2013

Uma arqueologia da espera

por Renato Lessa

Resumo

O tema “o futuro já não é mais o que era” parece inscrever-se na perspectiva do absoluto como história. Com efeito, o enunciado é inteligível na medida em que se consegue dar sentido à imagem de um futuro elaborado como cenário finito, como algo diante do qual é possível exercer um juízo de constatação ou algo passível de ser representado como “o futuro”, tanto quanto sou capaz de representar um objeto exterior a mim e dado à percepção de todos. Tal “constatividade” do futuro – a propriedade de coisas que podem ser constatadas – autoriza uma sentença como “ontem eu tinha uma visão do futuro diversa da que tenho hoje”, fundada em algo que pode ser designado como uma abordagem situacional do futuro.

O suporte de tal abordagem é a crença de que a história é o recipiente do futuro, da mesma forma que um bloco de mármore branco “continha” o David, de Michelangelo. O futuro residiria, portanto, em algum lugar na história, tanto como certeza quanto como possibilidade. Afirmar que o futuro está na história, mais do que afirmá-lo como um dos modos do tempo, implica operar com uma filosofia da história para a qual o futuro, de algum modo, existe.

Não só existe, como é prefigurável por exercícios de simulação constituídos, por definição, fora da jurisdição, digamos, objetiva da vigência do tempo futuro, assim como do trajeto que a ele conduz. A ideia, portanto, de um futuro-que-já-não-mais-é-como-foi diz respeito a um colapso nos sistemas de antecipações do futuro, pois, de algum modo, a feliz sucessão de imagens de futuro, que se apresentam como correções e/ ou superações dos presentes nos quais são elaboradas, teria se interrompido.

É possível que o que se apresente, nesse caso, seja tão somente uma experiência de invisibilidade do futuro. Tal “invisibilidade”, por sua vez, não pode ser sustentada a partir de alguma frustração com nossa experiência futura. Ao contrário, é a experiência de perceber o futuro como invisível que requer inspeção, e tal inspeção exige uma arqueologia dos estados de espera. A espera é o operador necessário que ata o homem ao futuro. Um nexo do qual não se pode abrir mão, já que o futuro é de modo inapelável o objeto das expectativas de sentido. Se algo colapsa nas expectativas de futuro, o sujeito da espera não poderá sair incólume dessa falha. Não se poderá debitar o abismo das expectativas na conta da suposta exaustão das energias utópicas. Há que se observar a natureza desse operador, e dar passagem a uma arqueologia possível da espera.

Fernando Gil, em seu “Tratado da evidência”, bem definiu noção de “operador”. Trata-se de “um algoritmo susceptível de construir uma expressão nova a partir de expressões já formadas” e de “um dispositivo especifico de transformação”. Paulo Tunhas, em comentário inspirado no “Tratado da evidência”, acrescentou às definições de Fernando Gil a ideia de que os operadores são “uma força de construção”. Tanto enunciados filosóficos como movimentos epistêmicos do sujeito procedem por meio de operadores; estes, na verdade, podem ser percebidos como condutores de efeitos, como portadores práticos da potência das intuições e dos enunciados.

A noção cartesiana de “cogito”, por exemplo, pode ser tomada como um operador específico que produz efeitos tanto em na representação do que seja a mente como do que seja a matéria extensa. Não basta, pois, que o cogito seja uma pura intuição. Para que passe ao ato tem que se configurar como um operador. No plano propriamente epistêmico, interno aos circuitos que se dão no sujeito, a crença é um operador de verdade, assim como o são a convicção e a certeza. Em outros termos, trata-se da crença que, do interior do sujeito, opera e dá passagem a atos diversos e particulares de crenças, afetadas pelas circunstâncias do mundo.


O arquétipo do preenchimento é o encaixe sem espaço vazio, o engaste, a soldadura.

FERNANDO GIL

Qual o arquétipo, Urbild, da insatisfação? O espaço vazio?

LUDWIG WITTGENSTEIN

A ação do sujeito é o quadro natural da inteligibilidade.

FERNANDO GIL

ABERTURA

Nada aqui a provar. Menos ainda a demonstrar. Algo, se calhar, a mostrar. Mas o quê, exatamente? Penso que um argumento, cujos marcadores estruturantes podem ser reduzidos às seguintes proposições:

  • nossas intuições de futuro estão assentadas em estados de espera;
  • estados de espera, ao mesmo tempo em que incidem sobre objetos de espera, são atributos de um sujeito que espera.

Além de uma sociologia ou de uma história possíveis a respeito dos objetos de espera, há lugar para uma inquirição legítima a respeito deste sujeito que espera, ou disto que espera, tal como pode preferir quem ponha em suspensão a existência de algo a que se possa dizer que seja um sujeito.

A tríade que acaba de ser enumerada funde-se em, tanto quanto releva de, um projeto, que desde já se mostra inacabado, de uma arqueologia da espera, vinculada ao desejo de saber algo a respeito do que, no sujeito, sustém atos de espera e do operador interno que o faz esperar. Desde já, deve ficar posto que parto de uma distinção analítica entre exterior interior; ou entre a perspectiva da primeira pessoa e a da terceira pessoa[1]: na expressão “eu espero por aquilo”, o “aquilo” que é esperado por mim é enunciável na perspectiva da terceira pessoa. Já o sujeito da espera diz de si por meio de atos expressivos formulados na perspectiva da primeira pessoa: “eu espero”. Uma afirmação, por certo, imaterial e cuja arqueologia não se mostra na simples ostensão daquilo que é esperado. A referencialidade não diz do sujeito; na verdade, exerce sobre ele um efeito de ocultação: quando afirmo que espero por algo, a atenção de quem me escuta dirige-se para aquilo que espero, para o conteúdo proposicional do algo que digo estar à espera. Há que distinguir, pois, atos de espera de objetos de espera. O projeto de uma arqueologia da espera toma para si a tarefa de investigar atos de espera e de responder à pergunta já aqui posta: o que no sujeito sustém atos de espera?

Que se diga do futuro que ele já não mais é tal como foi. A razão para tal lapso pode estar contida no fato de que já não vivemos mais no passado que projetou o futuro, para além do nosso presente. Uma projeção do que gostaríamos que fosse, o futuro deste presente que nos falta. Nosso presente, como passado de algum futuro, parece não mais autorizar a crença naquele futuro, uma crença urdida em condições pretéritas canceladas. Não disputo o ponto. Sustento, apenas, que qualquer que seja a direção assumida pelo juízo a respeito de passados cancelados e futuros abortados, restará a questão intocada de saber algo a respeito dos sujeitos da espera e, dentro deles, dos movimentos de antecipação que fazem ver o que vem depois, um exercício que se constitui como requisito inescapável de integridade epistêmica e existencial dos humanos. Se ver o que vem depois for assumido como traço antropológico básico – como impulso inerente à existência dos humanos-, é lícito afirmar que a espécie é constituída por seres no tempo. Em outros termos, o sentido dinâmico de sua espacialidade dá-se na perspectiva do tempo: trata-se de um animal que espera. Em outros termos, de um animal que comete atos alucinatórios de antecipação. Comecemos, pois, com algo a respeito do tempo, com referência inicial à ideia de insuportabilidade do efêmero e do imediato.

PRIMEIRO MOVIMENTO: TEMPO NAS COISAS. TEMPO PARA NÓS

Wilhelm Dilthey, em sua Introdução às ciências do espírito, de 1883, afirmou que as primeiras formas da experiência humana com o tempo deram-se a partir de uma intuição do efêmero: uma intuição sustentada na percepção da obsolescência e da finitude da natureza, dos corpos, das instituições e criações humanas[2]. Ivan Dominguez, em seu belo livro O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história, ao chamar a atenção para a reflexão de Dilthey a respeito do tempo, assim resumiu a principal consequência daquela intuição:

O resultado foi que os homens desde cedo, ao experenciarem a ação do tempo, foram levados a buscar explicações que dessem sentido a essa experiência, sem que, todavia, o enigma do tempo fosse decifrado ou ficasse de todo resolvido[3].

A ação do tempo aparece como implacável, posto que se realiza como devoradora dos instantes infinitesimais que o compõem: nenhum instante sobrevive ao tempo; o fluxo, ademais, não acumula, mas sim sobrepõe; ele aparece como sucessão de instantes finitos e soterráveis. O instante, em si mesmo, parece ser mesmo insuportável, já que dotado de dimensões muito avaras. Krysztof Pomian, em texto genial, a partir de uma identidade entre instante simultaneidade de eventos, diz a respeito:

[…] percebemos como simultâneos eventos na realidade sucessivos, contanto que não sejam nem muito numerosos, nem muito intervalados, ou díspares, e que se consideram compreendidos ora entre 0,15 e 5 segundos[…] ora entre 4 e 7 segundos […][4].

