Em poucos anos, nossa vida passou a ser constru\u00edda de uma maneira sem precedentes e sem exemplos na hist\u00f3ria da cultura: \u201ca m\u00e1quina governa; a vida humana \u00e9 rigorosamente controlada por ela\u201d, escreveu Val\u00e9ry. Puls\u00f5es divergentes s\u00e3o canalizadas; a representa\u00e7\u00e3o triunfa sobre o que \u00e9 representado; as imagens perdem a for\u00e7a e o sentido originais e s\u00e3o produzidas apenas para o prazer dos olhos; os poderes sobre o tempo e o espa\u00e7o s\u00e3o utilizados de tal maneira que acontecimentos distantes s\u00e3o conhecidos em fra\u00e7\u00f5es de segundos. Pressionados pela grandeza e pela onipot\u00eancia dos novos meios, suportamos, a um s\u00f3 tempo, o peso e os benef\u00edcios dessas mudan\u00e7as. O desenvolvimento ilimitado do mundo dos s\u00edmbolos e signos, e as altera\u00e7\u00f5es de todo imagin\u00e1rio p\u00f5em novos problemas que os antrop\u00f3logos, historiadores, sociol\u00f3gos e os pensadores mais sagazes t\u00eam dificuldade de explicar. Mas o pensamento pol\u00edtico procura hoje entender esse caos tanto para preservar formas de vida civilizada quanto para construir um novo sistema \u00e9tico, a liberdade, o desenvolvimento, os direitos a partir das condi\u00e7\u00f5es de exist\u00eancia, e distinguir, portanto, \u201ca guerra da paz, a abund\u00e2ncia da falta, a vit\u00f3ria da derrota\u201d.<\/p>\n

A natureza da televis\u00e3o impede ao intelectual e ao observador comum qualquer possibilidade de compar\u00e1-la com outros momentos e outras formas de express\u00e3o cultural. Exige, pois, a inven\u00e7\u00e3o de outros meios de an\u00e1lise: isolar o artif\u00edcio, conhecer o seu sistema material, aprender a ver e a ouvir, distinguir o que pode arruinar valores e sentimentos.<\/p>\n

A televis\u00e3o brasileira n\u00e3o \u00e9 a respons\u00e1vel por essa crise, mas ela ajuda a compor e a alimentar um modelo que \u201cespecula sobre nossa sensibilidade\u201d: s\u00e3o 227 emissoras concentradas nas m\u00e3os de quarto grandes redes que cobrem o pa\u00eds de ponta a ponta com 40 milh\u00f5es de aparelhos; a m\u00e9dia de consumo do imagin\u00e1rio televisivo por habitante j\u00e1 chega a mais de quatro horas por dia. O universo mental n\u00e3o est\u00e1, portanto, dissociado das formas de produ\u00e7\u00e3o desse imagin\u00e1rio. Foi a partir de altera\u00e7\u00f5es vis\u00edveis nos campos da pol\u00edtica, dos costumes, da \u00e9tica e da cultura que a Secretaria Municipal de Cultura de S\u00e3o Paulo, atrav\u00e9s da Assessoria de Projetos Especiais, decidiu criar um projeto de reflex\u00e3o permanente sobre os meios de comunica\u00e7\u00e3o, come\u00e7ando por desvendar os mecanismos escondidos da produ\u00e7\u00e3o desse imagin\u00e1rio. A materialidade e a for\u00e7a da televis\u00e3o est\u00e3o nessa pot\u00eancia invis\u00edvel. Da\u00ed, come\u00e7amos pela an\u00e1lise da constru\u00e7\u00e3o desse imagin\u00e1rio.<\/p>\n

