Tolerância e diferença
por Newton Bignotto
Resumo
Desde o 11 de setembro, um tema tornou-se especialmente relevante: o da tolerância. Ora, se o par dela é a intolerância, é preciso reconhecer que a fronteira entre elas não está dada. Nunca esteve. Isso porque, ao questioná-la, está-se automaticamente escolhendo com quem ou com que grupo vai-se manter relação, apesar das convicções políticas ou religiosas. Mais: decide-se como agir com o objetivo de mediar conflitos.
Trata-se, pois, de investigar como se move tal fronteira em tempos em que a questão da civilização e da barbárie está de volta. Em suma: como se comporta o Ocidente quando o “outro” escapa ao campo da diversidade aceita.
O problema da tolerância é moderno, pois se antes havia várias práticas que se consideravam tolerantes – a exemplo do avanço mouro sobre a península ibérica –, foi só a partir das guerras religiosas que se seguiram à Reforma que se passou a poder usar o termo assim como se entende hoje.
A tolerância é uma virtude – pode-se dizer. Acontece que até ela precisa de limites.
Disso dá conta o “homem cordial” tal como descrito por Sérgio Buarque de Holanda. Como seria ele? Generoso e hospitaleiro, sim – mas não porque socialmente virtuoso como se costuma supor; antes, porque devedor da organização patriarcal e rural do Brasil colônia. E como o que acontece que no plano individual, mesmo que amplamente aplicado, nem sempre se transmite para o plano social, o aspecto fortemente excludente da sociedade brasileira é evidente. Até porque é requisito de um regime de tolerância bem-sucedido que ele não dependa da forma particular dessa virtude.
Isso se observa na doutrina de John Locke; no que se refere à religião, sobretudo. Para efeitos de clareza, assim define Locke uma comunidade: “Sociedade de homens constituída apenas para a preservação e melhoria dos bens civis de seus membros”. Segue-se a isso uma não menos esclarecedora definição do papel que a religião deve desempenhar numa sociedade livre: “Ninguém está subordinado por natureza a igreja alguma, mas une-se voluntariamente à sociedade na qual acredita ter encontrado a verdadeira religião e a forma de culto aceitável a Deus”.
Eis, para Locke, o fundamental: separar os domínios da vida civil dos da vida religiosa, sendo que disso decorrem algumas regras gerais para efeito de regulação da vida social.
A primeira delas trata da religião como produto de uma associação voluntária, o que implica que, em seus domínios, ela não é obrigada a aceitar alguém que transgrida sua doutrina ou seus mandamentos. Por outro lado, não se pode prejudicar o “outro” em seus bens civis em função da variedade de crenças. No mais, por saber que a intromissão do magistério em assuntos religiosos resultou em grandes tragédias de seu tempo, assim escreve Locke: “O magistrado deve formular leis restritas ao bem público terreno ou mundano”.
De tal doutrina, alguns pontos devem ser retidos para fins de entendimento da atualidade, a começar pela tolerância como elemento estabilizador da vida democrática. Daí não só uma clara concepção da vida religiosa, como dos princípios fundamentais da vida política, a partir do indivíduo. O que há então é um movimento contrário ao que forjou o “homem cordial” brasileiro e suas noções de público e privado. Isto é: passa-se do indivíduo livre para professar a fé e a opinião que quiser desde que ele continue participando da vida política como produto único de escolhas individuais.
No Brasil, o que se constata é o contrário, ou seja, o inchaço da vida privada e a predominância de seus valores na vida pública. Decorre disso a tolerância com as particularidades das personalidades em destaque, mesmo quando encarnadas por ditadores.
Fato é que nomear o “outro” corresponde a criar identidade política por meio da negatividade, processo inelutável na construção do mundo moderno. O caminho a seguir foi e é, portanto, o de indicar a civilização e suas conquistas junto ao seu avesso, isto é, a barbárie.
Toleration makes difference possible; difference makes toleration necessary.
Michael Walzer, On toleration
A destruição das torres gêmeas em Nova York em 11 de setembro de 2001 trouxe de volta à cena internacional um debate que acreditávamos superado no interior das democracias modernas. O ataque a civis é em si mesmo um ato intolerável e injustificável e, por isso, pode ser condenado mediante o apelo a uma série de valores que estão bem assentados na maior parte dos países que participam da comunidade mundial. A simples condenação dos atos, no entanto, não esconde o fato de que não podem ser atribuídos simplesmente a um grupo de indivíduos enlouquecidos, que não encontram ressonância para seus atos em nenhuma nação ou grupo religioso. Se não são necessariamente atores escolhidos para representar interesses de comunidades mais amplas e agir em conformidade com eles, também não agem totalmente à margem de um conflito real, que se espalha por várias partes do planeta.
A questão que surge então não é tanto a de saber se devemos tolerar o terrorismo, pois a essa demanda já respondemos, mas até onde ele encontra raízes e apoio no seio de comunidades que se vêem excluídas e perseguidas no concerto dos países. Nosso propósito, no entanto, não será o de encontrar uma explicação para os fatos conhecidos por todos ou mesmo de entender a relação que guardam com o islã. Para isso seria necessário um conhecimento tanto da realidade dos países envolvidos no conflito como da religião, que supostamente motiva as ações, o que escapa a nossas competências. Nosso desejo é bem mais modesto. Partimos da constatação de que os acontecimentos mencionados trouxeram de volta o debate sobre a tolerância e seus limites. O que queremos entender são as consequências e o alcance desse debate e seu significado em um mundo que, pelo menos em sua porção ocidental, se acostumou a defender a tolerância como um de seus valores principais. Se o par necessário da tolerância é a intolerância, é preciso reconhecer que a fronteira que as separa não está dada para sempre e que a mudança na linha de separação não é anódina. Ao contrário, ao colocá-la em questão, estamos ao mesmo tempo escolhendo as relações que vamos entreter com grupos e pessoas, que não compartilham nossas convicções políticas e religiosas, e decidindo quanto às ações que julgamos apropriadas para mediar conflitos. O que gostaríamos de investigar é justamente de que maneira o traçado se modifica, sobretudo em um momento em que esse problema se mistura com o retorno da tópica civilização e barbárie, que parecia já condenada ao terreno do esquecimento, como a percepção do Ocidente se altera quando o “outro” escapa ao terreno das diversidades já aceitas.
