faz massa rebelde e ele, sanguinário cruel. Bestas ferozes ambos. Destemida, a oligarquia constrói seu duplo medo: acima, medo de quem a suplante em imperium; abaixo, medo de quem lhe conteste o poderio.

Graças à moral da valentia, a imaginação da modernidade reconstrói a divisão social de modo a torná-la não apenas suportável, mas sobretudo controlável. Mesmo quando, inaugurando o pensamento político moderno, Maquiavel nega a origem divina, racional ou natural do imperium, afirmando que o poder nasce da divisão social instaurada pela oposição entre o desejo dos grandes de oprimir e mandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem mandado, ainda aqui a figura heroica do Príncipe Nuovo (cuja virtù dobra a feminina fortuna) ressurge para nela e com ela identificar-se o desejo popular. Este, julga Maquiavel, se deixado a si mesmo, poderá dissolver-se na submissão medrosa ou na licença desenfreada. Sem o Príncipe, a plebe ficaria entregue à voracidade opressora dos grandes ou entregue a si mesma; apavorada ou sediciosa. Apenas como instrumento principesco ganhará segurança e apaziguará o medo.

A imagem aristocrática da plebe será mantida pela burguesia, mesmo quando esta houver deixado as armaduras luzidias àqueles a quem a imaginação “secou o juízo”, Quixotes. Entre estes e ela, intercala-se a imagem covarde, medrosa e obediente de Sancho Pança, contra as lanças. No entanto, aristocratas, primeiro, e burgueses, depois, pressentem que o medo plebeu é perigoso. Medrosa e covarde, a plebe é inconstante, pode mudar de lealdade servindo a novos senhores que lhe pareçam mais bravos e poderosos, mais capazes de protegê-la. Não só isso. O medo é companheiro de secretos ódios e, crente na força do número, a plebe poderia perder o temor, derrubando quem ousa governá-la. Assim, tanto a classe dirigente declinante quanto a ascendente encaram o medo que atribuem à plebe como risco permanente de tumulto, sangue, revolta e sedição. Perigo contínuo de subversão da ordem, o medo da plebe engendra um imaginário sociopolítico às avessas: o medo à plebe.

Quando a ética fizer seu percurso protestante, transformando o trabalho em suprema virtude, o vício não mais será a covardia, mas a vadiagem. De medrosa a vadia, a plebe não será menos perigosa, pois, se “mente desocupada é oficina do diabo”, a vadiagem plebeia aparece como causa dos entusiasmos sectários. De Munzer aos diggers, a plebe entusiasta pretende “virar o mundo de ponta-cabeça”. Para contê-la, o ascetismo da nova classe dominante disporá, doravante, de três recursos legais: extermínio ou prisão dos “vagabundos”; recrutamento militar e policial dos plebeus; constituição de forças paramilitares e parapoliciais, formadas pelo lumpesinato. Infundindo-lhe o medo do ócio, os grandes e poderosos continuam a ver a plebe como “temível quando não teme” e, entre as maneiras de conservá-la no temor, além da persuasão à docilidade laboriosa, do uso da força e da morte, usam também a plebe contra si mesma.

III

Sob o impacto do estoicismo romano e do cristianismo, um movimento conceitual e prático modificará a antiga relação grega entre ethos e pathos. Para os gregos antigos e clássicos, ethos é aquilo que se é por natureza (temperamentum, dirão os médicos da Renascença; caráter, diriam os estudiosos da psychê). Pathos é inclinação ou tendência natural do próprio ethos, sua visibilidade. Porém, se deixado a si mesmo, o pathos poderá tornar-se contrário ao ethos, transformando-se em força destrutiva por desmedida. Torna-se contranatureza. Feiura e não vício. Hybris. Ao logos (palavra, razão de ser) cabia oferecer ao ethos a medida, o metron, que lhe permitisse reter o pathos aquém das fronteiras da contranatureza — tanto acima quanto abaixo da natureza. Com o estoicismo (particularmente em sua versão romana) e com o cristianismo, sobrevém a primeira mudança conceitual. Ethos transmuta-se num valor — a virtude — enquanto pathos torna-se seu negativo — o vício. Identificada aos poderes da razão para dominar corpo e ânimo, a virtude desenha a figura da natureza humana ideal em que a paixão, identificada ao vício, deve ser combatida porque contranatureza. O primeiro deslocamento assim obtido realiza a passagem do par ethos-pathos à oposição entre virtude e vício como oposição entre razão e paixão. Todavia, o percurso estoico e cristão é diverso. Os estoicos afirmam o poder natural da razão para dominar e suprimir a paixão. Os cristãos não podem fazê-lo de imediato, pois, em decorrência do pecado, a razão humana é estultice e a vontade, servidão. Somente pela fé e, portanto, pela graça santificante (que dobra a natureza, segundo Santo Agostinho; ou que auxilia a natureza, conforme São Tomás) a paixão há de ser domada. Signo de uma razão desnaturada, para o estoico, e de uma vontade perversa, para o cristão, a paixão é risco de animalidade.

Para a modernidade, porém, o risco é maior. A razão, luz natural finita, encarregada de guiar a vontade livre, ao esbarrar na paixão não esbarra apenas no perigo da queda na bestialidade. Descobre, com horror, que a paixão deixa à mostra a essência humana como irracionalidade congênita. O deslocamento das paixões para o fundo sombrio da irrazão prepara o deslocamento seguinte, nosso contemporâneo, analisado por Foucault na História da Loucura na Idade Clássica: as paixões da alma irão deixando de pertencer à metafísica, à ética e à política para se tornarem, pouco a pouco, objeto de estudo da medicina, da clínica e da psicologia científica. Deixam de ser vício ou virtude, mas também deixam de ser paixões: ficam sob a suspeita de ser doença. Medicalizadas, encontrarão refúgio numa região marginal, supostamente sem compromissos com o real e o ver-dadeiro, a literatura e as artes. Será preciso aguardar longo tempo até que a filosofia outra vez delas se ocupe.

Antes, porém, que esse movimento chegasse a completar–se, a dissolução da moral da valentia encetava seu curso. Já no século XVI Montaigne efetua uma mudança decisiva. Por natureza e por costume, escreve, temos boas e más inclinações, bons e maus sentimentos sem que virtude e vício se sobreponham inteiramente ao bom e mau naturais ou costumeiros. Virtude e vício dependem da presença ou ausência da razão, “posta pela natureza a nosso serviço, a fim de nos guiar”. Fraqueza de ânimo e covardia não são a mesma coisa: a primeira nos vem da Natureza ou do costume; a segunda, da surdez aos conselhos da razão. Por isso o medo, “estranho sentimento”, é o que nos torna insensatos pondo “asas em nossos pés” quando não deveríamos fugir, e “pregando-os ao solo” quando a fuga seria necessária. Rouba-nos a coragem e dá ensejo à crueldade. Acidente dotado de causas e fruto da insensatez, o medo não se opõe à valentia, mas à prudência. E, no século XVIII, Rousseau falará na extravagância da valentia, risco para a sociabilidade fundada no contrato. “A mais extravagante e bárbara das opiniões que um dia entrou no espírito humano”, lemos na Carta a D’Alembert, “ou seja, a de que todos os deveres da sociedade são substituídos pela bravura; que um homem não é mais impostor, velhaco, caluniador e que é civil, humano e polido quando sabe bater-se; que a mentira se transforma em verdade, que o roubo se torna legítimo, a perfídia honesta, a infidelidade louvável, desde que se sustente tudo isso com a espada na mão; que uma afronta é sempre bem reparada por uma cutilada e que nunca agiremos mal com um homem desde que o matemos”. A bravura é tão insensata quanto o medo. Insensatez, sabemos, é o termo médico para classificar o irracional como louco. O extravagante.

Sob o signo da sensatez, os ideais agonísticos — glória, fama, honra, coragem e riqueza — transformam-se em paixões que a moral (burguesa, para sermos explícitos) sente-se compelida a suprimir e, simultaneamente, conservar. O percurso dessa curiosa Aufhebung é descrito admiravelmente por Hirschman,[10] ao descrever a gradual metamorfose do ethos aristocrático em tolice, vício e loucura durante a constituição do pensamento da economia política. Diante das paixões, três atitudes são possíveis: a repressiva ou calvinista, que pretende suprimir o passional; a astuta ou maquiaveliana, que espera transformar as paixões em forças civilizatórias, graças à “astúcia da razão”; e a realista (representada por Bacon e Espinosa), que introduz o “princípio da paixão equivalente contrária”. Para esta última atitude, tida como vitoriosa por Hirschman, trata-se de abandonar o impossível — a repressão tanto quanto a mobilização do passional — por uma estratégia que permita combater as paixões mais destrutivas e perigosas por meio de paixões equivalentes e contrárias. A batalha entre as paixões, acreditam os realistas, redundaria no aparecimento de um contrapoder passional, benéfico e natural. Para isso, um terceiro termo vem intercalar-se às paixões, o conceito de interesse. Iniciando sua intervenção no plano ético e psicológico, o interesse tornar–se-á conceito político e, a seguir, voltará a ser o que sempre fora, isto é, conceito econômico explicitado completamente por Adam Smith.

É paradoxal o itinerário do par paixão-interesse. No início, o interesse define o conjunto das paixões “úteis” que poderão vencer as destrutivas. O interesse é paixão, aquela paixão que cumpre dois objetivos fundamentais, quais sejam, a autoconservação do indivíduo e a segurança política ou manutenção da ordem contratual e consensual. No final do itinerário, porém, interesse é um conceito acrescentado à paixão e Adam Smith fala em interesse e paixões. Para que essa mudança ganhasse inteligibilidade seria preciso que soubéssemos o que ocorreu ao antigo par interesse-paixão. Hirschman, porém, acompanha menos os avatares da paixão e muito mais os do interesse como conceito que veio, gradualmente, intercalar-se entre os velhos termos da conhecida dicotomia razão-paixão. Para os teóricos do interesse, este será categoria “isenta da destrutividade da paixão e da ineficácia da razão”. Todavia, e isto é crucial (ainda que Hirschman pareça desconsiderá-lo), tão logo a noção de interesse intervenha, é imediatamente assimilada à de cálculo racional para o bom uso das paixões e, dessa maneira, desde o início já é possível perceber que o interesse integrava-se à lógica da razão (mercantilista). Cremos ser essa integração o que permite a passagem da expressão inicial, “interesse é paixão”, à final, “interesse e paixão”. Em outros termos, representada como fundo irracional, a paixão continua não “isenta de destrutividade” e a ela não se opõe a “ineficácia da razão”, mas um novo conceito de razão que é o interesse. Se a paixão é vista como destrutiva é justamente por aparecer como incapaz daquilo que é a marca da racionalidade do interesse, isto é, saber calcular para alcançar plena satisfação. É na qualidade de razão calculadora que o interesse, ao fim e ao cabo, vem justapor-se à paixão.

