2004

Um corpo estranho: civilização e pós-humanismo

por Luiz Alberto Oliveira

Resumo

Desde sua gênese o Ocidente sustentou a oposição entre civilização e barbárie.

O bárbaro tem o sentido de inaugurador ou renovador, e civilizador, o de fomentador ou multiplicador. Trata-se em ambos os casos de uma complementaridade, de um mútuo invocar, entre construção e desconstrução.

No começo do século XX, testemunhou-se o desenrolar de uma revolução científica, quando os físicos e os astrônomos puderam começar a sondar escalas de comprimentos e durações até então inacessíveis, quer por excessivamente diminutas, quer por demasiadamente grandiosas. Descartes deixou como legado a metáfora de que o universo físico seria análogo a uma máquina. Borges nos deu uma nova imagem adequada: tal como uma Biblioteca, o mundo natural apresenta uma hierarquia complexa, das partículas elementares passamos aos núcleons, aos núcleos, aos átomos, às moléculas, às substâncias, às estrelas, às galáxias, aos aglomerados, ao cosmos…

O Princípio Antrópico enuncia que nosso universo é compatível com o aparecimento de vida biológica (e eventualmente de inteligência). O PA opera como um princípio de seleção; nossas observações são selecionadas pelas condições dessas observações, portanto, expressa uma profunda interconexão entre o micromundo e o macrocosmo: aspectos em grande escala do universo, que são consequências necessárias dos estados possíveis de estabilidade entre as forças de atração e repulsão, vinculam-se à possibilidade de evolução biológica. O Princípio Antrópico fornece-nos um vislumbre de que somos a demonstração da especialidade rara de nosso universo; somos um sintoma da totalidade.

Ocorrem no cosmos as condições necessárias para o surgimento e desenvolvimento da base “vital” para a posterior aparição da capacidade de inteligir; seriam essas condições, ademais, suficientes para assegurar a emergência dessa capacidade? Stephen Jay Gould não hesita em sentenciar: a história da vida é marcada por acontecimentos contingentes, como testemunham os eventos de proliferação e desaparição em massa de espécies; a seleção natural não tem finalidades — em particular, carece do objetivo de engendrar seres pensantes como nós.

A evolução biológica é o fato, lastreado em  evidências, de que as espécies vivas experimentaram variações de forma ao longo das eras. Darwin propôs a teoria da seleção natural, segundo a qual essas variações se dariam de modo cumulativo, reguladas por fatores ambientais. Por outro lado, organismos vivos são sistemas termodinamicamente abertos cujas atividades modificam o próprio entorno. Os seres vivos afetam o meio ambiente os afeta; a evolução biológica age sobre si mesma. A evolução, portanto, envolve uma complexa e multifacetada composição entre necessidade e acaso.

A sociologia da tecnologia sugerem que a historicidade própria do humano estaria sempre entrelaçada à da tecnologia. Através de procedimentos de delegação e mediação de tarefas, objetos e protocolos técnicos vinculam-se ao exercício de nossas faculdades cognitivas; em conjunto com os elementos neurais, simbólicos e representacionais inerentes ao exercício da linguagem, os artefatos participam da efetiva inserção do  pensamento  no  mundo.

As três grandes promessas de inovação tecnológica para o século XXI, a robótica, a biotecnologia e a nanotecnologia têm como fundamento comum a crescente capacidade de manipular objetos infinitesimais. O aspecto crítico de tal condensação dos ritmos naturais em ritmos tecnológicos é que doravante o passado não nos servirá como guia, uma vez que a história — quer da natureza, quer da cultura — não pode mais ser projetada sobre o futuro.

Ao longo de todo o século XX, as ciências da natureza bateram-se contra um gigante do mesmo porte: Descartes. O resultado  desse  combate  foi  a  elaboração  de  uma  concepção de physis  renovada.

Dispomos agora do substrato essencial para avançar na compreensão do problema da contemporaneidade: o que pode a civilização? O Princípio Antrópico nos afirma que as condições necessárias para o surgimento da vida estão dadas no universo; uma vez instalada, a vida é resiliente, difícil de erradicar. Por outro lado, a biologia evolutiva adverte que as condições suficientes para o desenvolvimento da inteligência resultaram em um percurso marcado pela contingência. Em suma: quando uma “civilização tecnológica” desenvolve os meios técnicos de intervir programadamente sobre a constituição bioquímica de seus membros, e sua presença altera significativamente a rede de cooperações que compõem a biosfera à qual essa civilização pertence, um novo patamar de complexificação e, portanto, de indeterminação é alcançado. Progressivamente, e cada vez mais, diluem-se as distinções clássicas entre matéria, vida e pensamento; não apenas somos estranhos, nos tornaremos mais estranhos ainda.


Para Gerd Bornheim

Em seu tratado em dois volumes intitulado Alice, Lewis Carroll empreende uma categorização sistemática e exaustiva — embora expressada em linguagem alegórica — dos enunciados lógicos a que denominamos paradoxos. A paradoxologia compreenderia essencialmente o estudo de três grandes classes de dizeres: da contraditoriedade (Alice cresce e encolhe), da consistência (Alice comenta Alice), da indeterminação (a chama sem vela, o sorriso sem gato).[1] Kafka, Gödel, Duchamp, Heisenberg, Borges: algumas das mais brilhantes luzes do século XX arderam nas encruzilhadas do continente assinalado por Carroll.

Curiosamente, esses luminares provêm de uma longa tradição de rejeição ao paradoxo. De fato, desde pelo menos a sistematização levada a cabo por Platão, o sistema de pensamento ou paradigma que virá a se chamar Ocidente instituiu os enunciados ambíguos, inconsistentes ou impossíveis como arautos do Erro, do negativo do Pensamento: índices de um obstáculo que impediria o pensamento de pensar.[2] Marcel Detiènne expôs com precisão o longo processo de transformação dos discursos de enunciação da verdade — desde a complementaridade entre verossimilhança e ilusão, característica das sentenças oraculares e dos poemas dos aedos arcaicos, até a instalação, com a filosofia, de um dispositivo de exclusão absoluta de termos contraditórios, correlata à plena consistência encarnada pouco depois nos axiomas da geometria de Euclides.[3] Assinalando a definitiva distinção do sistema de pensamento “Ocidente” daquele outro, daquele que se tornará Outro, o raciocínio tipicamente dicotômico — em que as primitivas tensões polares entre “verdade” e “engano” foram extremadas ao limite de pólos mutuamente excludentes, “verdadeiro” ou “falso” — presidirá doravante a constituição e operação de figuras-chave para o pensamento clássico, como as noções de identidade e diferença. Um exemplo imediato é o do claro antagonismo entre a civilização — que os gregos identificavam à sua própria invenção, a cidadania — e a barbárie.

