1988

Visões do inferno ou o retorno da aura

por Flavio Aguiar

Resumo

Na passagem do Inferno ao Purgatório, e antes de alcançar a bem-aventurança do Paraíso, Dante vê Lúcifer “de pernas para o ar” e descobre como a chave do mundo que atravessou. Ele tem uma “visão”, isto é, uma experiência que gera um anel de saber, o mesmo no qual se forma a “memória viva” do literário. Essa visão, já anunciada no episódio da última viagem de Ulisses (com seu pendor “de ir pelo mundo, em longo aprendizado, / dos homens perquirindo o erro e o valor”), dá forma a um novo sentido da humanidade que vai crescer com o Renascimento. E isso não só porque Dante cria pela primeira vez uma “epopeia teológico-filosófica” em língua vulgar, mas porque os condenados do Inferno podem agora contar sua aventura. Emerge uma nova sensibilidade para o que fora banido. A energia não vem mais do alto, mas de baixo. Daí a beleza dramática da voz dos condenados. Eles têm acesso à memória humana através do acesso à palavra. Essas mesmas características infernais reaparecem na literatura brasileira (e latino-americana) recente, cujos personagens (nas Memórias do cárcere de Graciliano, no Macunaíma de Mário de Andrade ou nos Sertões de Euclides, por exemplo) também buscam ter acesso à compreensão de si e do mundo, da miséria e da violência em que vivem. Buscam reverter o sentido do tempo, criar das ruínas coloniais uma cultura nova e refazer cada imagem, como Drummond com a “pedra no meio do caminho” que evoca, em continuidade e ruptura, a primeira linha do Inferno e da Divina Comédia de Dante.


O INFERNO REVISITADO

Para sair do Inferno, Dante deve passar pelo corpo de Lúcifer, no vértice do cone que ele descera em companhia de Virgílio. O poeta se apoia nos pêlos de Satã e desce até a virilha do gigante tricéfalo, que masca os três grandes traidores da humanidade: Cássio, Brutus e Judas. Passado esse ponto nevrálgico do mundo, do inferno, e do universo, ponto a que convergem as linhas do subterrâneo em que o poeta se perdera, Dante se dá conta de que não desce mais, mas sobe; voltando à rocha, contempla uma imagem nova do mundo satânico: o Mal personificado, Lúcifer, senhor do mundo subterrâneo e contendor dos desígnios divinos no terreno, está de cabeça para baixo. Dante vê então o Demônio na sua verdadeira posição, de pernas para o ar, como fora jogado do céu depois de sua revolta contra Deus. Depois desta visão, nada mais há a ver no Inferno, pois a chave deste está decifrada. Dante e Virgílio se encaminham rapidamente à saída e esta parte do poema termina aos pés do Purgatório.

Pelos olhos de Dante, o leitor acaba de compreender que aquilo que ambos viam, com a ajuda de Virgílio, era apenas uma aparência, uma refração da verdadeira perspectiva. Dante e o leitor tiveram uma visão. O percurso prévio, a descida em forma de espiral em direção ao corpo do Demônio, prepara a alma do poeta. O caminho se concentra, o sentimento se adensa e uma imagem surpreendente faz eclodir um saber acumulado, que inverte a perspectiva habitual. Essa imagem concentra as anteriores, contendo e repondo em questão o seu sentido. A visão revela mais que a sua própria imagem. Ela contém um segredo, uma chave para o mundo que a precede. Ela encerra e ao mesmo tempo libera a percepção do viajante. Dante acaba de compreender por que, afinal, não deve ter piedade dos condenados, por mais que sofram. Eles são imagens do próprio Mal, por ele alimentadas. É sua culpa, do Mal e de seus adoradores presentes, passados e futuros, se o mundo terreno deve agora sofrer a passagem do tempo como decadência. Depois de assim se iluminar, Dante pode prosseguir uma viagem pelas alturas do Purgatório, do Paraíso e dos círculos da bem-aventurança, até chegar à última Visão, à contemplação da luz absoluta que, em nossos tempos menos católicos, os poetas costumam buscar no vazio da página de Mallarmé, e que o cotidiano depõe na tela de TV, afinal muda após o último programa.