Sem dúvida, esse interesse-razão procura ser operatório e operativo selecionando paixões compatíveis aos interesses em jogo. Não abole as paixões, mas, rigorosamente, negocia com elas e as negocia. Nesta perspectiva, não é tanto a relação interesse-paixão que é nova, mas a mudança do conceito de razão sob o signo do interesse. Para que se viesse a falar em interesses privados (lucro e riqueza) e em interesses públicos (a razão de Estado) e para que se passasse, como tão bem mostra Hirschman, da fórmula “o interesse nunca mente” a “o interesse governa o mundo”, um duplo movimento foi necessário. O primeiro, analisado por Hirschman, é a compatibilização entre interesse e paixão. Mas é requerido também um segundo, não analisado por Hirschman: o de contabilização da paixão pelo interesse. Nesse segundo movimento, a paixão vai rumando para a periferia do mundo moral, econômico e político na qualidade de resíduo ou resto irracional da natureza humana. Movimento que encontra sua condição de possibilidade na metamorfose da razão em figura da lógica do capital, absorvendo o interesse. Essa razão, longe de ser ineficaz, faz as contas e, em seu cálculo, cabe à paixão o hospital psiquiátrico, onde a alma faz de conta.

Hirschman localizou Espinosa entre os pensadores realistas, teóricos do jogo das paixões contrárias e equivalentes. Aqui cabem três pequenos reparos. Em primeiro lugar, Espinosa não pensa em paixões contrárias equivalentes — não trabalha com a noção de equivalência —, mas em paixões contrárias mais fortes, o que é bastante diferente, como veremos. Em segundo lugar, porque não considera a paixão um vício da natureza humana, introduz, como assinala Hirschman, a noção de útil para substituir as noções de bom e mau no trato das paixões, porém, ao fazê-lo, não confere ao útil qualquer estatuto racional, de sorte que as paixões, enigmaticamente, são dotadas de força para decidir. Nesta perspectiva, não é o interesse que decide pela paixão, mas é esta que define o próprio interesse. Em terceiro lugar, a Medicina Mentis espinosana não se funda numa razão calculadora das paixões (Espinosa não cessa de demonstrar a impotência dos cálculos racionais face às paixões), mas na diferença entre liberdade e servidão ou atividade e passividade. Se Espinosa é capaz de demonstrar que os mesmos afetos podem fazer-nos passivos ou ativos é porque para ele a relação paixão–ação não se funda na oposição vício-virtude, irrazão-razão e, sim, na antiquíssima relação entre pathos e ethos.

IV

A maioria dos que escreveram sobre os afetos e a maneira de viver dos homens parece ter tratado não de coisas naturais que seguem a lei comum da Natureza, mas de coisas que estariam fora da Natureza. Mais ainda. Quase todos parecem conceber o homem como um império em um império. Acreditam, com efeito, que o homem perturba a ordem da Natureza, mais do que a segue, que tem sobre seus atos poder absoluto e que é determinado apenas por si mesmo e não por outras coisas. Procuram, portanto, a causa da impotência e da inconstância humanas não na potência comum da Natureza, mas não sei em que vício da natureza humana e por isso passam a lamentá-la, rir-se dela, desprezá-la e, mais amiúde, a detestá-la. E passa por divino aquele que mais eloquente e sutilmente souber censurar a impotência da mente humana.

Espinosa, Ethica

Filósofos há que concebem os afetos, em nós conflitantes, como vícios em que caem os homens por sua própria culpa. Por isso costumam ridicularizá-los, deplorá-los, censurá-los e (quando querem parecer mais santos) detestá-los. Acreditam proceder divinamente e elevar-se ao cume da sabedoria prodigalizando todo tipo de louvor a uma natureza humana que em parte alguma existe, machucando com seus ditos aquela que realmente é. Concebem os homens não como são, mas como gostariam que fossem. Por isso quase todos, em lugar de ética escreveram sátira e, em política, quimera conveniente ao país da Utopia ou à Idade de Ouro dos poetas, quando nenhuma instituição era necessária […]. Tive todo o cuidado em não ridicularizar as paixões humanas, nem lamentá-las ou detestá-las, mas compreendê-las.

Espinosa, Tractatus Politicus

Causa de si, causa necessária e livre de sua essência e existência, causa universal e imanente de todas as coisas, a Substância infinitamente infinita, isto é, Deus ou Natureza Naturante, é constituída por infinitos atributos infinitos em seu gênero, dos quais conhecemos dois: pensamento e extensão. Por sua potência de ser e agir, os atributos, causas imanentes, dão origem à Natureza Naturada ou modificações infinitas (modos infinitos imediatos e mediatos) e finitas (modos finitos do pensamento — ideias — e modos finitos da extensão — corpos). Cada um dos atributos opera livremente, isto é, conforme a necessidade interna ou autônoma de sua potência infinita, produzindo infinitos efeitos infinitos e finitos de mesma natureza que a sua, entre eles, a mente humana, modo finito do pensamento, e o corpo humano, modo finito da extensão. Por sua potência de agir, a Natureza Naturante é imanente à Natureza Naturada que, por sua essência, é imanente à Natureza Naturante. A causa, por ser imanente, não é transitiva e, consequentemente, não se separa de seus efeitos, constituindo-os e neles se exprimindo. Assim como pensamento e extensão operam segundo causalidades autônomas e independentes, assim também seus modos, de sorte que mente e corpo operam segundo causalidades próprias. Ou, como enuncia a proposição 2 do Livro II da Ethica, “nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao movimento e ao repouso”, afastando relações mecânicas e transitivas entre eles. Diferentes pela essência e pela potência, corpo e mente possuem relações expressivas, uma vez que “a ordem e conexão das ideias é a mesma que a ordem e conexão das coisas” (Ethica, II, prop. 7), ou, ainda, “assim como os pensamentos se ordenam e se encadeiam na mente, da mesma maneira as afecções se ordenam e se encadeiam no corpo” (Ethica, V, prop. 1).

Assim como se exprimem reciprocamente, corpo e mente, manifestações finitas do infinito o exprimem, isto é, exprimem a Substância que os constitui porque “no mesmo sentido em que se diz que Deus é causa de si, deve-se dizer também que é causa de todas as coisas” (Ethica, I, prop. 25, escólio). Ou, como enuncia o corolário dessa mesma proposição, “as coisas singulares não são senão afecções dos atributos de Deus, modos pelos quais os atributos se exprimem de maneira certa e determinada”.

Recusando o antropomorfismo (que imagina um deus pessoal, dotado de intelecto onisciente, vontade onipotente, misericórdia e benevolência) e a teologia negativa (que imagina um deus abscôndito, inalcançável para os seres finitos), recusando a teologia política (que precisa de um deus pessoal fundador do direito divino de monarcas e legisladores) e recusando a tradição religioso-metafísica da transcendência (seja sob a imagem da causa eficiente transitiva, seja sob a imagem da causa emanativa), a filosofia espinosana afirma e demonstra a inteligibilidade plena de uma Substância infinitamente complexa cuja atividade livre, necessária, infinita e imanente constitui a Natureza como Indivíduo ou estrutura constituída por essências singulares reais ou indivíduos finitos internamente articulados cuja potência de agir constitui sua essência atual como conatus, isto é, esforço para perseverar no ser, pois “nenhuma coisa tem em si algo pelo que possa ser destruída, ou seja, que suprima sua existência, mas, ao contrário, opõe–se a tudo quanto possa suprimir-lhe a existência e por isso esforça-se para perseverar no ser tanto quanto puder e está em si podê-lo” (Etica, III, prop. 6, demonstração). Nos modos singulares humanos o conatus chama-se Cupiditas, Desejo que “é a própria essência do homem enquanto concebida como determinada a fazer algo por alguma afecção nela existente” (Ethica, III, Definição dos afetos).

Intrinsecamente indestrutível, individualidade real, essência singular e atual, o conatus-cupiditas corpóreo e anímico é um modo finito, e a finitude pode impedi-lo de realizar sua potência de agir quando esta se vê determinada, freada ou bloqueada pela potência de forças exteriores mais numerosas e mais fortes do que ela. Torna-se passivo, pois “somos passivos quando em nós se produz alguma coisa ou alguma coisa se segue de nossa natureza, de que não somos senão causa parcial” (Ethica, III, def. 2). Quando, porém, o conatus se fortalece internamente e sua potência de agir, intrinsecamente determinada por suas próprias operações, não sucumbe ao poderio de forças externas, efetua-se como atividade, pois “somos ativos quando se produz em nós ou fora de nós alguma coisa de que somos causa adequada, isto é, quando se segue de nossa natureza, em nós ou fora de nós, alguma coisa que pode ser clara e distintamente compreendida apenas pela nossa natureza” (Ethica, III, def. 2). Passividade é heteronomia. Espinosa dá-lhe um nome preciso: servidão. Atividade é autonomia e seu nome, liberdade. Os “afetos que travam combate em nós” podem ser causa de servidão tanto quanto de liberdade, porque deles depende que nos deixemos ou não dominar pelo poderio de uma exterioridade adversa e contrária à nossa essência. Se tivermos força corpórea e anímica para a autonomia, seremos causa imanente de nossas ações, de nossos afetos e de nossas ideias e a liberdade será o movimento pelo qual nós, que por natureza somos partes do infinito, passamos a nele tomar parte, dele participando conforme a necessidade de nossa natureza.

A primeira inovação conceitual espinosana concerne à imanência do infinito no finito (por sua potência, a Substância cria os modos e neles se exprime) e à imanência do finito no infinito (pelo conatus autônomo, o modo toma parte ou participa da atividade infinita).

A segunda inovação, decorrente da anterior, concerne ao conceito de liberdade como atividade necessária determinada pela essência de um ser autônomo. Pela primeira vez, a liberdade não se confunde com o ato voluntário de escolha nem se opõe à necessidade, mas se realiza como desdobramento interno daquilo que se é naquilo que se faz. Oposta à passividade ou ao constrangimento externo, a liberdade é essência do infinito e conquista do finito quando fortalecido por sua mente (causa adequada de suas ideias), seu corpo (causa adequada de suas afecções) e seu Desejo (causa adequada de seus afetos).