Ora, o problema da tolerância é tipicamente moderno. Se antes existiram várias práticas que podem ser qualificadas de tolerantes, e a ocupação da península Ibérica pelos mouros parece ser o exemplo mais eloquente,[1] foi somente no contexto das guerras religiosas que se seguiram à Reforma que o problema ganhou sua formulação teórica atual. Para começarmos nossa investigação é necessário, no entanto, precisar nosso objeto. Podemos, por exemplo, falar de um indivíduo tolerante e mesmo concordar que se trata de um virtuoso. Mas não devemos esquecer as lições de Aristóteles. Alguém pode possuir uma virtude natural, mas não será por isso capaz de agir moralmente.[2] É preciso que à disposição natural se agregue a disposição moral, e só então poderemos falar de ação prudente. Voltaremos mais à frente ao fato de que a tolerância não fazia parte do catálogo das virtudes gregas, mas por ora importa notar que, se não podemos desprezar o comportamento individual tolerante, ele não parece capaz de gerar um regime de tolerância, para empregar o termo escolhido por Walzer, eficaz para enfrentar os problemas de nosso tempo.[3]
Talvez a lembrança da figura do “homem cordial”, tal como descrito por Sérgio Buarque de Holanda, nos ajude a entender os limites dessa “virtude” da tolerância individual. Para nosso autor, somos cordiais no Brasil por possuirmos virtudes como a generosidade e a hospitalidade,[4] todos traços oriundos de um passado tributário da organização patriarcal e rural de nossa sociedade colonial. Ora, se essa cordialidade tornou possível uma convivência tolerante e afável com o diferente, foi justamente porque o diferente era percebido apenas como aquilo que distingue “personalidades”, mas não membros de comunidades políticas e religiosas diversas.[5] Uma vez que a unidade de referência para a sociabilidade era a família, não havia como não aceitar o que torna louvável o comportamento de um indivíduo de exceção. Tudo isso, no entanto, não implica que estejamos prontos para retirar consequências que ultrapassem o plano das relações pessoais e individualizadas. Ao contrário, tudo o que é visto como ritualização e formalização da vida comum nos aparece como falsificação de nossa maneira de ser.[6]
A referência ao “homem cordial” ajuda-nos a ver que o grande problema da tolerância é a definição de suas fronteiras. O que podemos aprender com essa referência, no entanto, é que existe sempre um limite para o tolerável, e ele determinará de maneira muito direta as ações que julgaremos adequadas sempre que a diferença afirmada de um grupo ou de um indivíduo se manifestar de forma agressiva. Na sociedade brasileira, fortemente excludente, podemos até aceitar que indivíduos se destaquem de seu meio, até porque a plasticidade das relações sociais não impede que mudemos de lugar, desde que isso não implique a mudança da organização social que sustenta a ação dos indivíduos virtuosos. Como observa Walzer, “é uma marca de um regime bem-sucedido de tolerância que ele não dependa de uma forma particular dessa virtude”.[7] O que podemos nos interrogar, no entanto, é se os regimes de tolerância vitoriosos no mundo ocidental realmente conseguem existir num grau de objetividade que independa da reação dos indivíduos, ou se mesmo quando transpostos para o mundo público, e portanto escapando das armadilhas de nosso “homem cordial”, conservam uma amarra no comportamento individual, que continua a atuar no traçado de seus limites.
No caso de sociedades liberais como os Estados Unidos, as pessoas imaginam viver numa sociedade livre e tolerante na exata medida em que, segundo o pensador americano, “as crianças aprendem que são cidadãos individuais de uma sociedade pluralista e tolerante — na qual o que é tolerado é sua própria escolha, pertencimento cultural e identidade”.[8]
Embora esse regime de tolerância não seja o único vigente nas nações do Ocidente, ele alcançou grande aceitação justamente por permitir lidar com dois problemas associados à constituição das nações modernas: a questão religiosa e a questão da identidade de grupos imigrantes. Como observa Walzer, ele está longe de não apresentar problemas, mas nem por isso deixa de alcançar notável consenso.[9]
Para compreender suas bases doutrinais, talvez seja interessante retornar a um de seus textos matrizes: a Carta acerca da tolerância, de Locke, escrita no contexto das fortes disputas religiosas que marcaram a vida política inglesa no século XVII.[10] O diagnóstico no qual o pensador inglês se baseia para fundar sua reflexão sobre a tolerância é o de que a diversidade de opiniões nada tem a ver com os conflitos de sua época, que nasciam da intolerância mútua entre os grupos que professavam doutrinas opostas no campo da fé.[11] Ora, segundo ele, nada nas Escrituras levava a supor que fosse obrigação dos cristãos rejeitar de forma violenta os que não tivessem se convertido à sua fé. Tal ausência de preceito explícito de recusa do diferente aplicava-se ainda mais aos que divergiam não quanto à revelação, mas quanto à interpretação dos textos sagrados. Essa maneira de ver o problema leva Locke a concluir, logo no início de seu escrito: “A tolerância com os defensores de opiniões opostas acerca de temas religiosos está tão de acordo com o Evangelho e com a razão que parece monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma luz tão clara”.[12]
O fato, no entanto, é que os homens eram cegos diante da luz e agiam como se ela iluminasse uma outra verdade, que comandava o extermínio e não a concórdia. O propósito do pensador será então o de buscar argumentos fora do território das crenças de modo a, entretanto, assegurar a sobrevivência de seu propósito original de defender a tolerância como valor importante da vida em comum dos homens. Podemos dizer que a operação principal visada por ele será a da separação dos domínios da vida associativa. Em primeiro lugar, ele busca uma definição de comunidade que atenda à generalidade que se espera de tal conceito. Assim, chega a uma formulação bastante simples: “Parece-me que a comunidade é uma sociedade de homens constituída apenas para a preservação e melhoria dos bens civis de seus membros”.[13] A referência aos bens civis é um indicador do caminho que pretende percorrer. Um dos grandes problemas das sociedades de seu tempo era justamente que elas não se concebiam sem seu elemento religioso, que parecia a muitos parte integrante de sua formação original. Insistir sobre a utilidade apenas no terreno dos bens civis fazia parte de uma estratégia de redefinição geral dos termos que deviam balizar e estruturação da vida em comum.