Uma visão consiste tanto no caráter único da imagem percebida como na natureza particular da contemplação que se tem dessa imagem. A visão se põe como um gesto dramático, onde o olhar e o objeto do olhar se confundem, se queimam, e um saber se completa e portanto se revela. O olhar apreende a identidade daquilo que acabara de ver, de tudo o que vira, inclusive de si mesmo, olhar. Uma visão revela o mundo enquanto portador de um segredo, que pode muito bem ser um enigma, e no uma resposta. Uma visão nos põe além do mundo do conhecimento, que admite o desconhecido; ela emerge do mundo do saber, que admite o enigma, o limite, o silêncio.

Uma visão não se limita a revelar um segredo parcial; ela revela um ritmo, um estar-no-mundo, ela é a transformação do vivido em experiência, em presença carregada de imagens. Conviver com essa presença estrutura uma memória enquanto saber, enquanto um anel de significação emanador de imagens, no qual o ser humano pode se situar. No poema de Dante há a expectativa de que esse anel de saber seja completo, e que ele de fato não se abra senão diante da contemplação da Infinita Sabedoria, aquela de Deus. A perda das luzes da eternidade, que se corporificou no Século de outras Luzes — as da História impôs a perspectiva de que qualquer fechamento deste saber é uma ilusão: o
anel se abre sobre o silêncio, o espaço enigmático do outro, sub cujo olhar o nosso próprio olhar-espaço se faz enigma, possibilidade/probabilidade de uma nova identidade.

Este anel de saber é, no horizonte da linguagem, uma fonte de imagens, de presenças-memória. Ele é fonte de identidades, e enquanto modo de estar-no-mundo é um campo de forças da imaginação. Do confronto deste anel de saber, que circunda o mundo do conhecimento consciente e conforma a disposição do corpo, com a alteridade e com a natureza, nascem o ritual e o mito, organizando uma tradição. À medida que este confronto é mediado pelo mundo do conhecimento organizado a partir da consciência, forma-se o sentido do literário. Este se superpõe ao mundo do mito, mas dele guarda residualmente a força original de fonte de saber… A condição de verdade desta fonte emana de ser ela o fulcro natal de todas as atividades da linguagem, franja onde se abre a mundo do conhecimento consciente. Se não fora esse anel de saber, o próprio conhecimento ficaria emperrado, girando em torno do conhecido com a ilusão de avançar, em delírio organizado. Ao contrário do que crê qualquer crítica partidária, a condição de verdade desse mundo imaginário não se apóia em que traduza fielmente um mundo or-ganizadd de conceitos abstratos em imagens concretas. Este anel de saber é uma memória viva, mutante, corporal. Ele é fonte de arte, de olhar, de gesto, de palavra, de expectativas que só se revelam em situação. Não se pode lê-lo senão nestes gestos e fazeres presentes que simultaneamente o põem em exposição e o de-formam; gestos e fazeres que em arte se cristalizam em obras.

Uma visão corresponde a um momento radical da vida desse anel em um determinado corpo; ao momento em que ele, no impulso de se completar, de se concluir, muda de horizonte e se transforma: salta, descontinuamente, inaugurando uma nova memória. Dante é ainda um exemplo feliz: assim como o poeta vê o Mal em seu enquadramento correto na moldura religiosa medieval, ele vê, no Inferno, uma humanidade em excesso, em intenso excesso, carregada de dramaticidade e de uma beleza que não se encontram nas outras partes do poema. Desse excesso, que se encontra a cada volta dos círculos infernais, é exemplar a última viagem de Ulisses:

E quando a dupla chama, de viés,

se foi chegando, quis o meu bom mestre [Virgílio]

interrogá-la logo, e assim o fez:

“Ó vós que vejo neste exílio alpestre,

num fogo só, se algo vos mereci

quando, na glória do viver terrestre,

vossos feitos em versos referi,

parai um pouco! E um dentre vós nos diga

onde se achava ao aportar aqui!”

