2006

Viagem ao fim do paraíso

por Eduardo Subirats

Resumo

Afirmar que a história moderna da América Latina é composta de crises é incorrer num enunciado vazio. Não se trata de desmerecer as guerras neocoloniais, ditaduras, migrações em massa… mas de questionar o sentido da palavra “crise”, assim como entendida pela sociologia e filosofia clássicas, uma vez que ela foi incorporada ao léxico midiático de maneira espetacular e, porque associada aos pragmatismos tecnológico e financeiro, intelectual e humanamente irresponsável.

De todo modo, tal história foi mais catastrófica e violenta do que emancipadora, a notar pela sucessão de situações sociais desesperantes, que podem ser assim resumidas: colonialismo, imperialismo, crescimento econômico desordenado, face sombria do progresso, inchaço dos centros urbanos, de modo a gerar miséria em massa. Mais: tráfico ilegal, pirataria corporativa multinacional, destruição da memória cultural e uma contínua investida militar na sociedade civil.

Tudo isso ajuda a entender as visões da América Latina por alguns de seus escritores modernos mais importantes, tais como: José María Arguedas, Miguel Angel Astúrias, Juan Rulfo, João Guimarães Rosa, Augusto Roa Bastos… Todos associados por uma extraordinária riqueza linguística que nasce de um diálogo entre culturas europeias e americanas, na forma de alteridades irredutíveis ou identidades ontologicamente opostas. Só assim as obras de tais autores puderam fazer face a compromissos intelectuais complexos e formas originais de expressão que descrevem realidades complexas, em que escárnio, corrupção e violência são apresentadas poética e delicadamente.

Desse contexto, destaque-se a “antropofagia brasileira”, que ainda gera receios e escândalos em meio à cultura midiática pós-moderna. Importante destacar o sentido a ser-lhe dado. Não se trata do simples hibridismo domesticado pela academia ou do surrealismo adotado pelo consumo real-maravilhoso, ou do canibalismo metafórico para salão e impresso vanguardista, ou ainda do pretenso rompimento promovido pela chamada “pop art”, mas do real pensamento da arte latino-americana moderna, nos âmbitos político, espiritual, sexual…

Isso que se manifestou também em outros países latino-americanos, tal como se observa na obra de Arguedas, por exemplo. Ela que incorpora literariamente a concepção cósmica do ser e as experiências mágicas associadas à unidade ontológica do humano e da natureza, herdadas dos incas e transpostas para a língua quíchua.

A fragmentação social, a perseguição política e o exílio desmantelaram décadas de ensaios literários como os mencionados. Mas não só, uma vez que processos semelhantes aconteceram na pintura, arquitetura e, sobretudo, política. Novas formas de participação democrática e de distribuição social da riqueza foram desintegradas pelas ditaduras latino-americanas dos anos 1960 e 1970, para o bem dos interesses hegemônicos globais.

Por certo, isso se deve também à colonização, que se reflete nos discursos teológico, jurídico, tecnocientífico, econômico e midiático que concorrem para o imperialismo, sobretudo norte-americano.

De acordo com tal discurso, está a prática, a exemplo das visitas turísticas a aldeias indígenas destruídas e ilhas virgens poluídas. Paraíso/Inferno tropical das missões militares de ajuda e destruição biológica e humana, onde não há fronteiras e praticam-se impunemente violação, extorsão e matança.

Isso porque assim escreveu Cristóvão Colombo quando da descoberta: “Grandes indícios são estes do Paraíso terrenal, porque lugar é conforme à opinião destes santos e sacro teólogos…”.

 


I

Programa

  1. Grave. As crises da América Latina. O conceito de crise.
  2. Lento. Os fascismos ibero-americanos. Transições e não-transições. A não-transição espanhola como modelo. Pós-modernização e globalização como processos regressivos política e moralmente; social e ecologicamente.
  3. Allegro con molto. Visão poética da América Latina: Asturias, Arguedas, Roa Bastos, Rulfo. A profecia negativa. O final. Digressões sobre as mitologias apocalípticas das culturas antigas da América e seus narradores contemporâneos. Grande sertão de Guimarães Rosa.
  4. In ruhig fliessender Bewegung. Uma última visão do paraíso. A revolução antropofágica. Macunaíma-Dionisos na metrópole industrial pós-colonial. Sub-versão do “processo civilizatório”. Digressões sobre teoria crítica e a sub-versão antropofágica das culturas da América (incluída a América do Norte). Homenagem ao Brasil: Raízes do Brasil. A centralidade do Brasil no projeto poético e artístico de uma Nova América.
  5. Allegro. Uma tradição artística e intelectual esquecida. (A função censora do pós-modernismo norte-americano: a liquidação dos sujeitos históricos; a construção acadêmico-corporativa da América Latina como objeto subalterno.) Essa tradição artística (a tradição crítica e o cânon) define um projeto de desenvolvimento e crescimento (orgânicos e autônomos) de nossas culturas. Um modelo brasileiro: homenagem a Lúcio Costa, Roberto Burle Marx, Oscar Niemeyer, João Vilanova Artigas e Lina Bo. Stress on Darci Ribeiro.
  6. Molto vivace. O conceito de colonialismo. A teoria crítica ante o projeto colonial do “Ocidente”. Crítica do “orientalismo”. A revisão das culturas ibéricas a partir de seus centros espirituais: Moisés de León, Ibn Arabí, Ramón Llull.
  7. Allegro maestoso. Uma redefinição de humanismo. Teoria crítica e humanismo. O Zohar, Jehudá Abravanel e o inca Garcilaso. A viagem ao paraíso. Uma viagem ao fim do paraíso. O valor espiritual do paraíso.

II

Paisagens da América

Dizer que a história moderna da América Latina é uma longa sucessão de crises é formular um enunciado vazio. Não porque a América Latina não tenha atravessado uma série de situações extremas ao longo dos últimos dois séculos: guerras neocoloniais, ditaduras, perseguições políticas, migrações forçadas de massas e uma acelerada exaustão de seus recursos naturais e humanos. É um enunciado vazio porque a palavra “crise” perdeu o sentido forte que um dia teve para a reflexão sociológica e filosófica moderna. Sua difusão midiática eliminou a intenção de mudança, a vontade de emancipação e a esperança do novo que a atravessou ao longo dos movimentos revolucionários e anticolonialistas do século XIX, da Independência de Santo Domingo às revoluções socialistas que coroaram a Primeira Guerra Mundial. As novas “crises” foram apropriadas pelo contemporâneo espetáculo midiático de catástrofes e violência e por um pragmatismo tecnológico e financeiro que é intelectual e humanamente irresponsável.

De todo modo: a história latino-americana do século XX foi uma sucessão de catástrofes e de violências, não uma história de emancipações ou de mudanças. É uma sucessão de situações de extremo desespero social cujas características podem resumir-se nuns quantos enunciados elementares: primeiro, um desordenado crescimento econômico, subordinado finalmente aos interesses hegemônicos dos poderes coloniais em decadência da Europa e do ascendente imperialismo dos Estados Unidos. Um processo civilizador, representado por slogans de desenvolvimento, modernização e progresso, que gerou grandes deslocamentos populacionais para, os centros industriais, abandonou massas humanas de milhões na miséria e na agonia e se coroou com a configuração de megalópoles ecológica e socialmente inviáveis, como a Cidade do México, São Paulo ou Lima. E se fez acompanhar dos fenômenos mais perniciosos da globalização: tráficos ilegais, subemprego, pirataria corporativa multinacional, destruição de memórias culturais e uma contínua escalada de violência militar e paramilitar.

A modernidade latino-americana do século XX pode ser resumida em dois traços: de um lado, um conceito de desenvolvimento de consequências ecológicas e sociais devastadoras; de outro, uma constante deriva política sem objetivos sociais e civilizadores precisos. Reiteraram-se ao longo do século passado as tentativas de soberania nacional democrática, os projetos de uma distribuição equitativa da riqueza, os esforços para um desenvolvimento cultural autônomo. São os casos representados por projetos políticos como os de Jango no Brasil, Allende no Chile ou a Revolução Cubana antes de seu atenazamento sob a lógica da Guerra Fria. Mas foram também sonhos de uma possível América Latina sucessiva e brutalmente interrompidos num ritmo de ditaduras mercenárias sufragadas pelo Primeiro Mundo, e tão corruptas e criminosas como o foram os próprios governos dos vice-reinados da Coroa hispânica, que emulavam: Torrijos, Videla, Pinochet, Geisel… As esperanças sociais que se cristalizaram nos movimentos populares das Diretas-já no Brasil ou o Nunca más na Argentina, e que provocaram a queda dessas ditaduras, devem ser recordadas também nesse mesmo sentido. Movimentos sociais amplos à procura de uma alternativa histórica. Com resultados politicos ostensivamente limitados.

Dizer que a história moderna da América Latina é uma sucessão de crises é formular um enunciado negativo. Define o lugar geopolítico da América Latina na nova desordem global como projeto truncado, como os limites da civilização, como um continente vazio: a mesma visão que tinham os filósofos da Encyclopédie ou Hegel na era do colonialismo ilustrado europeu; a mesma dos tratadistas da “guerra justa contra índios” na idade da monarquia cristã.

2

Esse marco histórico permite compreender as visões da América Latina expostas por alguns de seus escritores mais importantes no século XX (os que a indústria cultural europeia das últimas duas décadas sufocou literalmente na massa física de uma produção literária supérflua de realismos mágicos): José María Arguedas, Miguel Angel Asturias, Juan Rulfo, João Guimarães Rosa, Augusto Roa Bastos… Intelectuais que descreveram em suas narrações e em suas intervenções públicas o trauma uma e outra vez repetido ao longo da história americana: a clara visão do fracasso de sua soberania política e integração social; a consciência de uma sociedade que desfalece depois de cada tentativa de recuperar suas debilitadas forças; a dor humana ante um poder político que a submete sem contemplações sob um princípio de ilimitada crueldade.

O senhor presidente, de Asturias, é um cânon ao mesmo tempo literário e político de toda uma época histórica da América Latina: a análise de uma ditadura arcaica, baseada na extorsão e no espólio, indiferente aos efeitos socialmente devastadores de sua violência institucional, dissimulada em mediocridade e ineficiência e, last but not least, apadrinhada e protegida pelo cinismo político da diplomacia privada e pública do Primeiro Mundo. E quero sublinhar, diante dos ouvidos surdos da academia, da indústria cultural e das mass media do Primeiro Mundo, que o senhor presidente de Asturias não foi precisamente um caso. Foi e segue sendo um protótipo dos presidentes eleitos e não eleitos da América Latina, e transformados, por um campo de forças locais e globais sinistras, em ditadores criminosos.

Pedro Páramo, de Juan Rulfo, constitui outra obra canônica. Mas, antes de mais nada, esse romance é o grito de agonia das deusas da reprodução e da vida que ainda hoje compartilham os povos astecas, zapotecas ou huicholes, povos deslocados ao longo de séculos de colonialismo e que sobrevivem sob condições de extrema pobreza nos desertos e cordilheiras do México. Pedro Páramo é o relato da agonia de um povo, de seus deuses e suas formas de vida sob o poder brutal do cacique hispânico, e é o marco político da modernidade mexicana.

O terceiro autor que temos de mencionar nesta rápida visão é Roa Bastos, que num dos romances mais importantes da literatura em língua castelhana do século XX, Eu, o supremo, levou a cabo uma desconstrução crítica da razão moderna e de seu princípio de subjetividade soberana. E o fez a partir de uma perspectiva histórica, política e culturalmente específica. Que não é a de um Doutor Fausto transladado a uma Alemanha sucessivamente arrasada pelas guerras europeias do século passado. Nem tampouco se pode comparar inteiramente com o ponto de vista da destruição interna do sujeito da dominação racional e moderna que refletiram Kafka ou Beckett em seus romances.

Eu, o supremo propõe o desmoronamento dos ideais modernos de soberania, igualdade ou liberdade a partir da experiência histórica de um Paraguai que, no século XIX, abandonou a ferocidade colonial hispânica para cair nas sanguinárias estratégias do neocolonialismo britânico: com o balanço de um dos genocídios de indígenas mais horrendos na série de genocídios que atravessa a história da fundação das Américas. Na figura literária do doutor França, ao mesmo tempo herói moderno da independência do Paraguai e tirano arcaico, confluem precisamente as forças elementares dessa história fundadora. Por um lado, a brutalidade tosca e cruel do poder espanhol e o messianismo fanático que incitou suas cruzadas cristãs no continente. Por outro, a esquizofrenia de uma independência soberana que se pronunciou em favor dos direitos humanos, do progresso e da democracia, mas ao mesmo tempo mergulhou irreversivelmente os povos da ex-América hispânica na violência, no caos e na miséria. Roa Bastos expõe os contrassensos e absurdos que esse processo de formação da modernidade latino-americana atravessava. E o faz a partir da desintegração ao mesmo tempo política e psicológica do libertador França, símbolo da dissolução interna dos postulados elementares que acompanham a constituição epistemológica, ética e política dessa recolonizada independência latino-americana.