Trata-se, como bem se vê, de invólucro diminuto, para que nele se inscreva nossa fixação no mundo, confinada a um intervalo entre 0,15 e sete segundos, a crer nos “cálculos” apresentados por Pomian. Tal fixação não pode ser contida pelo efêmero; ela, na verdade, opera na perspectiva de seu transbordamento. Há, pois, urna asfixia ou, se quisermos, urna imposição claustrofóbica do instante e do finito que nos dirige a alucina­ ções em busca do absoluto. Ou, ao menos, em busca de evasão do tempo finito e, por assim dizer, pomiano, com implicações sérias sobre a ideia de futuro. A alucinação do tempo futuro compensa a alucinação originária da fixação no efêmero.

Trata-se de urna evasão que bem pode tornar a forma daquilo que Fernando Gil, em obra inspirada, designou como a concentração do infinito no indivíduo[5]. Por força de recursos alucinatórios – de operadores de infinito -, aderimos a formas diversas do absoluto e projetamo-las sobre fragmentos pomianos do tempo – vale dizer, sobre os vestígios da experiência imediata. Disso resulta um vínculo indissolúvel, segundo o qual o que aparece corno efêmero é tão somente algo que, em notação pirandelliana, vi pareque assim parece ser, mas que na realidade se vincula, de modo essencial, a algum absoluto que exerce sobre nós o fascínio e o entorpecimento da perenidade. A própria ideia de experiência é transfigurada: a vivência imediata só adquire sentido na perspectiva do que a excede, do que nela não se encontra, mas a ela é adicionado por atos de espera. Trata-se de urna vontade de suplementação que exige a incorporação do tempo, sob a forma de futuro, corno exigência existencial e cognitiva para a representação do presente e do imediato, circunscritos ao espartilho do tempo pomiano. Vontade de suplementação, desejo do absoluto.

Estamos familiarizados com algumas formas genéricas de recurso ao absoluto. Na origem mesma do experimento ocidental, e de nenhuma forma a ele restrito, entre os primeiros pensadores gregos impôs-se urna tensão entre a incompletude e precariedade do mundo fenomênico e as promessas de redenção e elucidação assentes no absoluto. Com efeito, aprendemos com Platão, no diálogo Timeu, o quanto a materialidade das coisas finitas se apresenta corno experimento lapsário e imperfeito, marcado por urna falha original, contida na ousadia de conferir concretude ao que antes subsistia de modo autossuficiente e absoluto, corno Forma pura e intocada tanto pelos acidentes do mundo como por nossos erros perceptuais[6].•

Já naquela altura estariam postos elementos suficientes para uma hipotética arqueologia da demanda pelo absoluto. Uma demanda já inscrita na imagem de Anaximandro de Mileto, de um ilimitado originário – o ápeiron – do qual as coisas finitas e limitadas teriam se desprendido, para a ele retornar, “segundo a ordem do tempo”[7]. Isto para nada dizer da intuição ainda mais arcaica de Tales de Mileto a respeito da presença ordenadora de um principio originário – a arché – sobre todas as coisas que existem[8]. A própria fabulação atomista, desenvolvida posteriormente entre os gregos por Demócrito de Abdera e por Leucipo de Mileto, ainda que negasse a força originária de uma unidade absoluta, trouxe-nos a imagem de um absoluto sustentado em um principio de indeterminação, posto que tanto os corpos como o vazio resultariam do movimento errático de átomos invisíveis. A totalidade desses átomos, em todos os mundos possíveis, constitui uma adorável e anárquica versão do absoluto[9]

Fora de uma incursão pela história da filosofia, uma breve fenomenologia do absoluto poderia revelar outras modalidades também frequentes, entre as quais sobressaem as afirmações do absoluto como experiência religiosa e do absoluto como experiência na história. Ambas as versões do absoluto, para além dos operadores particulares a cada uma delas, têm como suporte a imagem de uma Grande Cadeia do Ser, na qual toda variação possível está arquetipicamente definida à partida. A imagem foi tratada por um dos grandes livros do século XX, The Great Chain of Being, do filósofo Arthur Lovejoy[10]. A virada hiper-historicista no campo da história das ideias, presente no contextualismo de Quentin Skinner, associada à moda da “história dos conceitos”, condenou Lovejoy à irrelevância, já que sua abordagem é marcadamente filosófica. Lovejoy quer nos fazer crer, com ótimos argumentos, na presença de unit-ideas – de implicit assumptions ou unconscious mental habits – fixadas em sistemas de pensamento e de representação do mundo distintos, vinculados a contextos históricos díspares.

O excessivo historicismo, sempre em busca do que singulariza cada sistema de representação, e do que o faz pregnante ao contexto originário que lhe daria sentido, perde de vista tais recorrências de substância, que se manifestam por meio do que Lovejoy designa por unit-ideas. O termo possui forte analogia com aquilo que os teóricos da metáfora designam ora como basic metaphors[11], ora como strong and vital metaphors[12].Jorge Luis Borges, em ensaio memorável, “La esfera de Pascal”, parece aderir à ideia de que os sistemas particulares de pensamento apoiam-se em metáforas ou ideias mais genéricas, quando sustenta que “quizá la historia universal es la historia de unas cuantas metáforas”[13] • Borges, a propósito, toma no ensaio citado a imagem da esfera do pensador medieval Alain de Lille como metáfora que configura uma forma própria de sensibilidade, com efeitos fundamentais na configuração da experiência. A imagem de Alain de Lille, na verdade, pode ser compreendida como uma das versões possíveis da intuição, ainda mais genérica, da Grande Cadeia do Ser: “Dios es una esfera inteligibile, cuyo centro está en todas las partes y la circunferencia en ninguna”[14].

Arthur Lovejoy, em The Great Chain of Being, traça-nos a história filosófica dessa megaimagem, desde seus tempos platônicos até o século XVII, com a teodiceia de Leibniz e sua imagem do mundo criado por Deus como o melhor dos mundos possíveis. A força da imagem reside nos efeitos de unidade que segrega. Tais efeitos, segundo Lovejoy, resultam da operação de três princípios, a saber: (i) princípio de plenitude; (ii) princípio da gradação contínua e (iii) princípio de expansividade e de autotranscendência do Bem.

O primeiro deles, o princípio da plenitude, constitui-se como base de representações do mundo que o apresentam como completo: não há lacunas na existência; este mundo, ao mesmo tempo em que é exaustivo, é o melhor dos mundos possíveis. Não há falhas e, por consequência, não há imperativos de suplementação: o mundo/ universo foi constituído por um operador de plenitude, um doador ontológico que lhe atribuiu o máximo de existência possível. Não há, pois, lugar e ocasião para a negatividade e para a sensibilidade lacunar. A gradação contínua, inscrita no segundo princípio, indica a presença, no interior da Cadeia, de uma hierarquia dos existentes, comandada por um deflagrador originário, que dá passagem ao que dele resulta, por meio de círculos sucessivos de existências derivadas. O atributo “realidade”, em seu sentido absoluto, é algo inscrito nessa potência originária que, por meio de efeitos de fertilização, poliniza o universo, criando ordens de existência derivadas. Por fim, à expansividade do Bem, posta pelo terceiro princípio, deve-se a presença de uma potência que fixa o sentido e a propensão natural de toda a Cadeia: é o próprio ordenamento que manifesta, por meio de um efeito estético, a sobre-eminência do Bem. Em outros termos, a ordem que vincula todas as coisas é, em si mesma, o atributo fulcral pelo qual o Bem se faz pregnante a toda experiência possível.

A Grande Cadeia do Ser impõe-se como gramática irrecusável do absoluto: trata-se de uma condição necessária para a configuração de intuições de absoluto. Da intuição do absoluto proporcionada pela experiência religiosa do cristianismo medieval, por exemplo, emerge uma ideia de futuro como escatologia, como repouso final do vir a ser, como lugar e momento no qual o tempo encontrará tanto solução quanto elucidação. A intuição do efêmero é desfeita na perspectiva dessa elucidação final. Já a imagem do absoluto como história releva, como forma secularizada da intuição originária da Grande Cadeia do Ser, torna-se disponível a partir do século XVIII, quando a hipótese do absoluto se apresenta como condição de elucidação do tempo histórico – e não apenas de Deus e da natureza. Tal extensão das propriedades do absoluto é fundante da imagem de um tempo presente em si mesmo incompleto, com a correspondente eleição do futuro como lugar – tópos – de elucidação de todo o trajeto e de afirmação de plenitude. Um tempo cuja precipitação deve cessar, uma vez atingido o télos do esclarecimento do trajeto: assim a Razão hegeliana ou o comunismo para Marx: em algum momento o tempo transmuta em repetição de um nec plus ultra, de um nada-de-melhor-pode-existir, de um estado com relação ao qual nada de superior e mais completo pode ser pensado.