O corpo é estrutura singular determinada por relações proporcionais de movimento e repouso de seus constituintes e por relações (proporcionais ou não) com os demais corpos que o rodeiam e que o afetam e são por ele afetados. As afecções corporais constituem a imaginação e a potência do corpo é imaginar. A mente é ideia de seu corpo e ideia de si mesma, podendo relacionar-se com ele e consigo mesma tanto por meio das imagens corporais quanto por meio de suas próprias operações intelectuais. Sua potência de agir é pensar. Assim como o conatus-cupiditas corporal pode ser bloqueado, freado e enfraquecido quando suas afecções são determinadas por forças externas (o poderio das imagens dos outros corpos sobre o nosso), assim também o conatus-cupiditas anímico pode ser bloqueado, freado e enfraquecido quando suas operações são determinadas pela confusão e mutilação das imagens de seu corpo e dos corpos exteriores, impedindo-lhe a reflexão. Na imaginação, a mente apenas tem ideia de seu corpo, oferecida menos pelo que ele realmente é e muito mais pelo que lhe acontece por suas relações com os demais corpos. Na intelecção, a mente é ideia de seu corpo e, na reflexão, é ideia de si mesma — é consciente de seu corpo tal como realmente é e existe, e é consciente de si tal como realmente é e existe. Corpo e mente, demonstra Espinosa, são realidades complexas ou múltiplas, aptas para a pluralidade simultânea de afecções ou percepções (corpo) e de afetos e ideias (mente). Ser capaz do múltiplo simultâneo, de ser afetado e afetar inúmeros corpos simultaneamente sem deixar-se enfraquecer por eles é a atividade corporal ou a imaginação livre, pois “o corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída” (Ethica, II, postulado 1). Ser capaz do múltiplo simultâneo, de compreender-se como causa de suas inúmeras ideias e da gênese e conexão necessárias entre elas, de ser consciente de si, de seu corpo, do mundo e da natureza infinita é a atividade anímica ou conhecimento livre, pois, “quanto maior o número de coisas que a alma compreende pela razão e pela ciência intuitiva, tanto menos padece as afecções que são paixões e tanto menos tem medo da morte” (Ethica, V, prop. 36).

O segredo da liberdade, e toda a sua dificuldade, reside na passagem da heteronomia passional (afecções passivas do corpo; ideias imaginativas mutiladas da mente) à autonomia corporal e intelectual. Dessa passagem, os afetos são a chave, pois “por afetos entendo as afecções do corpo pelas quais sua potência 
de agir é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as ideias dessas afecções na mente” (Ethica, III, def. 3). Ora, “uma afecção corporal e um afeto anímico que são paixões, deixam de sê-lo quando deles formamos uma ideia verdadeira” (Ethica, V, prop. 3), e “não há nenhuma afecção do corpo de que não possamos formar uma ideia verdadeira” (Ethica, V, prop. 4). Essa transformação não nasce de um poder que a alma exerceria sobre o corpo (já vimos que um não tem poder sobre o outro), mas sim de sua capacidade para com-preen-der a necessidade das afecções corporais cuja causa adequada é o próprio corpo e para compreender a necessidade dos afetos e das ideias cuja causa adequada é a própria mente, pois, “quanto mais conhecemos as coisas como necessárias, tanto maior é a potência da alma para pensar” (Ethica, V, prop. 6, dem.). E, assim, “quem tem um corpo apto para um grande número de coisas possui uma alma cuja maior parte é eterna” (Ethica, V, prop. 39), eternidade não sendo imortalidade além-túmulo (Espinosa é mortalista), mas identidade entre ser, existir e agir em ato. Quando somos como existimos e como agimos, somos eternos. A eternidade — identidade da essência, da existência e da potência —, conhecimento da necessidade autônoma do corpo e da alma na relação com o todo da Natureza Naturada, consigo mesmo e com a Natureza Naturante, recebe em Espinosa o nome de dois afetos: amor intelectual de Deus e glória, ou contentamento pleno. Momento em que reconhecemos nossa participação no infinito e no qual o amor do infinito “é o mesmo amor de Deus, com que ama a si mesmo, não enquanto é infinito, mas enquanto se exprime” na essência finita da alma e do corpo. “Donde resulta que Deus, ao amar-se a si mesmo, ama os homens, isto é, o amor de Deus por si e pelos homens não é senão o amor com que amamos os homens e a Natureza inteira” (Ethica, V, prop. 36, corolário). Nisso, conclui Espinosa, reside nossa felicidade e liberdade e esse amor infinito do finito é indestrutível. Chama-se sabedoria.

Modificação finita do pensamento infinito que lhe é imanente, modificação finita da extensão infinita que lhe é imanente, alma e corpo possuem cada qual sua própria causalidade, o corpo produzindo efeitos corporais e a alma, efeitos anímicos. A primeira consequência dessa autonomia das causalidades é a ruptura espinosana em face das teorias tradicionais, clássicas e cristãs, da paixão e da ação. Para a tradição (que se prolonga nos filósofos modernos, salvo Espinosa), passivo e ativo são termos reversíveis: passivo é o termo sobre o qual recai a ação de um outro; ativo é o termo que faz recair sua ação sobre outro. Para a tradição, as paixões da alma são ações do corpo e as paixões do corpo, ações da alma. Entre os termos cimenta-se uma relação hierárquica, pois um deles, o ativo, é imaginado como poder de mando sobre o outro, passivo ou subordinado. Não sem motivo, a tradição define a virtude como império da vontade, guiada pelo intelecto ou santificada pela graça, sobre as paixões. Dessa concepção afasta-se a teoria espinosana. Não há reversibilidade nem hierarquia na relação corpo-alma, o que se passa num deles exprime-se no outro, não havendo relação causal entre eles. Somos, assim, passivos de corpo e alma ou ativos de corpo e alma. Pela primeira vez, desde o advento do cristianismo, uma filosofia capta corpo e alma com iguais fraquezas e iguais forças, não mais cabendo ao corpo a tarefa sombria de destruição do espírito, nem a este o trabalho de reprimir e dominar o corpo. Passivo ou ativo por inteiro, nosso ser mergulha na passividade quando somos causa inadequada de nossa existência e potência (isto é, “quando em nós se produz algo de que somos apenas causa parcial”) e conquista a atividade quando somos causa adequada de nossa existência (isto é, “quando em nós ou fora de nós se produz algo de que somos causa determinada apenas por nossa própria natureza”). Atividade é desdobramento da causa eficiente interna que se exprime em seus efeitos, neles e com eles se efetua.

A autonomia do conatus-cupiditas corpóreo e anímico, opondo-se à heteronomia passional, leva Espinosa a definir a atividade como liberdade e a passividade como servidão, afastando as imagens da vontade livre e do livre-arbítrio imaginados como capacidade para escolher entre o bem e o mal, capacidade que, no cristianismo, manifesta-se pelo pecado, pela culpa e pela dor. Que seres tristes e temerosos, indaga Espinosa, puderam imaginar que nossa força — a liberdade — se exprimiria pela máxima fraqueza — a queda? Como puderam confundir ação e paixão? Nesta somos habitados e possuídos pela exterioridade confusamente imaginada como se nos fosse interior, como se fôssemos o que não somos e não fôssemos o que somos. As coisas exteriores, potências de agir e padecer como nós, ao serem imaginadas como causas finais do desejo, tendem a encobrir a causalidade eficiente imanente do desejo que, ignorando-se como causa, toma-se por efeito das causas exteriores e deixa-se determinar inteiramente por elas. Eis como nascem as imagens da tentação e da trangressão, de poderes externos que nos arrastam para o mal. E porque nesse imaginário a vontade é posta como faculdade livre da alma, sua queda atesta sua fraqueza, de sorte que, no mesmo movimento, nascem as imagens da obediência e da submissão a poderes benévolos-justiceiros que ao bem nos hão de conduzir. Quando a interiorização da culpa e da obediência tiverem feito seu percurso, o desejado, que antes fora posto como causa externa do desejo, será imaginado como perversão interior, exigindo o advento da recta ratio, capaz de frear e reprimir uma natureza essencialmente pecaminosa e autodestrutiva. A paixão engendra, assim, seus próprios fantasmas: deuses, diabos, bens, males, tiranos externos e internos a suplicar a tirania da razão. Urdindo uma trama secreta entre Deus e o Diabo pela mediação de uma vontade que se descobre livre porque capaz de desejar o mal, a imaginação tece a imagem da liberdade, isto é, sua negação. Seu contraponto será também uma imagem, a da necessidade confundida com a figura da autoridade que decreta proibições e interdições. Imagem teológico-política, dissolve o infinitamente infinito num poder antropomórfico destinado a punir transgressões e recompensar submissões. Ao infinitamente infinito imaginado como imperium corresponde a imagem do finito impotente, mas, ao mesmo tempo, imitador do infinito poder, imperium in imperio.

Essa trama imaginativa não é aberrante. Possui causas naturais que é preciso compreender em lugar de ridicularizar, lamentar ou detestar. Suas causas são paixões determinadas: o ódio ao corpo imaginante e à alma pensante e o medo supersticioso que reforça o poderio de autoridades frágeis porque escoradas em paixões tristes, ambição, logro e insaciável sede de dominação. Desvendando a gênese natural e necessária das imagens passionais da liberdade, servidão, necessidade e dominação, a ética espinosana dos afetos é, simultaneamente, crítica dos fundamentos das autoridades teológica, política e moral. A questão ética volta-se para a gênese dos afetos, suas diferenças intrínsecas e seus efeitos diferenciados. De onde nascem os afetos? Quais nos tornam passivos e nos fazem servos? Quais são ativos e exercício da liberdade? Não sendo vícios nem virtudes, são afecções de nosso corpo e sentimentos de nossa alma, forças de existir e de agir que podem ser freadas ou impulsionadas por forças externas, como podem desenvolver-se por si mesmas, graças à causalidade interna imanente ou adequada. Porque são forças, demonstra Espinosa, os afetos jamais serão vencidos por ideias ou vontades, mas apenas por outros mais fortes e contrários, a razão, como tal, sendo impotente para domá-los e dirigi-los, a menos que a atividade racional seja, ela também, experimentada como afeto. Compreender os afetos é, pois, alcançar sua origem, saber quais são primitivos e quais derivados, quais são fortes e quais fracos, o que os diferencia, aproxima e distancia, o que os conserva e o que os destrói.

Três são os afetos originários, demonstra o Livro III da Ethica: o desejo, a alegria e a tristeza. O desejo (cupiditas) é a própria essência do homem enquanto concebida como determinada a fazer algo por uma afecção nela existente. Não envolve a consciência, diz Espinosa, senão quando conhecemos ou imaginamos conhecer a causa de nossos apetites. Quando a causa é imaginária (isto é, depositada no desejado e não no desejante), o desejo é paixão; quando a causa é real (isto é, o próprio desejante) o desejo é ação. Dele nascem emulação, gratidão, inveja, vingança, crueldade, temor, audácia, pusilanimidade, consternação, modéstia, ambição, lubricidade, avareza, benevolência, generosidade, orgulho. Alegria e tristeza não são estados d’alma, são modos de ser ou existir. A alegria (laetitia) é passagem de uma perfeição menor a outra maior, sentimento de que nossa capacidade ou aptidão para existir e agir aumentam em decorrência de uma causa externa, na paixão, e de uma causa interna, na ação. Dela nascem amor, amizade, contentamento, glória, esperança, irrisão, segurança, estima, misericórdia. Como o desejo, a alegria pode ser paixão ou ação, desde que sua gênese seja imaginária ou real, ignorada ou conhecida, externa ou interna. Caso inteiramente diverso é o da tristeza. Tristeza (tristitia) é passagem de uma perfeição maior a outra menor, sentimento da diminuição de nossa aptidão para existir e agir. Porque diminuição da força do conatus corpóreo e anímico, a tristeza só pode ter causas exteriores sendo por isso intrínseca e necessariamente paixão, jamais ação. Dela nascem ódio, medo, desespero, humildade, remorso, inveja, abjeção, despeito, comiseração, vergonha, arrependimento.