O segundo elemento desse movimento de desestabilização das crenças será então o de redefinir o que era uma igreja, ou seita. Muito distante das pretensões universalistas, que eram a marca da imagem da Igreja católica medieval, Locke vai dizer que uma igreja é “uma sociedade livre e voluntária” e que “ninguém está subordinado por natureza a nenhuma igreja ou designado a nenhuma seita, mas une- se voluntariamente à sociedade na qual acredita ter encontrado a ver- dadeira religião e a forma de culto aceitável a Deus”. Ao transferir para o indivíduo a escolha do culto que deseja professar para agradar a Deus, nosso autor retira toda necessidade dessa escolha. Se não lhe parece que possamos não honrar a Deus, não há razão para acreditarmos que isso não possa ser feito de muitas maneiras, uma vez que nada na natureza ou nas Escrituras confirma um único caminho.
O eixo da argumentação de Locke é, pois, a necessidade de separação entre o domínio da vida civil e aquele da vida religiosa. A partir dessa demarcação é possível afirmar que a tolerância é o princípio norteador da vida associativa em maior conformidade com o que é possível com segurança deduzir pelo uso da razão e por seu confronto com os Evangelhos. Assumida essa proposição principal, podem-se enunciar algumas regras gerais para sua prática e para a regulação das relações sociais.
A primeira delas é que, uma vez que todas as igrejas são o produto de uma associação voluntária, elas não são obrigadas a aceitar em seu interior alguém que repetidamente transgrida sua doutrina e viole seus mandamentos. O respeito à tolerância não exige de nenhuma instituição que abra mão de suas concepções e de seu modo de funcionamento. Por outro lado, os indivíduos não têm o direito de prejudicar aos outros em seus bens civis em função da diversidade das crenças.[14] Isso vale também para as diversas igrejas que não retiram de suas crenças nenhum direito de atacar e infligir danos aos membros de outros credos em virtude de suas discordâncias. Ao magistrado, encarregado de organizar a relação entre os membros da comunidade política e de punir os transgressores, no entanto, não incumbe dizer o que é certo ou o que é errado em matéria de religião, e, mesmo se estiver agindo de boa fé, Locke acredita que seus atos não ajudarão ninguém a atingir o reino dos céus.[15] Esse, na verdade, é um ponto delicado da doutrina de Locke, pois ele sabe muito bem que é a mistura do magistrado nas coisas da religião o ponto de partida de muitas tragédias de sua época. Em um trecho de seu escrito, ele resume de forma clara sua posição:
Sendo isso estabelecido, entendem-se facilmente os fins que determinam as prerrogativas do magistrado para formular leis: o bem público em assuntos terrenos ou mundanos, que é a única razão para iniciar a sociedade e o único objeto da comunidade, uma vez formada; e, por outro lado, a liberdade facultada aos homens em assuntos que dizem respeito à vida futura: cada um pode fazer o que acredita agradar a Deus, em cuja vontade se baseia a salvação dos homens.[16]
Devemos reter do texto de Locke alguns pontos importantes para a reflexão sobre nosso problema na atualidade. A primeira observação diz respeito ao funcionamento mesmo da tolerância como elemento estabilizador da vida democrática. Se, como vimos, é preciso separar a esfera da religião daquela da política, para que as sociedades se vejam livres do peso das disputas e guerras, que destruíram o tecido social inglês ao longo do século XVII, isso implica uma concepção não só do que seja a vida religiosa, mas também dos princípios estruturantes da vida política. Em ambos os casos, a unidade mínima é o indivíduo, e é como tal que ele deve ser membro da comunidade política e tolerado em suas opções. Ou seja, o que se ensina nas sociedades liberais atuais é o produto dessa ideia de que a unidade de constituição da vida associativa é o indivíduo. Partindo de um ponto de vista oposto àquele que forjou o “homem cordial” brasileiro, e chegando a uma visão oposta quanto à relação entre o público e o privado, o que se afirma nos dois casos é que o objeto de tolerância é sempre o particular e o individual, e nunca o que pretende a universalidade. Assim, o indivíduo liberal terá direito a professar a fé que quiser e a escolher o grupo de opinião que desejar, desde que continue a participar da vida política como um produto único de escolhas individuais.
A separação requerida por Locke entre a religião e a política, que está no cerne do movimento de laicização que marcou a construção da política moderna, implica que a confusão da esfera privada com a pública é sempre um risco a ser evitado. A tolerância religiosa, que permanece viva até hoje nos países de tradição democrática liberal, implica na verdade a destituição do caráter político da religião e a ordenação formal da vida política segundo princípios que não aceitam a interferência dos credos particulares. Segundo Walzer: “A tolerância de escolhas individuais e das versões personalizadas de cultura e religião constitui o regime máximo (ou mais intenso) de tolerância. Mas não está claro se o efeito a longo termo dessa maximização não será a diminuição ou mesmo a dissolução da vida dos grupos”.[17]
Da mesma forma, mas por motivos inversos, o inchaço da vida privada, e a predominância de seus valores na vida pública brasileira, faz com que sejamos tolerantes com a particularidade das personalidades excepcionais, mesmo quando encarnadas por ditadores, embora não aceitemos que a lógica do indivíduo “cordial” seja trocada por um conjunto de normas objetivas, que deveriam gerir a vida em comum.[18] A tolerância é vivida como uma preservação de certos valores, mesmo diante dos perigos que nos fazem correr. Paradoxalmente, o enfraquecimento das comunidades erigidas segundo critérios de escolha e opção representa também o risco da perpetuação do domínio dos valores da vida privada, eleita pátria da tolerância, contra o domínio do público.[19]
Ora, essa interpretação aberta da tolerância esconde o fato de que há sempre um excluído do regime de tolerância, que no fundo define o sentido de seu funcionamento. Não podemos esquecer que, ao final de suas considerações, Locke afirma: “Por último, os que negam a existência de Deus não devem ser de modo algum tolerados. As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, não podem para um ateu ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus, ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo”.[20] Embora o ateísmo tenha deixado de ser visto como um perigo para sociedades que cumpriram seu ciclo de “desencantamento do mundo”,[21] devemos prestar atenção ao papel que cumpre na teoria lockiana da tolerância. Com efeito, o ateu é antes de mais nada visto como alguém incapaz de participar de uma comunidade política e, portanto, de portar-se segundo regras do direito. Tal postura, no entanto, não advém do fato de que historicamente se constate que são transgressores, ou porque nas guerras de religião tenham tido uma atuação destacada. Sua “anormalidade” decorre da opinião que professam a respeito da crença na divindade. Podemos dizer que, para Locke, o ateu é o diferente absoluto, não pode ser tolerado porque em certo sentido não é humano. Ao insurgir-se contra todas as crenças em Deus, ele deixa de ser o objeto de uma perseguição injusta, para transformar-se no inimigo irrecuperável da humanidade. No modelo lockiano de tolerância e em seus herdeiros mais diretos, defensores das sociedades multiculturais, nem sempre é evidente qual é o elemento excluído. Em situação normal, tem-se a impressão de que tudo pode ser tolerado em matéria de crença, desde que se respeite o funcionamento das instituições estabelecidas por lei. Em certo sentido, vive-se de acordo com o mito de uma tolerância máxima, que será tanto mais possível na medida em que as diferenças forem convergindo para o indivíduo autônomo e produtor do sentido de sua própria vida. Como a própria religião é vista como negócio individual, é aparentemente possível viver sem a enunciação do absolutamente outro, ou do intolerável.