Cabe menção, ainda que brevíssima, à contrafação escocesa da precipitação da Grande Cadeia do Ser sobre a experiência histórica. Adam Ferguson[15] e David Hume[16], cada um a seu modo, estabeleceram, também no século XVIII – precedidos nesse particular pelo genial Dictionnaire de Pierre Bayle -, as bases de uma historiografia cética e experimental[17]• O que disso resultou foi uma imagem de história atravessada pela indeterminação e pela força imparável dos “efeitos de composição”, cujos resultados não são prefiguráveis. Uma história que se constitui pela ação e não pelo desígnio? e cujo sentido é contemporâneo de si mesmo. Tal história não realiza desígnios e tampouco anda à procura de um término elucidativo. Sendo finita e lacunar, ela se apresenta como experimento aberto e sem projeção antecipável no futuro.

No quadro da filosofia do século XVIII, a mais poderosa máquina de guerra concebida para a refutação da intuição da cadeia do ser foi posta por David Hume, em seus Diálogos sobre a religião natural, nos quais a ideia de desígnio, como força motriz, tanto da natureza como da vida histórica e social, é posta sob forte reserva cética[18]. A intuição de uma ordem genérica seria tão somente a extrapolação de experimentos singulares e pontuais, nos quais o desígnio humano prefigura resultados controlados.

Assim, da observação dos efeitos da arte de um arquiteto na construção de uma casa, infere-se a operação onisciente e onipresente de um Arquiteto do Universo, ou de um mega princípio de fertilização causal, tal como o da Grande Cadeia do Ser, que presidiria os avatares do tempo[19].

O tema “o futuro já não é mais o que era” parece inscrever-se na perspectiva do absoluto como história. Com efeito, o enunciado é inteligível na medida em que se consegue dar sentido à imagem de um futuro elaborado como cenário finito, como algo diante do qual seríamos capazes de exercer um juízo de constatação: algo passível de ser representado como “o futuro”, tanto quanto sou capaz de representar um objeto exterior a mim e dado à percepção de todos. Uma das canções de Caetano Veloso, Um índio (1977), ilustra bem o ponto: em dado momento nela aparece a expressão “virá que eu vi”, como marcador inequívoco de certeza e afirmação antecipada de um princípio de realidade, a espera de que o passar do tempo instaure sua plena positividade[20]. Tal “constatividade” do futuro – a propriedade de coisas que podem ser constatadas – autoriza uma sentença como esta: “ontem eu tinha uma visão do futuro diversa da que tenho hoje”, fundada em algo que pode ser designado como uma abordagem situacional do futuro.

Tal abordagem tem como suporte a crença de que a história é o recipiente do futuro, da mesma forma que um bloco de mármore branco “continha” o David, de Michelangelo. O futuro residiria, portanto, em algum lugar na história, tanto como certeza quanto como possibilidade. Dizer que o futuro está na história, mais do que afirmá-lo como um dos modos do tempo, implica operar com uma filosofia da história para a qual o futuro, de algum modo, existe.

Não só existe, como é prefigurável por exercícios de simulação constituídos, por definição, fora da jurisdição, digamos, objetiva da vigência do tempo futuro, assim como do trajeto que a ele nos levará. A ideia, portanto, de um futuro-que-já-não-mais-é-como-foi – como oposto e simétrico do futuro-virá-que-eu-vi – diz respeito a um colapso nos sistemas de antecipações do futuro: de algum modo a feliz sucessão de imagens de futuro, que se apresentam como correções e/ ou superações dos presentes nos quais são elaboradas, teria se interrompido.

É possível que o que se apresente para nós seja tão somente uma experiência de invisibilidade do futuro. Tal “invisibilidade”, por sua vez, não pode ser sustentada a partir de alguma frustração com nossa experiência com o futuro (algo possível apenas nos termos do protocolo “virá que eu vi”). Ao contrário, é a experiência de perceber o futuro como invisível que requer inspeção, e tal inspeção exige uma arqueologia de nossos estados de espera. A espera é o operador necessário que nos ata ao futuro. Um nexo do qual não podemos abrir mão, já que o futuro é de modo inapelável o objeto de nossas expectativas de sentido. Se algo colapsa nas expectativas de futuro, o sujeito da espera não poderá sair incólume dessa falha. Não se poderá debitar o abismo das expectativas na conta da suposta exaustão das energias utópicas. Há que pôr sob foco a natureza desse operador, e dar passagem a uma arqueologia possível da espera.

Fernando Gil, em seu Tratado da evidência, bem definiu noção de “operador”. Trata-se de “um algoritmo susceptível de construir uma expressão nova a partir de expressões já formadas” e de “um dispositivo especifico de transformação”[21] Paulo Tunhas, em comentário inspirado ao Tratado da evidência, acrescentou às definições de Fernando Gil a ideia de que os operadores são “uma força de construção”[22]. Tanto enunciados filosóficos como movimentos epistêmicos do sujeito procedem por meio de operadores; estes, na verdade, podem ser percebidos como condutores de efeitos, como portadores práticos da potência das intuições e dos enunciados.

A noção cartesiana de cogito, por exemplo, pode ser tomada como um operador específico que produz efeitos tanto em nossa representação do que seja a mente como a do que seja a matéria extensa. Não basta, pois, que o cogito seja uma pura intuição: para que passe ao ato tem que se configurar como um operador. No plano propriamente epistêmico, interno aos circuitos que se dão no sujeito, a crença é um operador de verdade, assim como o são a convicção e a certeza. Em outros termos, trata-se da crença que, do interior do sujeito, opera e dá passagem a atos diversos e particulares de crenças, afetadas pelas circunstâncias do mundo. O mesmo se aplica às intuições particulares de certeza e de convicção, que exigem extratos epistêmicos mais fundos de acolhimento e sustentação. A indagação a respeito dos operadores de espera deve, então, percorrer duas vias distintas, que podem ser, respectivamente, definidas como (i) internalista e (ii) externalista; a saber:

  • a da atenção aos “algoritmos” epistêmicos – “forças de construção” fixados no sujeito, fundamentais para o que representemos como um animal em estado de espera;
  • a da detecção de “dispositivos específicos de transformação”, presentes em sistemas de representação e configuração da experiência com o tempo e com o futuro.

Trata-se de pensar o futuro como algo fixado em uma intuição de tempo, cujos operadores pertencem a circuitos epistêmicos do sujeito anteriores às circunstâncias do mundo. Uma abordagem epistêmica do faturo é, pois, o que se apresenta, distinta de uma abordagem situacional do futuro. Trata-se de cuidar da questão sujeito fixa a crença no futuro, a crença de que há um tempo futuro de saber o que no.

Suspeito que se apresente algo, por definição, indemonstrável e “in-provável”, mas é bem possível que os circuitos alucinatórios que marcam nossos estados de espera se deem a ver. Os passos seguintes deste ensaio procurarão explorar, pela ordem, as vertentes internalista e externalista da investigação a respeito de uma arqueologia da espera.

SEGUNDO MOVIMENTO: DO QUE NOS FAZ – EM NÓS MESMOS – ESPERAR

A ideia de tempo futuro, assim como sua vivência psicológica, resulta de um exercício de alucinação antecipatória, uma operação vinculada ao que se poderia designar como o modo da espera. Não há vivência do futuro – por definição alucinatória – que não esteja vinculada a estados de espera. É mesmo da natureza da alucinação específica que constitui desenhos de futuro a mobilização de disposições de espera. Em outros termos, a espera é constituinte da alucinação que nos projeta no futuro.

Desde já, uma imprecisão deve ser corrigida. Não há associação necessária entre esperar querer. Em notação ainda mais restrita, devo admitir, mesmo levando em conta que alucinações antecipatórias dão-se no modo da espera, a possibilidade de se dizer: “espero que o que ‘vejo’ no futuro não ocorra”. Devemos, pois, estabelecer uma distinção entre “espera” em sentido comum – ordinário – e “espera” como operador epistêmico, mais fundo. O primeiro sentido possui suporte semântico na sentença: “espero que isto nunca aconteça”. O segundo sentido está contido na ideia mais fundamental de que, quaisquer que sejam o conteúdo contingente e a direção da vontade, falar do futuro é vestígio da presença de uma crença básica a respeito da abertura de horizontes de possibilidades, não postas no tempo presente.

Lembramos do passado, vivemos o presente e esperamos o futuro. Lembrar, viver, esperar: os marcadores verbais estão aqui a indicar diferentes modalidades de experiência do sujeito com o tempo e com a história. Trata-se de um conjunto de verbos psicológicos, expressivos de um conjunto de ações internas ao sujeito. Seu modo mais vívido de expressão dá-se na inflexão da primeira pessoa: eu lembro, eu vivo, eu espero. Parece claro o vínculo entre formas expressivas na primeira pessoa e usufruto epistêmico de experiências de certeza e de convicção. Ainda que a direção do juízo possa implicar incerteza a respeito de algo, presente em sentenças do tipo “parece-me que talvez não seja o caso de x”, tratar-se-á de um falibilismo de ordem epistemológica: não estou seguro de que “x seja o caso”. Tal reserva cognitiva, contudo, não elimina o fato interno, de natureza epistêmica, de que para o sujeito é verdade que a ele o mundo parece incerto. Dito de outro modo, operadores epistemológicos de incerteza podem bem estar apoiados em operadores epistêmicos de certeza. Por essa via, pode-se bem perceber o quanto a incerteza de si é existencialmente devastadora[23].

