2011

A invenção das crenças

por Adauto Novaes

[…] toda estrutura social é fundada sobre a crença ou sobre a confiança. Todo poder se estabelece sobre estas propriedades psicológicas. Pode-se dizer que o mundo social, o mundo jurídico, o mundo político são essencialmente mundos míticos, isto é, mundos dos quais as leis, as bases, as relações que os constituem não são dadas, propostas pela observação das coisas, por uma constatação, por uma percepção direta; mas, ao contrário, ganham existência, força, ação a partir de impulsão e repressão; tanto esta existência quanto esta ação são tão mais potentes quanto mais ignorarmos que elas vêm de nós, de nosso espírito.

PAUL VALÉRY, A política do espírito

Nos três últimos livros publicados na série “Mutações”, procuramos analisar as principais questões postas pelas grandes transformações por que passa o Ocidente a partir das revoluções tecnocientífica, biotecnológica e da informática. Os três livros foram:

  • Mutações — Novas configurações do mundo. Mostra de que maneira a ciência e a técnica estão produzindo transformações sem precedentes na história em todas as áreas da atividade humana.
  • Mutações — A condição humana. No segundo livro, os ensaios respondem à questão: o que é viver neste novo mundo?
  • Mutações — A experiência do pensamento. Aqui, o livro procurou analisar um problema muito específico dessa mutação: porque ela se origina da revolução tecnocientífica e praticamente sem a ação dos pressupostos das ciências humanas, tendemos a dizer que ela é feita no vazio do pensamento. Ou melhor, vivemos uma realidade tão inteiramente nova que nem mesmo os velhos conceitos conseguem explicar o que acontece. Como escreveu, portanto, Montaigne: quando a razão falha, voltemos à experiência. O que há de peculiar na mutação hoje é que ela não recorre às “duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro”. Tomemos como exemplo outra prodigiosa mutação que foi o Renascimento: ela apontava ao mesmo tempo para o futuro e para o passado, verdadeira paixão pelo novo e paixão pelo antigo. Seus eruditos, escreve o filósofo Alexandre Koyré, “exumaram todos os textos esquecidos em velhas bibliotecas monásticas: leram tudo, estudaram tudo, tudo editaram. Fizeram renascer todas as doutrinas esquecidas dos velhos filósofos da Grécia e do Oriente: Platão, Plotino, o estoicismo, o epicurismo e pitagorismo, o hermetismo e a cabala. Seus sábios tentaram fundar uma nova ciência, uma nova física, uma nova astronomia; ampliação sem precedente da imagem histórica, geográfica, científica do homem e do mundo. Efervescência confusa e fecunda de ideias novas e ideias renovadas. Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo. Mas também: crítica, abalo e, enfim, destruição e morte progressiva das antigas crenças, das antigas concepções, das antigas verdades tradicionais, que davam ao homem a certeza do saber e a segurança da ação”. Nada disso vemos hoje na mutação tecnocientífica a não ser o elogio dos fatos e dos acontecimentos técnicos e, principalmente, o elogio do presente eterno, sem passado nem futuro.

Chegamos, enfim, ao quarto livro da trajetória sobre as mutações, A invenção das crenças. Um dos efeitos da revolução tecnocientífica é a mudança das ideias e práticas da crença, entendendo por crença não apenas mas também, e principalmente, os ideais políticos, os valores morais e éticos, as novas visões de mundo, as construções imaginárias nas artes, enfim, tudo aquilo que Paul Valéry define como coisas vagas, isto é, tudo aquilo que se opõe aos fatos ou à “realidade”. A racionalidade técnica domina os destinos do humano e até mesmo as crenças, que ganham a forma do seu oposto, a descrença! Ora, a descrença no pensamento hoje é evidente. Mas, como observa ainda Musil, os sistemas filosóficos tornaram-se potentes construções lógicas erigidas em uma base de experiência muito frágil — acredita-se que é preciso curar uma decadência”. Para se construir algo de novo, uma “autêntica visão de mundo”, é preciso ter visto realmente o mundo, ter conhecido os fatos. A tecnociência traz hoje uma infinidade de fatos novos. É preciso ir a eles para sair deles com outra visão do mundo.