É possível questionar se o modelo proposto pelos defensores do multiculturalismo e a compreensão que estes oferecem da natureza da tolerância descrevem corretamente o funcionamento das sociedades liberais e seus impasses.[22] O que importa reter, no entanto, é que a definição da tolerância como valor implica sempre a definição do intolerável e da diferença. Se, no primeiro caso, estamos diante de uma alteridade insuportável, no segundo, trata-se de pensar as peças que compõem a identidade de um povo ou de uma nação. O que não podemos perder de vista, e que tende a desaparecer na visão dos multiculturalistas, é que a separação entre o diferente e o intolerável resulta de um conjunto de fatores que não dependem apenas da vontade de tolerar o outro, mas também da própria constituição histórica da figura da alteridade. O que chamou a atenção nos acontecimentos de 2001 não foi a defesa pública do terrorismo, que não ocorreu, mas a necessidade que se experimentou de descobrir suas raízes e suas ligações com grupos e países que pudessem encarnar o excluído e assim ser colocados fora do território do tolerável. A operação de Locke contra os ateus assemelha-se a esse procedimento na medida em que ele também colocava os grupos religiosos dentro da comunidade política, e, portanto, a salvo da perseguição, e nomeava os que deveriam ser execrados.
Nomear o outro e mesmo persegui-lo corresponde a criar a identidade do corpo político pela sua negatividade. Se não podemos dizer que esse é o processo normal de criação de identidade das sociedades modernas, também não podemos afirmar que elas tenham prescindido inteiramente dele, mesmo quando a ideia de racionalidade do processo político se impôs como uma de suas marcas decisivas. O caminho seguido foi então o de indicar a civilização e suas conquistas ao lado de seu avesso: a barbárie.
Se a ideia de civilização tem uma origem tardia, servir-se do bárbaro para construir a própria identidade tem suas raízes na Antiguidade. Com efeito, os gregos foram os primeiros a forjar uma imagem positiva de seu próprio desenvolvimento, delimitando um espaço dentro do qual sua superioridade foi sendo afirmada. Como mostra Catherine Peschanski,[23] a construção do nome helênico dependeu da separação do nome dos bárbaros. No começo havia certa confusão e uma indistinção entre os povos, o que tornava impossível a operação de construção de um discurso sobre os próprios gregos. O tempo era idêntico para as várias populações, o que mais tarde viria a se alterar. Sem a marca da diferença, ainda na época de Homero era impossível saber o que era um grego e, por isso mesmo, o que era um bárbaro. Nossa helenista mostra, por exemplo, que Tucídides chama a atenção para esse fato, e logo no começo de sua História da Guerra do Peloponeso[24] ele diz que Homero “não empregou a palavra bárbaro, isso porque, em minha opinião, os gregos não estavam ainda agrupados, de seu lado, sob um termo único que pudesse a ela se opor”.[25] À medida que as fronteiras do nome grego foram se fechando, as distâncias foram se tornando intransponíveis. Se o gregos, a partir do momento em que encontraram sua identidade e aquela de suas instituições, puderam avançar em suas conquistas e na afirmação de seus valores, os bárbaros foram empurrados para uma névoa na qual até mesmo o tempo permanece congelado.[26] Referindo-se à Heródoto, Peschanski afirma: “As Histórias parecem postular que a ordem do mundo se deve em grande parte à nítida separação e à mútua diferenciação do nómoi. Que tudo permaneça no lugar, que os diversos povos conservem, no lugar em que estão, sua forma de viver, assim se manterá a diferença qualitativa fundamental que prevalece sobre todas as outras, aquela que separa os gregos dos bárbaros; assim, tudo será justo”.[27] O estabelecimento da diferença entre os povos não visava, portanto, no movimento de constituição da imagem que os gregos tinham de si mesmos, estabelecer o comércio entre povos, ou o respeito mútuo. Numa operação, por excelência, de construção da identidade, o diferente não entra nesse processo senão para indicar o negativo, a alteridade a ser evitada e que ficou perdida num passado do qual não conseguem se desvencilhar.[28] Nos termos de nosso problema, a ideia de tolerância não faz nem mesmo parte do vocabulário da Grécia antiga. Ao contrário, a diferença é fonte de afirmação de valores numa ponta e de distanciamento completo na outra.
Podemos reconstituir a imagem que os gregos forjaram dos barbarous seguindo o passo de seus historiadores.[29] O primeiro traço a ser ressaltado, segundo Peschanski, é a belicosidade dos povos não gregos. Tucídides, em uma passagem do livro VII de sua História da Guerra do Peloponeso, ao narrar o episódio do ataque dos trácios a Mykalessos, diz o seguinte:
Todos os que aí se encontravam, mulheres, crianças, foram mortos imediatamente, junto com as bestas e todos os seres vivos. Pois esse povo bárbaro é dos mais sanguinários, quando não tem nada a temer. Lá em particular o massacre foi tenebroso; vimos a morte sob todas as formas. Os trácios irromperam em uma escola, a mais importante do país. As crianças acabavam de entrar. Todas foram degoladas.[30]
Note-se de passagem que, na ocasião, os bárbaros eram aliados de Atenas e faziam o percurso das terras gregas cumprindo ordens dos atenienses. Se o historiador está longe de descuidar-se desses detalhes e mesmo de fustigar os gregos por seus pontos fracos, não fica evidente se a violência dos bárbaros é um instrumento de uma aliança ela mesma altamente problemática. Ao contrário, o leitor contemporâneo fica com a impressão de que a crueldade é um traço bárbaro que apenas aguarda a ocasião para se manifestar.