É claro, desde já, que outros operadores verbais poderão estar à disposição, quando alucinamos o passado, o presente e o futuro. Contudo, “lembrar”, “viver” e “esperar” são suportes necessários para os muitos operadores verbais postos em uso quando lidamos com a divisão do tempo. Se, por exemplo, lamentarmos pelo passado que tivemos, tal ato de lamento exigirá como condição de possibilidade a operação da lembrança. Nesse sentido, lamentar será um atributo – ou um dos modos possíveis – de lembrar. Uma possível cisão entre lembrar e lamentar, presente em uma lamentação pelo esquecimento de algo, não faz senão pôr a lembrança como operador de acesso ao passado. Da mesma forma, se odiarmos o presente, odiamo-lo porque o vivemos. Mais uma vez, é clara a regra de implicação: é do ato de viver que se segue o sentimento de odiar: se vivo, sou capaz de odiar. Com relação ao futuro, se o temermos, isto se deverá a uma afetação de nosso espírito sustentada na operação básica da espera. Dir-se-á, neste caso, que o sentimento do medo se instalou em nossas esperanças e expectativas.

Lembrar, viver esperar aparecem pois como operadores necessários de vivências, respectivamente, do passado, do presente e do futuro. Penso, assim, ter indicado, de modo sumário, o quanto da relação com o tempo é marcado por modos específicos de alucinação, exprimidos por operado­ res verbais igualmente precisos. Mesmo quando a alucinação do futuro põe-se a serviço do desespero, o suporte epistêmico deste último é estabelecido pelo modo da espera. O desespero, nesta chave, é a espera em registro negativo. É, para pôr de outro modo, a espera cancelada, vivida por um sujeito para quem a espera é um marcador existencial inegociável. O desespero revela a espera em seu estado de pura negatividade.

O tema “o futuro não é mais o que era” parece sugerir uma trapaça para com a tripartição da experiência com o tempo que aqui adoto. Com efeito, não está ele – ao dizer que o futuro já não é como era – a convidar-nos a lembrar do futuro? Uma defesa possível dirá que se trata, nesse caso, mais do que mobilizar o futuro, de lembrar de um passado, de um tempo, no qual esperávamos um determinado futuro. Tal lembrança de um passado que continha um desenho de futuro constitui, por sua vez, um passo para demonstrar que o que hoje esperamos já não corresponde mais a tal futuro-passado, que nos conduziu até onde estamos.

Que se ponha, agora, sob inspeção esse sujeito que espera. Que seja submetido a uma arqueologia da espera, que possa revelar estratos epistêmicos presentes nos atos de espera e nas expectativas que o movem. Que se responda, enfim, à questão: o que é isto que espera?

TERCEIRO MOVIMENTO: DOS OPERADORES DA ESPERA E DA PRESUNÇÃO DE ESTABILIDADE

Se contemplarmos as relações que os humanos, como sujeitos de conhecimento, estabelecem com o mundo, relações nas quais um saber sobre o mundo é exercido, o sentido básico e ordinário da ideia de espera supõe a existência de um intervalo entre um instante determinado e sua causa final. Quando esperamos somos aristotélicos, por supormos que a rarefação e a incerteza dos estados de espera ganham concretude e elucidação quando o fim que se deseja e se anuncia acaba por se configurar.

É de perguntar qual seria o lugar do desespero nessa lógica epistêmica da espera. Desesperar significa, na mesma chave presente nos atos de espera, naufragar em uma experiência de mundo na qual a crença – ou seja, a certeza – na vigência de causas finais, ela mesma, colapsa. Sendo a causa final uma propriedade não natural do mundo – algo, portanto, que decorre de exclusiva atribuição humana de sentido -, o desespero tem parte com o tema da negatividade, pois ao não cancelar a espera como operador humano indelével, acaba por preenchê-la de modo negativo. Dir-se-á de um preenchimento por meio da imposição de um vazio, de uma supressão. Nesse sentido, o desespero é um dos modos possíveis da espera. Com efeito, faz todo o sentido imaginar que o desespero afete com maior impacto os que “investem” de modo mais intenso em atos de espera.

A lógica epistêmica da espera traz consigo uma expectativa forte de complementação: atos de espera põem em ação uma associação entre expectativa preenchimento[24]:

Pelo preenchimento de uma operação de conhecimento, um ato aparece como ligado àquilo que ele visa. O preenchimento situa-se na junção do operatório e do objectal, a operação culmina no estado de coisas que ela permite apreender e trazer à luz[25].

Ludwig Wittgenstein imaginava o preenchimento ao qual Fernando Gil faz menção como algo análogo à ocupação de uma forma côncava pela forma convexa correspondente, um ajustamento de um cilindro a uma câmara cilíndrica. O encaixe perfeito é o que se quer, como resultado do preenchimento[26]. Apesar da metáfora um tanto fisicalista, Wittgenstein pensou a relação entre expectativa e preenchimento como “relação interna” e estabelecida por uma “gramática”. Fernando Gil, por sua vez, abre seu ensaio sobre “Expectativa e preenchimento” afirmando que o par indicado no título “pertence à arqueologia da evidência”, já que é “uma estrutura arcaica da compreensão”. Dessa forma, um ato de constatação – um ato objetivante, na notação adotada por Edmund Husserl – constitui nada menos que o preenchimento de uma expectativa e é portador de um “sentimento de satisfação”[27].

O ponto que aqui pretendo sugerir é o de que o par referido – expectativa e preenchimento – situa-se também no campo de jurisdição de uma arqueologia da espera, situando-se, por esta via, em uma estrutura arcaica das intuições de tempo futuro. Pela passagem de um problema a outro – da evidência à espera, tomando esta última como coextensiva à expectativa -, o que se está a sugerir é a presença de uma associação, em nossos es­ tratos mais fundos, entre evidência espera. Assim como a evidência constitui um modelo originário para a inteligibilidade, a “espera-expectativa” situa-se como operador, igualmente originário, da intuição do tempo futuro, já que traz como implicação a necessidade do complemento, do que deve vir depois.

A espera, portanto, pode ser vista como uma disposição um tanto fideísta e como hipótese sobre o tempo. Mais do que isso: o caráter irremediavelmente hipotético do tempo futuro faz da espera um motor do tempo – um móvel, no sentido aristotélico do termo, do tempo; é aquilo que põe o tempo em movimento, tal como o vento o faz com o ar. Dizer que se trata de uma hipótese não é pouco. O sentido é o mesmo do indicado por Wittgenstein: “Uma hipótese é uma lei para a formação de proposições. Poder-se-ia dizer igualmente: uma hipótese é uma lei para a formação de expectativas”[28]

Mas, tudo isso diz respeito ainda a uma experiência com o tempo e com a extensão como conjunto de vivências que se dão, por assim dizer, fora do sujeito. Afinal, o que separa o instante de sua causa final é algo que poderia ser designado como um intervalo de expectativas, a ser preenchido por sinais que afetam o sujeito, como efeito de sua produtividade alucinatória de fixação de causas finais. A espera, portanto, põe em ação uma vontade – um ato objetivante – que se dirige para o exterior do sujeito. Ainda que o usufruto final daquilo que se espera reverta para o âmbito da vivência introspectiva, privada e intransitiva do sujeito, a “conquista” daquilo que a vontade fixou na espera provém de algo que o sujeito pensa como existindo fora de si mesmo. Já se verá o quanto o suporte dessa expectativa exige uma crença natural na estabilidade e na regularidade do mundo.
Os atos de espera, contudo, não se limitam ao exterior, àquilo que o sujeito imagina existir fora de si e para o qual dirige sua vontade. Dito de outro modo, em forma de pergunta: se a espera é o móvel do tempo, qual o motor que move tal móvel? É ela, a espera, ativada apenas por imagens e objetos provenientes de algo que o sujeito fixa em um exterior qualquer – não importa se “realmente existente” – ou repousa sobre estratos epistêmicos anteriores à fixação dos, digamos, objetos de espera? A suposição que pretendo explorar é a de que a espera, assim como a expectativa, a esperança, a intenção, a crença, o voto – este no sentido de Bertrand Russell, para quem uma “constatação” é expressão de um voto e de um desejo – constituem, na expressão utilizada por Fernando Gil, “atitudes proposicionais” e são figuras que bem correspondem àquilo que Edmund Husserl determina como “atos não objetivantes”.