Bárbaro, para um grego do período clássico, é um outrem em dois sentidos (às vezes simultâneos): os persas são bárbaros porque são servos do grande rei, não possuem a autonomia — o poder de, livremente, restringir a própria liberdade em função de uma legislação publicamente elaborada e aceita — que caracteriza as cidadesEstados da Hélade; bárbaros são também os povos cujos costumes se diferenciam demasiadamente das tradições helênicas, como registra um espantado Xenofonte.[4] Analogamente, quer para um centurião romano do século III, quer para um lorde britânico do século XIX, “bárbaro” é alguém cuja cultura é inferior, pois desprovida de um traço civilizatório essencial — seja a arena de gladiadores, seja o chá vespertino; mas igualmente “bárbaras” são as hordas visigodas que vandalizam a Roma decadente de Valentiniano ou a massa de fanáticos que o Mahdi lança sobre Cartum. Inferior, por deficiente, ou superior, por destruidor: em qualquer caso, o meteco, o estrangeiro, não é o que somos.

E, no entanto, já aqui deparamos com um paradoxo originário, verdadeiramente constitutivo, do paradigma ocidental. A cidadania nasce, mostra Michael Rostovtzeff, com a reforma hoplita: em vez dos combates individuais entre aristocratas guerreiros, como na Ilíada, agora todo o dêmos, a população comum, porta armas, leves e pesadas, em campanhas em que batalhões inteiros se confrontam — e as mantêm quando retorna à cidade.[5] A nova relação de forças permitiu — em certos casos, obrigou — que formas originais de governo fossem experimentadas, e por ocasião da primeira guerra persa um deslocamento decisivo sucede: a pertença à pólis se dá não somente pela filiação epônima, pela linhagem familiar, mas meramente pela circunscrição de nascimento — a geografia substitui o vínculo de sangue na outorga do título de cidadão. Porém, a batalha entre quadrados de infantaria pesadamente armada que passará a caracterizar o conflito entre as cidades-Estados gregas tem desfecho breve (e assim os milicianos podem rapidamente retomar o cultivo), porque é extraordinariamente violenta. A guerra, diz John Keegan, sempre foi um afazer fortemente normatizado, e na maioria das culturas há regras para que se evite o mais possível a luta direta, corpo a corpo, e a alta letalidade dela decorrente.[6] O traço crucial do modo de guerrear que os gregos inventaram, todavia, com ênfase nos regimentos de hoplitas operando coordenados, é exatamente o de buscar o embate contínuo, a proximidade intensa e sangrenta: matar sem descanso, em uníssono, metodicamente, até incapacitar em massa o inimigo; se for possível, até lograr seu extermínio.[7] O massacre como marca de uma cultura: não os nômades “primitivos”, não os orientais “lascivos”, mas os gregos, os cultos e racionais gregos, conceberam e implementaram a carnificina como supremo objetivo militar…

Desde sua gênese, portanto, e ao longo de sua história, o Ocidente sustentou a oposição entre civilização e barbárie, e raramente sem exibir uma inequívoca ambiguidade. Tomemos por exemplo recente o mito moderno por excelência, o “Progresso”: a humanidade, o grande universal humanista parido pelo Iluminismo, teria um télos, uma destinação: a de encaminhar-se rumo a uma nova Canaã de abundância material, eis que uma instância abrangente, integradora das ações de múltiplos agentes — o “mercado” — trataria de organizar a produção e prover as necessidades dos povos… Mas a sensação em nossa pós-modernidade, o gosto em nossa boca, é de mal-estar. O “mercado” constituiu-se em templo do capital — de meio, instrumento, causa eficiente para a produção e distribuição de riqueza, tornou-se direção, tendência, causa final da atividade produtiva, além, demasiado além dos valores do humanismo.[8] Tudo deve ser conversível em commodity, tudo deve ser o nodo de um fluxo de porcentagens, tudo deve ser apreçado: sentimentos íntimos, doutrinas religiosas, órgãos humanos… Que sejamos todos unidimensionais — a série boca-pança-ânus é o ser que nos basta ser; que sejamos todos consumidores, quer dizer, consumíveis; caso contrário, falhamos, estamos fora… Ou recordemos os primórdios da Revolução Industrial: bens naturais fartos, bens artificiais raros. Hoje, vemos o inverso: artefatos abundantes, recursos naturais escasseando. Não há dúvida de que todo ser vivo necessariamente desconstrói e reconstrói seu hábitat, mas o peso de nossa presença começa a tornar-se excessivo, violento, violentador. Edward Wilson nos aponta um rosário de extinções em massa em ecossistemas e de ecossistemas decorrentes da ocupação humana crescente, predatória e devastadora.[9] Agimos como uma horda destruidora; somos um corpo estranho fincado no flanco da Terra; nossa civilização é uma barbaridade.

Essa destrutividade, essa exclusão exponencial não são apenas um mal-estar, são um mal-ser. Barbarescos, descivilizadores, estamos começando a nos auto-afetar irreversivelmente, em razão das ações que exercemos sobre as bases do que somos, quer como organismos, quer como produtores. No limite, podem aniquilar-se as condições do próprio existir para a maior parte, quiçá mesmo para a totalidade, da comunidade humana. O fato decisivo é: hoje, graças à hipertecnicização em curso, não mais encontramos a alteridade, passamos a produzir a alteridade — devimos Outrem.[10] Qual o horizonte dessa civilização barbarizante, estrangeira de si mesma? O que virá depois do humano? De outro modo: como positivar o paradoxo de sermos autometecos? Como compor afirmativamente os opostos?

Excertos de duas páginas notáveis nos servirão de guia: primeiramente da célebre seção 17 da segunda dissertação da Genealogia da moral, em que Nietzsche nos apresenta sua vitriólica concepção para a proveniência da civilização; em seguida, do magnífico retrato de um homem de virtù que Marguerite Yourcenar nos presenteia em Memórias de Adriano.

[…] a moldagem de uma populaça até então incontrolada e informe numa forma consolidada foi não apenas instituída por um ato de violência, mas também levada a cabo senão por atos de violência — o mais antigo “estado” surgiu portanto como uma tirania temível, uma máquina opressiva e sem remorsos, e seguiu operando até que sua matéria-prima de gente e semi-animais tornou-se finalmente não só amaciada e maleável mas também formada.