A alma é ideia de seu corpo. O que é uma paixão da alma? “Um afeto chamado paixão da alma (anima pathema) é uma ideia confusa pela qual a alma afirma a força de existir de seu corpo ou de partes deste, força ora maior, ora menor. Ideia confusa cuja presença determina a alma a pensar em algo de preferência a outra coisa” (Ethica, III, Definição geral dos afetos).

A alma é ideia de si e de seu corpo. O que é uma ação da alma? “Quanto mais perfeição (isto é, quanto mais realidade) algo possui, tanto mais age e menos padece; e inversamente, quanto mais age, mais perfeito (ou real) é” (Ethica, V, prop. 40).

Perfeição ou realidade maior ou menor, força de existir do corpo, ora maior, ora menor. Com essas noções Espinosa desenvolve a teoria da paixão e da ação segundo graus de força ou de intensidade. Assim, uma paixão é mais forte do que outra quando aumenta a capacidade de existir de nosso corpo e de nossa alma, força não se confundindo com estados de agitação corporal ou psíquica, com violência das emoções. Ódio, medo, inveja, ambição e remorso são, talvez, as emoções mais violentas e agitadas que experimentamos, mas, porque são paixões nascidas da tristeza, são também os afetos mais enfraquecedores do conatus. Ontologicamente, portanto, as paixões mais fortes virão da alegria enquanto as mais fracas se originarão da tristeza. As ações, por seu turno, sendo perfeição ou realidade maiores, serão mais fortes do que as paixões de alegria. A liberdade nasce desse e nesse movimento de passagem das paixões tristes às alegres e das paixões de alegria às ações suscitadas pelo desejo e pela alegria. Passagem da heteronomia à autonomia, a perfeição ou realidade é fortalecimento da força do corpo (imaginar sem tristeza) e da alma (pensar sem tristeza), à medida que nosso corpo torna-se capaz de múltiplas afecções simultâneas e nossa alma capaz de múltiplas ideias simultâneas, conhecendo a necessidade interna que as articula. Capacidade para o múltiplo simultâneo, a liberdade é força para coexistirmos com os demais seres humanos e com a Natureza, sem sermos por eles subjugados e sem precisarmos subjugá-los para viver. Por isso, escreve Espinosa no Tratado teológico-político e no Tratado político, a democracia é o mais natural dos regimes políticos porque nela realiza-se o desejo de todo ser humano de governar e não ser governado, o que só pode ocorrer se todos forem iguais e livres. A liberdade, força para o plural simultâneo, é presença a si e aos outros sem o medo da morte recíproca.

V

Tanto é o medo que ensandece os homens.

Espinosa, Tractatus Theologico-Politicus

Se numa Cidade os cidadãos não tomam das armas porque estão aterrados pelo medo, não se pode dizer que aí exista paz e sim mera ausência de guerra. A paz não é pura ausência de guerra, mas virtude originada da força d’alma no respeito às leis […]. Uma Cidade onde a paz é efeito da inércia dos súditos tangidos como rebanho e feitos apenas para servir merece antes o nome de solidão do que de Cidade.

Espinosa, Tractatus politicus

Paixão triste, o medo é e sempre será paixão, jamais transformando-se em ação do corpo e da alma. Sua origem e seus efeitos fazem com que não seja paixão isolada, mas articulada a outras formando verdadeiro sistema do medo, determinando a maneira de sentir, viver e pensar dos que a ele estão submetidos.

Embora nascido durante a experiência imaginativa da irremediável contingência dos acontecimentos, não é ele próprio fruto da contingência ou do acaso, mas determinado por causas necessárias que, ignoradas, não cessam de alimentá-lo. Não nasce, porém, da ignorância nem será suprimido pelo verdadeiro saber (racionalista, Espinosa não é filósofo intelectualista). Nasce de nossa própria condição finita. Somos parte finita da Natureza, diz o Livro IV da Ethica, e nunca deixaremos de sê-lo. Finitos, estamos rodeados e envolvidos por outras partes da Natureza cujo número e cuja potência superam de longe nosso conatus, conseguindo, por isso, amedrontá-lo. O medo nasce de outras paixões e pode ser minorado (nunca suprimido) por outros afetos contrários e mais fortes do que ele, como também pode ser aumentado por paixões mais tristes do que ele. Ainda que o conhecimento do verdadeiro não o suprima e que a ignorância não o cause, é nela e dela que ele vive e prospera. Nessa perspectiva, o sistema do medo, conjunto ou campo passional, produz “teorias”, espécies de esconjuros efêmeros, cuja fragilidade, sempre renovada, prolonga o pavor.

O sistema do medo origina-se tanto nas conexões necessárias entre certas paixões quanto nas imagens corporais que, envolvendo as ideias imaginativas na mente, urdem um tecido de relações e causalidades abstratas que pretendem oferecer-se como explicação dos acontecimentos, como interpretação dos afetos e como conhecimento do real. Embora a gênese das imagens esteja nas afecções corpóreas (ou maneira pela qual o corpo se percebe e percebe os demais corpos quando afetado por eles ou quando os afeta), na mente as ideias imaginativas envolvidas pelas imagens corporais desconhecem essa gênese e fabricam uma outra, como se as ideias imaginativas houvessem nascido sem relação com as imagens corporais. Esse desligamento ou separação — isto é, abstração, no sentido etimológico do termo — entre imagens e ideias imaginativas, desarticulando corpo e alma, produz encadeamentos confusos, mutilados e invertidos entre causas e efeitos e substitui o aparecer — as imagens — pelo parecer persuasivo — as ideias imaginativas. O campo imaginário, ao atribuir a causas exteriores o que são efeitos de causas interiores, relaciona imagens por semelhança, contiguidade espacial e sucessão temporal, opera com analogias e inventa uma causalidade nova e inexistente, isto é, a causa final. Finalismo, relações extrínsecas entre causa e efeito, conexões analógicas, constituem o que Espinosa designa com a expressão ordem comum da Natureza, onde os corpos se encontram, se separam, concordam ou entram em conflito sem que saibamos realmente como e porque isso acontece. Na ordem comum da Natureza, a ordem necessária e livre é encoberta, e a imaginação confunde necessário e contingente, possível e arbitrário, duração e tempo, posse e liberdade, inédito e milagre, apetite humano e atividade substancial, causalidade eficiente e causa final, força e transgressão, felicidade e obediência. Ao sentimento da finitude ou da fragilidade humana diante do universo, a imaginação oferece consolo, mas suas explicações, engendrando deuses e demônios, são tão frágeis que, voltando-se contra nós, ampliam o medo e o desamparo.

Precário, o conhecimento consolador assim obtido tende a esfacelar-se quando abalado por todo e qualquer acontecimento inesperado que o contradiga. Todavia, a frágil montagem imaginária, porque nascida de afetos e alimentada por paixões, desemboca em duas alternativas contrárias quando ameaçada por acontecimentos que a negam. Ora pode desfazer-se, produzindo absoluto desamparo e aumento do medo diante do inexplicável que supúnhamos explicado e conhecido. Ora pode manter-se, apesar de todas as provas empíricas de suas falhas, como se assim erguesse fortaleza inexpugnável contra o medo. No primeiro caso, a medos antigos, que a imaginação desejava sepultados e encontra renascidos, vêm acrescentar-se medos novos, homens e mundo balouçando ao sabor da fortuna caprichosa. No segundo caso, porém, algo terrível começa a suceder, outro medo, insidioso e secreto, inicia trabalho opressivo. Com efeito, a permanência das explicações antigas, apesar de seus enganos agora percebidos, não resulta da obstinação, mas indica a emergência de uma figura que, prometendo a paz e segurança, tangerá o rebanho amedrontado: a autoridade nascida da ambição e das cisões do corpo social. Este, que surgira para minorar o medo imperante nas relações intersubjetivas e naturais anteriores à vida em sociedade, torna-se fonte de medo.

Transformando a explicação imaginativa em doutrina e esta em ortodoxia, punindo com morte e exclusão toda tentativa para substituí-la ou modificá-la, os que são movidos por ambição dominam os que são movidos pelo medo. Cumplicidade entre o orgulho e a soberba de uns e a abjeção e humildade de outros, ambição e pusilanimidade dão-se as mãos, selando um pacto que envolverá céu e terra. Porque imaginam a liberdade como poder exercido sobre coisas e humanos e sobretudo como posse de bens, o maior deles sendo a posse do corpo e do espírito de outrem, os que ambicionam a dominação convertem a montagem imaginativa em máquina imaginária a serviço da opressão, forçando a fraqueza dos dominados a acreditar nas imagens antigas, mesmo e sobretudo quando contrariadas ou negadas pelas novas. Duplica-se o medo: tem-se medo do novo, acontecido, e tem-se medo da heterodoxia, punida. À incompreensão da Natureza vem juntar-se o medo dos homens, dos suplícios e castigos infligidos aos dissidentes e da perda de favores e recompensas ofertados aos coniventes. Mas, do lado dos poderosos, também há medo: têm medo da desobediência, da revolta, da perda de prestígio e do lugar do poder. Medo dos que possam refutá-los. Medo sobretudo dos iguais, dos que possam rivalizar com eles, fabricando máquina imaginária mais potente que a sua porque mais persuasiva. Se, do lado dos que se deixaram dominar ou a isto foram forçados, o inexplicável aterroriza, paralisa todo esforço de compreensão e de ação, por seu turno, a máquina doutrinária estabelecida, mantida pela força ou pela palavra, faz estiolar a tentativa de oposição. Ao medo das coisas e dos homens vem acrescentar-se o medo do pensamento e da ação. Do lado dos dominadores, o medo da revolta e dos rivais, acrescentando ao desejo de governar a Natureza e os homens, recebe novo acréscimo passional: o ódio dela e deles, a ela e a eles, corrupta ela e corrompidos eles “por não serem o que [seus senhores] gostariam que fossem”. Ao ódio dos poderosos vem juntar-se o ódio dos despojados numa luta sem tréguas, silenciosa às vezes, ruidosa outras vezes, na tentativa incessante de pôr fim ao medo fazendo medo.