Eis que a ponta maior da chama antiga

começou a mover-se, crepitando,

tal a que um vento ríspido castiga.

E de um e de outro lado se agitando,

um som soprava, como que saído

de seu calor, e que dizia: “Quando

fugi de Circe, após quedar retido

mais de um ano em Gaeta enfeitiçada,

antes que a houvesse Eneias conhecido,

nem de meu filho o olhar, nem a extremada

velhice de meu pai, nem mesmo o amor

de Penélope ansiosa e apaixonada,

nada pôde abater o meu pendor

de ir pelo mundo, em longo aprendizado,

dos homens perquirindo o erro e o valor.

Lancei-me ao mar, em lenho delicado,

junto à pequena e fraternal companha pela qual nunca fui abandonado.

Ambas as costas vi até a Espanha,

até Marrocos, e a ilha vi dos Sardos,

e outras ali que o mar em torno banha.

Já bem mais velhos éramos, e tardos,

quando à barra chegamos apertada,

onde Hércules depôs um de seus fardos,

sinal para não ser ultrapassada:


ficou Sevilha atrás, pela direita,


e foi, à esquerda, Ceuta ladeada.

irmãos (eu falei), que desta feita

aos confins avançastes do Ocidente;

entre perigos, onde o sol se deita,

à pouca vida em vós remanescente

não recuses a esplêndida experiência

do mundo ermo e ignorado à nossa frente.

Relembrai vossa origem, vossa essência:


criados não fostes como os animais,


mas donos de vontade e consciência. —

Aos companheiros, com palavras tais,

instilei tanto o gosto da jornada,

que nem eu mesmo os reteria mais.

A popa à parte matinal voltada,

demos com força aos remos, e cingindo

à esquerda a rota, fomos de longada.

A noite os astros todos descobrindo


ia do polo austral, e, pois, se via


na linha d’água o nosso decaindo.

Cinco vezes brilhante ao céu subia

a lua, e tantas outras se apagava,


enquanto o firme rumo a nau seguia.

Súbito, um monte vimos, que se alteava,

escuro, na distância, e erguido tanto,

que de outro igual nenhum de nós lembrava.

Logo mudou nossa alegria em pranto:

eis que veio da terra um furacão,

e ao frágil lenho arremessou seu manto

Por três vezes levou-o de roldão;

na quarta, a popa ergueu, e mergulhou

no fundo a proa, à suma decisão,

até que o mar enfim nos sepultou.”

Dante deu forma ao momento em que a moldura medieva se deixava ver em seu esplendor, mas desafiada por um novo sentido de humanidade; deu forma também ao desafio da razão humana diante deste mundo que logo iria declinar, invadido que já estava pelas razões e pelo desejo do desconhecido. Lúcifer de cabeça para baixo revela também essa tensão: é uma tentativa de explicar o Mal enquanto aparência, de colocá-lo em perspectiva. Mas a visão revela a dupla face dessa tensão. Se Dante se deixa tomar pelo alívio de contemplar o Mal em sua verdadeira posição, de cabeça para baixo, também é arrebatadora a contemplação dessa humanidade infernal, cuja dignidade radical é a de aceder à relativa eternidade da palavra humana, literária. Esta palavra, naquela situação, pertence ao poeta, que promete a cada um dos condenados contar o episódio do encontro aos demais homens. Os condenados afirmam sua presença extremando o caráter que tiveram em vida. Esse gesto os fecha em sua natureza decaída aos olhos daquela moldura religiosa; mas abre, no poema, e de modo inesquecível, a presença de um novo espaço que durante o Renascimento continuará crescendo e que por fim fará implodir definitivamente a arquitetura religiosa e ptolomaica do mundo, já em meio à Revolução, às Luzes e às guerras de Independência das colônias americanas.