Empreguei a palavra estado: seu significado é óbvio — alguma matilha de louras bestas de rapina, uma raça conquistadora e dominadora que, disposta para a guerra e capaz de organizar, lançou sem hesitar suas garras terríveis sobre uma população talvez tremendamente superior em número mas ainda desestruturada e nômade. Assim é de todo modo como o “estado” começou na Terra. Penso que aquele sentimentalismo que o teria feito surgir com um “contrato” tenha sido descartado. Aquele que pode comandar, que é por natureza “senhor”, que é violento em ação e intenção — o que teria a ver com contratos! Não se pactua com tais naturezas; elas vêm como o destino, sem motivo, sem causa, sem pretexto; elas surgem como um relâmpago, demasiado terríveis, demasiado súbitas, demasiado convincentes, demasiado “diferentes” até para ser odiadas. […] Não conhecem culpa, responsabilidade ou ponderação, estes organizadores inatos; exemplificam o egoísmo terrível do artista de olhar de bronze que se sabe justificado por toda a eternidade por seu “trabalho”, como uma mãe por seu filho. [Genealogia da moral, II-17][11]

Construir é colaborar com a terra: é colocar um marco humano numa paisagem, marco que a modificará para sempre; é contribuir também para a lenta transformação que constitui a vida das cidades. […] Abrir portos era fecundar a beleza dos golfos. Fundar bibliotecas era construir celeiros públicos, aprovisionar reservas contra o inverno do espírito cuja aproximação eu podia prever mesmo contra minha vontade. […] Plotinópolis, Andrinopla, Antinoé, Adrianóptera… Multipliquei o máximo possível essas colmeias da abelha humana.

[…] Foi por esta época que comecei a sentir-me deus. […] Aos 44 anos, sentia-me sem impaciência, seguro de mim, tão perfeito quanto me permitia minha natureza. Eterno. […] Era deus simplesmente porque era homem. Os títulos divinos que a Grécia me concedeu depois não fizeram mais que proclamar aquilo que, há muito tempo, eu tinha constatado por mim mesmo.

Disse que meus títulos de divindade acrescentaram pouca coisa a essa espantosa certeza; em contrapartida, ela era confirmada pelas mais simples rotinas de meu ofício de imperador. Se Júpiter é o cérebro do mundo, o homem encarregado de organizar e moderar os negócios humanos pode razoavelmente se considerar uma parte desse cérebro que a tudo preside. A humanidade, com ou sem razão, quase sempre concebeu seu deus em termos da Providência; minhas funções obrigavam-me a ser, para uma parte do gênero humano, essa providência encarnada. […] Longe de ver nessas demonstrações de adoração um perigo de alienação mental ou de prepotência para o homem que as aceita, descobri nelas um freio, a obrigação de procurar assemelhar-me a um modelo eterno, de associar ao poder humano uma parte de suma sapiência. Ser deus obriga, em suma, a possuir mais virtudes do que as de ser imperador. [Memórias de Adriano, “Terra pacificada”][12]

O filósofo, a escritora nos iluminam: em comum, em suas visões, o criar. Toda instauração é uma ruptura do estabelecido, requer a superação do já organizado; assim, bárbaro tem o sentido de inaugurador ou renovador, e civilizador, o de fomentador ou multiplicador.

Trata-se em ambos os casos de uma complementaridade, de um mútuo invocar, entre construção e desconstrução — quer de origem exógena, quando a ruptura nos assalta desde fora, quer endógena, quando esculpimos nosso próprio germinar. Seja a brutalidade do adestramento, que torna homens no especialíssimo animal capaz de prometer, de operar na dimensão do “amanhã”, seja a suavidade do cultivo, que faz frutificar tanto a terra agreste como o espírito dos homens; evidencia-se o caráter superior (ou mesmo divino) da potência de ordenar, de dar forma.

Se formar (povos, cidades, espíritos) é equivalente a organizar, então é lícito definir a ação de civilizar — levada a cabo quer pelo relâmpago, quer pela moderação — como fazer (mais) diferença.

Podemos lançar mão da ciência das trocas de atividade — a termodinâmica — para formular uma metáfora instigante. O teor de organização de um sistema material é uma expressão da especificidade das disposições relativas de seus elementos, ou seja, do arranjo de distinções entre os componentes encarnado no “plano arquitetônico” característico do sistema. Variações do grau de organização de um sistema ao longo de uma transformação são medidas pela noção de entropia. Quando, ao cabo de um dado processo, o sistema tem sua riqueza estrutural diminuída, tornando-se mais homogêneo, mais indiferenciado, dizemos que sua entropia cresceu; reciprocamente, caso o processo resulte num estado mais nuançado, numa constelação de partes mais disparatadas, a entropia diminuiu. A lei física mais geral que conhecemos — o segundo princípio da termodinâmica — reza que, se o processo for somente interno (quer dizer, se o sistema estiver entregue a si mesmo, dissociado de seu meio), então invariavelmente tenderá a desorganizar-se: num sistema isolado, a entropia sempre cresce.[13] Façamos a volta (em grego, tropé) e retomemos a questão do humano (em grego, anthrópinos), formulando a noção de antropia: uma medida da tendência de uma cultura a civilizar-se, a aumentar o grau de humanização de seu projeto de comunidade. Podemos então adotar como eixo de nossa análise a interrogação: a história de nossa espécie, de Lucy a Mozart, teria como traço distintivo uma progressiva (e acelerada) “antropização”, tenderíamos a nos “civilizar” mais e mais? Quer dizer, a antropia sempre cresce? Ideias oferecidas pela cosmologia relativística e pela biologia evolutiva nos fornecerão os meios para elaborar o problema.

David Deutsch propõe-nos a sugestiva imagem de uma deidade que, compadecida com o espetáculo das agruras geradas pela ignorância humana, decidisse nos presentear com o supremo oráculo, um dispositivo tal que contivesse a resposta a tudo o que quiséssemos saber.[14] Finalmente, esclareceríamos as grandes questões da existência — quem somos, de onde viemos, para onde vamos, se há vida após a morte, quem será o campeão no domingo… Mas Deutsch adverte-nos a refrear o entusiasmo: para usar eficientemente um tal dispositivo de gerar respostas, teríamos primeiramente de apresentar as perguntas — e, para isso, definir o que é ser, vir, ir, vida, morte, vascaíno, flamenguista… A conclusão imediata é que, na elaboração do conhecimento, constituir o problema é muito mais significativo do que dispor de sua solução. Ademais, na verdade já dispomos de um dispositivo assim: a natureza. Sempre que sabemos fazer a pergunta, ela nos dá a resposta. E, às vezes, a resposta é surpreendente…