Na perspectiva adotada por Husserl, os atos intencionais da consciência combinam “atos objetivantes” e “atos não objetivantes”[29]. Os primeiros dizem respeito às representações e à consciência de objetos, implicando, dessa forma, uma relação do sujeito com o que lhe é ou parece ser-lhe exterior. Os atos não objetivantes são atos categoriais originários e preenchedores de significação, tais como a alegria, a aspiração, o prazer estético, o desejo, a volição etc. A série possui afinidade com a indicada por Wittgenstein: além da expectativa, a intenção, a esperança, a crença, o voto. Pode-se dizer que atos não objetivantes, ou atitudes proposicionais, são, em si mesmos, atos com implicações práticas, constituidores da vontade, ainda que seus conteúdos contingentes sejam pautados pelo exterior. Trata-se, sobretudo, de uma dimensão formal em ação, e não de uma reserva internalista intocada pelo mundo exterior e sempre idêntica a si mesma. Nesse sentido, as atitudes proposicionais e os atos não objetivantes são, a um só tempo, elementos ativos e vazios de significado.

O sujeito capturado pela expectativa – ou espera – por um determinado conteúdo de mundo, antes de ser sociologicamente configurado como portador de uma esperança específica, é um sujeito dotado do atributo genérico de portar expectativas. Há que distinguir, pois, o que releva da história e das ciências sociais, que se ocupam de saber como os conteúdos são possíveis, e o que pode revelar uma inspeção que cuide dos estratos epistêmicos “arcaicos” da espera, como dimensão epistêmica do sujeito. Tal inspeção pode tomar a forma de uma “gramática das expectativas”, se, com Wittgenstein, supusermos que o preenchimento de expectativas dá-se sob a forma de “operações gramaticais”. Pode dar, ainda, ensejo a uma investigação de cariz metafísico, voltada para a compreensão filosófica dos “estratos arcaicos” indicados por Fernando Gil.

Os nexos entre expectativa/espera e preenchimento pressupõem a presença de um fundo – de uma reserva de permanência – constituído por regularidades. O ponto foi, mais uma vez, posto de modo claro por Fernando Gil: “Toda a expectativa e toda a decepção de expectativa se perfilam contra regularidades”[30]. O argumento associa-se ao desenvolvido por Wittgenstein, em Da certeza: as regularidades constituem um “pano de fundo”, um Hintergrund que “herdei, sobre cujo fundo eu distingo entre Verdadeiro e Falso”[31]. O “pano de fundo” sustenta-se, por sua vez, em conjuntos de “verdades” de sistemas de proposição e de “sistemas coletivos de referência”, designados por Wittgenstein como Weltbilder – algo aproximado a “imagens de mundos”, tal como na perspectiva construtivista desenvolvida posteriormente por Nelson Goodman. No comentário de Van Wright a Wittgenstein, o Weltbild é, antes de tudo, um pré-conhecimento[32] •

A introdução do tema do “pano de fundo” e dos “sistemas de referência” parece convidar e abrigar hipóteses externalistas. Com efeito, a ideia de “herança” põe em ação os circuitos da socialização que, de modo inegável, afetam as estruturas de expectativas e as diversas modalidades da espera. No entanto, Wittgenstein, ainda em Da certeza, afasta a hipótese externalista:

Mas não será a experiência que nos ensina a fazer juízos desta maneira, isto é, que é correto julgar assim? Mas como é que a experiência nos ensina, então? É possível que nós consigamos isso através da experiência, mas a experiência não nos ensina a conseguir seja o que for da experiência. Se é o fundamento para nós julgarmos assim (e não apenas a causa), continuamos sem ter fundamento para encarar isso, por sua vez, como fundamento.

No parágrafo seguinte – § 131 – o ponto é ainda mais forte:

Não, a experiência não é o fundamento para o nosso jogo de juízos. Assim como também não o é o seu êxito notável.

Do que se trata, então? Não estando fundado na experiência, sobre qual fundo está assentado o Weltbild? Não sendo de natureza sociológica, o que o faria dependente do fato da relatividade cultural, o Weltbild assenta-se sobre “fatos muito gerais da natureza […] aqueles que, por causa de sua generalidade, quase sempre não nos chamam a atenção”[33].

Na seção 325 das Investigações filosóficas, “o fenômeno da certeza” aparece como dependente de “um sistema de hipóteses, de leis naturais”[34].

Fernando Gil indica, ainda, que o “pré-conhecimento dos fatos gerais da natureza e os Weltbilder” materializam-se por meio de “sistemas de expectativas”. Quer isto dizer que o fundo de todas essas operações está assentado em uma “presunção de uniformidade”: “Toda expectativa assenta nessa hipótese de constância”[35]. O argumento toma sua forma mais acabada na seguinte passagem das Notas filosóficas de Wittgenstein:

A nossa expectativa antecipa o acontecimento. Neste sentido, ela faz um modelo de acontecimento. Mas nós não podemos fazer um modelo de um fato senão no mundo em que vivemos – e é indiferente saber se ele é verdadeiro ou falso[36].

Fernando Gil resume belamente o ponto ao dizer que “os fatos da natureza, o mundo em que vivemos são o impensado da expectativa, a montante dela”. Seja por imposições gramaticais, ou por implicações de ordem psicológica, tal impensado sustenta-se em uma hipótese de uniformidade, pela qual as expectativas exigem uma presunção de estabilidade. Há, pois, uma arqueologia da espera sustentada em uma presunção de uniformidade, como suporte arcaico dos diversos sistemas de expectativas. É tal sistema natural que comporta a pretensão alucinatória de que a expectativa possa antecipar o acontecimento. O caráter natural dessa expectativa/ espera é, contudo, recusado por manifestações que encontramos no campo da arte contemporânea. Assim, nos dirigimos para a vertente externalista, e reencontramos a questão: que operadores presentes no mundo da experiência podem implicar uma interrupção dos circuitos habituais entre expectativa e preenchimento ou, o que dá no mesmo, a própria ação dos operadores de espera? Não se trata de buscar a fonte determinante das experiências de colapso das expectativas, mas de tão somente indicar, de modo abertamente experimental, um fator dotado de forte ressonância cultural na contemporaneidade e sobre as estruturas de nossa sensibilidade diante do mundo.

QUARTO MOVIMENTO: DEFLAÇÃO DA EXPECTATIVA

A retirada do futuro do horizonte de nossas expectativas é uma experiência fincada de modo indelével na arte contemporânea, por meio da supressão da referencialidade. Com efeito, é o tema maior da supressão do sentido que se nos apresenta; um motivo comum das vanguardas estéticas no início do século XX, nas quais a experiência da verdade anda sempre ao par com opacidade, incognoscibilidade irrepresentabilidade. Em outros termos, a experiência da arte contemporânea encerra efeitos de verdade que, em função mesmo de seu caráter autorreferido, apresentam-se como opacos, não refletíveis, intransitivos e, sobretudo, constituídos fora dos marcos da referencialidade. O que se está aqui a sugerir é que, na observação estética pré-contemporânea, a referencialidade constitui o pano de fundo sobre o qual expectativa e preenchimento complementam-se de modo não problemático, quer pela satisfação pelo reconhecimento do efeito mimético, quer pela decepção por sua falha. De qualquer modo, referencialidade e estrutura intacta de expectativas que prefiguram seu preenchimento parecem andar ao par. O que tenho em mente, na verdade, é o efeito gerado pelo genial Retrato de Federico de Montefeltro, duque de Urbino, pintado por Piero della Francesca, entre 1465 e 1478.

Que fique claro que não se trata de dizer que Piero pintou o mundo tal como ele era. Na verdade, Federico tem algum comando sobre a mímese de si mesmo, ao apresentar-se do modo que se apresentou, com seu inacreditável nariz serrado na altura dos olhos, para lhe facilitar a visão durante a caça. O fato é que a imagem de Piero vem bem acolhida por aquilo que poderia ser considerado como imagens de contexto bem definidas, tanto na figura do duque como também na paisagem e na sua posição na economia pictórica. A referencialidade à qual aludo não diz respeito a algo que se passe entre imagem e mundo, mas entre os componentes da obra. Nesse sentido, o quadro de Piero della Francesca é modelar: representa tanto o personagem como o seu contexto. Não está aqui uma clara indicação de que transformação de algo em contexto resulta necessariamente de um ato de representação?

De qualquer modo, Piero – de um modo no qual já não se pode distinguir o que é contexto e o que é contextualizado – proporciona um “contexto” bem a serviço de seu retratado. É esse o juízo que podemos encontrar em obra clássica de Roberto Longhi, ao dizer que Piero constrói Federico de Montefeltro, “unitariamente com aquele seu barrete ducal como o torreão de um castelo inexpugnável, alçando-se tão acima do horizonte”[37].

A paisagem encontra-se, assim, em uma “posição de subordinação”[38]:

É como se ele [Piero] visasse à declaração explícita de que as montanhas de propriedade de Federico se estendem a perder de vista, fazendo-se igualmente evidente que o duque domina terras e águas[39].