Uma visão é um salto, é viver e ao mesmo tempo abrir um anel de saber; é compreender e abandonar uma identidade. Uma visão literária não tem o sentido passivo da contemplação religiosa, de impor-se um Olhar ou uma Palavra de Além. Oferecer-se a uma visão é saltar além, é ver a tradição e rompê-la. É a presença da tradição que dá à visão sua inteligibilidade; mas é a ruptura desta com aquela que lhe dá sua condição de percepção. Uma “visão” que se limite, em sua construção, a confirmar a tradição não é uma visão; é uma tautologia.

Em seu estudo Literatura europeia e Idade Média latina, Ernst Curtius diz que Dante seguia o caminho aberto pelo teórico Alain de Lille que, alguns decênios antes, sublinhara a necessidade de se abandonar a “arcaizante epopeia latina” e de se fundar um novo gênero poético para descrever “o ascenção da Razão ao reino da realidade transcendental”. Alain de Lille pedia uma “epopeia teológico-filosófica”. Ainda segundo Curtius, neste novo gênero Dante fixou a arquitetura divina e uma profecia cifrada, cujos sinais são a três feras que desviam o caminho do poeta, o Veltro, personagem oculto que deveria salvar a Itália, a presença de Beatriz, e o conjunto numérico 500, 10 e 5. Além disso, que parece ser um dos objetivos centrais da Divina comédia, Dante pôs em movimento enciclopédico, pela primeira vez na história do Ocidente, uma língua vulgar, levando-a a ampliar-se até recobrir o universo do conhecimento e o anel de saber de seus contemporâneos.

O CONFLITO BÁSICO

O que se encontra no Inferno?

Uma descida em círculos concêntricos até a epifania demoníaca: a contemplação da raiz do Mal personificada numa forma particular, a de Lúcifer tricéfalo. A visão de Lúcifer libera Dante; a partir daí ele pode seguir o caminho da liberdade. Até essa visão, Dante presencia um mundo “arruinado, de repulsão e estupidez”, de onde a piedade e a esperança estão ausentes. Ali se multiplicam os banhos em sangue, em dejetos; as florestas, moscas e vespas invencíveis; os ventos indomáveis e as emanações miasmais; as chuvas e os frios sem medida nem ordem temporal, os calores excessivos, os rochedos, as pedras, os abismos, as feras e os demônios. Multiplicam-se as câmaras de tortura, os instrumentos de castigo, línguas que não têm sentido, mutilações. O Inferno é um mundo de loucura, de desrazão, de terror, um mundo ao contrário, do avesso. É neste mundo de uma natureza eternamente avessa a ciclos ordenadores que o poeta nos entrega à contemplação do medir-se dos condenados com a moldura religiosa medieva que os contém e retém.

Plenos de suas paixões, de suas razões, de suas histórias, de seu sentido particular de absoluto e de uma História, esses personagens nos parecem vitoriosos em sua desgraça. Ulisses nunca foi tão Ulisses como quando seduzia seus companheiros a arrostar o desconhecido; mas igualmente ele nunca foi tão Ulisses como quando conta essa aventura a Dante, aventura que não é apenas uma aventura, senão a aventura por excelência, aquela que contém o sentido de todas as aventuras. Há aí uma dignidade que não encontramos mais adiante, nas plagas de Deus e da Salvação, do Céu e do Purgatório.