Não rir, não chorar, mas compreender. O que é, pois, o sistema do medo?

No Livro III da Ethica, dedicado à origem e natureza dos afetos, Espinosa oferece, após a dedução e demonstração das causas e efeitos afetivos, um quadro com a definição dos afetos, partindo do desejo, da alegria e da tristeza. No interior desse quadro, encontramos um conjunto de paixões cuja articulação, pensamos, constitui o sistema do medo.

“A esperança (spes) é uma alegria instável nascida da ideia de uma coisa futura ou passada de cujo desenlace duvidamos em certa medida.”

“O medo (metus) é uma tristeza instável nascida da ideia de uma coisa futura ou passada de cujo desenlace duvidamos em certa medida.”

“Segue-se dessas definições que não há esperança sem medo, nem medo sem esperança. Aquele que está suspenso na esperança e duvida que advenha algo esperado, começa a imaginar algo que exclua a existência do esperado e, por conseguinte, passa da alegria instável à tristeza. Quem está suspenso na esperança tem medo de vê-la frustrada. Aquele, ao contrário, que é vítima do medo, isto é, duvida que advenha algo odiado, imagina alguma coisa que exclua a existência do temido e, por conseguinte, alegra-se na esperança de que não ocorrerá.”

“A segurança (securitas) é a alegria nascida de uma coisa passada ou futura sobre a qual já não existe dúvida.”

“O desespero (desperatio) é a tristeza nascida de uma coisa passada ou futura sobre a qual já não existe dúvida.”

“A segurança, portanto, nasce da esperança e o desespero, do medo, quando já não existem dúvidas sobre a ocorrência de algo. Isto decorre de que o homem imagina algo passado como estando presente ou imagina a existência daquilo que o fazia duvidar do desenlace. Assim, mesmo sem ter certeza sobre as coisas singulares, podemos não duvidar que ocorram ou deixem de ocorrer e essa ausência de dúvida é a causa da segurança ou do desespero.”

“O contentamento (gaudium) é a alegria acompanhada da ideia de algo passado acontecido inesperadamente.”

“O remorso (conscientiae morsus) é a tristeza acompanhada da ideia de algo passado acontecido inesperadamente.”

Além dos vínculos entre alegria, esperança, segurança e contentamento, de um lado, e entre tristeza, medo, desespero e remorso, de outro, um outro vínculo é essencial no surgimento desses afetos, qual seja, a relação com a imagem da duração, isto é, o tempo como sucessão descontínua, contingente e arbitrária dos eventos. Medo e esperança estão referidos ao passado e ao futuro, sobre os quais pesam dúvidas; desespero e segurança, ao passado e ao futuro, quando sobre eles não pesarem dúvidas; contentamento e remorso, ao passado inesperado. Dessa maneira, o presente é um vazio (o evento foi ou será) preenchido pelos afetos e a ausência de dúvida, no caso da segurança e do desespero, salienta Espinosa, não é o mesmo que presença da certeza: a imaginação traz para o presente o passado e o futuro, excluindo imagens de tudo quanto possa impedir essa presença, de sorte que somente no contentamento e no remorso estamos diante do já consumado. Mas Espinosa afirma: o evento foi inesperado.

O que há de rigorosamente patético no sistema do medo é sua gênese no seio da Fortuna, temporalidade caprichosa, quando nada podemos fazer senão esperar ou temer o que virá, chorar ou bendizer o que foi. Mais do que em qualquer outro afeto, no medo ficamos expostos à imagem de nossa impotência. Essa imagem não produz apenas a mais terrível das paixões — a flutuação do ânimo (fluctuatio animi) — que nos faz experimentar, simultaneamente, temor, regozijo, desespero, esperança e remorso, “balançando como vagas num mar revolto”, mas é ainda origem da servidão suprema, que Espinosa chama de superstição.

No prefácio do Theologico-politicus, Espinosa escreve: “se os homens pudessem governar suas vidas seguindo uma deliberação segura, ou se a Fortuna lhes fosse sempre favorável, jamais sucumbiriam à superstição. Porém, amiúde reduzidos à angústia, já não sabem que resolução tomar e, arrastados por apetite desmedido pelos bens incertos da Fortuna, oscilando miseravelmente entre o medo e a esperança, têm o ânimo inclinado à mais extrema credulidade. Quando em dúvida, o mais leve impulso os faz pender ora num sentido, ora noutro, sua mobilidade crescendo quando suspensa entre o medo e a esperança, enquanto nos momentos de confiança tornam-se “jactanciosos e inflados”. Se, nos dias de prosperidade, não ouvem conselho algum, nos dias de adversidade ouvem tudo quanto se lhes diga, por mais “inepto, absurdo ou vão”. Qualquer coisa lhes serve de motivo para esperar o retorno da boa Fortuna ou para deixá-los abismados em terríveis temores. Basta que lhes venham à lembrança ocasiões passadas que imaginam semelhantes à presente, para que nisso vejam bons ou maus presságios e, “ainda que mil vezes enganados”, não cessam de buscar no pretérito o conhecimento do porvir. E quando não conseguem encontrar na memória auxílio, correm a procurá-lo nas entranhas dos animais, no voo dos pássaros, no rodopiar das estrelas e dos planetas. Declarando a razão cega e vã, confiando em adivinhos, que tomam por profetas divinamente inspirados, imaginam conjurar o pavor apelando para signos indicativos de potências desconhecidas e atentas ao curso de nossas vidas. Porque o que temem ou esperam parece-lhes independer deles mesmos, imaginam entidades caprichosas de cuja cólera ou benevolência tudo dependeria. Passando dos signos indicativos a signos imperativos, fazem apelo a um poder arbitrário e transcendente. É essa crença numa potência distante e separada, capaz de bens e males incompreensíveis e prodigiosos, é essa posição do desejo fora de si, essa alienação no sentido rigoroso do termo, que Espinosa chama de superstição. “Tão grande é o medo que ensandece os homens. A origem da superstição, que a alimenta e conserva, é, pois, o medo.” A religião, seu fardo. A tirania teológica e política, seu preço.

O medo não é louco. Mas enlouquece o ânimo e extravia a alma. A superstição, sim, é louca. Não é loucura pelo esforço imaginativo para dar sentido à Fortuna e ao que é vivido como não-senso. É louca por ambição desmedida e por insatisfação perene da cupiditas que põe “a felicidade onde não estamos e nunca estamos onde nós a pomos”. Não é do ponto de vista do saber ou da ignorância que Espinosa a descreve e avalia, pois de nada vale erigir a razão em juiz que pretenda ser sensato num mundo experimentado como insensato. A superstição é descrita como maneira de viver, existência entristecida que, na busca de alívio para o medo, dá ensejo ao desespero que, por seu turno, buscando alento, abre as comportas da servidão. Passando do medo à religião e desta à tirania teológico-política, a superstição apenas alimenta sua causa, imaginando suprimir seus efeitos, as imagens da Fortuna e da Natureza misteriosas. É o mistério que dá medo e enlouquece. A superstição cria e conserva os arcana: arcana Naturae e arcana Dei, mistérios da Natureza e de Deus, de onde nascem os arcana imperii, os segredos do poder. Agora, sim, a superstição imagina-se um saber. Ignorância vestida de conhecimentos, a superstição julga-se saber secreto reservado aos iniciados, espalhando medo e loucura.

Natural — pois é de nossa natureza sentir medo —, a superstição dura apenas enquanto perdurar sua causa. Inconstante — pois não temos sempre o mesmo medo e a mesma esperança das mesmas coisas —, só perdura enquanto durar o que lhe deu origem. Para torná-la constante e confiável, diz o Theologico-politicus, alguns, valendo-se da angústia de muitos, apresentam-se como intermediários entre os homens e as altas potências insondáveis e entre eles e as potências subterrâneas desconhecidas: sacerdotes e reis, no princípio como mediadores, e mais tarde como representantes dos altos e baixos poderes, apoderam-se do corpo, do ânimo e da mente de homens apavorados. No entanto, porque a visibilidade da política parece colocá-la nas vizinhanças e ao alcance dos demais homens, enquanto a religião, mais distante porque mais próxima dos deuses, parece rumar para a invisibilidade, aqueles que sabem que “não há meio mais eficaz para dominar a multidão do que a superstição”, induzem, “sob a capa da piedade, a adorar os reis como se fossem deuses ou a odiá-los como flagelo do gênero humano”. A teologia detém, pois, os segredos da política. Para que a adoração não vire ódio e, atingindo o rei, acabe atingindo o poder religioso, sacerdotes e teólogos “cercam a religião de cultos e aparatos próprios a lhe darem maior peso junto à opinião e maior respeito aos espíritos”, não hesitando em censurar, prender, interrogar, torturar e matar todo aquele que ouse refutá-la pelo livre pensamento e pela ação ético-política autônoma. Por seu turno, os detentores do poder político, captados pela sedução teológica, procuram cercar sua própria autoridade com o halo da divindade. Não porque, em determinadas épocas, o governo dos homens seja posto como direito divino de alguns — tal direito é episódico e mero efeito de uma divinização mais profunda e secreta da autoridade política, obtida graças ao cerimonial, ao segredo, às leis da censura, à disposição de exércitos e fortalezas, ao uso da prisão, tortura e morte dos opositores.

Num jogo de espelhos infindável, o medo à Natureza se espelha no medo à Fortuna que se reflete no medo à divindade que repõe o medo à Natureza através do medo às autoridades humanas. O medo do divino, invisível ou visualizado pelos ritos, sob os efeitos da divisão social e política, cria na imaginação religiosa o medo ao teólogo e, neste, o medo da heterodoxia e dos rivais. O medo ao humano, sob os efeitos da divisão social e política, cria na imaginação política dos dominados o medo ao governante e, neste, o medo à plebe. Fundada no medo recíproco, nasce a Cidade como “rebanho tangido e feito para servir”. Solidão.