Esse foi sem dúvida o caso do século XX, que desde seus primórdios testemunhou o desenrolar de uma autêntica revolução científica.[15] Quando os físicos e os astrônomos puderam começar a sondar escalas de comprimentos e durações até então inacessíveis, quer por excessivamente diminutas, quer por demasiadamente grandiosas, as próprias bases de nosso entendimento sobre o mundo natural tiveram de ser revistas, e desse cataclismo resultaram novas imagens do todo e da matéria. Havíamos herdado de Descartes a metáfora extraordinária de que o universo físico seria análogo a uma máquina — mas doravante essa figura será insuficiente para dar conta da natureza complicada, labiríntica e problemática que emergirá da relatividade, da física quântica, da teoria do caos. Talvez encontremos em Borges a nova imagem adequada: tal como uma Biblioteca, o mundo natural apresenta uma hierarquia complexa, das partículas elementares passamos aos núcleons, aos núcleos, aos átomos, às moléculas, às substâncias, às estrelas, às galáxias, aos aglomerados, ao cosmos…[16]

De fato, a microfísica contemporânea indica-nos que quatro (apenas quatro!) forças estruturam a matéria. Duas delas (as interações nucleares forte e fraca) têm curto alcance e alta intensidade, as outras duas (o eletromagnetismo e a gravitação) têm longo alcance e baixa intensidade. Ou seja: entre partículas elementares e no interior dos núcleos imperam as vigorosas interações nucleares, e por isso é muito difícil romper um núcleo, por exemplo; já as ligações químicas entre os átomos são de natureza eletromagnética, bem mais fáceis de fazer e desfazer, e finalmente os corpos macroscópicos, como maçãs, planetas e estrelas, coordenam-se pela ação da gravidade, comparativamente muito fraca, mas à qual nenhum corpo escapa. Hubert Reeves sugere que essas características podem ser reunidas na figura de uma pirâmide, cuja base (os processos em microescala) é rígida, coesa, mas cujo topo (os sistemas macroscópicos) é frágil, flexível.[17] O aspecto decisivo é que a facilidade crescente, ao longo da pirâmide, de fazer e desfazer ligações justifica termos a expectativa de encontrar sistemas complexos, dotados de superior riqueza de organização: por ser frágil, o universo pode ser estruturalmente heterogêneo, pode suportar invenções.

A histórica descoberta de Hubble acerca do afastamento mútuo das galáxias — a primeira vez em que uma característica global do cosmos foi empiricamente observada — inaugurou a extraordinária imagem de uma totalidade evolutiva, inacabada.[18] Podemos hoje oferecer um quadro bastante detalhado da evolução cósmica, ou seja, narrar a história do surgimento das formações materiais, com base nas leis físicas fundamentais conhecidas. De modo brevíssimo, as principais circunstâncias dessa história que contém todas as histórias podem ser resumidas como segue: no começo, era uma matriz instável (que alguns chamam de vazio), a partir da qual entrou em existência o peculiar objeto físico que denominamos universo. A física de altas energias sugere que nessa série inaugural de eventos, popularmente conhecida por big-bang, teve início a diferenciação de uma matéria primordial única (correspondente a uma força “unificada”) em famílias distintas de partículas, correlatas ao paulatino desdobramento das atuais quatro forças. Em seus começos, o cosmos é compacto, quente e denso; o processo de expansão a que se encontra submetido promoverá o progressivo esfriamento do conteúdo material e, por conseguinte, a fixação de estruturas. O resultado é o período de nucleossíntese, a aparição de núcleos atômicos leves (essencialmente hidrogênio e hélio). Ao cabo dos primeiros três minutos, as espécies contemporâneas de matéria já estão consolidadas.[19] Embora o universo esteja se expandindo globalmente, irregularidades na distribuição do “fluido” cósmico condensam-se localmente graças à atração gravitacional, dando lugar a “granulações” que futuramente se desenvolverão em galáxias e estrelas.

As estrelas são de fato sistemas em que a ação da gravidade (o peso das camadas de gás externas da estrela) induz a atuação da força nuclear forte (núcleos leves aglutinam-se em núcleos maiores). Essa fusão nuclear libera energia (sob a forma de radiação eletromagnética, luz), dando lugar a uma contrapressão que resiste à tendência da estrela de auto-esmagar-se sob o próprio peso e assegurando assim sua estabilidade e longevidade. Graças a essa conversão entre forças, uma geração arcaica de estrelas produziu os elementos pesados que encontramos no Sol e em sua corte de planetas; o sistema solar, a Terra e tudo o que há nela são feitos, literalmente, de poeira de estrelas… Essa reciclagem de resíduos cósmicos possibilita assim o surgimento de situações em que sistemas físicos têm facilidade em realizar mudanças de estado, e mesmo de domínios, em que ocorre a coexistência de fases — como a convivência de água, gelo e vapor no ambiente terrestre exemplifica. Esses domínios dotados de grande riqueza e variabilidade estruturais ocupam de fato o topo da pirâmide da complexidade de Reeves: o alto grau de conectividade oferecido por esses territórios é condição de possibilidade para o surgimento de um tipo especial de formação material que “aprendeu” a repetir e a variar seus modos de organização, conectando os tempos bilionesimais das reações bioquímicas aos tempos profundos do ambiente — a vida.[20]

Ora, as leis físicas básicas buscam definir a natureza dos agentes físicos (corpúsculos, corpos ou campos) e especificar as interações entre eles; em particular, as intensidades relativas das forças são determinadas por um conjunto de grandezas denominadas “constantes fundamentais”. Surge aqui uma constatação espantosa: se mínimas variações dos valores dessas constantes (ou seja, das intensidades relativas entre as forças) tivessem porventura ocorrido, o processo de cosmogênese resumido acima teria sido inapelavelmente interrompido! Por exemplo: a força gravitacional é astronomicamente menos intensa que a eletromagnética — o fator é de uma parte em 1036 (1 seguido de 36 zeros!); uma gravidade ligeiramente mais forte faria as estrelas desabarem rapidamente sob o próprio peso, tornando-as entidades fugazes, pouco duradouras, e portanto um universo “antigo” como o nosso seria escuro e frio… Ou então: as características da força nuclear forte prescrevem que a fusão de hidrogênio em hélio que alimenta a maior parte do ciclo de existência das estrelas ocorra com uma taxa de eficiência de 99,3% — quer dizer, somente 0,7% da energia total envolvida é liberada sob a forma de luz. Se esse fator fosse menor — digamos, 0,6% —, núcleos de hélio (e, muito menos, núcleos de elementos mais pesados como o carbono, o oxigênio etc.) não poderiam ser gerados; se fosse maior — digamos, 0,8% —, todo o hidrogênio teria se convertido em hélio de uma só vez no big-bang! Em resumo: a possibilidade de surgir a vida está diretamente ligada às características básicas do universo! Martin Rees coleciona uma série de considerações análogas, discutidas em diversos setores da cosmologia contemporânea, e exprime com precisa admiração sua essência: o cosmos parece ser biófilo.[21]