Mas esse romance se distingue num aspecto essencial das desconstruções do sujeito moderno na literatura europeia do século XX, seja em sua expressão fáustica, seja em sua construção cartesiana ou em sua arquitetura lógico-trascendental. Sua diferença consiste no caráter inaugural de seu fracasso. O protagonista dos romances de Beckett, numa obra como Molloy, conserva, apesar de sua patética autodissolução espiritual, a consistência discursiva de um ex-sujeito cartesiano ou transcendental. O ditador de Roa Bastos fala, ao contrário, em nome de uma vontade racional e de uma soberania ética e política que nunca foram outra coisa, na história real das nações latino-americanas, senão uma ficção do método, sob cujas seduções barrocas se ampararam com frequência as mesmas práticas de despotismo e espoliação dos piores períodos da monarquia hispânica.

Todas essas obras literárias compartilham, além disso, uma vocação similar e um mesmo destino. Linguisticamente falando, possuem uma extraordinária riqueza, fruto de um diálogo entre as culturas europeias e americanas que o colonialismo moderno enfrentou como alteridades irredutíveis ou identidades ontologicamente opostas entre si. Todas elas estão atravessadas por um irrepreensível compromisso intelectual que não se detém ante as conseqüências mais sinistras da lógica colonizadora da civilização ocidental. Todas elas tiveram de inventar formas originais de expressão para poder descrever uma realidade complexa até os limites do inefável, onde o escárnio, a corrupção e as formas mais extremas de violência se cruzaram no caminho com expressões poéticas da maior delicadeza. Mas se se pode falar de um destino comum a todos esses ensaios literários é, sobretudo, porque todos eles acenam para um fim último: existencial, político, civilizador.

Os romances e a poesia de Arguedas descrevem um mundo em que os conflitos espirituais e sociais entre o europeu e o “índio” se tornaram tão extremos e irrefreáveis, que desbarram o imaginável: a violência, renovadas formas de escravidão, todas as expressões mais sinistras de degradação espiritual e física, os quadros dos massacres mais absurdos e humilhantes, a angústia, um esvaziamento sistemático do tempo e do ser. Guimarães Rosa relata uma guerra épica de dimensões cósmicas, mas uma guerra cabal, no sentido de que em seu romance todos se sabem de um modo ou de outro prisioneiros de um destino negativo de violência e destruição. “Tudo ali era à maldição, as sementes de matar… uma guerra de dentro e outra de fora, cada um cercando e cercado”, exclama nesse sentido Riobaldo, o chefe jagunço de Grande sertão: veredas.[1] Rulfo desenterra as deusas pré-coloniais da vida e da morte sepultadas num mundo subterrâneo sem lugar nem tempo sob o terror despótico da tradição colonial de Castilla. “Deu um golpe seco contra a terra e se foi desmoronando como se fosse um monte de pedras” — com essas últimas palavras se descreve no romance Pedro Páramo a morte do cacique mexicano.[2] Essa morte do tirano, do cacique, do sujeito colonial moderno, arrasta consigo a extinção de Comala, um vilarejo miserável de almas atribuladas que outrora foi um paraíso, ao longo de uma interminável litania poética de lamentos e agonia. E num quadro histórico definido pela paródia de uma revolução anticolonialista e pela caricatura grotesca de seu sujeito histórico, o ditador-libertador das independências e revoluções sociais latino-americanas se confessa estas palavras:

A chama da Revolução havia se apagado em ti, seguiste enganando…, com a pior e mais perversa astúcia, a da doença… enfermo de ambição e de orgulho, de covardia e de medo… Entronizada na tramoia do Poder Absoluto, a Suprema Pessoa constrói seu próprio patíbulo. É enforcada com a corda que suas mãos teceram. Deus ex machina. Farsa. Paródia. Saltimbanco do Supremo Palhaço…[3]

O romance de Asturias fecha suas páginas sob o signo dessa mesma consciência dividida e agoniada ante um cataclismo final que não deixa resquícios para nenhum tipo de esperança.

Não é difícil reconhecer nessas obras as práticas reais de políticas autoritárias e genocídios, o destino indefinidamente repetido de violência, perseguição e exílio que percorreu a história moderna da América Latina. E, no entanto, isso não é tudo. É preciso reconhecer ao mesmo tempo a poderosa dimensão afirmativa que as povoa. Arguedas resgata a metafísica das grandes culturas pré-coloniais dos Andes. Recupera e reintegra suas memórias no ambiente de sua língua, o quíchua, e no ambiente de sua experiência xamânica da natureza, que se confundem com sua visão poética das coisas. E as incorpora a uma língua europeia, o castelhano, e à conseguinte construção teológica e epistemológica do mundo “ocidental”. Asturias redime, com sua poética impropriamente chamada de surrealista, os índios e mestiços deserdados nas favelas das megalópoles pós-coloniais das Américas. Rulfo ressuscita as deusas e os ciclos cósmicos da vida e da morte das culturas originárias do México.

A obra de Guimarães Rosa se destaca muito especialmente nesse sentido. Suas histórias e personagens estão animados por uma religiosidade pagã, uma vitalidade não rompida pela culpa cristã, uma vontade rebelde, enfim, um desejo inquebrantável de ser. O duelo final em que culmina Grande sertão é um confronto letal de temíveis titãs. O ódio e a vingança, o medo e a loucura, a violência sanguinária e a agonia desfraldam também aqui uma catástrofe de dimensões apocalípticas. Uma catástrofe tanto mais aterrorizadora quanto seus constituintes possuam ao mesmo tempo algo de irrelevante, de gratuito e de absurdo. Mas seu romance pertence ao gênero dos livros de cavalaria. É uma celebração do jagunço como guerreiro mítico e herói popular. E pela idealização épica da nobreza moral do herói, de seu amor ideal e casto, de seu respeito às leis e costumes, ou de seu valor ante o perigo, afirma-se uma poderosa vontade de ser e de sobreviver: sua profunda dimensão espiritual. “Eu somente queria era — ficar sendo!… Eu queria ser mais do que eu” — são as significativas palavras do chefe guerreiro Riobaldo ao final de seu ciclo heroico.[4]

Essa resistência do ser, de um ser que é mais do que a sobrevivência de um Eu, e que, como epos, transcende precisamente o horizonte moral e ontológico do sujeito da narração, confunde-se com a resistência de todo um povo. É a resistência do povo do sertão de Minas Gerais, de suas sabedorias cósmicas e seus conhecimentos supersticiosos, a vontade de ser de sua memória milenar e a nobreza inquebrantável de suas formas de vida até os dias de hoje.

3

Desejo passar a outro assunto: a “antropofagia” brasileira. Essa palavra ainda hoje levanta receios e escândalos nos recatados cenários da cultura midiática pós-moderna. Antropofagia! Não, não me refiro a sua domesticação acadêmica sob os jargões do hibridismo e das mambo-montages. Tampouco à trivialidade aborrecedora de um surrealismo “canibal” adotado pelas orgias de consumo real-maravilhoso no espetáculo da cultura global contemporânea. A antropofagia, nem sob suas carnívoras expressões indígenas, nem sob suas variações metafóricas para salões e revistas de vanguardas literárias brasileiras, nunca foi a consumação eletrônica dos signos consumidos na cultura-espetáculo-consumo. Tampouco é a chatice barateada da pop art. A revolta artística da antropofagia foi outra coisa. Momento radicalmente reflexivo da arte do século XX na América Latina. Metáfora de um pensamento renovador de tudo o que é humano – politicamente, espiritualmente, sexualmente.

Em 1929, Oswald de Andrade torna público um Manifesto antropofágico. “Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. […] A magia e a vida […]” escreveu entre risos e provocações num de seus aforismos. Nesse mesmo ano, Mário de Andrade publica o romance épico do herói latino-americano por excelência: Macunaíma. “O herói de nossa gente”, como o subintitulou seu autor. Pois bem, tanto esse romance como o Manifesto, e grande parte dos ensaios escritos em meio ao grupo de intelectuais e artistas de São Paulo que integraram essa “vanguarda antropofágica”, podem e devem ser entendidos como o relato poético do final de um ciclo histórico. Assim como o quadro histórico negativo que arrojam os “homens-pantera” de Guimarães Rosa ou o “ditador perpétuo” de Roa Bastos.

Certo: Oswald de Andrade reivindicava a liberdade sexual e o comunismo, a harmonia com a natureza e a igualdade social. E Macunaíma é um herói dionisíaco. Mas essa liberdade dionisíaca da selva se apresenta, de pronto, como um paraíso já perdido. E, finalmente, Macunaíma tampouco é mais que um último sobrevivente das memórias cosmológicas milenares que a Amazônia abrigava. Além disso, deve-se sublinhar outra circunstância: esse sujeito épico realiza uma viagem simbólica que começa numa selva equatorial latino-americana, enfaticamente situada num lugar incerto entre as fronteiras virtuais que separam a Venezuela, a Colômbia e o Brasil. E o relato de suas aventuras termina no labirinto da metrópole pós-colonial de São Paulo. Mas Macunaíma deve ser considerado um anti-herói civilizador ou um herói anticivilizador. Porque sua viagem inicial da selva à cidade não inaugura ou revela de modo algum a ordem e o esplendor da civilização. O romance Macunaíma não é uma celebração vanguardista da modernidade em suas expressões coloniais ou pós-coloniais, capitalistas ou soviéticas. É muito mais uma crítica da sociedade industrial moderna onde “tudo são máquinas”. É precisamente uma das críticas mais radicais e poéticas escritas contra as utopias do maquinismo formuladas pelas vanguardas futuristas e pelas políticas fascistas e soviéticas da Europa dos anos 1920 e 1930.

Trata-se, por outro lado, de uma crítica dionisíaca no sentido de que o herói revela ao longo de suas peripécias a desumanização da civilização industrial: através de suas fraturas e feridas corporais, da frustração erótica e da violência física inerentes à vida cotidiana na metrópole industrial. O anti-herói Macunaíma mostra a inumanidade da civilização moderna através da corrupção de seu corpo e de sua alma, e das sucessivas rupturas da unidade cósmica que integrava o universo indígena numa harmonia paradisíaca.

Macunaíma é um herói negativo num duplo sentido. Porque não estabelece uma ordem, não erige o poder da lei, não funda uma civilização, nem representa nenhum tipo de exemplaridade. É o que o distingue dos heróis clássicos, como Jesus ou Hércules. Mas esse herói de Mário de Andrade é negativo também ou sobretudo porque, ao regressar da metrópole à selva, faminto, extenuado e gravemente ferido, e espiritualmente derrotado por esse mundo de máquinas e leis desumanizadas que representa São Paulo, já não encontra suas profundezas misteriosas, nem pode falar com seus seres espirituais, nem brincar eroticamente com suas libidinosas mulheres. O cosmo paradisíaco de suas origens tinha desaparecido sem deixar rastro. Era apenas um páramo.

Contudo, a sensibilidade que envolveu a “vanguarda” antropofágica brasileira era tudo, menos romântica. E era tudo, menos local (contra o que pensam os latino-americanistas mais bem-intencionados). Oswald de Andrade formulou uma crítica da civilização industrial inspirada diretamente na genealogia do cristianismo de Nietzsche, na crítica do capitalismo de Marx, na reconstrução arqueológica de uma idade do matriarcado exposta por Bachofen e na crítica do racionalismo de Freud. Tudo isso o integrava subsequentemente à concepção xamânica da natureza e à configuração igualitária da comunidade indígena. Deve-se sublinhar, além disso, o que sempre se deixa precisamente de lado como um significante supérfluo. O movimento antropofágico articulava essa crítica da sociedade patriarcal e capitalista sob a perspectiva de uma crítica filosófica e política do colonialismo. Uma crítica que não somente tratava de pôr em questão sua lógica depredadora, mas que estava dotada, além disso, de uma dimensão afirmativa, atravessada por uma vitalidade espontânea e sem culpa, e envolta em uma sedução poética que marxistas e pós-marxistas, colonialistas e pós-colonialistas só souberam ignorar. E a antropofagia expunha, acima de tudo isso, a superioridade artística e existencial, erótica e metafísica das formas de vida da selva diante da decadência e do niilismo que feriram mortalmente a sociedade ocidental na era das guerras industriais e do holocausto atômico e ecológico da humanidade.