A Rede Imagin\u00e1ria<\/em> est\u00e1 dividida em dois eixos:<\/p>\n

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1. A imagina\u00e7\u00e3o.<\/em> Ouvimos sempre dizer que a imagina\u00e7\u00e3o nos engana sobre a pr\u00f3pria natureza. Mas se, para muitos pensadores, a imagina\u00e7\u00e3o produz uma cren\u00e7a sem objeto (Montaigne descreve minuciosamente a desordem do esp\u00edrito e o tumulto do corpo daqueles que \u201cacreditam ver o que n\u00e3o v\u00eaem\u201d), ela \u00e9 tamb\u00e9m fonte de obras de arte e de pensamento. Para se chegar \u00e0 an\u00e1lise da constru\u00e7\u00e3o do imagin\u00e1rio, os primeiros textos fazem, antes, o percurso da imagina\u00e7\u00e3o: o que \u00e9 imagina\u00e7\u00e3o criadora, de que maneira ela pode ser controlada pela racionalidade t\u00e9cnica, qual a sua rela\u00e7\u00e3o com o desejo, com a pol\u00edtica e, por fim, como s\u00e3o produzidos os signos e s\u00edmbolos.<\/li>\n
2. A constru\u00e7\u00e3o do imagin\u00e1rio.<\/em> Vemos uma imagem, ouvimos uma voz, mas geralmente ignoramos a sua constitui\u00e7\u00e3o. Ora, o sentido de um programa de televis\u00e3o n\u00e3o \u00e9 independente de sua g\u00eanese: o poder m\u00e1gico da apari\u00e7\u00e3o e a sucess\u00e3o f\u00e1cil e esperada das imagens n\u00e3o permitem ao telespectador imaginar que a produ\u00e7\u00e3o televisiva \u00e9 pensada com rigor, que vai desde a posi\u00e7\u00e3o da c\u00e2mera, o corte, a domestica\u00e7\u00e3o da linguagem verbal com a redu\u00e7\u00e3o dr\u00e1stica do universo vocabular at\u00e9 as normas de comportamento do jornalista. A regras de debate pol\u00edtico s\u00e3o cuidadosamente discutidas, os publicit\u00e1rios sabem que tipo de ilumina\u00e7\u00e3o pode fazer vender 1 milh\u00e3o de sand\u00e1lias, os teledramaturgos t\u00eam a f\u00f3rmula para manipular paix\u00f5es e sentimentos. A pol\u00edtica transformou-se em manipula\u00e7\u00e3o t\u00e9cnica, como observou o cr\u00edtico de arte Robert Hughes da revista norte-americana Time<\/em> em entrevista a Veja<\/em>: \u201cO discurso pol\u00edtico americano tornou-se um horror, est\u00e1 completamente tomado pelas t\u00e9cnicas de rela\u00e7\u00f5es p\u00fablicas. Toda e qualquer ideia tem que caber em quinze segundos de transmiss\u00e3o de TV. A televis\u00e3o foi o maior solvente da verdade pol\u00edtica surgido no s\u00e9culo XX. As pessoas emitem sons, n\u00e3o ideias. Quando voc\u00ea l\u00ea os discursos de um presidente como Harry Truman, v\u00ea que ele tinha o que dizer, mesmo que n\u00e3o concorde com o que ele dizia. Hoje, um pol\u00edtico como ele n\u00e3o poderia aparecer na televis\u00e3o. Ficaria muito complicado. Eu acho que Thomas Jefferson n\u00e3o conseguiria se eleger presidente da Rep\u00fablica. Ronald Reagan mostrou que \u00e9 poss\u00edvel um bobo ser eleito presidente\u201d.<\/li>\n<\/ol>\n

   Imperando sobre tudo isso est\u00e1 o pr\u00e9-gravado, engenhosa inven\u00e7\u00e3o da TV que, em nome da limpeza t\u00e9cnica, tenta controlar o acaso, eliminando as vozes e as imagens n\u00e3o desejadas. A televis\u00e3o come\u00e7a a se pensar atrav\u00e9s de imagens antes escondidas. Realizadores refutam, desorganizam e organizam a vis\u00e3o comum, tematizam imagens, tornando presente aquilo que as TVs convencionais procuram ocultar. N\u00e3o existem diferen\u00e7as t\u00e9cnicas, apenas diferen\u00e7as na utiliza\u00e7\u00e3o da t\u00e9cnica, o que permite aflorar diferen\u00e7as no modo de express\u00e3o na pol\u00edtica, nas artes, no cotidiano. Atrav\u00e9s da inven\u00e7\u00e3o pela imagem ou pelo tema, vemos hoje surgir uma nova dimens\u00e3o da TV, uma declara\u00e7\u00e3o expl\u00edcita de que nossa retina jamais pode ser tratada de forma homog\u00eanea. \u00c9 o lado da positividade e da cria\u00e7\u00e3o, a retomada dos sentidos e do pensamento.<\/p>\n

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