Filha do medo, por ele e nele parida, a superstição é tentativa desesperada e delirante para encontrar uma unidade imaginária, capaz de recobrir e reconciliar uma realidade apreendida como imediatamente fragmentada no espaço e no tempo, feita de forças múltiplas e contrárias. A abstração imaginativa despedaça o real, paralisa todo esforço para deliberar e agir. Desamparados, diante da impossibilidade de dominar “as circunstâncias de suas vidas” e da impossibilidade de saber se “a Fortuna lhes será sempre favorável”, os homens buscam a unidade que lhes pareça assegurar continuidade aos acontecimentos, controle a Natureza irada, pacifique governantes coléricos, garanta esperanças e conjure medos. Essa unidade procurada não pode, evidentemente, pertencer à mesma dimensão que a do mundo fragmentado e dilacerado, mas precisa transcendê-
-lo, a fim de manter coesas as partes isoladas e contrárias. Essa coesão só pode ser obtida pela potência extraordinária de um querer e de um olhar capazes de varrer num só lance a totalidade do tempo, do espaço, do visível e do invisível. Destarte, a fragmentação experimentada com angústia pela imaginação apaixonada, desemboca numa unificação também imaginária, cuja morada, asylum ignorantiae, diz a Ethica, é a vontade providencial de um soberano divino. Graças a esse poder, que é uno porque transcendente, o curso das coisas parece assegurado e o destino de cada um, salvaguardado. No entanto, a salvaguarda é precária. Porque esse poder é imaginário, permanece desconhecido e rodeado de mistérios, desprovido de necessidade inteligível e, por conseguinte, a imagem de Deus torna-se um amálgama incompreensível, pois a onipotência de sua vontade, lugar onde se alojaria a necessidade de seu agir, faz com que seja também arbitrária. Secretas são suas razões. Misteriosa sua onisciência. Assim, para ser tido como onipotente, o poder divino deve ser tido como insondável e ilocalizável, duplicando, então, o mistério do mundo que o exigira. A partir do momento em que a arbitrariedade do poder divino é tomada como prova de sua onipotência, os homens são obrigados a conjurar a ameaça que criaram para si próprios, justamente quando tentavam proteger-se. Torna-se-lhes indispensável encontrar mecanismos que possam garantir a constância do favor divino (o que explica a proliferação dos rituais e da arte divinatória), ou então, parece-lhes inevitável terem de se abandonar cegamente aos desígnios inescrutáveis da Providência, sem ousar interferir em seu curso, confiando em uma vontade soberana que tudo prevê (o que explica a crença na predestinação, outro nome para a Fortuna incerta).

Essa representação parece baixar do céu à terra. O mesmo desejo de submissão a um poder uno e soberano, porque transcendente à fragmentação dos conflitos que dilaceram a sociedade e a política, produz entre os homens uma relação que os conduzirá, ao fim e ao cabo, a submeterem-se ao poder misterioso dos governantes. Com o advento dos arcana imperii — segredos do poder ou “razão de Estado” — os homens, afinal, “combatem para a servidão como se esta fora a salvação”. Na realidade, porém, e Espinosa não se cansa de repeti-lo, essa representação subiu da terra ao céu. Os conflitos entre os homens, deixando-os imersos no medo de serem vencidos pelas forças exteriores, sejam estas figuradas por coisas ou por outros homens, leva-os a criar uma teia de relações cuja origem ignoram e que só parece adquirir sentido se possuir como fonte uma autoridade suprema. Rector Naturae ac Societatis, regente misterioso da Natureza e da Sociedade.

Espinosa não procura demonstrar a existência de uma prioridade da formulação religiosa do poder frente à sua formulação propriamente política. É o teólogo quem usa essa suposta prioridade para justificar sua própria presença e intervenção no social. Espinosa, no entanto, também não procura demonstrar que a prioridade religiosa seria uma prioridade às avessas, o político sendo anterior ao religioso. Na verdade, procura mostrar que são formulações simultâneas, e a política teocrática oferece-se como manifestação exemplar dessa simultaneidade. O interesse da compreensão da atividade supersticiosa consiste, justamente, em permitir alcançar a gênese da autoridade transcendente e do esforço para localizá-la em alguma parte para que sirva de referencial ao conhecimento e à ação. Contudo, a prioridade da política é levada em conta pelo filósofo quando se trata de explicar a religião como instituição: “Nunca a religião poderia adquirir força de lei senão pela vontade dos que têm direito de governar. E Deus só exerce um reinado particular sobre os homens por intermédio da autoridade política”. Assim como a natureza não cria povos, mas homens que a Lei instituirá como povo, escreve Espinosa, também a superstição não cria a religião, mas ficções instáveis e temerosas que a Lei estabilizará, conformando a instituição religiosa à instituição política. Nessa medida, a forma assumida pela religião exprime a política de uma sociedade e, vice-versa, a forma assumida pela política exprime a natureza da religiosidade. E, quando ambas se mostram irreconciliáveis é possível desvendar uma das contradições internas onde é narrada a história do perecimento de uma sociedade que se supunha edificada sobre a coincidência dos arcaria dei e arcaria imperii.

Se a tirania é o fruto amargo do medo, estende-se dos indivíduos à sociedade e, desta, retorna àqueles. Cada qual, imaginando-se “um império em um império”, tiraniza seus próximos como se deixa tiranizar pelos déspostas. O sistema do medo, porque flutua entre esperança e desespero, desencadeia outras paixões tristes: a ambição de uns exige a humildade de outros; o orgulho e a soberba de uns força a autocomiseração e a inveja de outros; a crueldade de uns incita a pusilanimidade e a abjeção de outros. A teia imaginária da tristeza tece com a desconfiança uma tecelagem de ódios onde cada fio se entrelaça aos demais para encobrir a solidão e o terror, a divisão intolerável em cujo interior efetua-se um desejo que, fossem outras as circunstâncias, teria ensejado o nascimento da democracia e da liberdade: o desejo que, “por natureza, todos os homens têm de governar e não serem governados”.

Ora, esse desejo natural, que tirania, monarquia e oligarquia são impotentes para realizar, dele oferecendo a imagem perversa do “império em um império”, não cessa, contudo, de espreitar a sociedade e a política. Sua presença tácita se faz sentir na imagem da plebe medrosa, covarde e perigosa. Assim, da plebe com medo somos levados por Espinosa ao polo contrário, isto é ao medo suscitado pela plebe. É no Tractatus politicus que a reviravolta conceitual espinosana melhor se deixa apanhar, conduzindo-nos da tradição (sua e nossa) da plebe ignorante e sediciosa à plebe que “mereceria governar em vez de ser governada”.

Embora longo, o § 27 do capítulo VII do Tractatus politicus merece ser lido: “Talvez este texto seja acolhido com riso por aqueles que restringem apenas à plebe (ad solam plebem) vícios inerentes a todos os mortais: a plebe é desmedida; é perigosa quando não treme; é servo humilde e dominador insolente; para ela não há verdade, nem é capaz de julgar. Mas a natureza é uma só e comum a todos. Contudo, nós nos deixamos enganar pelo poderio e pelo refinamento e, como consequência, dois homens agindo da mesma maneira, costumamos dizer que tal ação é permitida impunemente para um deles e proibida para o outro, pois, embora os atos sejam semelhantes, seus agentes são desiguais. A insolência é própria dos que são dominadores. Se uma designação anual para um posto político é suficiente para encher um homem de insolência, que ocorrerá quando nobres aspirem a honras perpétuas? Mas sua arrogância vem adornada com fausto, prodigalidades, com uma certa harmonia dos vícios, com uma espécie de estupidez sapiente e elegante imoralidade, de tal maneira que os vícios que, se considerados separadamente, aparecem em todo o seu horror e ignomínia, são vistos pelo vulgo e pelos imbecis como dotados 
de certo brilho. É o vulgo que é desmedido; é ele que é temível quando não treme, pois, servidão e liberdade nunca vão de par. Não é surpreendente, enfim, que para a plebe não haja verdade e que seja incapaz de julgar quando os mais altos negócios do Estado são tratados secretamente, ficando reduzida a conjecturar a partir de alguns indícios que não foi possível dissimular. Com efeito, é uma virtude muito rara poder suspender o juízo. Portanto, querer tratar todos os negócios públicos às escondidas do povo e, ao mesmo tempo, exigir que não emita juízos falsos, não interprete enviesadamente os acontecimentos, é rematado disparate. Se a plebe fosse capaz de moderação, de suspensão do juízo para coisas mal conhecidas, de julgar corretamente a partir de parcos indícios, então mereceria governar e não ser governada. Mas, dissemos, a natureza é a mesma em todos. A dominação enche a todos de insolência; são temíveis quando não tremem; em toda parte, a verdade é deformada pelos que estão tomados de cólera ou pelos que foram reduzidos à covardia, sobretudo quando um só ou uns poucos dominam e julgam segundo o direito ou o verdadeiro, mas tendo em vista as fortunas em jogo”.

O texto espinosano se desdobra em três movimentos: no primeiro, passa da descrição da plebe tal como vista pelo dominante para a descrição do vulgo; no segundo, mostra como aquilo que é atribuído à plebe são determinações próprias do vulgo; e, no terceiro, reencontra tais determinações como definidoras do ser dos dominantes. Essas passagens são efetuadas pela manutenção do mote: a natureza é uma só, comum a todos e a mesma em todos. Resta saber por que Espinosa julga que suas palavras terão o riso por acolhida.

Que é essa natureza comum a todos e a mesma em todos? Referindo-se a ela, o texto fala em insolência, engodo, ambição, ignomínia, brilho da estupidez. A Natureza — a mesma em todos — é paixão e mais especificamente, aqui, põe em cena paixões constitutivas do desejo de dominação. Delas, a proposição 32 do Livro III da Ethica nos diz que: “cada um. esforça-se tanto quanto estiver em seu poder para que os outros amem o que ele ama e odeiem o que ele odeia […]. Este esforço para fazer com que cada um aprove o que amamos ou odiamos é simplesmente ambição; vemos assim que cada um, por natureza, deseja que os outros vivam segundo suas ideias e, como todos têm o mesmo desejo, acontece que incomodam uns aos outros; e porque todos querem ser os primeiros, louvados e amados por todos, daí resulta ódio mútuo”.

Acompanhemos, porém, a trajetória de Espinosa. Seu texto provocará riso, escreve ele. Quem rirá? Toda a tradição e todos os contemporâneos que atribuem apenas à plebe (ad solam plebem) os vícios comuns a todos os mortais, pois um dos lugares-comuns mais persistentes na história do pensamento político é a definição da plebe como ignorante, sediciosa e viciosa. É curioso que a palavra “vício” irrompa numa escrita que recusa tratar “os afetos e a maneira de viver dos homens” como vícios de nossa natureza. Mas a palavra surge como índice e sinal de alerta: rirão os que falam em vícios humanos. Assim, desde o primeiro instante, Espinosa demarca a diferença entre seu discurso e os herdados e contemporâneos. Parecendo estender os vícios a todos os mortais, retira da plebe o estigma de ser a única viciosa, precisando do medo para não ceder aos perigosos efeitos da ausência de virtude, verdade e siso que supostamente a definiriam. Ora, a natureza é comum e a mesma em todos. Se as paixões são nossa “maneira humana de viver”, não há como distinguir plebe e grandes. Nesse momento, porém, Espinosa introduz um “contudo”, iniciando a virada da análise ao passar à relação sociopolítica fundada no logro: “nós nos deixamos enganar”. Donde a conclusão: insolentes são os grandes. Se, ao iniciar o texto, vemos a plebe com o olhar dos poderosos, agora nós os vemos com os olhos dela.