Nas últimas páginas de Macunaíma, o herói é golpeado, ferido e despedaçado. Esse final é digno de atenção. A tortura, o flagelo e o despedaçamento corporais foram práticas comuns que acompanharam a ação civilizadora na América, desde os massacres e violações em massa que acompanharam ou o processo da Conquista até as estratégias genocidas que secundaram o conceito de modernização sob os poderes militares e corporativos do século XX. O significado espiritual arcaico desse despedaçamento físico é a separação da unidade cósmica do corpo e da alma da vítima, ponto de partida fundamental da ética negativa da culpa e da subsequente subjetivação através do castigo e do perdão cristãos. Seu significado político moderno foi a cisão da unidade ética do intelectual e da sociedade. Por isso a violência física, a tortura e o despedaçamento expõem de maneira ostensiva e reveladora no romance épico de Mário de Andrade a ferida constituinte e o ponto de partida da ordem corporal e política do processo civilizador.

Mas as águas do rio levaram consigo os membros fragmentados do corpo de Macunaíma, e as piranhas acabaram por devorá-los. É o símbolo sacrifical de um renascimento. E o movimento antropofágico foi precisamente esse renascimento artístico latino-americano que do romance dionisíaco-amazônico Macunaíma chega à fantasia plástica e ao misticismo xamânico que envolve as expressões da música, da escultura e da dança populares do Brasil. E que se cristaliza em obras arquitetônicas como o Palácio do Itamarati, em Brasília, onde Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx também traçaram uma síntese da cidade moderna e dos mistérios da selva no coração da utopia urbanística e civilizadora latino-americana mais representativa do século XX.

Para formulá-lo no jargão de um anúncio comercial: a antropofagia é uma revolução metafísica e estética cujo último sentido era curar as doenças niilistas de uma civilização ocidental cindida até a psicose, e de fazê-lo mediante uma grande dança dionisíaca de todas as culturas do planeta. Uma dança que só podia nascer no Brasil porque: a) é uma cultura não cristianizada ou mal cristianizada; b) porque o Brasil se encontra mais próximo das sabedorias do paraíso. Isto é, da selva; e c) porque o Brasil é, por sua magnitude geopolítica e econômica, por sua riqueza multicultural e plurirreligiosa, incomparável com qualquer outra nação americana; e por sua intensidade intelectual, artística e literária, o único país com real capacidade integradora da América Latina.

Com isso, ponho provisoriamente um ponto final. Essa filosofia antropofágica é a segunda visão da América que considero necessário recordar: do ponto de vista literário, do ponto de vista filosófico e do ponto de vista politico. Não em último lugar, é necessário recordar sua ignorada centralidade pela perturbadora beleza que atravessam suas expressões artísticas e literárias. A pintura de Tarsila do Amaral ou a poesia “Pau Brasil” de Oswald de Andrade são dois exemplos. Mas há algo a esse propósito que quero sublinhar uma vez mais: tratava-se de um projeto ao mesmo tempo intelectual e artístico; não era uma performance; não se tratava de uma ficção “estética”; tampouco de um simulacro. É a formulação artística de uma vontade de transformação ao mesmo tempo poética, social e política da realidade latino-americana e de tudo o que é humano.

4

Terceira visão da América: o mesmo lirismo cósmico e revolucionário que distingue a poesia de Oswald de Andrade ou a pintura de Tarsila do Amaral e o mesmo messianismo macunaímico aparecem em outras expressões intelectuais da América Latina, com ritmos e formulações diferentes. Arguedas, por exemplo, incorpora literariamente a concepção cósmica do ser e as experiências mágicas ligadas à unidade ontológica do existente humano e da natureza, herdadas dos incas e transportadas para a língua quíchua. Com isso, cria uma delicada ourivesaria expressionista, que ao mesmo tempo é um grito de angústia e protesto contra a violência do colonialismo pós-colonial.

Deve-se citar nesse mesmo contexto o projeto anticolonialista e socialista de José Carlos Mariátegui. E se deveria sublinhar também a esse propósito a dimensão espiritual que subjaz em sua concepção do socialismo, que o coloca muito próximo do significado ético a partir do qual intelectuais europeus como Max Buber, Ernst Bloch ou Paul Tillich definiram o socialismo. Mariátegui construiu uma filosofia social a meio caminho entre uma cosmovisão inca da existência e a teoria crítica de Marx. Artistas como Diego Rivera ou Wilfredo Lam são outros tantos representantes da história cultural latino-americana que traçam um projeto original de modernidade a partir da espiritualidade africana ou ameríndia. Mas quero chamar a atenção para uma outra ordem de coisas. E render uma homenagem à arquitetura brasileira.

E quero render essa homenagem a partir de uma dimensão ampla que a crítica pós-modernista das últimas décadas se negou a reconhecer. E que o fez por duas boas razões. Por um lado, o postmodern em geral continuou a considerar o Brasil mais uma neocolônia latino-americana, e o redefiniu como objeto secundário através das estratégias conceituais dos cultural studies e dos postcolonial studies. Sob essa perspectiva, suas expressões culturais tendem a subsumir-se em um diálogo ou em uma hibridização verticais entre o valor local e as normas do global, de onde resulta metodologicamente impossível pensar reflexivamente o projeto de dominação unipolar e unidimensional do planeta que precisamente atravessa esse projeto de globalização do “local”. Desse ponto de vista são admissíveis as linguagens híbridas, as queixas micropolíticas de virtuais direitos humanos ou feministas, bem como os espetáculos multiculturalistas. Mas é inadmissível reconhecer esse objeto “localizado” e encerrado nas jaulas da “alteridade” ontologicamente opaca do “subalterno” como um verdadeiro sujeito social e existencial, trate-se de um simples “índio” ou de toda uma corrente artística.

E dessa perspectiva é igualmente insustentável que tivessem sido um arquiteto brasileiro como Oscar Niemeyer ou um poeta brasileiro como Oswald de Andrade os que, pela primeira vez, decretaram, já na década de 1940, a morte do movimento moderno. E que o fizeram a partir de uma perspectiva artística que pós-modernismo norte-americano simplesmente deu por inexistente: a vontade de mudança que atravessou as sociedades europeias antes de sua decapitação pelos totalitarismos fascistas e soviéticos, e sua putrefação sob as culturas industriais do espetáculo, resultantes da subsequente destruição militar de suas cidades e culturas.

Muito menos se pode aceitar, tendo por base o horizonte do main stream norte-americano, a formulação explícita por parte da arquiteta Lina Bo Bardi de que só no Brasil podia ter se desenvolvido uma arquitetura com aquela dimensão estética e popular emancipadora que a teoria crítica europeia tinha formulado, e que era inerente aos pressupostos estéticos e sociais humanistas da Bauhaus em seu período fundador durante a República de Weimar. Enquanto na América do Norte as mesmas ideias só se cristalizaram nas expressões de um extremo formalismo, dotadas de uma sublime monumentalidade tecnológica, mas carentes de uma intensidade artística humanamente renovadora.[5]

Esta crítica radical de uma modernidade arquitetônica e estética — que fracassara na Europa e na América do Norte na mesma medida em que sacrificava suas dimensões humanistas e sociais em benefício de uma função normativa, de um esteticismo formalista e de uma vontade espetacular — é no entanto capital para poder entender a originalidade e a radicalidade da grande arquitetura brasileira do século XX. Para dizê-lo com muito poucas palavras: os três ou quatro exemplos arquitetônicos que quero recordar aqui compreendem uma responsabilidade urbana, ecológica e política no desenho da paisagem, da arquitetura e da cidade que contrasta drasticamente com a megalomania, o formalismo e o cinismo social postos em cena pelo pós-modernismo arquitetônico com seus grandes nomes à frente, de Philip Johnson a Frank Gehry.

Um exemplo estetizante do qual quero falar é o Palácio do Itamarati, criado por Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx na paisagem urbana e social “romântica” da Brasília que Lúcio Costa desenhou. Não quero deixar de lado o imediato efeito surpreendente que produzem as delicadas proporções desse palácio, nem a graça inerente ao jogo de forças naturais que nela se conjugam arquitetonicamente: a terra, o água, o céu e a vegetação tropical. Também não pretendo esquecer que, formalmente falando, esse palácio tem parentesco com o racionalismo cartesiano de Le Corbusier e com a Bauhaus. Mas um dos grandes protagonistas dessa obra é sua escadaria interior. E a sensualidade e a força ascendente dessa escadaria são incompreensíveis se não se levar em conta o intenso diálogo que ela estabelece com a arquitetura do barroco brasileiro. Além disso, a pureza elementar de suas formas e sua transparência espacial têm parentesco com a elementaridade e sensualidade que distinguem as estruturas e texturas da maloca amazônica. É também amazônica a integração da água através dos espaços arquitetônicos. Além disso tudo, no coração desse concerto de vanguardas europeias e danças amazônicas, Burle Marx instalou um jardim suspenso, com um pouco de selva em miniatura e de jardim oriental.

O segundo exemplo que desejo citar aqui constitui também uma das obras canônicas da arquitetura latino-americana do século XX: o conjunto monumental do Sesc-Pompeia em São Paulo, de Lina Bo Bardi. Esse vigoroso projeto pode ser definido como a síntese da arquitetura industrial europeia do século XIX, a pureza formal cartesiana de Le Corbusier, um grito de protesto da mãe comunista do cinema neo-realista italiano dos anos 1950, e como síntese da espiritualidade e sensibilidade africanas, tão centrais na alma popular e artística do Brasil. Mas o que concerta essa variedade polifônica de elementos não é uma linguagem específica, tampouco um programa intelectual: é, fundamentalmente, o diálogo entre as culturas populares e indígenas do Brasil com o espírito das vanguardas e boêmias artísticas europeias que atravessam as expressões mais destacadas dessa nação, desde seus carnavais até seus poetas minimalistas. Um diálogo que a arquitetura de Lina Bo Bardi articula até nos mínimos detalhes construtivos. E que, antes de mais nada, possibilita aquelas expressões artísticas e formas de comunicação capazes de desafiar as fronteiras simbólicas entre classes sociais e as diferenças étnicas de formas de vida.

A última obra que quero recordar se deve a João Vilanova Artigas, o arquiteto que construiu uma escola de arquitetura que parece um templo para deuses, com elementos tecnológicos e uma concepção do espaço que são claramente modernos, mas que, ao mesmo tempo, fala as linguagens da arquitetura religiosa asteca e maia, de rampas e planos inclinados, massas piramidais e naves para o culto: a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

Menciono essas arquiteturas por diferentes motivos. Em primeiro lugar, pela riqueza artística, inovação linguística e originalidade de seus espaços (dificilmente redutíveis às categorias hegemônicas que regem a arquitetura corporativamente globalizada). Além disso, essas obras articulam um projeto de renovação cultural, de recuperação de memórias e de integração social democrática (por oposição à transformação midiática da democracia em espetáculo e suas expressões arquitetônicas numa variedade de espaços “panópticos”). Lúcio Costa construiu com seu plano piloto de Brasília um conceito socialista de cidade dotada de um sentido estético e ético muito próximo ao do classicismo europeu. (A crítica mais acerba ao projeto militar da capital brasileira como enclave colonizador e burocrático não deve ocultar as dimensões estéticas e sociais inerentes a seu projeto e realização, que transcendem essa vontade colonial e totalitária de poder.) O grande templo arquitetônico de Vilanova Artigas é um espaço aberto e acessível por todos os seus quatro costados (radicalmente inapropriado para o conceito antidemocrático de universidade gerado pelas ditaduras militares e administrações neoliberais em nome da privacidade e da political correctness). O Sesc-Pompeia, de Lina Bo Bardi, é uma definição programática de democracia como espaço de confrontação, jogo e criação artística a partir de um diálogo social que atravessa barreiras sociais, culturais, religiosas e étnicas (o extremo oposto da construção espacial dos malls neoliberais como campos de concentração e consumo e panópticos de vigilância civil).

E, para pôr um ponto final a este breve esboço, quero recordar também que em todas essas obras se constrói lingüística e espacialmente um diálogo social, ecológico e simbólico irredutível à lógica do maquinismo e ao princípio de comodificação eletrônica da realidade: os dois princípios sacramentais aos quais a mentalidade corporativa e suas burocracias de museu reduziram o modernismo e o pós-modernismo do século XX. Nisso reside também sua dimensão humanista e revolucionária e sua vontade de futuro.