Retrato de Federico de Montefeltro pode, então, ser percebido como um marcador de referencialidade, segundo o qual o conjunto dos elementos pictóricos informa-nos algo a respeito da imagem. De modo mais preciso, a linguagem dos elementos de contexto dá passagem a mecanismos alucinatórios pelos quais nós – os espectadores – trazemos o mundo para a obra. Isso parece mesmo ser básico: nem mesmo os naturalistas trazem o mundo para suas obras; o que fazem é praticar uma linguagem pictórica que nos faz supor que o que se vê tem parte com a experiência do mundo. Meu argumento é que a quebra dessa possibilidade alucinatória tem efeito sobre a estrutura de nossas expectativas. Para dar suporte à suposição consideremos, de modo breve e alusivo, quatro experimentos de antirreferencialidade: um retrato de autoria de Alberto Giacometti, exibido na exposição dedicada ao pintor, na Pinacoteca de São Paulo, em abril de 2012, o quadro de Kazimir Malevich, Quadrado negro sobre fundo branco; a defesa da abstração por parte dos críticos de arte norte-americanos Alfred Barr Jr. e Clement Greenberg, na década de 1930 e, por fim, excertos de Molloy, de Samuel Beckett, de 1951 (versão original francesa) e 1955 (versão em inglês). Vamos, pois, pela ordem.

  1. Giacometti:

Em 1954, Sartre disse o seguinte, a propósito de Giacometti:

Como pintar o vazio? Parece que ninguém tentou isso antes de Giacometti. Há quinhentos anos os quadros são abarrotados. O universo é neles inserido à força. Giacometti começa por expulsar o mundo de suas telas…[40]

Na exposição dedicada a Alberto Giacometti, sediada na Pinacoteca de São Paulo, o comentário de Sartre ladeava um retrato no qual o personagem se fazia cercar do que poderia ser designado como um contexto negativo ou suprimido. Daí a percepção sartriana, de que Giacometti teria conseguido fazer do vazio um invólucro do que se mostra em suas obras, tendo como efeito a “expulsão do mundo”.

Se Sartre está certo – e desde já digo que está, pois estabeleceu um padrão possível de sensibilidade estética que preside nossa percepção dos retratos pintados por Giacometti -, o artista suíço ocupar-se-ia da representação da negatividade. Giacometti fixa suas figuras no vazio; não apenas possuem elas fisionomia indistinta – em trapaça aberta com o retratismo -, mas acabam submetidas ao envolvimento do vazio. Um vazio que dá sentido à falta de sentido e, daí, à impressão da falta de sentido. É perturbadora a experiência do vazio do fundamento, da negatividade. Ela atinge de modo impiedoso os limites da narrativa histórica e política para lidar com a negatividade, com o fenômeno da ausência. Ambas as narrativas – a histórica e a política – procedem de modo necessário por meio de formas de argumentação sustentadas na causalidade. O desafio da estética da negatividade reside em pôr a seguinte questão: como pensar – e argumentar a respeito – a causalidade, se um dos termos da relação de causação é necessariamente vazio? Em outros termos, mais diretos, que sentido resulta da falta de sentido? De um sentido que se revela pela ostensão de sua falta absoluta. A genialidade de Giacometti – e de outros na mesma chave, tais como Francis Bacon – resulta da utilização de ele­ mentos de referencialidade, para, em uma trapaça com nossos modos usuais de percepção e de recepção, eliminar as “informações de contexto”, apresentando-nos, em seu lugar, o vazio.

O vazio ao ocupar a posição-chave do “pano de fundo”, no lugar da regularidade e dos pressupostos de estabilidade e de sentido, perturba os circuitos ordinários da tensão entre expectativa e preenchimento. O contraste com o circuito completo da expectativa e do preenchimento proporcionado pelo quadro de Piero della Francesca é imenso. É claro que, diante de Giacometti, trata-se de um experimento estético, mas não se pode descurar do fato de que a sensibilidade estética é constitutiva dos nossos modos mais básicos de cognição e alucinação

  1. Malevich:

Tomemos agora, de modo sumário e em uma terceira ordem de exemplos, o caso do suprematismo russo, através de sua figura maior, Kazimir Malevich. Para o suprematista, o máximo de verdade – se assim podemos dizer – implica a maior densidade possível de expressão da cor: um quadrado negro no qual se encerra uma representação suprema. Com efeito, se pinturas são composições que combinam cores, a máxima concentração de cores e a combinatória de todos os arranjos possíveis só pode ter a forma de um quadrado negro, ainda que o quadrado negro seja índice de si mesmo.

Da mesma forma, o suprematismo implica a reunião de todos os pontos de observação possíveis. Todos os modos de observação – ângulos, focos, destaques etc. – colapsam em uma soma de todos eles; de todos os modos, eis um quadro negro. José Gil bem chama a atenção a respeito desse ponto: o suprematismo, em geral, e o Quadrado negro sobre fundo branco, em particular, implica “mudança do ponto de vista do pintor”; não há “orientação da representação”, “alto, baixo, esquerda, direita e fundo, frente de uma perspectiva”. Ademais, trata-se, ainda, da “abolição da linha da terra”. Sobre isso, disse o próprio Malevich:

Destruí o anel do horizonte e saí do círculo no qual estão incluídos o pintor e as formas da natureza[…] saí para o branco, segui-me e vogai, camaradas aviadores do abismo, estabelecei os semáforos do suprematismo […] o abismo branco, o infinito estão diante de vós[41].

Mas, pode-se dizer, com grande plausibilidade, que o suprematismo não abriu mão do sentido extrínseco da obra, pois teria mostrado o quanto podemos derivar do seu vislumbre: uma solução gráfica para um problema filosófico. Não deixa de haver ironia nessa revelação da precipitação em um quadrado da totalidade de todos os sentidos possíveis.

Consideremos o experimento radical de Malevich, a expressão suprema da verdade, a violar as formas ordinárias de representação: ”A superfície plana que forma um quadrado foi o cepo de onde saiu o suprematismo, o novo realismo colorido enquanto criação não figurativa”[42].

Segundo a fina leitura de José Gil, o projeto de Malevich visava “chegar a uma realização de formas que nada devessem ao mimetismo das formas naturais, que nada devessem à luz do sol”[43]. Depois de intensa pesquisa formal anterior, condensada no que ele mesmo definiu como “alogismo”, no qual ocorre uma “sobrecarga de figuras e de formas, quase atafulhadas”, aparece um “simples quadrado negro”. Ainda de acordo com José Gil, a descoberta do quadrado faz simplificar, permite começar “a partir do zero”[44]. De fato, com o Quadrado negro, posto sobre uma superfície branca, Malevich pode dizer: ”Atingi o zero das formas e fui até o abismo branco”[45].

A descoberta de Malevich é por ele vivida de modo perturbador. Vê-se bem o porquê: ”.A representação figurativa traz para o quadro qualquer coisa do referente, não é simplesmente uma imitação, uma cópia, não, há qualquer coisa da própria natureza do objeto real que passa para o quadro”[46].

Malevich, ao “apagar a representação”, acabou por “apagar também o referente”, o que teria como corolário a impossibilidade do próprio ato de pintar. É este mesmo o sentido da “vertigem suscitada e contida no Quadrado negro”[47]José Gil exonera, de modo brilhante, Malevich desse impasse: “Não há[ …] total impossibilidade da pintura porque Malevich criou uma linguagem a partir desse quadrado que começa por ser uma espécie de buraco negro que engole e absorve todas as formas da natureza”[48].

O comentário genial indica o quanto referencialidade e experiência estética se dissociam: o Quadrado de Malevich é “o buraco negro que absorveu o mundo inteiro […] ali desapareceram todas as formas”.

E se nossos panos de fundo, que com Giacometti acolheram o vazio, agora se configurassem como buracos negros? Essa possiblidade, dada no campo da arte, não possui garantias de insulamento: nada impede que possa se apresentar como parte do repertório que configura nossas estruturas de expectativas, em termos mais gerais.

  1. Alfred Barr Jr. e Clement Greenberg:

Se Malevich pôs toda a natureza no Quadrado negro sobre fundo branco, coube aos expressionistas abstratos norte-americanos – uma linhagem que terá em Jackson Pollock um de seus principais expoentes – afirmar sua obsolescência. Em um notável texto, que pode ser considerado como o primeiro acolhimento no plano da Estética daquilo que os abstracionistas já estavam a fazer, Alfred Barr Jr. estabeleceu os termos da recusa ao modelo tradicional da referencialidade. A peça em questão foi publicada como apresentação do catálogo da exposição Cubism and Abstract Art, havida no Museum of Modern Art (MoMA), em Nova York, em 1936. Um resumo do argumento de Alfred Barr Jr. pode ser encontrado na seguinte passagem:

A conquista pictórica do mundo visual externo foi completada e refinada muitas vezes e de diversos modos durante os últimos quinhentos anos. Os artistas mais destemidos e originais ficaram cada vez mais entediados com o ato de imprimir fatos. Por meio de um poderoso impulso comum, foram estimulados a abandonar a imitação da aparência natural[49].