Um outro traço que é sugerido na mesma passagem é que, no fundo, os bárbaros são covardes. Agem com violência apenas quando acreditam que não serão surpreendidos, o que, aliás, acabará ocorrendo no episódio narrado, pois caberá aos tebanos, tendo escutado as notícias do massacre, socorrer os poucos que restaram.[31] Os gregos, por seu turno, são mais capazes por natureza de suportar a guerra e honrar os deuses, como sugere a passagem da Anabase de Xenofonte na qual as qualidades helênicas são descritas por um ateniense (Xenofonte) antes de um ataque ao Grande Rei:
Pois essas gentes cometem perjúrio em relação ao deuses, enquanto nós, que tínhamos sob os olhos tantos bens, abstivemo-nos por respeito aos sermões que havíamos prestado aos deuses. Assim acredito que podemos marchar para o combate com mais segurança do que eles. Além do mais, nossos corpos são mais apropriados dos que os deles para suportar o frio, o quente e a fadiga. Nossas almas são graças aos deuses mais bem temperadas. Acrescento que seus homens são mais facilmente feridos e mortos do que os nossos.[32]
Falta aos bárbaros a ordem,[33] e sobram a falsidade e a incapacidade de progredir. Aos gregos, os deuses deram características que os obrigam a comportamentos honrados e virtuosos. Em Xenofonte, o próprio Ciro parece invejar a condição excepcional dos gregos: “Não é, gregos, porque me faltem bárbaros que eu os levo para combater a meu lado, mas porque acredito que sejais mais bravos e mais fortes que muitos bárbaros, e eis por que os acrescento às minhas tropas”.[34] Seria ingênuo pensar que os historiadores do mundo antigo não percebiam o caráter problemático de algumas de suas afirmações, ou mesmo que tivessem continuado a acreditar na absoluta superioridade dos helenos, mesmo depois de muitos eventos que não pareciam confirmar esses fatos. No entanto, é preciso observar que mesmo em Tucídides, tão preocupado com a objetividade de suas narrativas, a divisão entre gregos e bárbaros é mantida como um marco fundamental para a compreensão do mundo e da história de seu tempo. É por isso que Hartog afirma: “Sem gregos, nada de bárbaros”.[35] Mas, ainda que se trate apenas de deixar na sombra a figura do outro, foi essa operação de exclusão absoluta da diferença que triunfou como um método de afirmação da identidade. Não seria absurdo pensar que muitas das características que os gregos atribuíam a si mesmos parecem hoje as qualidades associadas às sociedades ocidentais e os defeitos dos bárbaros, aqueles dos povos incapazes de seguir a mar- cha do progresso e das ideias das Luzes. Mas entre a Antiguidade e nós o caminho foi longo.
Essa operação de constituição das identidades seguiu ela mesma a história dos povos que acabaram submetendo os gregos e que submeteriam, no começo da modernidade, o mundo com a força de uma religião que se pretendia superior às outras. O que causou espanto nas guerras de religião foi menos o caráter violento dos enfrentamentos, e mais o fato de que o inimigo era cristão e partilhava da mesma fé na revelação e no Cristo. Nesse conflito, o oponente não possuía uma diferença impossível de ser medida, e sim a marca de um distanciamento que clamava por sua redução. O outro, protestante ou católico, provocava a ira e o medo por situar-se no mesmo lado da fronteira. Se pudéssemos comparar a situação dos gregos com aquela do início da modernidade, poderíamos dizer que o que se tornou terrível na Europa a partir do século XVI foi que no seio da cristandade explodiu a temível stásis.[36] A guerra entre partidos e as perseguições mútuas deixavam o gosto amargo do confronto entre semelhantes. Assim como, para os gregos, que cidadãos matassem cidadãos era um fato difícil de conciliar com a imagem que a cidade antiga fazia de si mesma,[37] também para os cristãos, após a Reforma, não era simples se opor a outros cristãos, ainda que esses estivessem maculados pela heresia. No plano político, Hobbes soube muito bem ver o efeito da stásis, da guerra civil, no interior de um Estado constituído. No Behemoth, sua narrativa dos acontecimentos que marcaram a vida inglesa de 1640 a 1660, ele não cessa de fustigar os sedutores — “ministros de Cristo”, papistas, seitas, adeptos da democracia antiga, o próprio povo ignaro — que por desejos diversos destruíram a monarquia e jogaram o país no caos.[38]
Poderíamos dizer que a temática da tolerância surge na modernidade para compreender e atuar em conflitos que opunham semelhantes, e não para pavimentar o caminho das relações com um outro que, na figura, por exemplo, do Oriente, incomodava cada vez mais com suas conquistas e sua diferença irredutível. Mas, se o século XVII foi aquele do surgimento da ideia de tolerância, o século XVIII verá nascer um novo operador da diferença radical e, consequentemente, da barbárie: a ideia de civilização.