5

A fragmentação social, a perseguição política e o exílio puseram um abrupto ponto final a várias décadas de ensaios arquitetônicos e urbanísticos, políticos e literários em torno de novas formas de participação democrática, de distribuição social da riqueza e de florescimento das culturas latino-americanas. A desintegração desses processos sociais de signo reformador e criativo foi, a rigor, a última e brutal função das ditaduras latino-americanas dos anos 1960 e 1970 e dos interesses hegemônicos globais aos quais serviam. O que seguiu a suas estratégias de terra queimada (ou seja, o que elusivamente se chamaram “transições” e, eufemisticamente, “pós-ditaduras”, na falta de um projeto e de um conceito social e político com nome próprio) abriu, de qualquer forma, uma nova perspectiva histórica sobre a América Latina. É a quarta visão que desejo considerar aqui: o pós-ismo pós-vanguardista pós-moderno.

A rejeição pós-vanguardista pós-moderna de ditaduras que de todo modo já tinham desaparecido — sua bandeira, homologada de uns direitos humanos que também não punham nada em questão, seu feminismo auto-referente e retórico, seu credo micropolítico e, não em último lugar, o narcisismo em que estavam embebidas suas performances de um new way of thinking — parecia que de alguma incerta maneira recolhia o legado intelectual reformista que as ditaduras tinham decapitado. Mas as contra-senhas da nova onda eram um pluralismo ecleticamente neutralizado, uma tolerância de signos politicamente voláteis, uma insubstancial ironia e uma bandeira multicolorida de jogos linguísticos formalistas. Seu denominador intelectual comum constituía uma programática debilidade filosófica, sua tarefa política era a despolitização do intelectual e seu fatal destino acabou sendo a transubstanciação da imaginação crítica dos anos 1960, desde a libertação sexual até a crítica antiautoritária da sociedade capitalista e patriarcal, em ficções real-maravilhosas, pastiches arquitetônicos e espetáculos híbridos.

O pós-modernismo latino-americano deu por assentado o desmantelamento dos regimes autoritários da América Latina como um processo natural, não como o resultado de uma resistência social e uma crítica intelectual. E, portanto, não sentiu a urgência de investigar os antecedentes doutrinários e institucionais dos fascismos latino-americanos ao longo de sua história colonial e pós-colonial. Sua atenção se restringiu aos efeitos de superfície daquelas ditaduras: os desaparecimentos e as torturas, a violação de direitos humanos, o sexismo ou a homofobia. Mas não teve vontade de confrontar intelectualmente as grandes forças neo-colonialistas, nem seus jargões hipócritas de desenvolvimento, livre-comércio ou democracia, que tinham atravessado e continuam atravessando o destino do continente latino-americano. O emblema dessa visão política reduzida foram “As Mães da Praça de Maio”, sob cujos gestos de desespero e dor se volatilizou melodramaticamente a reflexão sobre o projeto político de desconstrução política, financeira e cultural do continente latino-americano que o fascismo dos anos 1960 e 1970 tinha deixado, afinal de contas, inacabado.

A segunda proposição pós-modernista foi a filiação desse desmantelamento das ditaduras latino-americanas com o fim do sistema soviético, considerado o reverso da mesma moeda. Com isso, não somente se rendia obediente preito aos mesmos slogans propagandísticos que, em nome da Guerra Fria, legitimaram a necessidade histórica dos golpes militares na região e seus brutais métodos de governo. Mais, operava como um indiferenciado princípio de ruptura com o legado intelectual dos projetos de construção de uma América Latina democrática, descolonizada e soberana, que tinha começado nos anos 1920 e que de modo algum pode dar-se por concluída nos dias de hoje. Sob o florido jargão academicamente concertado de pós-sujeitos pós-intelectuais pós-históricos, tanto fazia a cristologia populista de Che Guevara como o conceito espiritual de socialismo de José Carlos Mariátegui; e a defesa das culturas populares de Darci Ribeiro, no Brasil, ou de Guillermo Bonfill Batalla, no México, podiam confundir-se, sob a mesma arrogante indolência, com os programas de inserção digital das culturas da América Latina sob a perspectiva hemisférica de sua nova redenção eletrônica nos céus do espetáculo midiático global.

Como teoria social, o pós-modernismo latino-americano não deixava de ser um desfile de reciclagens a partir de leituras triviais do fim do sujeito de Foucault ou da episteme futurista de Lyotard, do entusiasmo de Baudrillard pelos gadgets da indústria eletrônica ou de Jameson pelas arquiteturas labirínticas e os espaços vazios. Tudo isso requentado com citações banais de um desconstrucionismo convertido em fantoche escolástico, em nome do qual se podia congelar a dialética negativa numa litania interminável e insignificante de episódios secundários. Afinal de contas, qualquer coisa era propícia a esse pensamento declaradamente epigônico, contanto que não tivesse de se confrontar os déficits intelectuais e sociais que se opuseram aos processos mais cruciais da modernidade na região: a ausência de uma Ilustração no mundo ibérico e ibero-americano, a falência das reformas democráticas ao longo do século XIX, a subsequente fragilidade intelectual e política das recolonizadas soberanias nacionais americanas e, last but not least, o estrangulamento e o exílio dos projetos culturais e artísticos dos quais essa geração pós-modernista era, afinal de contas, uma conseqüência banal.[6] Quanto ao resto, correu-se um espesso véu sobre os novos dilemas que apareciam em tempo real sob o céu ou o inferno latino-americano dos anos 1980 e 1990: a implosão midiática e o controle corporativo e multinacional da informação, a transformação da democracia em espetáculo, as politicas econômicas globais de espoliação local, a subseqüente miséria e violência sociais e a militarização dos conflitos politicos gerados ao longo desse processo regressivo e letal como corolário final.

Nada disso podia objetar-se de qualquer forma a uma corrente intelectual que preventivamente fazia alarde de um pensamento débil e, em seu nome, agitava o santo-e-senha do pastiche por todo programa social. A importância desse pós-modernismo também não residia, afinal de contas, na integração de um pensamento renovador europeu ou norte-americano às extremas experiências que, de forma positiva ou negativa, as sociedades latino-americanas tinham percorrido ao longo do século passado. Sua missão era antes esquecer essa experiência intelectual das ditaduras militares e desconstruir os vigiados páramos culturais que elas tinham deixado por todo legado, em desertos sem fronteiras, onde os “ismos” disseminados pela indústria cultural global pudessem reproduzir-se como produtos prêt-à-porter e consumir-se como “ideias fora de lugar” fossem eles os anódinos gessos classicistas à Charles Moore, reciclados na avenida Insurgentes da Cidade do México, ou as categorias do pós-colonialismo anglo-saxão, grosseiramente adaptadas às necessidades departamentais de um latino-americanismo filosoficamente subdesenvolvido.

Daí que as duas últimas décadas de militância pós-modernista não se tenham distinguido tanto pela ostensível banalidade de seus produtos literários e artísticos como pela patética inconsistência de suas visões da realidade latino-americana. Dir-se-ia que a ordem geral implícita era jogar fora tudo o que de positivo a geração anterior tinha dado como contribuição nesse sentido: desde a crítica às ambigüidades da independência latino-americana, perfeitamente formuladas por José Carlos Mariátegui e Eduardo Galeano, até o protesto de Angel Rama contra o intelectual como “letrado” associado ao poder político, e a conseguinte tergiversação dos ideários ilustrados, revolucionários e vanguardistas importados da Europa e dos Estados Unidos ao longo do período pós-colonial.

No entanto, a má sociologia pós-modernista não foi pior que sua crítica literária. Essa se distinguiu também por seu administrado silêncio diante de obras canônicas da literatura, da arquitetura ou da pintura e da música latino-americanas do século XX, trate-se de Diego Rivera, Oscar Niemeyer ou Augusto Roa Bastos, para citar só um par de exemplos crassos. Mas seria injusto silenciar sobre duas estrelas da constelação pós-modernista que efetivamente deram várias voltas ao redor do mundo num interminável desfile de aplausos e aclamações: o hibridismo por um lado e o realismo mágico por outro. Examinemos de perto a questão.

A relevância da primeira dessas categorias não pode ser considerada superficialmente: foi tão imensa como a de sua sobrinha no período colonial clássico, a saber, o postulado sexual, étnico, cultural, e acima de tudo católico e apostólico, da mestiçagem. E a comparação entre ambas de nenhum modo é inocente, nem tampouco pode ser considerada ociosa. Sob os slogans de fronteiras varridas, poderes descentralizados e performances multiculturalistas, o postmodern ocasionou uma verdadeira avalanche de produtos comerciais, normas de produção cultural e de conduta intelectual e, antes de mais nada, linguagens pré-fabricadas, em tudo comparável a uma verdadeira colonização dos signos. Para fechar o assunto em poucas palavras, esse processo, que bem poderia chamar-se de aculturação midiática e industrial pós-moderna, e de conversão acadêmica, entranhou duas coisas elementares. A primeira era clara e simplesmente a eliminação de projetos intelectuais e artísticos próprios, quer se tratasse do brutalismo arquitetônico paulista dos anos 1960 e 1970 e sua utopia de cidade aberta, quer se tratasse do projeto intelectual de integração das literaturas orais das línguas pré-coloniais da América, desenvolvido num sem-fim de projetos regionais por todo o continente.

A decapitação pós-humanista dos sujeitos intelectuais e artísticos foi o coroamento desse processo de desconstrução pós-histórica. A imposição de linguagens globais e as subseqüentes estratégias de reciclagens, collages e hibridações funcionaram finalmente como uma sorte de suicídio terminal, embalado pela academia do Primeiro Mundo como redenção dos novos súditos eleitos no reino dos céus digitais. Em realidade tratava-se da mesma estratégia implementada pelos missionários coloniais, só que com outros meios e jargões diferentes. Em última instância, também os velhos missionários redefiniram os signos cósmicos dos incas ou dos astecas como santos locais, e hibridizaram os fragmentos de suas memórias violentadas com os símbolos do novo poder global, para subordinar finalmente as posteriores identidades submissas à suprema potestade do Ser absoluto, que, ainda sendo a única moeda válida, encarnava-se em tantas subconstruções da diferença quantas fossem as províncias do império cristão universal.

Do ponto de vista hermenêutico, esse hibridismo é uma categoria tão trivial como a da prosa do ponto de vista literário. Em última instância, todas as linguagens são, com efeito, produtos híbridos. Só que o interessante não reside em saber se esse ou aquele signo é poesia ou prosa, como em sua simplicidade acreditava o burguês de Molière. O que é relevante, artística e intelectualmente falando, são antes os deslocamentos semânticos, as inversões ou omissões semióticas e os intercâmbios e condensações simbólicas violentamente impostos sob os signos e as armas do colonizador e do pós-colonizador. E o importante, do ponto de vista poético e político, é descobrir as resistências e subversões gramaticais que atravessam a história da colonização simbólica das linguagens e das culturas colonizadas: quer se trate dos grandes monumentos, como a produção missionária de Guadalupe-Tonantzin no século XVI, ou das pequenas misérias do século XX, como a camiseta da Coca-Cola com o signo da cruz que o ilegalizado imigrante maia ou zapoteca veste para que a polícia estadual de San Diego, Califórnia, não o confunda com um islâmico/terrorista, como séculos antes já tinham feito, de qualquer forma, os soldados de Hernán Cortés.

A segunda estrela da crítica literária pós-modernista, o “realismo mágico,” não é menos deslumbrante do que a primeira, mas possui peculiaridades ligeiramente diferentes. Ainda que naturalizado na América Latina, o termo em questão se cunhou em outro tempo e em outro lugar. O crítico de arte alemão Franz Roth o definiu em 1925 como um expressionismo fantástico que paradoxalmente adotava a forma de uma sóbria objetividade. Os exemplos que fazia comparecer sob sua denominação mágico-realista eram, por um lado, aqueles mesmos “pós-expressionistas” que, pelos mesmos anos, foram batizados como surrealistas por uma crítica francesa mais aguda: Rousseau e Ernst, Derain ou Miró, De Chirico e Carrá… A distância conceitual entre a classificação mágico-realista e a definição surrealista é, quanto ao mais, tão leve como uma brisa: o princípio de objetividade realista sob a qual se cumpre a estética do maravilhoso segundo a receita original do realismo mágico é indiscernível do conceito de delírio realizado ou de sonho objetivado com que André Breton batizou programaticamente o surrealismo.[7]

Mas precisamente o extremo formalismo e a máxima imprecisão do conceito real-maravilhoso o faziam mais idôneo para seu uso indiscriminado por parte da indústria cultural. A palavra “surrealismo” estava, apesar de tudo, vinculada a um programa político e a uma crítica social, ainda que o próprio Breton chegasse a trivializá-la como adjetivo neocolonial para designar essa ou aquela nação latino-americana em seu conjunto político e existencial. Tudo é mágico e tudo é realista nesta região do planeta: a mesma coisa, quer se trate da exótica violência dos paramilitares colombianos, dos ritos do candomblé da Bahia ou dos romances descartáveis de Isabel Allende. Os paradoxos linguísticos de Jorge Luis Borges e a poética mitológica de Juan Rulfo, para entrar em outra ordem de coisas, também caíram fatalmente sob essa indiferenciada classificação comercial. Mas, como no caso de sua prima-irmã hibridista, é essa acepção ampla e inespecífica que outorga à categoria real-maravilhosa sua eficácia cultural. Dos relatos de Benzoni no século XVI às crônicas naturais e políticas de Alexander von Humboldt no século XIX, a América não deixou de ser representada, afinal de contas, senão como uma realidade ao mesmo tempo obscura e maravilhosa, na qual a racionalidade “ocidental” corre perigo ou é questionada, seja sob a forma horrenda de antropófagos que comiam missionários e de terroristas que seqüestram engenheiros, seja sob as sublimes expressões líricas de amazonas de portentoso erotismo e palmeiras bêbadas de sol.