Talvez a argumentação possa ser esclarecida se concebermos a figura de um Demiurgo de Universos: em seu caldeirão cosmogônico, essa potestade teria o dom de misturar ingredientes dados (as leis físicas básicas), variando à vontade suas quantidades (experimentando, por exemplo, diferentes intensidades relativas entre as forças, pela escolha de outras constantes fundamentais) de modo a produzir qualquer universo admissível. Sua conclusão, após um sem-número de preparações, é que universos aptos a encarnar o topo da pirâmide da complexidade exigem um conjunto muito preciso e restrito de proporções, isto é, universos capazes de sustentar vida resultam de uma receita finamente ajustada — e rara! Essa afirmação sob todos os títulos extraordinária foi consubstanciada no chamado Princípio Antrópico, que pode ser enunciado como segue: os valores das grandezas físicas são restritos pelo fato necessário de que os medimos de um local onde ocorreu evolução biológica e numa época suficientemente tardia para que essa evolução tenha ocorrido (ou seja, o universo é antigo e vasto).[22] Simplificadamente: nosso universo é compatível com o aparecimento de vida biológica (e eventualmente de inteligência).

À primeira vista, o Princípio Antrópico (PA) parece se resumir à mera constatação de um dado imediato — o fato de que existimos e até mesmo formulamos princípios; nesse caso, seu significado nada mais seria do que um truísmo auto-evidente: estamos aqui porque estamos aqui… Não, longe de exprimir uma simples trivialidade, o PA opera como um legítimo princípio de seleção, que traduz um imperativo inescapável: nossas observações são selecionadas pelas condições dessas observações. Todas as medidas que fazemos (que podemos fazer) acerca do tamanho que as ratazanas do porão podem alcançar estão condicionadas ao tamanho das ratoeiras que usamos; do mesmo modo, nosso conhecimento sobre o universo e seus caracteres baseia-se no fato fundamental de que somos uma forma de vida inteligente, baseada em carbono, que se desenvolveu espontaneamente num planeta tipo-Terra em torno de uma estrela tipo-Sol (espectral G2); qualquer observação que realizemos será selecionada por esse fato! O Princípio Antrópico, portanto, expressa uma profunda interconexão entre o micromundo e o macrocosmo: aspectos em grande escala do universo, que são consequências necessárias dos estados possíveis de estabilidade entre as forças de atração e repulsão, vinculam-se à possibilidade de evolução biológica! Copérnico retirou-nos do centro do espaço; Lyell, do centro do tempo; Darwin, do centro da vida (e Freud, do centro de nós mesmos); Borges registra a perplexidade de Pascal: perante os infinitos da cosmovisão mecânica, nossa insignificância parece absoluta e irremediável. Mas, por habitarmos o topo da pirâmide da complexidade, readquirimos uma importância imprevista e formidável, e o Princípio Antrópico fornece-nos um vislumbre de um outro entendimento: somos a demonstração da especialidade rara de nosso universo; somos um sintoma da totalidade.[23]

O universo seria biofílico, como indica o Princípio Antrópico. Mas exibiria além disso uma “noofilia” — uma propensão ao surgimento da constelação de processos que chamamos de “inteligência”?

Dito de outro modo: ocorrem no cosmos as condições necessárias para o surgimento e desenvolvimento da base “vital” para a posterior aparição da capacidade de inteligir; seriam essas condições, ademais, suficientes para assegurar a emergência dessa capacidade? A larga maioria dos biólogos evolucionários responde a essa pergunta com uma peremptória negação. Stephen Jay Gould não hesita em sentenciar: a história da vida é marcada por acontecimentos contingentes, como testemunham os eventos de proliferação e desaparição em massa de espécies; a seleção natural não tem finalidades — em particular, carece do objetivo de engendrar seres pensantes como nós.[24]

Precisemos um pouco mais a questão: a evolução biológica é o fato, lastreado em incontáveis evidências, de que as espécies vivas experimentaram variações de forma ao longo das eras. Para integrar e coordenar essas evidências, Darwin propôs a teoria da seleção natural, segundo a qual essas variações se dariam de modo cumulativo, reguladas por fatores ambientais: como a capacidade de sobrevivência de um organismo é sempre, e necessariamente, relativa às condições vigentes em seu ambiente, transformações climáticas, geológicas e mesmo astrofísicas acabarão por conduzir à alteração e fixação (seleção) de características funcionais dos descendentes desse organismo. Essas transformações agem como agentes aleatórios ou causas livres, sem princípio nem objetivo, que propiciam ou desfavorecem o desenvolvimento das espécies.[25]

Por outro lado, organismos vivos são sistemas termodinamicamente abertos cujas atividades modificam o próprio entorno — as plantas, por exemplo, drenam continuamente o solo em que estão enraizadas; nesse sentido, secam a si mesmas… Os seres vivos afetam o ambiente que os afeta; a evolução biológica (retro)age sobre si mesma, e assim uma indeterminação suplementar, típica dos processos não lineares em que ocorre auto-afecção, é introduzida.[26] Ainda mais: sabemos hoje que as características de cada organismo são transmitidas de uma geração para outra através do repertório de genes — o genoma — da espécie a que pertencem. Mas Richard Lewontin chama a atenção para os fatores aleatórios que inevitavelmente também ocorrerão num processo fundamental — a transcrição bioquímica do conteúdo genético para a fabricação das proteínas de que o organismo irá consistir —, tendo como resultado o surgimento das diferenças individuais entre os membros da espécie.[27] Em suma, os biólogos encontram o acaso em operação em duas escalas: não somente nas vicissitudes da relação seletiva e não linear entre espécie e ambiente, mas também na variabilidade individual decorrente da expressão genética. A evolução, portanto, envolve uma complexa e multifacetada composição entre necessidade e acaso. Como situar, nesse domínio em que vigora a indeterminação, o surgimento da inteligência?