O modo da referencialidade apresenta-se aqui como abrigo do “imprimir de fatos”. A expressão bem diz da ambição mimética de fazer com que, ao olhar para as telas, passemos para o mundo. Longe dessa contaminação tediosa, os abstratos fazem-nos permanecer na tela, já que a semelhança com os objetos destrói os “valores da arte” e representa um “empobrecimento da pintura”. Os valores dizem respeito à precedência da forma: “a painting […] is worth looking at primarly because it presents a composition of organizarion of color, line, light and shade”. Aos que percebem no abandono dos objetos uma decisão com implicações empobrecedoras, Barr Jr. retruca: “in his art the abstract artist prefers impoverishment to adulteration”[50].

Clement Greenberg, três anos mais tarde, em um ensaio igualmente luminoso – “Avant-garde and Kitsch”-, publicado originalmente na revista Partisan Review (1939), acompanha os termos do manifesto de Barr Jr., acrescentando seu próprio tempero: “Content is to be dissolved so completely into form that the work of art or literature cannot be reduced on whole or in part to anything not itself”[51].

O juízo de Greenberg não incide apenas sobre a arte norte-americana de seu tempo. Abrange parte expressiva da vanguarda europeia. Sob sua inspeção estão, segundo diz, Picasso, Braque, Mondrian, Miró, Kandinsky, Brancusi, Klee, Matisse e Cézanne. Todos teriam em comum o fato de que “drive their chief inspiration from the medium they work in”[52].

  1. Molloy (Samuel Beckett):

Do texto beckettiano Molloy, de 1951 e 1955, destaquemos duas passagens:

Furtei de Lousse uma pequena prataria, (e em meio a ela estavam) pequenos objetos cuja utilidade não compreendi, mas que pareciam ter algum valor. Entre estes, havia um que me deixa apavorado de tempos em tempo[53].

Penso ter ainda este estranho instrumento, está em algum lugar, pois nunca consegui reunir forças para vendê-lo, mesmo em momentos de total desespero, já que nunca entendi qual seria sua função, nem mesmo cogitei qualquer hipótese sobre o assunto[54].

Do que se trata? Que experiência é esta? Encontramos a resposta em outro texto de Beckett, sobre Proust (1931), por meio da defesa de uma doutrina na qual há uma conexão necessária entre percepção de “uniqueness” e “encantamento”, proporcionada pela ignorância. Vejamos:

Mas quando o objeto é percebido como específico e único, e não apenas como membro de uma família, quando ele aparece independente de qualquer noção geral e retirado da sanidade de um elo causal, isolado e inexplicável à luz da ignorância, é só aí que ele pode causar encantamento[55].

Há aqui posta uma relação entre ignorância e encantamento: a percepção do objeto sem nenhuma referência à ordem de expectativas que ele pode suscitar pela sua função: não é daí que extraio o seu sentido, mas de uma experiência da qual ocorre pura constatação. Uma constatação a um só tempo sem memória e sem projeção. Uma constatação cuja forma de alucinação específica implica dizer que “isto é isto”. Bertrand Russell definiu uma “constatação” de como algo que constitui o preenchimento de uma expectativa, assim como a realização de um voto ou de um desejo. Na mesma linha, Moritz Schlick, um dos fundadores do positivismo lógico e do Círculo de Viena, onde foi assassinado em 1936 pelos nazistas locais, complementa o juízo de Russell: constatações são respostas às expectativas nas quais uma hipótese se materializa. O experimento Molloy-Beckett apresenta, ao contrário, a possibilidade de constatações sem expectativas. Constatações que, por estarem livres do regime de “sanidade” das regras usuais de causalidade, procedem ao encantamento. O que isso contraria? Isso nega a estrutura mais “arcaica” de nossa compreensão quando lidamos com o futuro, já que suprime o regime da causalidade como modo de inteligibilidade e de antecipação do mundo. Neste sentido, Molloy, assim como Esperando Godot e outros textos essenciais de Samuel Beckett, são experimentos futureless, sem futuro. O que os faz experimentos radicais é o fato de que falam da supressão do sentido e do futuro para dentro de nós. A suposição é a de que a experiência com o futuro, não sendo ela da ordem da experiência tout court, já que não há como ter uma relação externalista com o futuro, é a de que ela existe dentro do sujeito mesmo. É importante considerar os operadores epistêmicos aí presentes, para melhor entender a escala da subversão proporcionada por autores como Beckett e Pirandello[56]: não será essa a modalidade de experimentos com o futuro que o presente nos proporciona?

NOTA FINAL: O ABISMO DA ESPERA

Ao fim da apresentação dos quatro casos de ruína da referencialidade e, por extensão, de congelamento das expectativas, chegamos ao seguinte quadro:

QUADRO GERAL DE DEFLAÇÃO DOS OPERADORES DE ESPERA

Giacometti /Sartre “Trazer o vazio” para o quadro “Expulsar o mundo das telas”
Malevich “Um buraco negro que absorve o mundo inteiro” ”.Abismo das formas”
Alfred Barr Jr. Não mais “imprimir fatos” nas telas Melhor empobrecer que adulterar
Clement Greenberg Dissolver o conteúdo na forma
Molloy-Beckett Isolamento, inexplicabilidade, ignorância e

afastamento da “sanidade da causa” como fontes de encantamento diante dos objetos

O quadro não está aqui a serviço de um elogio nostálgico da arte mimética, ou de alguma nostalgia pela referencialidade. Trata-se tão somente de indicar o quanto a sensibilidade estética fundada nos aspectos ali indicados traz consigo um padrão epistêmico próprio para lidar com as relações entre expectativa/ espera e preenchimento. Ainda que, como sustentou Wittgenstein, a expectativa crie um modelo para o acontecimento, isso não quer dizer que ambos sejam idênticos, o que seria absurdo. Toda expectativa é uma antecipação – uma hipótese a respeito do tempo. As condições de preenchimento provêm do que a ela se soma, tal como a superfície convexa faz sobre a superfície côncava, sendo ambas, portanto, distintas. A perfeição do encaixe deve-se à complementação entre partes distintas em substância e na ordem do tempo. Mesmo que a expectativa antecipe o acontecimento, este exerce sobre ela um efeito de suplementação, não sendo, pois, mera repetição. Tudo dependerá, por certo, da extensão do hiato entre ambos, mas a presença de algum hiato é condição necessária para que o acontecimento acrescente algo à expectativa. Tal é a condição necessária para que o sujeito perceba o futuro como ocasião para suplementações da experiência. Para tal, a estrutura da expectativa deverá estar ajustada ao desenho de acontecimento que se quer, para que sirva, tal como na cláusula de Wittgenstein, como modelo do futuro.

Os cinco exemplos selecionados, e sistematizados no quadro dos deflatores, podem ser vistos como refutações do princípio do encaixe, do ajuste das formas côncava e convexa. Tal ajuste, bem disse Fernando Gil, esteve, enquanto durou, a serviço de um sentimento de inteligibilidade. Não é difícil entender que só se pode esperar algo do futuro – a não ser por irracionalismo fideísta e pura aposta – senão segundo a lógica do sentimento de inteligibilidade. Um dos aspectos mais importantes da arte contemporânea é o da presença de uma atitude cética diante da possibilidade mesma de circuitos de inteligibilidade[57]. Não haveria entre as experiências dos abismos da referencialidade, da inteligibilidade e da espera circuitos de alimentação recíproca?

Não há como responder assertivamente, por certo. Por hora, suprimamos apenas as interrogações no aforismo de Wittgenstein, deixado para trás em uma das epígrafes deste ensaio. Digamos simplesmente: O arquétipo da insatisfação é o espaço vazio. Não há, simplesmente, futuro no espaço vazio. Somos, ao fim e ao cabo, contemporâneos de nós mesmos e de nossas sensações.