Em 1991, num congresso indigenista em Chiapas, México, tive a oportunidade de ouvir uma líder aimará, Beatriz Ahiaba. Sua intervenção num círculo de discussões antropológicas e políticas foi simples: “A chamada questão indígena não é outra coisa senão o problema do homem branco visto de ponta-cabeça”. Talvez se possa traduzir essa sentença com palavras mais conformes aos jargões acadêmicos. Essa famosa questão da América “aborígine”, seja indígena, seja popular, e de suas expressões artísticas ou religiosas, é a impossibilidade por parte do logos ocidental de compreender a pretensão que o constitui teológica e filosoficamente como missionário redentor, como sujeito racional universal, como agente de um desenvolvimento econômico modernizador, enfim, como sujeito colonizador. E que por essas míticas razões não deixou de negar e de destruir tudo o que é alheio ao seu princípio de identidade e dominação como “un autre”, como uma realidade radicalmente incompreensível, tachada e negada, à espera do Juízo Final e do correspondente espetáculo pós-histórico de um apocalipse global, já formulado pelos grandes missionários franciscanos do século XVI, como Gerónimo de Mendieta, antes que o reciclassem pequenos filósofos pós-humanistas como Francis Fukuyama.

Que esse “outro”, assim também chamado “inferior,” ou seja, o guarani ou o shipibo, ou qualquer outro povo americano, possa ter uma visão e um ponto de vista intelectual próprios sobre o logos ocidental e seus representantes institucionais (inclusive ali onde se lhes priva da voz, que é praticamente em todas as partes), e que essa visão possa assumir categorias cosmológicas, comunitárias e existenciais diferentes ou até mesmo alternativas com respeito ao logos cristão-ocidental, é algo tão impensável para Tzvetan Todorov
como o foi para Cristóvão Colombo. No entanto, é possível ver este assunto por um lado diferente (que de nenhuma forma é a católica “visão dos vencidos”). O que quero sublinhar a esse propósito é a possibilidade hermenêutica e a necessidade filosófica de reconstruir criticamente o processo civilizador da razão ocidental na América, e no assim chamado Terceiro Mundo em geral, do ponto de vista da irracionalidade dos genocídios, da destruição cultural e ambiental e dos sistemas fabulosos de opressão que criou e continua criando em nome de suas sucessivas missões redentoras, ontem universais, hoje globais, e da racionalidade teológica e tecnoeconômica que as percorre.[8] E quero sublinhar além disso que, deste horizonte reflexivo, o “realismo mágico” se revela como o que efetivamente pretendia explicar seu inventor, Roth: uma realidade caótica, irracional e violenta, mas que se expressa precisamente sob a mesma ordem “objetiva” (sachlisch), e portanto sistemática e racional que constitui e representa a dominação colonial. O realismo mágico é a penúltima farsa sob a qual esse racionalismo ocidental se põe a resguardo da consciência negativa perante suas ostensíveis consequências catastróficas, disfarçando a visão reflexiva desse “outro” sob o sex-appeal de insignificantes seduções lingüísticas neobarrocas.

A terceira proposição do pós-modernismo se apresentou sob o formato de um verdadeiro postulado absoluto e incondicional: a crença na dinâmica e nos efeitos da implosão das mass media como um processo histórico necessário, absolutamente positivo e com significado emancipador.[9] Dogma de fé: seu estatuto ontológico somente pode ser comparado com o da doutrina contra-reformista da transubstanciação, de cuja má metafísica é herdeiro. Ou, para dizê-lo logo e mau: o pós-modernismo instaurou o princípio absoluto do espetáculo midiático e comercial como a verdadeira superação metafísica do sistema político autoritário que o precedia. Espetáculo como a sublime expressão de uma democracia pós-colonial transfigurada num jogo linguístico. Espetáculo como a redenção virtual da realidade num mundo fictício de signos, dinheiro e consumo que destruiu efetivamente as formas de resistência social e intelectual criadas ao longo das décadas autoritárias dos anos 1960 e 1970.[10]

Em nossa época de falácias midiáticas e destruição militar e industrial em grande escala, não nos cansamos de repetir este imperativo absoluto em intermináveis litanias: só o midiático é. As mídias são a única realidade e toda a realidade. Só é aquilo que existe como ficção performática eletronicamente desenhada e globalmente disseminada. O que não é midiático não é. Os pós-modernistas latino-americanos (ficção acadêmica que encobre a realidade subdepartamentalizada de pós-intelectuais latino-americanistas) só tiveram de arrematar essa bênção ontológica do absolutismo midiático contemporâneo com comentários à margem sobre scripts multiculturalistas, performances feministas, discursos híbridos, uma mise-en-scène de sexualidades ambíguas e, nas notas, seus eternos papers politicamente corretos porque, politicamente, nada questionam.

Mas sob suas cortinas de fumaça se ocultaram confortavelmente os reais processos de concentração de poderes informativos e financeiros, a destruição programada de memórias culturais, a uniformização lingüística do continente e o controle eletrônico global das chamadas sociedades civis. Tudo isso arrematado com as sonoras manifestações do final da filosofia e a desintegração do sujeito, da subseqüente desconstrução da crítica social e a fragmentação micropolítica de resistências locais.

Em vez de abrir o olhar intelectual para a perspectiva filosófica e política da humanidade, sem a qual é impossível sequer entender nossos dilemas na era da Guerra Global, aplaudiram-se infantilmente novas subjetividades psicodélicas pré-formatadas eletronicamente, identidades culturais móveis desenhadas pelas corporações midiáticas, uma construção artificial de sociedades civis globalmente administradas e a banalização final das linguagens públicas, o mesmo na produção industrial de telenovelas bem como no projeto corporativo de presidentes, como sua penúltima consequência. E não quero demorar mais nesses páramos porque os problemas reais de hoje se encontram precisamente em outra parte: nas dezenas de milhões de humanos abaixo do nível de pobreza e de desnutrição crônica, na desintegração dos Estados soberanos pela corrupção local e pelas chantagens globais, na crescente fragmentação social, na destruição ambiental local subsequente à lógica de endividamento global, nos deslocamentos de massas indígenas e um sem-número de mestiços aos centros de produção industrial como força de trabalho escrava ou semi-escrava… O reverso da performance pós-modernista.

6

A penúltima visão da América que desejo examinar aqui deveria talvez ter sido a primeira: sua constituição. A revisão da Descoberta. A visão do conquistador. O logos da colonização. Refiro-me ao discurso teológico, jurídico, tecnocientífico, econômico e midiático sob o qual se construíram as sucessivas figuras dos poderes e os processos da colonização americana. Até o momento atual.

Em sua forma mais pura e simples foi essa a visão que Cristóvão Colombo elaborou em sua primeira viagem transoceânica. Começos de outubro de 1492. O navegante divisa uma série de signos — aves marinhas, troncos de árvores, certos tipos de alga e, finalmente, um horizonte. Signos empíricos que permitem inferir a existência de terra firme.
Tudo o que Colombo vê nessa terra firme ou ilhas impõe-lhes um nome próprio. Assim também designa com nomes próprios a quantos acidentes geográficos, animais, humanos e plantas encontrava em seu caminho. O “próprio” aqui não significa de modo algum a famosa adequatio terminus at re. Não encerra um princípio hermenêutico de autenticidade senão um postulado jurídico de posse. Por isso, ao desembarcar, Colombo faz algo mais do que pôr nomes às coisas: dita uma ata notarial, sob o signo da coroa e da cruz, que o declara descobridor do que viu e designou e proprietário perpétuo do que descobriu.

Três são os aspectos que distinguem esse procedimento jurídico-teológico-epistemológico do chamado achado ou descoberta (reperta) da América. Primeiro: a identidade nominalista do olhar objetivador, isto é, “cientista”, com a coisa gramaticalmente designada e ontologicamente constituída nesse processo de designação a partir da palavra própria e apropiadora. Segundo: a identidade dessa denominação objetiva e idêntica à sua constituição ontológica com sua posse jurídica ex-ata. Esses dois primeiros aspectos mostram a unidade indissolúvel que permeia a visão científica moderna e o sistema de dominação colonial como processo objetivador e exato, e portanto nominalisticamente racional e formalmente legítimo, não importa quais possam ser suas conseqüências destrutivas para as culturas, línguas e vidas humanas. Terceiro: do ponto de vista de seu objeto, ou seja, do “outro” ou dos “outros” descobertos, designados e possuídos, essa racionalidade semiótica e jurídica da apropriação objetiva e exata do mundo não precisa estabelecer distinções entre continentes e canhões, ou entre humanos e vermes.[11] O discurso colonial subordina epistemológica, ética e juridicamente o existente a uma categoria inanimada de objeto e dominação como processo de objetivação. Eis aqui o núcleo racional do processo colonial moderno: processo de dominação indiferenciada do real; e processo igualizador da civilização.

Sabemos de qualquer forma que “colonialismo” é uma palavra inquietante. Quiçá inclusive indesejada. Quanto mais ostensíveis sejam as consequências finais da indiscriminada apropriação e exploração de recursos naturais e vidas humanas compreendidas em seu conceito, e hoje visíveis por toda parte, tanto mais se quer adiar a crítica de seus constituintes profundos. Mas chamo profundos não os sistemas de representação do colonialismo de ontem e de hoje, nem seus jogos lingüísticos, nem suas performances religiosas ou midiáticas, nem suas representações acadêmicas. São profundos, sim, seus constituintes epistemológicos elementares, seus princípios teológicos e jurídicos normativos, suas estratégias militares e institucionais. Profunda é a teologia da libertação dos índios através do princípio missionário da culpa e a expiação sacramental de seus pecados nefandos. Profunda é a salvação político-econômica da sociedade civil terceiro-mundista através da restituição de sua dívida externa metafisicamente contraída, incluídos seus interesses bancários. São profundas as políticas de destruição ambiental e social sob as estratégias econômicas e militares da modernização e do progresso. Profundas são a teologia e a razão coloniais constitutivas do “Ocidente” como sistema tecnocientífico, econômico e político.

Sabemos ainda que esta discussão sobre o colonialismo é indesejada. O tradicionalismo espanhol desterrou inclusive a menção ao termo, em benefício de elusivas metafóricas insignificantes, como evangelização e descoberta, ou até com categorias irrisórias, como a do encontro entre dois mundos. Citações podem ser recolhidas, desde os mais eminentes nomes das letras do século XIX até despachos recentes das chancelarias, que fariam enrubescer as mentes humanisticamente educadas. A cultura anglo-saxã e centro-europeia, por outro lado, expressou múltiplas vezes sua repugnância moral às estratégias sanguinárias do colonialismo ibérico nas Américas. Paracelso desaprovava a legitimação papista dos imperialismos, ou seja, o genocídio católico, apostólico e romano que coroou as cruzadas medievais da Europa cristianizada. A consciência humanista, de Erasmo a Sebastian Franck, condenou as guerras imperiais de conquista e rapinagem em nome da Cruz. A visão negativa que os filósofos da Ilustração europeia, de Diderot a Hegel, deram da América espanhola e portuguesa encerrava a dupla crítica dos “índios” como uma raça débil (sua precária resistência militar e política à desorganizada conquista ibérica não precisa de muitas provas) e da monarquia hispânica como um sistema político despótico e sanguinário. Oswald Spengler chamou a conquista da América de “tarefa de bandidos”.