Há cerca de 4 milhões de anos, na África, a elevação de uma cadeia de montanhas bloqueou a passagem dos ventos vindos do Atlântico, e em decorrência grandes regiões de densas florestas tropicais foram pouco a pouco se transformando em savanas de vegetação baixa. Privados do ambiente multidimensional da floresta fechada, alguns primatas que aí viviam adaptaram-se às novas condições assumindo uma postura ereta (ou seja, verticalizando a coluna vertebral). Essa mudança aparentemente tão simples teve imensas consequências. As patas dianteiras puderam ser liberadas da função exclusiva de locomoção; a progressiva oposição do polegar aos outros dedos (permitindo pinçar os objetos), combinada a um delicado alinhamento do olhar com o movimento dos punhos (garantindo a precisão dos gestos), acabou por transformar as patas em mãos.[28] Assim, o Homo erectus e seus descendentes — nossos ancestrais — tornaram-se animais técnicos, e conseguiram, há 1 milhão de anos, o extraordinário feito de adquirir controle sobre um processo: o fogo. As mãos passaram a levar o alimento à boca; liberada da função de agarrar a presa, a mandíbula pôde suavizar-se e diminuir de tamanho, facilitando a emissão de sons (e o aumento concomitante da capacidade craniana). A maneira mais “econômica” de produzir todo esse conjunto de alterações morfológicas é atrasar a maturação dos fetos — processo a que os paleoantropólogos chamam de neotenia.[29] Os bebês proto-humanos, assim, passaram a nascer cada vez mais “inacabados”, ou seja, sua maturação completa começou a ocorrer depois de nascidos. O desenvolvimento retardado reduz a influência dos padrões de comportamento inatos e aumenta a capacidade (graças aos cérebros aumentados e complexificados) de aprender padrões; progressivamente, a transmissão de comportamentos torna-se cada vez mais importante.[30]

Ora, esses bebês neotênicos são, durante um longo período, relativamente incapazes, e requerem por isso cuidados intensivos por parte do grupo. A simples sobrevivência da espécie exigiu então uma forte coesão da coletividade, uma socialização integradora, para que os cuidados com os infantes pudessem ser ministrados. A inovação revolucionária que fomentou o fortalecimento dos laços sociais foi uma nova forma de comunicação, apoiada na facilidade de emitir sons. A voz converteu-se assim em um novo suporte de registro em que o significado dos gestos e das posturas (de alerta, de afeto etc.) empregados pelo grupo foi traduzido em palavras. O surgimento da fala: talvez o acontecimento mais decisivo da história de nossa espécie.[31] Ao comunicar-se entre si, esses animais falantes produziram uma tecnologia prodigiosa, uma memória compartilhada, fora do corpo dos indivíduos. Pela simbolização, a codificação de sinais substituindo coisas ou ações, o repertório de experiências e conhecimentos de todo o grupo podia agora ser continuamente acumulado e transmitido às novas gerações.[32] À medida que os ciclos naturais — os períodos de migração de manadas e as estações do ano, por exemplo — foram sendo recordados e correlacionados, os registros de fatos já vividos transformaram-se em expectativas, e daí em previsões; rebatida sobre o futuro, a memória converte-se em antecipação, possibilitando a nossos ancestrais operar com uma dimensão sem precedentes, que nenhum outro animal parece apreender: o amanhã.[33]

O ponto crucial dessa narrativa é a imbricação dos dois planos em que a hominização se dá: somos animais, simultânea e inseparavelmente, falantes e técnicos. Um exemplo dessa indissociação deve bastar: os primeiros instrumentos de pedra, datados de 2 milhões de anos atrás, eram produzidos por meio de três ou quatro golpes de uma rocha sobre outra; a lasca afiada resultante servia para estender as (limitadas) capacidades de ação física de nossa anatomia, como um dente transferido para a mão. Mas as pontas de flecha de obsidiana dos homens de cromagnon, de 25 mil anos, são autênticas obras-primas de eficácia (e beleza), que requeriam várias dezenas de golpes precisos, em exata sequência, para sua confecção; testemunham uma incomparável destreza artesanal, municiada por um enorme cabedal de conhecimentos técnicos que abrangiam da gemologia à aerodinâmica, cuja transmissão certamente teria sido impossível sem o concurso de uma variedade de fórmulas mnemotécnicas repassadas pelo mestre ao aprendiz.[34] Gesto e palavra, movimento e signo, habilidade e memória reforçam-se mutuamente na realização da atividade que chamamos de pensar. Ao fomentar o crescimento da alcateia humana, a operação na dimensão inovadora do pensamento de fato introduz um domínio suplementar de auto-afecção da vida sobre si mesma.[35]

Contudo, a história das técnicas foi por longo período subordinada a uma visão instrumental dos objetos técnicos: os humanos nos apropriaríamos de corpos naturais e empregaríamos seus atributos — resistência, gume, aspereza etc. — na consecução de algum propósito útil; eventualmente, a funcionalidade de uma dada coisa poderia ser realçada ou combinada a outras. Portando em si mesmos sua “finalidade”, indiferentes ao sujeito humano que os manipula, os objetos técnicos, de acordo com essa concepção protético-utilitária, nos são duplamente exteriores. Uma das importantes contribuições originais de Marx se dará precisamente no campo da filosofia da técnica: analisando a crescente mecanização industrial de sua época, verifica que, longe de ser “neutro” ou meramente funcional, esse processo se articula à apropriação capitalista da produção econômica por meio de uma vasta operação de encobrimento (a ideologia do “progresso”), e conclui que o desenvolvimento tecnológico não traz automaticamente a emancipação e realização dos homens.[36] Ou seja, os objetos técnicos não se esgotam em sua pretensa “objetividade”, participam da constituição de uma subjetividade socialmente modalizada.

Reciprocamente, pesquisas atuais na área da sociologia da tecnologia sugerem que a historicidade própria do humano estaria sempre entrelaçada à da tecnologia; para dentro e para fora, o sujeito não se contém nos limites do indivíduo. Através de procedimentos de delegação e mediação de tarefas, objetos e protocolos técnicos vinculam-se ao exercício de nossas faculdades cognitivas; em conjunto com os elementos neurais, simbólicos e representacionais inerentes ao exercício da linguagem, os artefatos participam da efetiva inserção do pensamento no mundo. Edwin Hutchins afirma que o piloto pensa o rumo da embarcação com o sextante (ou o GPS) e a carta náutica.[37] Arquivos permitem substituir memória por percepção; a escrita suporta uma memória de longa duração; Eric Havelock até mesmo associa o surgimento da razão à introdução da escrita fonética na Grécia.[38] Admitir que as atividades cognitivas se distribuem entre sujeito e mundo, envolvendo operadores internos, externos e diversas camadas de interfaces entre eles, implica uma nova concepção de sociedade como rede sociotécnica de agentes humanos e não humanos.[39]