Notas

  1. Cf. António Marques, O interior: linguagem em mente em Wittgenstein, Lisboa: Gulbenkian, 2003 
  2. O ponto foi destacado por Ivan Dominguez, já na abertura do primeiro capítulo (“A experiência do tempo e da história”) de O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história, São Paulo: Iluminuras, 1996. 
  3. Idem, ibidem, p. 18. 
  4. Cf. Krysztof Pomian, “Tempo/temporalidade”, Enciclopédia Einaudi, 29. Tempo/temporalidade, Lisboa: Einaudi/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, pp. 11-91. 
  5. “A concentração do infinito no indivíduo precipita a razão na existência”. Cf. Fernando Gil, A convicção, Porto: Campo das Letras, 2003, p. 138. 
  6. Cf. Francis Macdonald Comford, Plato’s cosmology: The Timaeus of Plato, Londres: Routledge & Kegan Paul, 1952. 
  7. Citação do fragmento de Anaximandro, tal como feita por Friedrich Nietzsche, em A Filosofia na época trágica dos gregos § 4, com tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, apud José Cavalcante de Souza (org.), Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários, São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores) 
  8. Ver o inspirado comentário de Nietzsche a respeito de Tales de Mileto, in José Cavalcante de Souza, op. cit., pp. 10-12. 
  9. Para a fabulação atomista, ver o incontornável comentário de Charles Mugler, Deux thèmes de la cosmologie grecque: devenir cyclique et pluralité des mondes, Paris: Librairie C. Klincksieck, 1953, esp. Cap. IV, “La pluralité des mondes: substitution d’une représentation cosmologique nouvelle au mythe du retour éternel”, pp. 154-185. 
  10. Cf. a obra matricial de Arthur Lovejoy, The Great Chain of Being: a study of the history of an idea, Cambridge/Londres: Harvard University Press, 1936. 
  11. Cf. Mark Turner, Death is the mother of beauty: mind, metaphor and criticism, Chicago: The Chicago University Press, 1987. 
  12. Cf. Max Black, “More about metaphor”, Metaphors and thought, Cambridge: Cambridge University Press, 1979. 
  13. Cf Jorge Luis Borges, “La esfera de Pascal”, Otras inquisidones, Buenos Aires: EMECÉ, 1970, p. 13. 
  14. Apud Jorge Luis Borges, “La Esfera de Pascal”, op. cit., p. 14. Caberá a Pascal, logo a ele, uma versão naturalista e secularizada da imagem de Alain de Lille: “La naturaleza es una esfera infinita, cuyo centro está en todas partes y la circunferencia en ninguna”. Idem, ibidem, p. 17. 
  15. Ver Adam Ferguson, An essay on the history of civil society, Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 
  16. Ver David Hume, The history of England, Indianápolis: The Liberty Fund, 1983. Ver também o ensaio clássico de Richard Popkin, “Hume: philosophical versus prophetic historian”, David Hume: many-sided genius, Norman: University of Oklahoma Press, 1976, pp. 83-96. 
  17. A respeito de Pierre Bayle, ver a excelente seleção feita por Fernando Bar. ln: Pierre Bayle, Diccionario Histórico y Crítico (Seleción), seleção, tradução, prólogo e notas de Fernando Bahr, Buenos Aires: El Cuenco de Plata/Hojas dei Arca, 2000. Comentário primoroso sobre Bayle pode ser encontrado em Gianni Paganini, Analisi della fede critica della ragione nella filosofia di Pierre Bayle, Florença: La Nuova Italia, 1980. Eu mesmo me ocupei de Bayle em dois ensaios: “Montaigne’s and Bayle’s variations: the philosophical form of skeptidsm in politics”, Skepticism in the Modern Age, Leiden: Brill, 2009, pp. 211- 230, e “O experimento Bayle: forma filosófica, ceticismo, crença e configuração do mundo humano”, Kriterion 50 (120), 2009, pp. 461-475. 
  18. Ver David Hume, Diálogos sobre a religião natural, São Paulo: Martins Fontes, 1992. 
  19. Cf. Renato Lessa, “David Hmne, religion, and human accomplishments: Whose design?”, Hume et la religion: nouvelles perspectives, nouveaux enjeux, Hildesheim, Zurique, Nova York: George Olms Verlag, 2013. 
  20. A canção Um índio foi lançada em 1977, no álbum Bicho (faixa 5). 
  21. Cf. Fernando Gil, Tratado da evidência, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, § 141, p. 220. 
  22. Cf. Paulo Tunhas, “Tomai a evidência a sério”, Modos da Evidência, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 347. 
  23. Para uma análise do experimento radical da incerteza de si, ver o extraordinário ensaio de Fernando Gil a respeito de Sá de Miranda, “As inevidências do eu”, Viagens do olhar, Porto: Campo das Letras, 1998, e, também – em chave menor-, Renato Lessa, “Crença, descrença de si, evidência”, Mutações – A invenção das crenças, São Paulo: Edições Sesc SP, 2011, pp. 343-376. 
  24. A principal referência para este segmento do texto é o ensaio de Fernando Gil, “Expectativa e preenchimento”, Modos da evidência, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, pp. 65-77. 
  25. Cf. Fernando Gil, “O sentimento de inteligibilidade”, Modos da evidência, op. cit., p. 122. Ver também idem, “A prova da profecia: a cópia antes do original”, Viagens do olhar, op. cit, pp. 413-450. 
  26. A analogia aparece em diversas passagens de Wittgenstein, entre as quais a proposição 43, Parte 1 das Investigações filosóficas, São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores). 
  27. Cf. Fernando Gil, “Expectativa e preenchimento”, op. cit., p. 65. 
  28. Cf. Ludwig Wittgenstein. Notas filosóficas, § 228. apud Fernando Gil, “Expectativa e Preenchimento”, op. cit., p. 74. 
  29. Cf. Edmund Husserl, Investigações lógicas, São Paulo: Abril Cultural, 1975 (Coleção Os Pensadores). Para uma boa apresentação do quadro husserliano dos atos intencionais de consciência, ver o ótimo livro de André de Muralt. A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico, São Paulo: Editora 34, 1998, p. 170. 
  30. Cf. Fernando Gil, “Expectativa e preenchimento, op. cit., p. 66. 
  31. Cf. Ludwig Wittgenstein, Da Certeza, § 94, apud Fernando Gil, “Expectativa …”, op. cit., p 66, em tradução do próprio Fernando Gil. Na tradução portuguesa o parágrafo aparece assim: “[…] eu não obtive a minha imagem do mundo por me ter convencido da sua justeza, nem a mantenho porque me convenci da sua justeza. Pelo contrário, é o quadro de referências herdado que me faz distinguir o verdadeiro do falso”. Cf. Ludwig Wittgenstein, Da certeza, trad. Maria Elisa Costa, Lisboa: Edições 70, 2000, § 94, p. 41. 
  32. Cf. G. Van Wright, Wittgenstein, Oxford: Oxford University Press, 1982, p. 49. 
  33. Cf. Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas, São Paulo: Editora Abril, 1979, Parte 11, 12, p. 221 (Coleção Os Pensadores). 
  34. Idem, ibidem, p. 111. 
  35. Cf. Fernando Gil, “Expectativa …”, op. cit., p. 67. 
  36. Cf. Ludwig Wittgenstein, Notas filosóficas, seção 34, apud Fernando Gil, “Expectativa…”, op. cit., p. 67. 
  37. Cf. Roberto Longhi, Piero della Francesca, São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 81. 
  38. Idem, ibidem, p. 82. 
  39. Idem, ibidem, p. 83. 
  40. Texto de Jean-Paul Sartre exibido na exposição sobre Alberto Giacometti, Pinacoteca de São Paulo, 2012, com curadoria de Véronique Wisesinger. 
  41. Cf. Kasimir Malevitch, “Le Suprematisme”, Le miroir suprématiste, Lausanne: L’Age d”Homme, 1977apud José Gil, A arte como linguagem, Lisboa: Relógio D’ Água, 2010, p. 18. 
  42. Idem, ibidem, p. 12. 
  43. Cf José Gil, A arte como linguagem, op. cit. p. 13. 
  44. Idem, ibidem, p. 13. 
  45. Apud José Gil, op. cit, p. 13. 
  46. Idem, ibidem, p. 16. 
  47. Cf. José Gil, op. cit., p. 16. 
  48. Idem, ibidem, p. 17. 
  49. Cf. Alfred Barr Jr., apresentação no catálogo da exposição Cubism and Abstract Art, New York: MoMA, 1936, p. II. Para um estudo recente e importante a respeito do papel de Alfred Barr Jr. na aproximação da história da arte com a arte contemporânea, ver Richard Meyer, What was Contemporary Art?, Cambridge: The MIT Press, 2013. 
  50. Cf. Alfred Barr Jr., op. cit., p. 11, para as duas últimas citações. 
  51. Cf. Clement Greenberg, ”Avant-garde and Kitsch”, Art and culture, Boston: Beacon, 1961, p. 8. 
  52. Idem, ibidem, p. 9. 
  53. Cf. Samuel Becket, Molloy, Malone dies and The unnamable, Nova York: Grove, 1964, p. 63. 
  54. Idem, ibidem, p. 63. 
  55. Cf. Samuel Beckett, Proust, Londres: Chatto and Windus, 1931, p. 23. 
  56. Por meio da referência a uma de suas obras tardias – Uno, nessuno, centomilla -, analisei a presença, em Pirandello, de um caso extremo de deflação de sentido, por meio de uma experiência de “descrença de si”. Ver Renato Lessa, “Crença, descrença de si, evidência”, Mutações – A invenção das crenças, São Paulo: Edições Sesc SP, 2011. 
  57. Vale bem, a propósito, a leitura do excelente livro de Michael Leja, Looking askance: skepticism and American Art from Eakins to Duchamp, Los Angeles: University of California Press, 2004. 

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