Efetivamente, a colonização da América foi uma façanha de bandidos. Mas se esse justo repúdio é injusto não se deve tanto ao que impugna, quanto ao que oculta. E o que oculta é que as colonizações ocidentais da América, África e Ásia só podem ser compreendidas a partir da continuidade que existe — do ponto de vista tanto teológico como epistemológico, e tanto tecnológico como militar — entre o mau colonialismo hispânico e o bom colonialismo anglo-saxão (compreendida a sucessão de genocídios civilizados e modernos que, dos extermínios em massa de índios nos pampas do Paraguai e da América do Norte aos campos de concentração da África do Sul, se estenderam ao longo do século XIX em diante). O problema não reside em estabelecer as diferenças entre os colonialismos cristãos, europeus e ocidentais, senão ressaltar suas continuidades e seus momentos constitutivos comuns.

Nos Estados Unidos as coisas não me pareceram mais esclarecidas nem liberais, apesar das aparências às vezes melhores. Os estudos coloniais e pós-coloniais deixaram de lado o colonialismo ibero-americano com o gesto distraído de quem está ocupado com algo mais importante. Como se a conquista da América se tratasse de um dano colateral do colonialismo inglês na Índia ou na África do Sul. E o fazem não só de uma maneira ostensível, como além disso fizeram-se surdos às claras vozes latino-americanas que denunciaram tão estúpida omissão.[12] No que diz respeito a todo o resto, a academia norte-americana propõe o colonialismo americano como uma performance, isto é, como um sistema de representações. A conquista da América afigura-se como uma espécie de “Orientalism” para esse “Outro Ocidente” que pretensamente é a América. Mas não se vê como um processo civilizador, como uma real e paradigmática transformação do ser de um continente inteiro, sustentada além disso ao longo de cinco séculos. Em muitos casos, esse mesmo academicismo desloca a teoria crítica da razão colonial para subcategorias micropolíticas de gênero, etnicidade e direitos humanos, elas mesmas integrantes da propaganda neocolonial/pós-colonial na era da Guerra Global.

Semelhantes manipulações metodológicas e seus correspondentes sistemas de censura não teriam maiores conseqüências que a do resto das rotinas acadêmicas se não fosse por terem escondido, ao mesmo tempo, sob seus tapetes institucionais o centro nevrálgico da questão. E essa questão central consiste em que o colonialismo ibérico estabeleceu os fundamentos teológicos e jurídicos de uma ordem global cristã que o colonialismo anglo-saxão refundiu a partir do século XVII nos princípios seculares da epistemologia empírico-crítica, e que a filosofia política do século XVIII reconfigurou, por sua vez, através da teoria dos direitos humanos. A concepção colonial do mundo — que Francis Bacon expôs em sua “crítica dos ídolos” e Hegel em sua teoria da extinção biológica das raças suscetíveis ao simples contato com o Espírito do Ocidente, e que Darwin ou Spencer reformularam como hierarquia evolucionista da raça branca em sua luta civilizadora pela sobrevivência do mais forte — expressa um e o mesmo princípio elementar: a superioridade política do messianismo cristão como princípio de dominação universal, seja sob suas cruzadas transcendentes ou sob o moderno postulado secular do progresso indefinido da ciência empírico-crítica.[13]

Essa dupla estrutura do logos colonial como processo ao mesmo tempo cristianizador e civilizador é representada, entre muitas outras, por duas figuras estelares e complementares do colonialismo ibérico. Por um lado, Las Casas: defensor do princípio da conversão cristã universal como sujeição teológico-política e como subjetivação no sentido do conceito transcendente de alma e liberdade. Las Casas, a quem não considero propriamente o “defensor dos índios” que a teologia progressista pretendeu, mas sim o missionário que conferiu à colonização da América seu sentido mais radical, isto é, o significado de uma transformação integral de seu ser, ou seja, sua conversão. A obra que revela esse segundo momento, normativa do processo civilizador, é a do historiador, lexicógrafo, gramático e político Antonio de Nebrija, que definiu os aspectos seculares, isto é, lógicos, gramaticais e lingüísticos desse mesmo processo universal de conversão, de sujeição e subjetivação imperiais sob o postulado racional de uma gramática colonial.

A questão não reside, portanto, em estigmatizar o colonialismo dos bandidos ibéricos para elevar retoricamente o colonialismo ilustrado da era industrial ou o colonialismo neoliberal da idade pós-moderna a uma categoria sublime. Isso não quer dizer que se devam ignorar as crassas diferenças entre o colonialismo teocrático ibérico e o colonialismo anglo-saxão empírico-crítico. O racionalismo indutivo não tinha necessidade de proibir as práticas religiosas do hinduísmo, por exemplo. Bastava confinar suas categorias cósmicas universais para além das fronteiras aduaneiras como simples fraudes locais. E sem dúvida isso por si só assinala uma clara diferença com relação ao trabalho evangelizador dos missionários da monarquia hispânica, baseado no extermínio sistemático dos sacerdotes e xamãs americanos, na proibição violenta de seus cultos e na eliminação programada de suas línguas. Em celebradas ocasiões, o colonialismo anglo-saxão foi inclusive além desse princípio ambíguo de tolerância, e assumiu as tarefas de resgate e restauração arqueológicos no Oriente Médio e na Ásia meridional, enquanto a armada de Pizarro e Cortés se distinguiu acima de tudo por sua capacidade de destruir milhares de templos e milhares de imagens e de códices sagrados no período impressionantemente breve de um par de décadas.

Mas tão importantes são essas ostensíveis diferenças como o fio comum que as percorre como momentos de um mesmo processo civilizador. Só a título de exemplo curioso, mas filosoficamente relevante, recordarei que a mesma categoria inquisitorial de destruição “de ídolos” que desempenhou tão formidável papel na destruição a sangue e fogo das complexas religiões e cosmologias da América, e de sua subseqüente aculturação sincrética ou hibridação compulsiva com os dogmas cristãos, constitui da mesma forma o postulado fundamental com o qual Francis Bacon definia a legitimidade epistemológica do novo colonialismo anglo-saxão: a critica idola. Sob seu privilégio antimetafísico se constituiu legalmente a instauratio magna, isto é, a nova Igreja da scientia&potentia tecnocientífica do industrialismo capitalista indutivo.

Mostrar a centralidade do colonialismo teológico do século XVI e sua continuidade discursiva e institucional com o colonialismo ilustrado dois séculos mais tarde é relevante em outra ordem de coisas. E esse novo assunto não é outro senão a definição de “Ocidente”, ou de “civilização ocidental”. Mas antes de deslindar esta espinhosa questão devo recordar outro equívoco, que é a crítica do eurocentrismo esgrimida com verdadeiro fervor e entusiasmo pelos postcolonial studies nas últimas décadas. De alguma maneira ambos os temas roçam suas precárias fronteiras conceituais.

A crítica do eurocentrismo girou o mais das vezes em torno daquilo que antes teria de ser chamado de perspectivismo provinciano e sombrio de um compound greco-latino hermeneuticamente insustentável que o classicismo ilustrado europeu estilizou arquitetônica, museística e literariamente como identidade sublime, no momento em que precisamente começava a decair militar e epistemologicamente o seu império colonial. Semelhantes ataques ao eurocentrismo são tão certeiros quanto brilhantes. E em particular o de Edward Said. No entanto, deixam em pé duas importantes questões. A primeira é que um conceito hermenêutico e crítico de Europa compreende necessariamente culturas não-ocidentais, como em parte o são a hebraica e a islâmica, e como o é em parte também a própria cultura grega, sem esquecer as culturas germânicas e celtas, que também não se encaixam na categoria de “Ocidente cristão”. Com isso não estou dizendo nada de novo contra aquilo de que o mais acerbo dos conservadorismos acadêmicos, hoje dominantes por toda parte, pudesse veementemente se queixar. Pode-se recordar a referência irônica de Nietzsche sobre a aprendizagem filosófica de Platão junto a um brâmane indiano. No século XX, René Guénon expôs a mesma perspectiva cética sobre a ocidentalidade da cultura greco-latina quando vista a partir das tradições filosóficas e religiosas mais antigas e mais complexas do Oriente Médio e da Ásia meridional e oriental.[14]

A segunda questão que desejo assinalar refere-se precisamente à origem e constituição desse conceito ou emblema de Ocidente em que o europeu e o eurocêntrico devem antes ser considerados como subcategorias particulares e casos secundários. Mas ambos os dilemas — o que concerne ao complexo mosaico de culturas históricas que configuram o conceito crítico do europeu tal como cristalizado, por exemplo, nas obras de Jehudá Abravanel, Espinoza ou Herder e a defesa do Ocidente no sentido de que as expressões comuns dos nacionalismos e fascismos europeus do século XX entenderam essa categoria — remetem a um só e mesmo princípio: a luta pela sobrevivência do cristianismo contra as culturas islâmica e judaica durante os séculos XII a XV, a subsequente unificação cristã das culturas da Europa sob a ação militar de sucessivas cruzadas, e a expansão urbi et orbi dessa ordem cristã ao longo das guerras e empresas coloniais que configuraram o conceito imperial da monarquia cristã universal primeiro, e o ideal moderno de civilização ocidental e global como arremate final.

Essa pequena mudança de eurocêntrico para “ocidental” abre uma perspectiva intelectual e política bastante ampla. Se o tema em questão é Ocidente, o problema já não concerne a suas óperas orientalistas, e sim a suas obras formadoras. A questão não reside na profusão do kitsch audiovisual que a Aída de Verdi coloca em cena, nem tampouco na patética monumentalização literária de Hernán Cortés como herói de livros de cavalaria. A questão infinitamente mais complexa reside na destruição, primeiro, dos centros espirituais islâmicos de Toledo e Granada, e, mais tarde, dos centros espirituais astecas e incas de Tenochtitlán e Cuzco como metas do processo constitutivo do Ocidente. E do incêndio das bibliotecas de Sarajevo e Bagdá como seu coroamento cinco ou sete séculos mais tarde, e em nome dessa mesma civilização cristã e ocidental. E o problema capital não reside, portanto, no orientalismo eurocêntrico da literatura inglesa do século XIX, nem em suas metástases performáticas na Ameríndia de hoje, e sim na destruição das memórias, no aumento da violência e na constituição de um sistema econômico e financeiro baseado na exploração destrutiva de recursos naturais e humanos ao longo de séculos. Portanto, a solução também não reside no revestimento multiculturalista do neocolonialismo pós-colonial politicamente correto na era da Guerra Global. O problema é um Ocidente originado nas cruzadas cristãs contra o Islã, e que, a partir de 1492, se cristaliza como um poder imperial expansivo que não reconhece fronteiras, nem jurídica, nem teológica, nem epistemologicamente, ao seu delírio apocalíptico de dominação universal. E para concluir esta linha de reflexões: o conceito de colonialismo se encontra precisamente no centro dessa encruzilhada da civilização moderna. É a categoria que define de maneira central essa ocidentalidade que ontem se chamava universal e hoje se exibe sob a bandeira do global.

Mas tudo isso não fecha ainda a definição filosófica da “colonização americana”, ou do conceito de “colonização” tout court. Por isso vou tentar fazê-lo a seguir, de maneira experimental e provisória. Não sem antes introduzir um parêntese histórico. Com frequência, quando se fala ou se escreve sobre a conquista de Tenochtitlán, parece que não se leva em conta que essa palavra equivale a uma total devastação física da cidade e de suas memórias, e que essa ação significou ainda a eliminação completa de suas organizações políticas e suas formas de vida. Além da liquidação biológica causada pelos massacres, das violações em massa de mulheres e do caos social, a fome e as pestes foram suas últimas consequências. E quando se cita a destruição de Granada, Tenochtitlán e Cuzco, costuma-se esquecer também de que essas cidades não somente eram centros políticos, dotados de uma organização econômica, administrativa e militar complexa, mas também, e antes de mais nada, eram centros espirituais. Eram cidades sagradas. E como centros sagrados garantiam o ser de vastas formações culturais, de suas organizações políticas e de suas tradições e memórias milenares.

O mais imponente depoimento da colonização americana (e, dito seja de passagem, o mais ignorado por uma “filosofia ocidental” que, de Hegel a Adorno, jamais se deteve para refletir sobre a lógica da colonização como momento crucial de sua expansão global) são os “colóquios” entre os últimos sacerdotes astecas sobreviventes à destruição de Tenochtitlán e os primeiros missionários trazidos ao continente americano. A disposição desse diálogo desigual foi, a julgar por sua transcrição em língua náuatle, muito simples. Compreende, por um lado, a interminável litania dos dogmas da doutrina cristã; por outro, a brevíssima resposta dos sacerdotes nauas. O discurso missionário se reduz a quatro ou cinco fórmulas, e a outras tantas cláusulas ditadas nos “Requerimentos” (a declaração formal de guerra que se lia ritualmente aos “índios”, seja em castelhano, seja em latim, previa invasão de suas cidades e apropriação de suas terras, seus corpos e suas almas). Seus centros argumentativos eram a expulsão do paraíso e a redenção do pecado original por Cristo, institucionalmente representado pela Igreja Romana. A seguir, expunha uma legitimação da violência genocida dos soldados cristãos como represália divina causada pelos pecados capitais que os índios tinham cometido desde suas mais remotas gerações. Por fim, ditava-se o corolário final: a visão sublime da conquista como missão reconhecedora da verdadeira humanidade dos vencidos e de sua redenção sacramental. Sem esquecer, é claro, seu coroamento ao mesmo tempo sacrifical e político-econômico: o ouro e o trabalho escravo entendidos como oferenda expiatória do rebanho cristão.