Se os humanos contamos com a ação de objetos técnicos para pensar, toda tecnologia é imediatamente, e desde sempre, cognitiva. Hoje, contudo, parece ocorrer um fato singular: uma internalização sem precedentes da ação técnica, como se a tecnologia se rebatesse sobre seu agente e engolfasse seu próprio executor; como se o espírito se dobrasse sobre si mesmo e se auto-afetasse, abolindo a clara separação clássica entre interno e externo, sujeito e objeto, ente e artefato. A razão é a capacidade recentemente adquirida de intervir nas escalas infinitesimais de comprimentos e durações que são próprias ao domínio da microfísica.[40] Com efeito, as três grandes promessas de inovação tecnológica para o século XXI, a saber, a robótica (a produção de sistemas capazes de comportamento autônomo), a biotecnologia (a manipulação dos componentes dos seres vivos, inclusive seu código genético) e a nanotecnologia (a fabricação de dispositivos moleculares) têm como fundamento comum a crescente capacidade de manipular objetos infinitesimais. Esse fato é verdadeiramente crucial porque ao nos tornarmos capazes de agir nessas microescalas elementares, fundamentais para a constituição de todos os seres, estamos sobrepondo aos lentos andamentos da natureza as altas frequências da cultura. O aspecto crítico de tal condensação dos ritmos naturais em ritmos tecnológicos é que doravante o passado não nos servirá como guia, uma vez que a história — quer da natureza, quer da cultura — não pode mais ser projetada sobre o futuro. É previsível que essa capacidade de microintervenção seja aplicada a toda matéria-prima, inclusive a biológica, inclusive a nós mesmos, a nossos corpos e espíritos: estamos a caminho de poder redesenhar a forma humana. Se as próteses de movimento, percepção e pensamento que nos fizeram a espécie dominante no planeta migrarem para o interior de nossos próprios corpos, fundindo-se com nossas próprias células, o que significará ser humano? O futuro, pergunta Bill Joy,[41] ainda precisará de nós? Ou ao Homem restará ser alterado, ou superado, ou dispensado?

Ernesto Sábato dizia que a grandeza de um pensador podia ser medida pela dificuldade que suas ideias impunham à aparição de novas ideias, ou seja, pelo caráter de obstáculo que suas doutrinas passam a oferecer, e recorda os quase dois milênios de sujeição do Ocidente a Aristóteles.[42] Ao longo de todo o século XX, as ciências da natureza bateram-se contra um gigante do mesmo porte: Descartes. O resultado desse combate foi a elaboração de uma concepção de physis renovada, radicalmente distinta do mecanicismo vigente desde o Iluminismo, e associada a um deslocamento do fundamento básico da existência material — da noção de substância para a de processo.[43] A principal característica desse novo diagrama do pensamento é a reformulação da relação clássica entre sistema, estrutura e elemento ou, se quisermos, entre todo, meio e parte. Abolindo o eixo único que, segundo o mecanicismo cartesiano, ligaria a simplicidade dos elementos à complicação dos sistemas, os paradigmas da complexidade reconhecem uma gama de polaridades simples/complexo meramente relativas, correspondentes a uma hierarquia de níveis de organização — constituídos a partir da reiteração e acumulação de operações de síntese e disjunção — que medeia a conexão entre o todo e suas partes. Essa mediação, ao conferir um caráter não linear à integração do local ao global, permite a ocorrência de comportamentos de auto-afecção, em que a evolução do sistema acaba por modificar a estrutura do próprio sistema.[44] O determinismo estrito da cosmovisão clássica é revertido em favor de seu antípoda, a indeterminação inerente aos fenômenos de auto-organização.[45]

Dispomos agora do substrato essencial para avançar na compreensão do problema da contemporaneidade: o que pode a civilização? O Princípio Antrópico nos afirma que as condições necessárias para o surgimento da vida estão dadas no universo; uma vez instalada, a vida é resiliente, difícil de erradicar. Por outro lado, a biologia evolutiva adverte que as condições suficientes para o desenvolvimento da inteligência resultaram em um percurso sem teleonomias, marcado pela contingência; produto de uma fortuna irrepetível, o pensamento é um acidente feliz. Em suma: a antropia não necessariamente cresce sempre, a árvore do pensamento pode se ressecar! Ora, quando uma “civilização tecnológica” desenvolve os meios técnicos de intervir programadamente sobre a constituição bioquímica de seus membros, e sua presença altera significativamente a rede de cooperações que compõem a biosfera à qual essa civilização pertence — tal como sucede conosco, hoje —, um novo patamar de complexificação e, portanto, de indeterminação é alcançado.[46] Progressivamente, e cada vez mais, diluem-se as distinções clássicas entre matéria, vida e pensamento; não apenas somos estranhos, nos tornaremos mais estranhos ainda. O pós-humanismo é um enigma.

Seguindo Nicolai Kardashev, Freeman Dyson propõe classificar as civilizações que poderiam ser encontradas no cosmos em três tipos, de acordo com o uso de suas fontes de energia.[47] Civilizações do tipo 1 explorariam os recursos de um único sistema estelar; do tipo 2, de diversos sistemas estelares; do tipo 3, de toda uma galáxia. A humanidade, hoje, é o principal vetor de transformações no planeta; causamos extinções em massa, mas começamos a explorar o sistema solar, geramos epidemias de desnutrição e obesidade, mas erradicamos a varíola e a pólio. Talvez não seja incorreto supor que estamos atravessando um período de transição turbulenta, anterior ao pleno florescimento de uma civilização tipo 1: adolescemos…

As galerias saqueadas do Museu de Bagdá parecem nos enviar uma mensagem sóbria sobre nossa atualidade. Antonio Negri e Michael Hardt descrevem assim o estado de coisas presente: “Globalização irresistível e irreversível de trocas econômicas e culturais […] ordem global, nova lógica e estrutura de comando […] nova forma de supremacia. O Império é a substância política que de fato regula essas permutas globais, o poder supremo que governa o mundo”.[48] Mas o núcleo executivo desse incontrastado dispositivo de poder encontra-se capturado por devotos de um paradigma energético ultrapassado (os combustíveis fósseis) e de um sistema moral intolerante (o fundamentalismo cristão). Perante as doutrinas emanadas pelo trono imperial (“perpetuação da supremacia americana por quaisquer meios”, “ataques preventivos com todas as armas disponíveis”…), recordamos não Adriano, mas Caio Calígula… A marcha da insensatez tão acidamente descrita por Barbara Tuchman[49] parece estar mais uma vez em andamento; o humanismo e seus dispositivos — a razão, a cultura, a democracia — não mais detêm o Império e suas bombas de todas as mães.

Dois caminhos prospectivos parecem se abrir para nós: podemos chamar o primeiro de eixo “Jornada nas estrelas” (a utopia de alcançarmos o fim da miséria, das guerras e da maior parte das doenças em um século), o segundo, de eixo “Matrix” (a distopia do amesquinhamento da vida orgânica, da escravidão e do holocausto). O desafio está posto: faremos (mais) diferença? Num contexto intrinsecamente instável, lograremos realizar uma série de transições meraestáveis que potencializem nossas virtualidacles de arranjos de carbono, restos de estrelas antigas que descobriram como se desdobrar em pensamentos? Ou a Canção do einthropos, esse experimento de matéria pensante, se extinguirá no silêncio escuro e frio do equilíbrio?