Novamente um “mas” vem mudar o curso da análise. Se a plebe vê a insolência dos grandes, como pode admirá-los e deixar-se enganar por eles? O “mas”, no entanto, vem seguido da descrição da arrogância dos poderosos disfarçada em luxo, elegância e estupidez sapiente, “vistos pelo vulgo e pelos imbecis”. Já não se trata da plebe e sim do vulgo, figura que a tradição e o século XVII identificaram à ignorância, à grosseira, à incultura e, no caso de Espinosa, à imbecilidade e superstição.

Ora, enquanto plebe e grandes estão referidos à divisão social e política, o conceito de vulgo possui extensão maior, aplicando-se a qualquer um. Assim, com o vulgo, a diferença sociopolítica é substituída por uma generalidade passional semelhante à da superstição. O supersticioso, vimos, põe-se a serviço do medo porque é desmedido: deseja imoderadamente os bens incertos da Fortuna e não consegue governar sua vida com deliberação segura. Submete-se a tudo e a todos, desde que lhe prometam a satisfação turbulenta de seus apetites. Voraz, o vulgo é um insatisfeito permanente, estupidificado entre a submissão e a insolência. A passagem sutil da plebe ao vulgo, efetuada pelo texto espinosano, é passagem daquele que se deixa enganar (pelo brilho) àquele que deseja ser enganado (por ambição). É o vulgo, pois, que é temível quando não treme, perigoso quando não teme. Da plebe ao vulgo passamos de “atos semelhantes” para “agentes desiguais”. No plano imediato, as ações do povo e as do vulgo podem ser iguais, mas seu sentido é diverso porque diversa é sua origem. Porém, essa desigualdade dos agentes na igualdade de seus atos implica ainda uma outra consequência, na qual o lugar do dominante se define com maior nitidez, pois uma coisa é o julgamento da plebe, outra, o do dominante.

Há dois pesos e duas medidas na avaliação dos atos, mas a posição da plebe e a do dominante não se equivalem. O povo aceita a disparidade dos pesos e medidas como constatação e justificativa de desigualdades imediatamente percebidas. Do lado do dominante, porém, a disparidade não justifica, mas produz e conserva a desigualdade. Ora, visto que o julgamento concerne ao justo e ao verdadeiro, mas o critério do direito sendo implicitamente determinado “pelas fortunas em jogo”, tal critério não pode ter sido fornecido pelo povo, mas pelo dominante. É este que é temível quando não treme, perigoso quando não teme.

O mote — a natureza é a mesma de todos — opera ainda em outro registro. Se a plebe, ignorando tudo quando se passa no plano do poder, possuindo apenas vagos indícios do que ali transcorre, afastada dos centros de deliberação e de decisão, ainda assim pudesse julgar corretamente, então mereceria governar em lugar de ser governada. Invertendo as supostas deficiências da plebe, quando refletida no olhar do dominante, fazendo-as aparecer como comportamentos específicos do próprio dominante, Espinosa torna palpável uma forma particular do exercício do poder, isto é, a existência da opressão através do logro e do segredo.

No entanto, algo mais profundo está sendo dito. Noutro trecho do Tractatus politicus, Espinosa fizera da deliberação e da decisão coletivas formas de preservação do corpo político. Ainda que demoradas, por ser o espírito dos homens “muito obtuso e lento”, as discussões públicas são necessárias, escreve Espinosa, porque permitem chegar a decisões que não estavam “prontas de antemão na cabeça de alguns”. Essa ideia da política como deliberação pública e como invenção prática nos leva a perceber que o mote — a natureza é a mesma em todos — indica que os governantes estão na mesma situação em que se encontram os governados e que somente a ambição do poder explica que ocultem sua ignorância atribuindo a si mesmos uma clarividência e uma competência que estão longe de possuir. Neste caso, a frase de Espinosa permite uma releitura: a plebe merece governar, em vez de ser governada.

Por que, então, a plebe é temerosa? Porque religião e teologia, de um lado, tiranos, reis e oligarcas, de outro, manipulando a imaginação social elaboram um imaginário político no qual, escreve Espinosa noutra parte do Politicus, “todos ignoram a quem cabe verdadeiramente a soberania”, deixando-a alojar-se num polo separado, transcendente, secreto e arbitrário. Deus, no reino celeste, os dominantes, no reino terrestre, ganham poder justamente de sua separação, transcendência, segredo e arbitrariedade. Arcanos da servidão.

A plebe tem medo porque, nascido do medo, o poder misterioso faz medo e dá medo. Todavia, por que se tem medo da plebe? Se ela é ignorante e covarde, se é facilmente enganável, se ofusca pelo brilho e oprime pela ambição, não há por que temê-la. E, no entanto, o imaginário político, tanto o antigo quanto o moderno, valendo-se da imagem da plebe volúvel e ignara não cessa de construir a imagem da plebe sediciosa e anárquica que precisa temer para não fazer tremer. Por que esse medo?

É no exame dos limites intrínsecos à tirania que Espinosa, indiretamente, nos oferece a resposta.

Porque não analisa a política com as categorias do moralista e do jurista e, sobretudo, porque pensa a política empregando o conceito de causa eficiente imanente, Espinosa não admite que o advento do direito civil e da lei (ou da república) instaure uma ruptura face ao direito natural, isto é, ao conatus. Pelo contrário, o direito civil e a vida política resultam do fortalecimento do conatus que não pode realizar-se satisfatoriamente no estado de natureza ou numa vida pré-política. O direito civil se origina do direito natural e o exprime como seu efeito imanente. Ora, o conatus, ou direito natural, é a potência de agir indivi-dual que se estende até onde puder ser exercida. O direito, natural tanto quanto civil, é poder, e um direito, demonstra Espinosa, se exerce se e apenas se tiver poder para ser exercido. A potência da Cidade, escreve Espinosa, depende de seu direito, mas este depende de seu poder para exercê-la. Em outras palavras, o direito da Cidade é medido por seu poder para exercê-lo. Consequentemente, se a Cidade for tirânica, ela o será porque os dirigentes têm poder para tanto e prosseguirão tiranicamente enquanto o tiverem.

Ora, o poder político tem a peculiaridade de distribuir-se de maneira geométrica ou proporcional, isto é, um regime político será tanto mais poderoso quanto mais o poder soberano for proporcionalmente maior ao de cada um dos cidadãos e à soma de seus poderes individuais. Ao contrário, o regime será tanto mais fraco (terá menos poder e menos direito) quanto mais um ou alguns de seus membros o igualarem em direito e poder, confundindo-se com a soberania e com a lei. Se a democracia é o mais forte dos regimes políticos, a tirania é o mais fraco deles, pois nela é nula a proporção entre o direito-poder do dirigente e o direito-poder dos governados. Eis por que, se estes últimos não podem lamentar a existência do tirano, pois o deixaram adquirir o poder, o tirano, por sua vez, não poderá lamentar se os tiranizados adquirirem poder para derrubá-lo. A instabilidade da tirania, também encontrada na monarquia e nos regimes oligárquicos, é a origem do medo à plebe. Tiranos, reis e oligarcas sabem que a plebe pode adquirir força para derrubá-los. Esse saber engendra efeitos necessários: o esforço para manter a plebe dispersa e desorganizada, dividindo-a internamente; recursos variados (da religião ao suplício) para provocar-lhe medo e mantê-la temerosa, convencendo-a de sua covardia e impotência congênitas; censura da opinião e do pensamento para impedi-la de julgar os governantes; presença de cerimônias e ritos que teatralizam e reiteram a distância entre ela e os governantes. Estes, além disso, empenham-se em persuadi-la de que as leis não são apenas legítimas e sim também boas para todos, de sorte que quem tentar aboli-las terá contra si não somente os poderosos, mas ainda a massa dos vulgos enfurecidos.

No entanto, escreve Espinosa, é impossível manter indefinidamente a plebe sob o medo. Embora o poder e o direito dos governantes estendam-se até onde tiverem potência para exercê-los, o direito natural dos governados marca o limite desse exercício: o conatus, a menos que irremediavelmente enfraquecido, reage ao medo da morte. Quando leis produzirem indignação e furor populares, a plebe, temendo a destruição, não temerá os poderosos e, perdendo o medo, fará medo. Quando dela se exigir que ame o que odeia, respeite o que despreza, tolere o que abomina, destrua o que estima, nada conterá seu furor. Nesta perspectiva, alguns, lemos no Theologico-politicus, julgarão honroso e necessário desafiar as leis, mesmo que o preço seja prisão, suplício, exílio e, quiçá, a morte. Ora, indaga Espinosa, “o que há de ser mais pernicioso para a república do que ter por inimigos e conduzir à morte homens aos quais nada se tem a censurar ou condenar senão sua força de ânimo, fazendo com que o suplício se torne espetáculo de coragem, para ignomínia dos governantes? […] Julgando glorioso e não infame lutar pela liberdade, que exemplo darão aos melhores de seus concidadãos? Certamente serão imitados pelos que não são complacentes nem aduladores”.

A integridade das vítimas é o que as transforma em vítimas, pois são “culpadas não somente de opiniões dissidentes, mas de não terem sabido dissimulá-las”. Assim, são os cidadãos mais preciosos para si que a república sacrifica. Contudo, não é apenas nesse sacrifício que a república perde o que constituiria sua força real, mas também no efeito produzido pelo suplício infligido aos seus melhores. Estes sentem-se honrados em enfrentar os castigos e a morte em nome do que acreditam. Mas, diante do martírio, que resta àqueles que presenciam as atrocidades cometidas pelo poder? “Tudo o que os assistentes podem concluir de tal suplício é que é preciso imitar os condenados ou, então, por prudência, fingir aplaudir os carrascos.” Semeando a revolta ou alimentando a dissimulação, a república prepara a sua própria morte. E Espinosa prossegue. Quando a autoridade política é plenamente reconhecida, nunca será diminuída pelos antagonismos porque está em condições de acolhê-los, pois vive neles e deles. As leis que forem instituídas visando ao controle do saber, da opinião e das ações são inoperantes. Mais do que isto. São instituídas justamente quando o poder político já perdeu o reconhecimento e a eficácia. Nessa medida, longe de indicarem força dos governantes, são sintomas de que o corpo político, como tal, está falido e, embora possa perpetuar-se indefinidamente, não mais existe. Agonizante, prolonga a agonia através do medo, pois no medo foi parido. Mas seu fim está consumado, visto que primeiro alguns e depois a plebe perderam o medo. Espinosa conclui: numa democracia os homens simplesmente concordam em agir em comum, o que não significa pensar da mesma maneira. Justamente porque um pensamento coletivo é impossível, a menos que a democracia também seja tirania, “os homens decidem dar força de decreto às decisões que obtiverem maior sufrágio, reservando-se tacitamente a autoridade para revogá-las sempre que perceberem outras melhores”. Os verdadeiros sediciosos são, pois, aqueles que, em uma sociedade livre, querem suprimir a liberdade de pensamento e de expressão porque não conseguem destruí-la. Não é porque o Estado deve ser Um que a liberdade deve ser mantida, mas exatamente ao contrário, porque reconhece e assume que tal unidade é impossível é que é livre.