Como observa Starobinski,[39] o primeiro a usar o termo em uma acepção próxima daquela que iria se consolidar depois foi o marquês de Mirabeau, que em seu livro L’ami des hommes iria abandonar o significado jurídico, para colocá-lo na trilha semântica da ideia de civilidade.[40] Tornar os homens polidos era o objetivo de uma literatura e de um conjunto de práticas que desde a Renascença vinha se consolidando como uma das marcas das sociedades de corte.[41] O homem civilizado atingia um estágio que o distinguia dos demais, mas o processo que o transformava em um ser “polido” não parecia ter outra função a não ser ensiná-lo a se comportar em sociedade. Com a ideia de civilização, o ato de tornar os homens “civis” passou a se identificar a um processo, que concernia a toda uma sociedade e se referia a uma prática de distinção que tinha resultados mais duradouros do que aqueles destinados a formar os indivíduos de uma determinada classe social. Ora, como mostra Starobinski, a “aparição da palavra civilização, que designa um processo, ocorre na história das ideias quase ao mesmo tempo que a noção de progresso. Civilização e progresso são termos destinados a entreter as relações mais estreitas”.[42] Com efeito, a partir do século XVIII as nações europeias passarão a se ver como elos essenciais de um movimento que ocorria na história e que tinha uma direção inelutável. Na França do sécu- lo XIX, por exemplo, escritores como Victor Hugo não hesitaram em afirmar: “O povo francês foi o missionário da civilização na Europa”.[43] Se não podemos dizer que a ideia de civilização tenha se desenvolvido de forma unívoca em todas as nações que a adotaram, não resta dúvida de que foi sempre um operador importante na constituição da identidade dos povos que se viam como civilizados. Como mostra Norbert Elias:
Mas, se examinarmos o que realmente constitui a função geral do conceito de civilização, e que qualidade comum leva todas essas várias atitudes e atividades humanas a serem descritas como civilizadas, partimos de uma descoberta muito simples: esse conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas “mais primitivas”: com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo, e muito mais.[44]
A referência à ideia de civilização forneceu assim a ferramenta para a construção de identidades, para o traçado de fronteiras, que não podiam mais ser definidas sem a alusão ao passar do tempo e da história.
O civilizado recriou a figura do bárbaro, a civilização foi paulatinamente ocupando o lugar que pertencera à religião. Ora, assim como os bárbaros não evoluíam na óptica dos gregos, o mesmo acontecerá com as nações e povos que se mostraram incapazes de seguir o fluxo das Luzes. Condorcet, um dos mais ferozes defensores do espírito da Enciclopédia, não hesitava em criticar os colonizadores das terras da África e da Ásia por sua violência e ignorância, e os “monges que não aportavam aos povos senão suas superstições vergonhosas”.[45] Ao mesmo tempo, no entanto, estava de tal forma convencido do caráter inelutável do progresso que pensava poder relegar ao esquecimento ou ao desaparecimento os povos que se retardassem no caminho de seu próprio aprimoramento: “Os progressos dessas duas últimas classes de povos serão mais lentos e mais acompanhados de tempestades; talvez reduzidos em seu número, eles serão empurrados pelas nações civilizadas e acabarão por desaparecer insensivelmente, ou por se perder no seio delas”.[46] O século das Luzes condenaria à imobilidade e ao limbo de um espaço sem tempo aqueles que não se curvassem diante da força de uma necessidade, que se afirmava pelo simples passar da história. Se nada justificava o arbítrio de uma ocupação do território de outros povos para o simples aproveitamento de suas riquezas e para um comércio ganancioso,[47] também não havia como se colocar contra a marcha civilizadora, que a França já impusera na própria Europa. A repressão pela diferença religiosa passava a ser criticada por expor inutilmente os povos a uma guerra sem motivos. Ao contrário, a conquista em nome da razão científica prometia uma “paz perpétua” da qual todos poderiam se beneficiar.
Reprimir o diferente e o discordante passou a ser uma operação justificada em nome de uma verdade fornecida pela razão. Mesmo entre nós, com uma população formada pela mistura de credos e pela mestiçagem das raças, não faltaram os que acreditassem na eficácia da oposição entre civilização e barbárie para propor as ações necessárias à acomodação ou à destruição do diferente. Um exemplo eloquente do sucesso dessa tópica, encontramos na obra de Euclides da Cunha. Já no início de Os sertões, referindo-se aos habitantes do interior perdido do país, ele afirma, parodiando Condorcet:
Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos princípios imediatos de uma grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada ou equilíbrio, que lhes não permite mais a velocidade adquirida pela marcha dos povos neste século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão. A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável “força motriz da História” que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento das raças fracas pelas raças fortes.[48]
A diferença religiosa não é aqui objeto de tolerância, mas de perseguição, pois ameaça não mais as crenças religiosas da maioria da população, mas seu próprio caminhar em direção ao esclarecimento.
Não resta dúvida de que ao longo da leitura da obra de Euclides da Cunha essa impressão inicial é matizada por uma série de considerações que relativizam a percepção da natureza do sertanejo. O que há de exemplar nesse caso, no entanto, é que ele nos coloca diante da fusão de duas tópicas que pareciam voltadas para a contradição: a afirmação do valor da civilização e a intolerância com a diferença religiosa. Se a civilização aqui é representada por um povo que hesita em seu caminhar em direção ao progresso, o inimigo interno aparece como ainda mais perigoso, justamente por querer em sua fé embriagada fazer retornar uma leitura ultrapassada do cristianismo em sua forma milenarista. O que importa para nós, no tocante à ideia de civilização, é que, como mostra Starobinski, “um termo carregado de sagrado demoniza seu antônimo. A palavra civilização, se não designa mais um fato submetido ao julgamento, mas um valor incontestável, entra no arsenal verbal do elogio ou da acusação. Não se trata mais de avaliar os defeitos ou os méritos da civilização. Ela se torna o critério por excelência: julgaremos em nome da civilização”.[49] Uma ideia que parecia destinada a sepultar a perseguição religiosa e a intolerância se converte assim na porta pela qual elas retornam nas sociedades laicizadas e tomadas pelo progresso técnico. Para garantir o progresso vale tudo, até mesmo o extermínio dos que não acreditam nele, assim como valia destruir os que concebiam a religião cristã de outra maneira, ou os que simplesmente não acreditavam em deus algum. O caráter das crenças parece assim não importar tanto quanto o fato de que a diferença afirmada e vivida por grupos e povos é uma ameaça muitas vezes percebida como intransponível para a afirmação das diversas identidades que constituem os grupos humanos.
É hora de voltarmos ao nosso tema e ao nosso tempo. Os acontecimentos que motivaram essas reflexões foram paradigmáticos para demonstrar a importância recuperada da oposição entre civilizados e bárbaros. Nunca é demais repetir que atos terroristas não devem ser tolerados, mas é interessante perguntar se podem ser compreendidos pela oposição citada. Classificar os terroristas como bárbaros corresponde a colocá-los fora das fronteiras da convivência civilizada e, portanto, excluí-los dos limites do tolerável. Mas a simplicidade dessa operação esconde o que apontamos no começo, ou seja, que os atos isolados não podem servir de explicação para o ocorrido, e isso acaba motivando a reconstrução da identidade dos envolvidos. Se limitarmo-nos a indicar a distância entre os que matam civis e nossas sociedades como aquela entre o que é civilizado e o que não pode ser tolerado, permaneceremos no campo de tolerância que foi construído por muitas das sociedade ocidentais ao longo do último século. A imagem de uma sociedade multicultural respeitosa de suas diferenças e ciente de seus direitos permanecerá intacta. Nesse caso, podemos dizer que o ideal de tolerância máximo, tal como descrito por Walzer, continuará operante.