Notas

[1] Gilles Deleuze. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva; EDUSP, 1969.

[2] Claudio Ulpiano, O pensamento de Deleuze ou A grande aventura do espírito. Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP, 1998, não-publicada.

[3] Mantel Detienne. Os mestres da verdade na Grécia arcaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

[4] Barbara Cassim et al. Gregos, bárbaros e estrangeiros. São Paulo: Editora 34, 1993.

[5] Michael I. Rostovtzeff. História da Grécia. Rio de janeiro: Zahar, 1973.

[6] John Keegan. Uma história da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[7] Victor Davis Hanson, em Por que o Ocidente venceu (Rio de Janeiro: Ediouro, 2002), mostra como o triunfo da falange macedônia se apoiou na incredulidade dos exércitos persas, vastamente superiores em número, que não podiam conceber que os poucos milhares de infantes e cavaleiros de Alexandre Magno estivessem dispostos a ser exterminados até o último homem — e a recíproca, ainda menos… A helenização da Ásia se deu através de uma série de massacres brutais, afirma Hanson, e cruamente compara Alexandre a ninguém menos que Hitler.

[8] Susan George. O relatório Lugano. São Paulo: Boitempo, 2002.

[9] Edward Wilson. O futuro da vida. Rio de Janeiro: Campus, 2002,

[10] Luiz Alberto Oliveira. Valores deslizantes”. In: Adauto Novaes (org.). O avesso da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

[11] Friedrich Nietzsche. On the genealogy of morals/Ecce homo. Walter Kaufmann (ed.), Nova York: Vintage Books, 1969, tradução deste autor. Ern uma nota à seção I-11, Kaufmann propõe encerrar a polêmica sobre “der blonde Beastie”, as “louras bestas de rapina”: trata-se-ia não de urna antecipação das SS nazistas ou de certas apresentadoras de televisão, e SIM de uma referência à fera fulva, o leão.

[12] Marguerite Yourcenar. Memórias de Adriano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1980.

[13] A universalidade desse princípio de nada importa para sua vigência: o tipo específico de sistema, sua composição, o meio do qual foi destacado, as forças que participam do processo. Ver Peter Coveney & Roger Highfield. A flecha do tempo. Rio de Janeiro: Siciliano, 1993.

[14] David Deutsch, The fabric of reality. Londres: Penguin, 1997.

[15] Thomas S. Kuhn. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975.

[16] Luiz Alberto Oliveira. “Biontes, bioides e borgues”. In: Adauto Novaes (org.) O homem-máquina. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

[17] Hubert Reeves. A hora do deslumbramento. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

[18] Mario Novello. Cosmos e contexto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

[19] Steven Weinberg. Os primeiros três minutos. Lisboa: Gradiva, 1988.

[20] Paul Davies. O quinto milagre. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

[21] Martin Rees. Apenas seis números. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

[22] John D. Barrow & Frank J. Tipler. The Anthropic Cosmological PrincOle. Oxford: Oxford University Press, 1986.

[23] A guisa de complementação, devemos mencionar que alguns cosmólogos acreditam que as evidências de que dispomos são suficientes para justificar uma forma mais “forte” do Princípio Antrópico, segundo a qual o universo deve permitir o aparecimento de vida biológica (e eventualmente de inteligência). Essa formulação inevitavelmente nos traz à lembrança os célebres “argumentos de desígnio”, pelos quais os filósofos medievais buscavam “demonstrar” a necessidade da existência de um ser supremo; de faro, o PA “forte” parece implicar que o universo se destina ao surgimento da vida e da mente. Uma linha de pensamento ainda mais radical é vindicada pelos defensores do chamado Princípio Antrópico “Final”: não apenas o universo tende à aparição da vida e da inteligência como, uma vez surgidas, estas não desaparecem mais! Ver Barrow & Tipler, op. cit.

[24] Stephen Jay Gould. Lance de dados. Rio de Janeiro: Record, 2001.

[25] Daniel Dennett. A perigosa ideia de Darwin. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

[26] John Holland. Ordem oculta. Lisboa; Gradiva, 1997.

[27] Richard Lewontin. A tripla hélice. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

[28] André Leroi-Gourhan. O gesto e a palavra. Lisboa: Edições 70, 1983.

[29] Stephen Jay Gould. Dedo mindinho e seus vizinhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

[30] Donald C. Johnson & Maitland A. Edey. Lucy. Rio de Janeiro: Bertrand, 1996.

[31] Andre Bourguignon. História natural do homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

[32] Luiz Alberto Oliveira. “Imagens do tempo”. In: Marcio Doctors (org.). O tempo dos tempos. Rio de Janeiro: Fundação Eva Klabín Rapaport; Jorge Zahar (no prelo).

[33] Steve Olson. A história da humanidade. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

[34] James Burke & Robert Ornstein. Opresente dofazedor de machados. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

[35] Fayga Ostrower. A sensibilidade do intelecto Rio de Janeiro: Campus, 1998.

[36] Karl Marx. O capital. São Paulo: Abril, 1982.

[37] Edwin Hutchins. Cognition in the wild. Cambrigde: MIT Press, 1996.

[38] Eric Havelock. A preface to Plato. Cambridge: Belknap, 1963.

[39] Fernanda Bruno. “Tecnologias cognitivas e espaços do pensamento”. In: Vera França et al. (org.). XI COMPÓS: estudos de comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2003.

[40] Luiz Alberto Oliveira. “As tecnologias do bilionesimal”. In: Marcio Doctors (org.). Pensando o século XXI. Rio de Janeiro: Fundação Eva Klabin Rapaport (no prelo).

[41] Bill Joy, “Why the future doesn’t need us”. Disponível em: <www.wired.com/ wired/archive/8.04/joy.html>.

[42] Ernesto Sábato. Nós e o universo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.

[43] Ilya Prigogine & Isabelle Stengers. A nova aliança. Lisboa: Graciiva, 1986.

[44] Ian Stewart. Será que Deus joga dados? Rio dejaneiro: Jorge Zahar, 1991.

[45] Humberto Mamma & Francisco Varela. De máquinas seres Moos. Porto Alegre Artes Médicas, 1997.

[46] Ver os comentários de Martin Rees sobre o potencial a longo prazo de desenvolvimento da Vida (e suas possibilidades de aniquilação), disponíveis em: <http://www. edge.org/3rd_culture/rees03/rees_index.html> ctileineirees05/rees index.html>.

[47] Freeman Dyson. Perturbando o universo. Brasilia: Editora da UNB, 1979

[48] Antonio Negri & Michael Hardt. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.

[49] Barbara Tuchman. A Marcha da insensatez. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1985.

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