Mas esse processo de reconhecimento e conversão cristãos entranhava, em primeiro lugar, a negação formal e absoluta dos povos vencidos e “sujeitados” em sua existência particular como índios, gentios, escravos do demônio ou simplesmente “outros”. Negação que compreendia, em primeiro lugar, a destruição material e a condenação moral de seus deuses e lugares sagrados e a subsequente demonização e extirpação de suas memórias; e que culminava seu fatal processo de aculturação com a proibição sumária e absoluta de suas línguas e a hibridação compulsiva de suas formas de vida. “E Deus, que começou vossa ruína, a levará a termo, então perecereis totalmente” foi a sentença final que ditaram os conquistadores franciscanos a seus prisioneiros nauas. O final anunciado pela teologia da colonização era a liquidação absoluta do ser.

A resposta daqueles sacerdotes de Tenochtitlán a semelhante ameaça ontológica reflete ao mesmo tempo a angústia radical da situação histórica gerada pela conquista e um exemplar rigor religioso e ontológico. “Ieh mah ca timjqujean” — foram suas palavras. “Que não morramos… ainda que nossos deuses tenham morrido.”[15]

Os deuses, os de todas as religiões, são os fiadores do ser. Essa preservação do ser (wiffiren) constitutiva do sagrado é ontológica no sentido de que tudo o que existe está incluído no ser dos deuses. Mas é também física, psicológica, estética e social nas culturas como a asteca, maia ou inca, cujos “deuses” participavam de maneira imediata nos processos de reprodução dos ciclos da “natureza” e do desenvolvimento “histórico” da comunidade. Culturas nas quais esses deuses, a história social e a natureza constituíam e continuam a constituir momentos da unidade sagrada e indivisível de um só ser cósmico, único e intrinsecamente harmônico.

“Não morramos… ainda que os deuses tenham morrido” entranha nessa perspectiva um paradoxo: mortos os deuses, acaba-se a vida e termina o ser. E os sacerdotes nauas formularam expressa e claramente naqueles Colloqvios y doctrina christiana a consciência dessa consequência última da destruição colonial de seus deuses e seus cultos. Por que então exclamam “que não morramos”?

Os missionários cristãos da idade colonial interpretaram essa situação a seu modo. Para eles a resposta dos sacerdotes não significava mais do que o necessário reconhecimento protocolar da derrota militar da nação asteca, a correspondente renúncia voluntária a seus deuses e, subsequentemente, o abandono de sua língua naua e de suas formas de vida. Definitivamente não significava outra coisa senão o reconhecimento da renúncia de seu ser.

Renúncia significa submissão. Significa obediência. E essa poderia ser uma definição elementar de todo poder colonial: a colonização é a submissão do ser ao poder absoluto de seu aniquilamento. Mas a palavra que a rigor deve ser empregada para descrever analiticamente esse processo colonial de negação do ser é “sujeição”. Pela submissão e pela obediência ao poder colonial, os sacerdotes nauas renunciavam a seu ser e se sujeitavam a essa renúncia ao próprio ser. Essa sujeição era individual, pessoal e existencial. Mais exatamente, por essa sujeição o novo ser subjecto* se constituía como indivíduo, como pessoa ou como alma ou existência humana, no sentido específico definido pelo humanismo cristão. O ser negado e subjecto do povo vencido se constituía pela submissão e pela obediência como sujeito. A renúncia ontológica ao cosmo, à terra e à vida era o ponto de partida negativo pelo qual se constituía a nova identidade subjetiva do indivíduo humano e da comunidade como existentes submetidos e colonizados.

Sujeito sub-jecto, sujeição e subjetivação, subjecto e sujeito são construções de um mesmo processo ontológico, político e teológico constitutivo da identidade do colonizado e do processo racional da civilização. Por isso sujeito e sujeição são palavras etimologicamente afins. Por isso, em seus tratados sobre a escravidão e conversão de índios, Las Casas usa sub-jecto e sujeito como palavras sinônimas.[16] Enfim, a frase “Não morramos… ainda que os deuses tenham morrido”, paradoxal para quem a formulava, foi interpretada pelos colonizadores cristãos como submissão e obediência, como acatamento de um novo ser separado do ser, um ser transcendente sublimado a partir da derrota e da humilhação do ser, a partir do não-ser. E esse ser subjetivo do não-ser é o ser idêntico a si mesmo constituído pela culpa e pelo pranto. É o novo homem constituído pela morte como dimensão sacrifical absoluta da constituição subjetiva do colonizado. Esse ser subjetivado pela culpa e pelo pranto, pela consciência negativa do ser esvaziado e vencido, é o novo humano sacramentalmente construído pelo batismo compulsivo: o ser de um não-ser renascido como alma transcendente.

Esse é o significado negativo da preservação cristã do ser como redenção da culpa e, portanto, como transformação do ser a partir de sua negação pela condenação, pela penitência, pela submissão, pela obediência, numa palavra, pelo sacrifício. Mas esse é também o significado metafísico da colonização. Colonização como o ato transcendental de dizer não à natureza, à vida, à própria existência. Não aos próprios sentimentos e à memória coletiva e individual. Não às formas de vida próprias, no sentido do que propriamente pertence aos ancestrais, ao passado e à memória. Em suas expressões arcaicas, essa negação foi levada a cabo mediante a destruição física dos objetos mais sagrados, como códices e templos; e mediante o extermínio de reis, sacerdotes e dinastias inteiras. Em suas formulações jurídicas e políticas modernas, essa negação do ser foi representada sob a metáfora terrível do monstro Leviatã: a ferocidade destrutiva que abala a totalidade do ser e a dilui interiormente, e na qual se funda, de acordo com as filosofias políticas de Hobbes e de Hegel, o Estado constitucional moderno e a ordem histórica da razão. Colonialismo, enfim, é a dissolução total do ser sob a negatividade absoluta dessa figura histórica da razão.[17]

No entanto, é preciso sublinhar também que colonialismo não compreende somente ruínas e genocídio. Não significa o triunfo absoluto da destruição e da morte. Sob suas formas tanto tradicionais como contemporâneas, compreende ao mesmo tempo um processo radical de reconstrução. Processo que foi mal definido por categorias aleatórias como aculturação, hibridação ou evangelização. E que deve ser definido com palavra mais rigorosa: “conversão”. A colonização cristã, no sentido em que a conceberam as bulas papais, significa, em primeiro lugar, conversão. E a conversão colonial cristã, segundo a formulam programaticamente os tratados de propaganda, os confessionários e catecismos da Igreja Romana, significa uma transformação radical das concepções cosmológicas e das formas de vida, da relação com o corpo e a sexualidade e dos conhecimentos filosóficos ou médicos. Significava e significa a extirpação e a manipulação das memórias culturais e a consequente mobilização de uma massa social sem consciência e sem estrutura social, a massa submetida e obediente, para os campos sacrificais da produção escrava e para os centros sacrificais de reaculturação cristã. O sujeito negado, a consciência esvaziada do próprio nada, era redimido sacrificalmente ao mesmo tempo como servo de um processo infinito de produção e de morte nos tributos e impostos e como alma transcendente nas igrejas.

Conversão é o resultado desse duplo processo de aniquilamento do ser pela violência da guerra e da escravidão e da subsequente redenção sacrifical do ser como alma, sujeito ou identidade. O sujeito colonizado é a consciência que foi expulsa do ser e condenada a procurar eternamente a redenção de seu não-ser mediante sua identificação sacrifical e sacramental com o poder colonizador, ao longo de um processo indefinido de dessangramento físico e espiritual, econômico e político. Esse ser do poder colonial cristão é a transcendência, primeiro formulada dogmaticamente como reino dos céus, e mais tarde redefinida nos reinos secularizados da razão; primeiro engrandecida como apocalipse universal, e ulteriormente celebrada como progresso pós-humano e espetáculo pós-histórico.

Mas a lógica da colonização tampouco termina aqui, nesse simples dessangrar do humano subjecto e subjetivado. Enquanto restar a esse existente humano um hálito de vida (no sentido etimológico da palavra “hálito”, isto é, como ruah ou pneuma, como energia vital e substância espiritual), persistirá sua preservação no ser. Essa preservação no ser, no sentido ontológico mais radical que compreende os deuses e suas memórias e a unidade da vida e o cosmo, é a resistência. Por isso o paradoxo dos sacerdotes nauas não se reduz a um reconhecimento interior do princípio sacrifical de morte e transfiguração, de culpa e obediência, de submissão e conversão do ser que o redentorismo cristão perpetuou ao longo de sua expansão colonial e pós-colonial, teocrática ou eletrônica. “Não morramos… ainda que os deuses tenham morrido” não equivale à confirmação tautológica de um ser humilhado e vencido, à litania de auto-afirmação de um ser negativo porque arrancado do ser. Não significa a confirmação de uma alma submissa e transcendente, e esvaziada de seu ser. Antes expressava o desejo ou a vontade de resistir no sentido da preservação da existência individual, dos deuses e do mundo. Era a afirmação elementar da resistência do ser. A fórmula “Não morramos… ainda que os deuses tenham morrido” compreendia ao mesmo tempo a negação do não-ser e a primeira expressão ontológica da resistência anticolonial.

A primeira e última palavra, a palavra pronunciada desde o desgarramento mais fundo do ser, é o não à negação do ser. É o não ao não-ser.[18] Esse não ao terror e ao caos, esse não ao reino da escuridão e da morte foi expresso pelos sacerdotes nauas naqueles “Colloqvios” como a volta ao “Tlalocan”: como restauração da unidade do ser e restituição do estado de harmonia entre o humano e o cosmo que a conquista e a conversão cristãs tinham destruído; isto é, como retorno ao paraíso.[19]

7

Última visão da América Latina: América & Paraíso. Visão e versões do paraíso americano. Simulacro do paraíso nas lodges turísticas caribenhas ou amazônicas, que anunciam contaminantes viagens ecológicas a destruídas aldeias indígenas e ilhas virgens poluídas. Paraíso/inferno tropical das missões militares de ajuda e destruição biológica e humana, onde não existem fronteiras e se praticam impunemente a violação criminosa, a extorsão e a guerra. Paraísos real-maravilhosos da indústria cultural. Quero fechar, no entanto, esta seqüência de representações da América com uma “Visão do paraíso” e render homenagem à obra do historiador da cultura e humanista brasileiro Sérgio Buarque de Holanda.[20]

Tal foi a visão da “América” que tiveram Cristóvão Colombo e Pero Vaz de Caminha. “Grandes indícios são estes do Paraíso Terrenal, porque lugar é conforme à opinião destes santos e sacros teólogos”, escreveu Colombo em sua terceira viagem.[21] “Inocência […] gente boa e de bela simplicidade”, são as palavras de Caminha em seu relato da descoberta do Brasil.[22] Antonio de León Pinelo, um historiador convertido que viveu a maior parte de sua vida no Peru, expôs uma definição mais radical do que a do próprio Colombo. No alto Amazonas, em torno de Iquitos, encontrava-se o paraíso bíblico conforme com todas as suas descrições hebraicas.

Essas visões históricas do paraíso no Novo Mundo tinham e têm sobretudo um significado espiritual. A representação do paraíso compreendeu ao mesmo tempo a restauração da harmonia cósmica do ser. De uma harmonia possível, num sentido tanto ontológico como social.[23]
Mas, antes de prosseguir com esta visão do paraíso, quero citar a breve crônica de uma viagem, Viagem ao fim do paraíso:

No horizonte desta língua desolada de deserto não consigo ver mais do que tanques desconjuntados, entulhos industriais, lixões. Do outro lado da linha ziguezagueante da barda de aço se estendem as miseráveis favelas mexicanas como um lendário exército de desertores abandonados a um terrível destino. Helicópteros militares sobrevoam a área. Patrulhas motorizadas rastreiam as colinas de terra queimada e estéril. Paisagem de guerra. Tijuana: deserto e fronteira.