Infelizmente as coisas não são tão simples assim. O recrudescimento, nos Estados Unidos, de medidas de exclusão de grupos e indivíduos suspeitos, a alteração de procedimentos legais, visando diminuir a presença de estrangeiros, e o aumento da xenofobia em muitos países europeus mostram que as consequências reais e imaginárias dos acontecimentos de 11 de setembro vão muito além da condenação do terrorismo. Aquilo a que estamos assistindo é um processo de reconstrução da identidade do Ocidente, e nossa hipótese é a de que isso altera necessariamente a ideia de tolerância dominante a partir do começo da modernidade. Se, como procuramos mostrar, a oposição entre o bárbaro e o civilizado faz parte de uma estratégia de construção da identidade dos povos do Ocidente, e se o bárbaro representa o elemento que não deve ser incluído no concerto das nações civilizadas, não há, a nosso ver, como retornar a essa separação sem voltar a discutir a tolerância e o estatuto da diferença entre os membros de uma mesma comunidade. Dizendo de outra maneira, acreditamos que ao renomear o bárbaro estamos alterando o estatuto do diferente. Ainda que seja precipitado afirmar que os países ricos do Ocidente ficarão menos tolerantes nos próximos anos, acreditamos ser possível dizer que o retorno à oposição civilização/barbárie altera a definição do que é o diferente e, portanto, do que pode ser tolerado.
Talvez uma menção a Montaigne nos ajude a precisar nosso pensamento. No século que viu nascer os conflitos religiosos mais intensos, o filósofo francês, referindo-se aos povos do novo continente, dizia: “Na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra”.[50] Dessa maneira, sugeria que não há, fora do próprio movimento de constituição da identidade de um povo, um ponto de vista que nos permita traçar a fronteira entre os dois lados da equação. Isso não quer dizer que ela não deva ser traçada, ou que não seja eficiente. Muito pelo contrário, Montaigne sabia como poucos da importância desses atos perpetrados no campo do imaginário e de sua terrível eficácia no estabelecimento dos costumes de uma nação.[51] Embora soubesse ser tolo e perigoso tentar impor uma opinião ao preço da guerra civil, ele nunca imaginou que pudéssemos colocar no lugar de nossas opiniões uma espécie de verdade universal, que suplantasse para sempre a parcialidade dos costumes. Ao contrário, os hábitos de um povo são sua face e sua mola de ação. Por isso são tão perigosos e ao mesmo tempo tão eficientes. Como mostra Sérgio Cardoso, nos enganaríamos pensando que Montaigne propugna uma hipotética tolerância universal entre os povos: “Quando mapeamos os traçados principais dessa reflexão política de Montaigne, não nos deparamos, no entanto — como se poderia esperar —, com uma convicção ‘liberal’ na acepção mais ampla da expressão ou com uma defesa calorosa da tolerância”.[52] Montaigne condena a arrogância dos que querem encontrar uma razão metafísica para sua identidade, mas também as minorias reformadas que desejavam impor sua fé aos que a ela não haviam aderido.[53] Para tanto teriam de destruir completamente os costumes estabelecidos, sem a garantia de que daí nasceria uma nova e melhor forma de vida.
O exemplo de Montaigne, de sua conhecida sensibilidade às diferenças e sua crítica a toda forma de dogmatismo e, ao mesmo tempo, sua crítica feroz aos reformados e sua recusa de seus atos que conduziram aos enfrentamentos terríveis do século XVI, nos ajuda a ver que a questão da tolerância é mais complexa do que a simples e irrestrita aceitação da diferença. Num certo sentido, a solução liberal corresponde menos à incorporação de toda diferença e mais à sua multiplicação ao infinito, de tal maneira que ela se torna ineficaz no seio das comunidades políticas. À luz das considerações anteriores, talvez seja mais prudente aceitar que a tolerância em nosso tempo não pode mais passar ao largo da operação de construção da imagem do bárbaro. Na verdade, não se trata de um processo independente, mas do mesmo movimento de construção da identidade e de constituição das fronteiras. Ao referir-me a povos e nações como bárbaros, estou necessariamente demarcando o que será aceitável tolerar, e esse é um dado que não existe para sempre. Pensar apenas na óptica do multiculturalismo e do respeito à opção dos indivíduos pode ser eficiente em sociedades que vivem momentos de paz social, mas o que mostram os acontecimentos recentes é que esse quadro pode mudar independentemente da vontade dos legisladores e dos membros da comunidade dispostos à tolerância. A partir do momento em que a identidade de um povo é posta em questão, também mudam as condições de tolerância.
O que gostaríamos de sugerir, portanto, é que a boa formulação do problema da tolerância exige sua fusão com aquele da barbárie e da civilização. Isso se dá não porque essa tópica seja válida em si mesma, mas pelo fato de que faz parte da estratégia de formulação da identidade de uma boa parte das nações do Ocidente. O bárbaro e o diferente não são personagens diferentes de peças encenadas em teatros distantes uns dos outros. Ao contrário, a escolha de quem irá participar de cada um dos papéis define a forma como populações inteiras serão tratadas e que tipo de comportamento será aceito como tolerável e que tipo de ação deverá ser excluída. Se apenas os atos terroristas forem tidos como bárbaros, o direito à diferença será mantido em sua integralidade pelas sociedades liberais. No entanto, é pouco provável que isso se dê dessa maneira, pelo simples fato de que o bárbaro não é nunca um outro cuja face pode ser facilmente definida. Ao contrário, é o negativo daquela do civilizado, e por isso ele é tão temido.