No Inferno se encontram as imagens do pesadelo, do bode expiatório, da dor, da confusão; ali se desvelam monumentos de loucura, a terra devastada onde se manifestam (conforme expressões de Northrop Frye na Anatomia da crítica) “os poderes vastos, primitivos e ameaçadores da natureza tal como aparecem numa sociedade pouco desenvolvida do ponto de vista tecnológico”. As imagens desse mundo são de um “mecanismo já inútil que, como não humaniza o natural, se torna antinatureza, inatural, inumano” (Frye). É o mundo do auto-da-fé, da cidade em chamas, um mundo de tirania e opressão, mundo da anacronia. Apaixona mais encontrarmos no fundo deste cárcere do universo a radical presença humana do que se ver, nele, a implacável aplicação da justiça divina.

Por quê? Antes de mais nada, deve-se reconhecer que nossa sensibilidade mudou a partir das Luzes. As sucessivas ordens vigentes e razões de Estado a conter a liberdade dos cidadãos parecem mais e mais “anacronismos vivos”, incrustados no presente, paródias sinistras de si mesmas. As Luzes do século XVIII são as da Razão; mas também se encontram nas conspirações, nos mundos subterrâneos para onde o sentimento de justiça foi banido. A energia do poético não vem mais do alto, mas do baixo, da contemplação de um ponto secreto que detém a alquimia da transformação, seja a centelha que faz a consciência exigir a sua liberdade como direito coletivo, seja o relâmpago breve da lâmina da guilhotina, logo antes de ela cair sobre a cabeça de um rei.

Essa sensibilidade — esse anel de saber — pode reconhecer com firmeza uma característica da Divina comédia: a inesquecível beleza dramática da voz humana, contida na palavra dos condenados. É essencial, no entanto, não esquecer que esta é uma característica da Divina comédia, que nossa sensibilidade mutante não a encontraria se ela não estivesse lá, na própria forma que se consubstanciou no poema.

Além do princípio arquitetônico — a forma cônica e a espiral descendente — há uma forma íntima do Inferno. Essa forma é a do conflito em equilíbrio, a do confronto, a da presença destes homens e mulheres diante da eternidade. O Inferno é a concentração do conflito dramático. O princípio estrutural do Inferno é a descida ao horror (este é efeito de seu formato cônico); seu princípio formal é o da irrupção de um tempo em outro tempo. As almas que purgam suas penas no Inferno são visionárias, podendo ver o futuro e o passado. São cegas para o presente, mas ávidas de presença; ávidas perante essa oportunidade única que o poeta lhes oferece em sua eternidade muda. Através do olhar e da palavra do poeta elas têm a oportunidade de aceder à palavra humana, à história. No inferno o tempo histórico, de desejo, paixão e queda, irrompe na ordem eterna do Juízo Final.

No Inferno encontra-se uma paisagem desmedida para o humano; encontram-se condições de ser que fazem do esforço algo inútil e risível. Mas aí mesmo encontra-se uma visão dramática do humano, contida na própria forma fragmentária dos episódios em que se revelam os casos — os contos — dos condenados. A dramaticidade dos contos episódicos é um traço de desalinho formal em meio à estrutura global da epopeia teológico-filosófica. Ele se origina tanto na fidelidade de Dante a seu tema — a queda trágica dos homens sob o peso de sua materialidade carnal — quanto dó desejo apaixonado, que poeta capta, desses condenados por acederem à memória humana através do acesso à palavra. Esse acesso, na eternidade, lhes deveria ser negado: é a presença do poeta que possibilita essa infração mais grandiosa que qualquer pecado. A característica formal do Inferno é o conflito dramático; no Purgatório será o paralelismo entre as imagens dos pecadores e as frisas de virtude escavadas na rocha, no Paraíso e no Céu, será a da visão dos segredos do Universo e da Fé.