O jogo de espelhos da imaginação permanece no fundo da cena histórica. Se por democracia entender-se uma coletivização do agir e do pensar, uma identificação de todos com todos, uma indiferenciação que recusa o movimento incessante e cada vez diferente dos conflitos sociais e políticos, então a boa sociedade democrática reflete-se num estranho espelho: sua imagem é a da forma perfeita da boa e bela tirania, tirania extraordinária, pois não parece possuir qualquer agente capaz de promovê-la, visto que todos estão no poder. Talvez agora uma pergunta de Espinosa, no Theologico-politicus, que traduzia seu espanto, ressoe em nós de maneira assustadora: não é incrível, perguntava ele, que sem estar sob a dominação direta de um outro, os homens fiquem suspensos à palavra desse outro invisível, a ponto de podermos dizer, rigorosamente, que pertencem a esse Outro, estão alterius juris sem que potência alguma pareça exercer o poder?

Com isso, Espinosa nos deixa uma questão: a revolta não seria sedição? É possível recuperar ou instaurar a liberdade insurgindo-se contra o medo às leis? Questão árdua, pois implica encontrar não no limite intrínseco à tirania, mas nos próprios cidadãos a gênese do fim do medo. Como, porém, dar fim ao medo se, paixão triste, é enfraquecedora e não finda por si mesma? De onde tirar forças para que, em lugar do ódio nascido do medo, desponte a esperança da Cidade livre?

A Ethica nos oferece uma primeira pista.

Diferentemente das outras paixões, demonstra o Livro IV, medo e esperança são afetos irredutíveis do ponto de vista metafísico. Marcas de nossa finitude, medo e esperança não podem ser suprimidos sem que com sua supressão desapareça a própria essência humana. A multiplicidade e força das potências exteriores, a temporalidade imaginativa que fragmenta a duração, os embates passionais são constitutivos de nossa vida e deles não podemos escapar. Cataclismas sempre são possíveis na Natureza. Tirania e opressão sempre são possíveis na sociedade. O inesperado sempre espreita os acontecimentos. Porém, medo e esperança não possuem sempre a mesma força ou intensidade e a pergunta, agora, não é tanto: “como suprimir o medo?”, e sim: “quando o medo pode ser enfraquecido?”. O conhecimento verdadeiro do bom e do mau, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, repete o Livro IV, não possui o menor poder sobre nossos afetos, não conseguindo (como desejaria o otimismo intelectualista) dominá-los, freá-los ou modificá-los. Todavia, longe dessa constatação proclamar a falência do intelecto e da razão, leva a repensá-los em sua verdadeira natureza e potência.

Apenas uma paixão mais forte e contrária destrói outra, mais fraca e contrária. No entanto, diferentemente dos que suporão, com Adam Smith e a economia política, nem o cálculo interessado nem o interesse calculador podem decidir esse combate, pois a lógica das paixões desconhece razão, cálculo e interesse, o conatus-cupiditas não sendo identidade entre esforço de autopreservação e escolha do melhor. Sob esse aspecto, aliás, o prefácio do Theologico-politicus é taxativo: sob o medo, os homens desprezam a razão, a prudência e o cálculo. Como dissera Montaigne, ganham asas nos pés, quando deveriam imobilizar-se, e ficam paralisados, quando deveriam fugir. A potência do corpo, demonstra a Ethica, está em poder afetar outros corpos e ser por eles afetado de múltiplas maneiras simultâneas. A potência da mente, em poder gerar e encadear internamente múltiplas ideias simultâneas. Sob o medo, a potência do corpo e da mente para o múltiplo é substituída pela obsessão do ânimo, minuciosamente trabalhada por Espinosa nos Livros III e IV da Ethica. No entanto, mesmo na obsessão, o conatus-cupiditas esforça-se “para excluir a coisa que causa medo e presentificar aquela que causa esperança”. Trata-se, pois, de fortalecer uma paixão da alegria: a esperança. E o melhor fortalecimento para ela será “perceber que as coisas necessárias são mais fortes do que as contingentes”. Fortalecer a esperança é dar-lhes segurança e contentamento, isto é, a imagem de um bem passado ou futuro “sobre o qual já não pesam dúvidas”. Neste ponto, o pensamento espinosano se bifurca à procura do que traz segurança e contentamento ao corpo — saúde, bem-estar, deleites, engenho e arte — e do que traz segurança e contentamento à mente: conhecer. Ou melhor, poder pensar. Somente quando os limites impostos ao corpo forem sentidos com afetos de tristeza e sua expansão for sentida com afetos de alegria, somente quando a ignorância for experimentada como tristeza e pensar como alegria ou “virtude própria da mente”, o combate entre as paixões mudará de curso e das paixões alegres passaremos às ações. Aqui encontramos uma das mais extraordinárias concepções do conhecimento: pensar é alegria e contentamento, ou aumento de perfeição e realidade. A verdade inicia-se, em nós, como desejo do verdadeiro e, porque nasce no interior dos afetos, Espinosa chamará a forma mais alta do conhecimento de amor intelectual. Reconciliação de nossa alma consigo mesma e com nosso corpo, dele consigo mesmo e com nossa alma e de ambos com a Natureza e a sociedade livre. Esse amor, que Espinosa chama de liberdade e felicidade, fazendo-nos, seres finitos, participantes do infinito, o filósofo denomina: glória. O sábio, diz a Ethica, pensa em tudo, menos na morte.

Ora, se liberdade e felicidade são atividades de um corpo e de uma alma aptos para o plural simultâneo, seu desenvolvimento será bloqueado sob o peso de forças externas adversas. Em outras palavras, sob a tirania política, teológica e moral não há felicidade nem liberdade e os poucos que procuram alçar-se à liberdade, vimos, são supliciados, aprisionados e assassinados. Com isso, retornamos à pergunta: de onde tirar forças para que o medo político tenha fim?

Nosso primeiro impulso seria reiterar para a política o percurso individual: do medo à esperança, desta à segurança e ao contentamento e destes à paz. Todavia, aqui, o percurso é mais complexo e sinuoso. Nem toda esperança é esperança, podendo ser apenas disfarce do medo que nela se prolonga. Quando, lemos no Tractatus politicus, enfurecidos contra a dominação e possuídos pela fúria e pelo ódio, os dominados esperam de alguém ou de alguns a liberação, preparam-se para opressão futura, destituindo um senhor para dar-se outro que os dobrará à servidão. Não é, pois, qualquer esperança que vence o medo. No caso da política (como no da superstição), o medo parece centrado sobre os efeitos da força tirânica do detentor do poder, sem chegar a perceber as causas que a produziram. Donde a ilusão, continuamente reiterada, de que basta derrubá-lo para que termine a dominação. Na verdade, lemos no Theologico-politicus, é muito fácil derrubar um tirano. Difícil é destruir a causa da tirania.

Eis porque, no Tractatus politicus, indagando se é possível impedir que um regime político descambe para a tirania, Espinosa responde negativamente. A causa instituinte de um corpo político, sendo causa imanente, desdobrará seus efeitos necessários que não fazem senão exprimi-la. Se tirania houver, já estará presente, ainda que secreta e invisivelmente, no movimento da fundação política e suprimi-la significa destruir sua causa e fundar uma política inteiramente nova. É, pois, no instante da fundação política que o embate entre o medo e a esperança é decisivo: se o corpo político nascer do medo da morte, nascerá da impotência e da fraqueza de seus fundadores e exprimirá essa condição para sempre; ao contrário, se nascer da esperança de vida, nascerá da potência e da força de seus fundadores, exprimindo sua instituição em suas instituições.

À questão: a revolta é possível? Espinosa responde afirmativamente. Mas não conclui dela que o resultado será necessariamente uma república livre e sem medo. A coragem da plebe será medida por sua esperança de cidadania, por sua capacidade de dar a si mesma sua própria lei. Ciência alguma — chame-se ela filosofia, ciência política ou economia — garantirá de antemão a derrota do medo. A luta aqui, passional, é combate entre duas paixões em tudo contrárias: fuga da morte e desejo de vida. Só depois que as paixões tiverem decidido o porvir, saberemos se, tristemente, “morreremos de medo/ e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”[11]ou se veredas se abriram para as alamedas da razão, da liberdade e da felicidade, pois, “se o caminho que mostrei a elas conduzir parece muito árduo, pode, todavia, encontrar-se. E com certeza é muito árduo o que raramente se encontra. Como não seria assim, pois se estivesse ao alcance da mão, sem qualquer trabalho, por que teria sido negligenciado por tantos? Mas tudo quanto é belo é tão difícil quanto raro”.[12]

Notas

[1] Quevedo, “Reloj de Campanilla”, in Poesía Original Completa, Barcelona, Planeta, 1981.

[2] Carlos Drummond, “Anoitecer”, de “A Rosa do Povo”, in Obra Com-pleta, Rio de Janeiro, Aguilar Editora, 1964.

[3] Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1972.

[4] Carlos Drummond, “O Medo”, de “A Rosa do Povo”, in Obra Completa, op. cit.

[5] Borges, “Las Ruinas Circulares”, de “El Jardin de Senderos que se Bifurcan”, in Ficciones, Buenos Aires, Emecê Editores, 1956.

[6] Poe, “O Coração Denunciador”, in Ficção Completa, Poesia e Ensaios, Rio de Janeiro, Aguilar Editora, 1965.

[7] Jean Delumeau, La Peur en Occident — XIVe.-XVIIe. siècles, Paris, Fayard, 1978, p. 308. [História do medo no Ocidente, São Paulo: Companhia das Letras, 2009].

[8] Idem, ibidem, p. 309.

[9] Carlos Drummond, “Congresso Internacional do Medo”, de “Sentimento do Mundo”, in Obra Completa, op. cit.

[10] Albert Hirschman, As Paixões e os Interesses — Argumentos Políticos a Favor do Capitalismo antes de seu Triunfo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.

[11] Carlos Drummond, “Congresso Internacional do Medo”, op. cit., loc. cit.

[12] Espinosa, Ethica, V, prop. 42, escólio, in Spinoza Opera, edição Carl Gebhardt, Heidelberg, Carl Winters, 1822, t. II, p. 308; in Benedicti de Spinoza Opera Quotquot Reperta Sunt, edição Van Vloten e Land, Haia, Martin Nijhoff, 1914, t. I, p. 273.

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