  • Aproveitam os dias de chuva para saltar — informa-me o policial federal gringo com um marcado sotaque rio-platense. Um jovem escalou a cerca e vigia impassível os movimentos motorizados da Border Patrol. A poucos metros, outros sete indocumentados acabam de franquear ilegalmente a linha letal. Fogem pelo denso nevoeiro.
  • Não, nada! Só para nos distrair. Atrás da barreira, a uma milha, aguardam outros vinte ou mais trinta. Aproveitam o nevoeiro. Esperam o cair da noite.

Depois conta uma história de meninos armados que abrem fogo a partir dos caminhões das máfias, para que os federais não possam disparar sobre eles.

  • Minha família me despreza por vigiar uma fronteira onde tantos morrem.

Depois, a meia voz, o policial confessa o inútil segredo de que os culpados não são os índios, senão os grupos de traficantes de armas e drogas e seus cúmplices nas administrações de um e do outro lado.

  • Lá onde a cerca está quebrada é que entrou esta noite um caminhão pesado. Dos que se usam no Exército. Carregamento de homens, armas e drogas.

Tijuana é um modelo de crescimento suburbano nas margens legais das economias corporativas descentralizadas. Zona que concentra massas humanas militarmente desalojadas das regiões conflituosas da América Central. Fugidas à procura do El Dourado da América do Norte. Mas que não conseguem transpor a fronteira.

Container de força de trabalho barata, livre para contaminação ambiental, isenção indefinida de impostos industriais: esta é toda a riqueza de Tijuana. Labor pool para a economia de serviços da metrópole pós-moderna de San Diego (centro naval militar e vanguarda da indústria biológica). Tijuana é também um protótipo das novas fronteiras étnicas que separam o Primeiro Mundo de uma sucessão inumerável de submundos dependentes. As fronteiras blindadas, os cordões sanitários de highways e quartéis e os sistemas de vigilância eletrônica definem este deserto como campos de concentração, trabalho forçado e morte da economia globalizada.

Esta tarde visitei uma favela. A uns vinte quilômetros do centro urbano. Acampamento de lodo entre colinas nuas. Criada em 1988 por desalojados das zonas de violência paramilitar de Oaxaca e Chiapas. Aproximadamente 2 mil famílias. Um graffiti anuncia à entrada o nome do povoado: Maclovio Rojas. Em memória de um índio mixe que a polícia tinha assassinado anos atrás por liderar um sindicato independente de trabalhadores agrícolas. Os moradores deste descampado iniciaram em 1994 a legalização de suas terras ocupadas junto ao Ministério da Reforma Agrária. Processo burocrático, corrupto e lento. Antes que tivesse sido concluído, uma proliferação acelerada de maquilas chegou às portas desta favela perdida no deserto. Com as maquilas vieram também as instalações de água potável, a eletricidade e os telefones. Também com eles se ampliaram os viadutos de transporte pesado. O que só uns anos atrás era um páramo de índios e coiotes havia se convertido num paraíso da especulação imobiliária. As famílias locais do narcotráfico tinham estendido sua poderosa mão financeira à região.


O governo local não cessou o acosso militar a esta comunidade desde 1995. Suas frágeis casas, construídas com despojos industriais, foram múltiplas vezes assaltadas e destruídas pelos soldados. Conheci a líder comunitária: Hortensia Hernández. Jovem, de feições sensuais, poderosa cabeleira negra, quadris largos, olhos negros profundos, brilhantes. Com um punhado de colegas fundou as primeiras choças do povoado. Animou as mulheres a fim de se defenderem dos sucessivos ataques da polícia militar enquanto os homens estavam ocupados com as maquilas. Em várias ocasiões enfrentou as corruptas autoridades locais. Várias vezes encarcerada, torturada, violentada.


Tijuana: mundo de magia e cor. Seus clubes noturnos são paraísos exóticos de aventuras multirraciais de sexo e morte. Suas paisagens híbridas de malls norte-americanos e símbolos degradados do México impenetrável hipnotizaram a academia e a indústria cultural pós-modernista. A América Latina é muitas Tijuanas.[24]

8

Só podemos compreender a lenda do paraíso de Colombo, Pero Vaz de Caminha ou Alexander von Humboldt a partir de seu contrário: a dor do desterro de milhões de homens e mulheres, o trauma da destruição colonial de culturas e ambientes ecológicos, o horror ante a violência organizada e a morte.

Para Garcilaso, Tahuantinsuyu, o nome geográfico do império andino dos incas, era um “paraíso” num sentido cosmológico. Essa palavra quíchua é traduzida por “os quatro cantos do mundo” e compreendia, por sua vez, um sistema de representação do universo através de uma rede complexa de divindades cósmicas e terrenas, e a organização política de uma sociedade ideal a partir de um único princípio ontológico e sagrado de harmonia. Garcilaso dedicou uma boa parte de sua obra precisamente à reconstrução das características etimológicas, religiosas e políticas dessa harmonia cosmológica em que se fundavam as sociedades andinas. Mas, além disso, nos Comentarios reales, sua obra filosófica e historiograficamente mais importante, o primeiro humanista latino-americano estendeu essa noção religiosa, cósmica e política de um ser harmônico com o conceito moderno do mundo redondo e unitário criado pelas descobertas geográficas e astronômicas do Renascimento, de Colombo a Kepler. Esse conceito radical e programático é “o mundo, totalidade e unidade”.

Seria equívoco identificar essa categoria garcilasiana de uma irredutível unidade e totalidade do mundo com o conceito teológico, comercial e jurídico de mundo que impôs o colonialismo renascentista, o “totus orbis”, ou com suas redefinições modernas sob as metáforas financeiras, midiáticas ou militares da globalidade. O filósofo andino formulava essa unidade ontológica do cosmo em expressa oposição à unificação jurídica e teológica de um mundo sob o poder externo de um colonialismo que o tinha partido militar e financeiramente em dois: o suposto Mundo Novo e o chamado Velho Mundo. A divisão-matriz que persiste sob nossas subdivisões de segundos, terceiros e quartos mundos pós-coloniais.

Garcilaso construiu uma cosmologia política a partir da concepção ontológica de uma unidade imanente do ser desenvolvida pelo filósofo sefardita Jehudá Abravanel, cujo tratado, Dialoghi d’amore, traduziu para o castelhano. O mundo constituía uma indissolúvel unidade harmônica, de acordo com Abravanel, em virtude da coesão material e da comunicação espiritual do existente através de um princípio de atração e equilíbrio imanente, não de um sistema exterior e transcendente de dominação. A expressão cósmica dessa unidade ontológica era a música celeste. Sua expressão humana, o amor — compreendido sob suas múltiplas expressões sexuais e poéticas, místicas e metafísicas.

Essa cosmologia se encontra arraigada na mística e na astronomia islâmicas, tem parentesco também com as filosofias orientais do hinduísmo e do taoísmo, mas extrai sua força, em primeiro lugar, do misticismo da cabala ibérica. A concepção do ser como totalidade cósmica unida em si mesma e portanto harmônica, que Garcilaso condensa na fórmula “totalidade e unidade”, procede de O Zohar, o livro do esplendor. Nessa obra, e no contexto das definições das origens do cosmo (Bereshit), fala-se do “tudo que era um numa totalidade”.[25] O Zohar considera, além disso, que essa totalidade e unidade do ser descreve alguns aspectos do divino, tanto em sua definição filosófica como o Sagrado Uno quanto inclusive em seu nome: YHVE.

Para o inca Garcilaso não era difícil entender o ser do mundo a partir dessa perspectiva de sua unidade harmônica imanente. Esse era precisamente o ponto de partida da cosmovisão incaica, que em seus Comentarios reales reconstruiu detalhadamente. Mas Garcilaso invocou ao mesmo tempo esse princípio unitário da totalidade do existente e do mundo como crítica à divisão colonial do mundo que tem persistido até hoje.

Com essa visão ontológica e poética do paraíso desejo concluir. Metáfora complexa que passa pelas cosmologias espirituais da cabala e do sufismo, que habita o centro secreto do misticismo e do humanismo cristãos, e que a partir dessa tradição estabelece um diálogo ao mesmo tempo filosófico e civilizador com as concepções cosmológicas de maias, zapotecas ou incas, ou com as sabedorias xamânicas amazônicas e mesoamericanas. Visão espiritual de uma Europa que não se deixa encerrar sob as categorias teológicas e epistemológicas do Ocidente forjado pelas cruzadas medievais e modernas. E de uma América Latina que não se deixa soterrar pelas sucessivas promessas de redenção eclesiástica e nacional, positivista ou pós-histórica.

A importância desse ponto de partida ontológico que Garcilaso formulou não deve ser deixada em último lugar. Configura o único campo hermenêutico a partir do qual se pode construir uma crítica da dialética cristã e tecnocêntrica de razão e colonização. Esse foi também o ponto de partida das revoluções anticoloniais americanas, de Titu Cusi Yupanqui, no século XVI, até Tupac Amaru, nos últimos anos do século europeu das Luzes. É o horizonte que definiu também a poética latino-americana através de suas obras mais originais do século XX: Oswald de Andrade, Rulfo, Guimarães Rosa, Arguedas.

* Tradução: Adalberto Luís de Oliveira.

 

* Subjecto, palavra latina que significa “posto debaixo” e está na origem de “sujeito” e “súdito”, aquele que está submetido à vontade de outrem. (Nota do tradutor.)

Notas

[1] João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984), pp. 543 e 552.

[2] Juan Rulfo, Obras (Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1987), p. 254.

[3] Augusto Roa Bastos, Yo, el supremo (Cidade do México: Diana, 1974), pp. 454 e 450.

[4] João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, cit., p. 393.

[5] Marcelo Ferraz (org.), Lina Bo Bardi (São Paulo: Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, 1993).

[6] Eduardo Subirats, Memoria y exilio (Madri: Losada, 2003), pp. 171 e ss.

[7] Cf. Franz Roth, Nach-expressionismus; magischer Realismus: Probleme der neuesten Europiiische Malerei (Leipzig: Klinkhardt, 1925), capítulo “Áusserster Phantastik bei ãusserster Nuchternheit”, p. 46.

[8] Ver Eduardo Subirats, El continente vacío (Cidade do México: Siglo XXI, 1994)

[9] John Beverly et al. (orgs.), The Postmodernism Debate in Latin America (Durham/ Londres: Duke University Press, 1995), P. 141.

[10] Ver Eduardo Subirats, A cultura como espetáculo (São Paulo: Nobel, 1989). Edição revista: Culturas virtuales (Cidade do México: Coyoacán, 2001).

[11] Jan van der Straet (Stradamus), em Nova reperta (1589), ilustra esse igualamento racional do mundo como descoberta, como “reperta”, numa gravura em que canhões, bichos-da-seda e continentes inteiros são exibidos num mesmo plano ontológico como objetos tecnocientíficos.

[12] Entre outros autores, devem ser citados Ema von der Walde, Fernando Coronil e Santiago Colás. Ver Ema von der Walde, “Realismo mágico y poscolonialismo: construcciones del otro desde la otredad”, em Santiago Castro Gómez & Eduardo Mendieta (orgs.), Teorías sin disciplina: latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate (Cidade do México: Porrúa, 1998), pp. 123-147.

[13] Francis Bacon, Novum Organum, The Works of Francis Bacon (Stuttgart: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963).

[14] René Guénon, Introduction générale a l’étude des doctrines hindoues (Paris: M. Rivière, 1921).

[15] Coloquios y doctrina cristiana, trad. Miguel León-Portilla (Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1986), pp. 161 e 148-149.

[16] Bartolomé de Las Casas, “Doce dudas”, em Obras completas 11 (2) (Madri: Alianza, 1992), p.79.

[17] J. W. F. Hegel, Phánomenologie des Geistes, XXXVIII (Hamburgo: F. Meiner Verlag, 1988).

[18] Klaus Heinrich, Versuch uber die Schwierigkeit nein zu sagen (Frankfurt am Main:

Suhrkamp Verlag, 1964), p. 100.

[19] Paraíso de Tláloc”, em Coloquios y doctrina cristiana, cit., p. 151, nota 16.

[20] Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimen

to e colonização do Brasil (São Paulo: Saraiva, 1958).

[21] Cristóbal Colórt, apud Consuelo Varela (org.), Los cuatro viajes. Testamento (Madri: Alianza, 1986), p. 242.

[22] Pero Vaz de Caminha, apud Silvio Castro, O descobrimento do Brasil: a carta de Pero Vaz de Caminha (Porto Alegre: L&PM, 1985), p. 94.

[23] Antonio de León Pinelo, El Paraíso en el Nuevo Mundo (Lima: Torres Aguirre, 1943).

[24] Texto de minha autoria, até então não publicado.

[25] Na versão inglesa, “all was as one in one entirety”, cf. Zohar, trad. Daniel C. Matt, vol. I (Standfort: Standfort University Press, 2004), p. 111.

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