 DO RETORNO DA AURA

Não é difícil reconhecer diversas características infernais na produção literária — cultural, como um todo — do Brasil e da América Latina. Nela reitera-se a construção de um mundo submundano, de um lugar “inferior”, às vezes carregado de desprezo, às vezes de complacência, às vezes de alacridade. Na construção de uma cultura autônoma o escritor deve fazer suas personagens saírem desse local ínfero, ou ali contemplarem algo, um segredo, uma chave de identidade, para com ela acederem a uma compreensão de si e do mundo em que vivem. No século XIX a escravidão conformou, em grande parte, esse mundo Inferior; no século XX foram a miséria, o racismo disfarçado ou não; em ambos permanece ativo o traço comum da origem em aventura colonial, espécie de bastardismo de nascença em meio à família burguesa das nações… Essa natureza ínfera da origem histórica tem como cenário uma natureza majestosa e implacável: a seca, a floresta, o deserto dos grandes espaços, as macrocidades devoradoras. Esse confronto de uma sociedade bastarda diante de uma natureza grandiosamente adversa resume a tragédia da ocupação da terra e a violência que daí decorre.

Pertencemos ao Inferno, ao Inverno (apesar do ritmo tropical das cheias devastadoras e das estiagens sem limite), a um avesso de humanidade. A sátira e a paródia são as vozes naturais dessas paragens. O caráter fragmentário dessa experiência, suas imagens permanentemente desfocadas que se reproduzem como rapsódias sem ponto de partida nem de chegada não espelham a perda de uma condição “normal”: elas são a condição de ‘existência dessa cultura. Inferno, fragmentação, sátira, paródia, descentramento não são palavras estranhas à modernidade como um todo. Mas em culturas como a nossa, cujas raízes não se perdem na “noite dos tempos”, se ancorando, como algas, na modernidade do século XVIII e no nacionalismo romântico, essas rupturas se manifestam de modo extremamente dramático. Aqui o escritor faz o território de seu país, ele o faz as ao mundo da cultura moderna e à palavra escrita. Há uma tradição do Inferno contida na escrita e no anel de saber (ou anéis de saberes…) das letras brasileiras.

Há personagens que nos contam viagens e visões dispersas por um mundo de caos e confusão, como em Memórias do cárcere; ou as narrativas se deixam invadir pelas irrupções constantes do abominável, do nefasto, que nem sempre são desagradáveis: penso na alegria selvagem de Macunaíma, no lirismo esparso de Grande sertão: veredas, no trágico reconhecimento de Os sertões. A desordem, o desalinho, o obscuro, a luz cegante da claridade solar, o balbuceio acompanham, como sombras fielmente invertidas, os esforços de unidade que as elites procuram patrocinar. A imagem mais resistente da cultura brasileira é a do índio — que entrou na tradição literária da língua portuguesa pelas portas do Inferno. Diante dos catecúmenos alinhados dos autos de Anchieta, os demônios índios que castigavam às vezes os imperadores romanos davam a nota de saudável desalinho introduzida no teatro pela presença resistente da nova terra.

Essa tradição do Inferno supera a descrição paisagística. É fácil reconhecer nas características do Inferno dantesco algumas qualidades sistematicamente atribuídas a paisagens tropicais ou simplesmente agrestes. Na violência de que se cobre o jornalismo contemporâneo no Brasil se reconhece a cidade em fogo dos condenados de antanho. Mas o travo ínfero se .encontra além da paisagem, está na constituição do anel de saber que informa as construções do Imaginário. Para criar-se uma cultura, como a brasileira, é necessário reverter o sentido do tempo e construir, vicariamente, um passado — como uma encenação, um teatro de bonifrates. É necessário sustentar esse passado enquanto presente, fazer conviver o arcaico com o moderno, implantar o arcaico no coração da modernidade, fazer um tempo irromper em outro. A cultura aqui é herdeira do Ocidente em. expansão; mas ela encontra sua razão de ser no resgate das ruínas que essa mesma expansão semeou. Isso explica em parte por que projetos tão conservadores como o de nossos literatos pré-modernistas puderam construir uma literatura tão marcada pelo popular.