Contrariamente a muitos autores, que fazem o elogio da tolerância mostrando o alcance humano individual dessa virtude, acreditamos que é seu caráter iminentemente político que cabe ressaltar. Aceitando a mobilidade das fronteiras, que permitem a prática da tolerância e a proximidade sempre perigosa entre o diferente e o bárbaro, devemos atentar para o fato de que esses traçados são o fruto de uma ação ao mesmo tempo de respeito aos costumes e de sua alteração. Se nos recusamos a indicar o bárbaro e a nomear o intolerável, estamos correndo o risco de ver sua figura abstrata invadir a cena cotidiana colorida pelas diferenças. A prática da tolerância exige, assim, mais do que a passiva aceitação de conviver com a presença da multiplicidade humana, ela requer a contínua construção de uma identidade coletiva, que não pode jamais pretender ultrapassar sua própria particularidade e por isso não pode pretender ser válida para todo o sempre. O tolerante que apenas assume sua condição de inércia em face do rosto do mundo em que vive se esquece da força inequívoca de todos os mecanismos de exclusão, eles mesmos produtores de sentido. A diferença, como indica Walzer, exige a tolerância, mas também que ela seja desenhada com todas as cores de nossa própria humanidade, para que não seja empurrada para o cinza indistinto da barbárie.
Notas
[1] Ver, a esse respeito, o exemplo de Toledo, na Espanha: Louis Cardaillac (org.). Toledo, séculos XII-XIII: muçulmanos, cristãos e judeus: o saber e a tolerância. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, pp. 213-25.
[2] Aristóteles. Éthique a Nicomaque. Paris: J. Vrin, 1987, 1143 b 20, p. 307.
[3] Michael Walzer. On toleration. New Haven: Yale University Press, 1997, pp. 14- 35.
[4] Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 146.
[5] Ibidem, p. 37.
[6] Ibidem, p. 150.
[7] Michael Walzer, op. cit., p. 12.
[8] Ibidem, p. 74.
[9] Ibidem, p. 4.
[10] John Locke. Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril, 1978.
[11] Ibidem, p. 27.
[12] Ibidem, p. 4.
[13] Ibidem, p. 5.
[14] Ibidem, p. 9.
[15] Mas, em suma, o aspecto fundamental e determinante total da controvérsia é este: mesmo se for judiciosa a opinião do magistrado em religião e orientada para o caminho verdadeiramente evangélico, ainda assim quem não estiver profundamente convencido disso em seu próprio espírito não será salvo.” Ibidem, p. 14.
[16] Ibidem, p. 21.
[17] Michael Walzer, op. cit., p. 34.
[18] Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 80.
[19] Para um estudo notável desse traço da sociabilidade brasileira, ver Heloísa Starling. Lembranças do Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, cap. V, pp. 131-59.
[20] John Locke, op. cit., pp. 23-4.
[21] Para o sentido dessa expressão, ver M. Gauchet. Le désenchantement du monde: une histoire politique da religion. Paris: Gallimard, 1985, pp. 292-303.
[22] Para uma boa discussão a esse respeito, ver Brian Barry. Culture and equality. Cambridge: Polity Press, 2001. Em especial, ver o cap. 5, intitulado “Liberal States and illiberal religions”, pp. 155-93.
[23] Catherine Peschanski. “Os bárbaros em confronto com o tempo”. In: Bárbara Cassin et al. Gregos, bárbaros, estrangeiros: a cidade e seus outros. São Paulo, Editora 34, 1993, pp. 56-75.
[24] Acompanhamos aqui a seguinte edição: Tucídides. Histoire de la Guerre du Peloponnese. Paris: GF Flammarion, 1966, 2 vol.
[25] Catherine Peschanski, op. cit., p. 61; Tucídides, op. cit., I, 3, p. 32.
[26] Catherine Peschanski, op. cit., p. 63.
[27] Ibidem, p. 67.
[28] Ibidem, p. 64.
[29] Ver a esse respeito François Hartog. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1999.
[30] Tucídides, op. cit., VII, 29, vol. II, p. 169.
[31] Ibidem, VII, 30, p.170.
[32] Xenofonte. Anabase. In: Oeuvres complètes, vol. II. Paris: Garnier-Flammarion, 1967, livro III, cap. 1, 21-3, p. 90.
[33] Ibidem, I, 2, 14-6, p. 28.
[34] Ibidem, I, 7, 1-4, p. 46.
[35] François Hartog, op. cit., p. 326.
[36] “L’objet, donc: ce qu’une cité grecque nommée Athènes fait de la guerre civile ou, plus exactement, de la stásis, façon grecque de désigner ce qui est à la fois position (position de parti, statio debout du citoyen dressé contre d’autres citoyens) et insurrection violente, bouleversement radical, meurtres en série, catastrophe politique.” Nicole Loraux. La cité divisée. Paris: Payot, 1997, p. 60.
[37] Ibidem, p. 64.
[38] Thomas Hobbes. Behemoth ou o Longo Parlamento. Trad. Eunice Ostrensky. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001, pp. 32-4.
[39] Jean Starobinski, Le mot ‘civilisation’. In Le temps de la réflexion. Paris, Gallimard, 1983, p.p 13-52.
[40] Ibidem, p. 15.
[41] Ibidem, p. 16.
[42] Ibidem, p. 17.
[43] Victor Hugo, citado por Jean Starobinski, op. cit., p. 33.
[44] Norbert Elias. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 23.
[45] Condorcet. Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain. Paris: Garnier-Flammarion, 1988, p. 269.
[46] Ibidem, p. 270.
[47] “Parcourez l’histoire de nos entreprises, de nos établissements en Afrique ou en Asie, vous verrez nos monoples de commerce, nos trahisons, notre mépris saguinaire pour les hommes d’une autre couleur ou d’une autre croyance, l’insolence de nos usurpations, l’extravagant prosélytisme ou les intrigues de nos prêtres détruire ce sentiment de respect et de bienveillance que la superiorité de nos lumières et les avantages de notre commerce avaient d’abord obtenu.” Ibidem, p. 268.
[48] Euclides da Cunha. Os sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. Nota preliminar, p. XXIX.
[49] Jean Starobinski, op. cit., p. 30.
[50] Montaigne. Essais. In: Oeuvres complètes. Paris: Seuil, 1967. Livro I, cap. 31, p. 99.
[51] “Car c’est à la vérité une violente et traîtresse maîtresse d’école que la coutume.” Ibidem, livro I, cap. 23, p. 58
[52] Sérgio Cardoso. “Uma fé, um rei, uma lei: a crise da razão política na França das guerras de religião”. In: Adauto Novaes (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 184.
[53] Ibidem, p. 74.