Em nosso imaginário a utopia se situa na construção provável de um passado — de uma memória que resgate o que ficou de lado. Em 1848 um poeta como Golçalves Dias podia fazer teatro nacional publicando um drama (Leonor de Mendonça) cuja ação se inspira em acontecimentos de 1512, da crônica portuguesa. A História de Portugal era ainda parte da nossa, e vice-versa. Em 1857, quando José de Alencar publica em folhetins O guarani, esse cordão umbilical se rompe diante do leitor, levado na destruição da casa de d. Antonio de Mariz. Alencar, buscando o foco moderno do romance, nele implantava a visão do arcaico como símbolo da nova cultura: essa visão compreendia tanto o índio, o goitacás chamado Pen, como a língua, o guarani, elo perdido com a terra devastada nas guerras entre o bravo e feroz Aimoré e os aventureiros da Coroa. As guerras coloniais tiveram fim; mas não a tensão entre continuidade e ruptura, entre modernidade e recuperação do arcaico, que prosseguiu a criar as formas mais ousadas da literatura brasileira.

Essa tensão permanente criou uma tradição de rupturas. O escritor brasileiro trabaIha com a consciência permanente de criar uma linguagem segunda em relação a outra que se aceita para negá-la. Essa tensão permitiu que se criasse um passado diferente da empresa colonial que jogara essas plagas de chofre numa história devastadora. Assim o espaço-Brasil renasce a cada geração, em cada obra realizada, e se dá um permanente renascer sem ter desfrutado de um Renascimento. Renascer é uma característica permanente do que se cria em nossa cultura: Macunaíma não faz outra coisa em todo o romance-rapsódia. Machado, enquanto narrador, também nasce, morre e renasce sem descansar ao longo de seus escritos: ora satírico, ora moralista, ora descompromissado, ora banal, ora aterrorizante em sua indiferença consentida.

Em muitas obras essa tensão .se organiza como uma ascensão, como um nascimento do obscuro ao claro, da barbárie à civilização, do velho ao novo, do atraso ao progresso, do passado ao futuro, do sub ao desenvolvimento, do olvido à lembrança, da tirania à democracia… Em outras, ela toma a forma de uma viagem labiríntica, onde se contempla o selo de violência que nos deu certificado de batismo. Em terceiras se busca no coração do escrito a semente da oralidade, no círculo do novo a construção do arcaico, ou do antigo que nos acompanha (como em muito da obra de Machado de Assis), no coração da memória as razões do esquecimento (traço comum entre Os sertões e Grande sertão: veredas), no correr da palavra a nódoa do silêncio, das línguas que se calaram para que aqui florescesse a última flor do Lácio, como no conto Meu tio, o iauaretê, de Guimarães Rosa.

Em ascensão ou descida, as obras dessa cultura encenam um espaço inferior, submerso, ponto de passagem de demônios e condenados, cuja contemplação conforma um mundo de identidades sempre mutantes e a se refazerem. O fazer se confunde com o refazer; e este com o desfazer: a dissolução é princípio de construção. Cada imagem — como a pedra do conhecido poema de Drummond — revela um universo em permanente fragmentação, cuja dissolução é, no entanto, a coluna de sustentação do novo fazer literário. “No meio do caminho… “, começa o poema de Drummond, evocando a primeira linha do Inferno e da Divina comédia, para logo tudo quebrar e refazer: ” …tinha uma pedra”, compondo ali o silêncio da modernidade poética com a imagem que cegou tantos aventureiros sertão adentro, e que deu origem à sua Minas Gerais. A consciência do que não se diz, do que não se fez, do que não é mais, nem talvez nunca foi, como aquele Guarani de Alencar, é, paradoxalmente, razão-de-ser, força de-saber. Habitamos uma cidade onde o passado é uma utopia e o futuro uma ruína, onde se anuncia, a todo momento, a aura do futuro emperrado, pois a contemplação dessas ruínas conformam um desejo de ser — sempre inalcançável, mas inesquecível. Aqui não há Mal de pernas para o ar: tudo está desde sempre de pernas para o ar. E vamos bem, e mal, obrigado.

 

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