***

  1. No ensaio “De la croyance”, o filósofo Victor Brochard afirma que nenhum tema foi tão desprezado pela filosofia quanto o da crença e, apesar disso, nenhuma filosofia pode e deve desinteressar-se dela, negligenciá-la, fugir dela: “O empirismo e o positivismo deveriam dizer como definem a certeza e qual a diferença entre acreditar e estar certo. Geralmente, eles deixam de lado esta questão. O espiritualismo sempre compreendeu a importância do problema da certeza, mas, salvo algumas exceções, dá menos atenção à crença. É difícil dizer em que parte da filosofia esta questão deveria encontrar o seu lugar. Os psicólogos quase não cuidam dela porque pensam que ela pertence aos lógicos. Os lógicos, como Stuart Mill, a remetem aos metafísicos. Mas os metafísicos têm outros objetivos. Apressados a chegar às conclusões já acabadas, eles a esquecem ou adiam o seu entendimento. Entretanto, é por ela que se deve começar”. O que mais impressiona no certo descaso em relação à pouca reflexão sobre as crenças é que — religiosas, políticas ou sociais — elas sempre tiveram papel determinante na história. Basta lembrar que elas estão inscritas e dão nome às mais diversas civilizações: Civilização Ocidental Cristã, Civilização Islâmica, Civilização Budista, Civilização Muçulmana. Hoje, Civilização Tecnocientífica.
  2. Em um breve mas esclarecedor texto sobre as crenças, o filósofo francês Pascal Engel começa com esta definição: “Em sentido lato, uma crença é certo estado mental que leva a dar seu assentimento a certa representação ou a trazer um julgamento cuja verdade objetiva não é garantida e que não é acompanhada de um sentimento subjetivo de certeza. Neste sentido, crença é sinônimo de opinião que não implica verdade daquilo no que se crê e opõe-se ao saber”. Surge, portanto, de imediato, a questão: as crenças têm razões ou elas têm apenas causas? Se elas têm apenas causas, tendemos a concordar com o que diz Wilhelm Busch, citado por Jacques Bouveresse no ensaio O filósofo entre os autófagos: “Os casos de crenças são casos de amor. Não existem razões a favor ou contra isso”. Assim, as crenças só podem ser pensadas no registro dos sentimentos e paixões. Pascal Engel põe algumas questões que devem ser consideradas em nosso ciclo de conferências: se não é difícil admitir que o espírito possa “querer afirmar o que tem como verdade ou apenas provável, é muito mais espantoso, de início, que ele possa querer subscrever aquilo que ele considera falso ou improvável e cegar-se voluntariamente. Apesar disso, esta capacidade parece essencial para se compreender os fenômenos de crença: como as pessoas podem acreditar não apenas em coisas inacreditáveis mas também em coisas que elas sabem ser tais? Por que preferem acreditar quando dispõem de meios para saber?”.
  3. O tema da crença leva-nos a uma infinidade de interrogações. De início, e com o risco de simplificar, propomos duas abordagens, ou duas modalidades de crenças, reconhecendo que muitas vezes a fronteira entre uma e outra é bastante tênue: crenças ativas crenças passivas. Mas a crença traz nela mesma este duplo caráter, propriedades que permitem “tanto construir uma ciência quanto uma religião”, o que leva Valéry a escrever: “Não se deve crer — porque não se deve dar às afirmações que são feitas ou que nos são propostas valores diferentes dos próprios valores. O bilhete do banco. Moeda fiduciária [. ..]

Crer = dar mais do que recebe — Receber palavras e dar atos. [. ..]

Que o homem possa ‘afirmar’ sem ‘saber’ — ver sem ter visto —, fiar-se em um fragmento que contradiz o que ele vê, não se sujeitar ao valor atual de seu conhecimento… É uma propriedade que lhe permite tanto construir uma ciência quanto uma religião”. Ao exortar que não se deve crer, Valéry não quer dizer que o homem possa viver sem crenças, mas que existe um embate permanente entre crença e saber. Interessa, pois, pensar as lógicas produtivas das crenças.

  1. Tentemos, pois, circunscrever o campo das crenças. “Uma crença”, escreve Gustave Le Bon, “é um ato de fé de origem inconsciente que nos força a admitir em bloco uma ideia, uma opinião, uma explicação, uma doutrina. A razão é estrangeira à sua formação. Quando ela tenta justificar a crença, esta já está formada. Tudo o que é aceito como um simples ato de fé deve ser definido como crença. Se a exatidão da crença é verificada mais tarde pela observação e pela experiência, ela cessa de ser uma crença e torna-se um conhecimento.” Mas como jamais existe conhecimento absoluto, e como cada descoberta científica traz nela mesma uma infinidade de coisas desconhecidas, “as realidades mais precisas são sempre cobertas de mistérios”, e um mistério é “a alma ignorada das coisas”. Somos levados a concluir com Le Bon que crença e saber constituem dois modos de atividade mental diferentes e de diferentes origens. Mais: qualquer teoria do conhecimento é precedida por uma teoria da crença. Assim, seguindo ainda Le Bon e Hume, as crenças são estados de sentidos, espécies de sentimentos e, portanto, separadas da parte intelectual. As crenças são, pois, fenômenos afetivos — sentimentos, paixões — anteriores aos fenômenos intelectuais — reflexão, pensamento, razão. Separados, os dois fenômenos da vida não cessam de agir um sobre o outro. O humano enreda-se nesta teia: obedece tanto às suas paixões quanto às ideias que as regulam. Ou, como escreve Musil, em um de seus aforismos: o homem é movido, governado por afetos e ideias, mas, como ponto de partida, a vida se regra sobre afetos e não sobre ideias. Mas o espírito desregrado das crenças é capaz de tudo, apenas pensamento e saber definem limites. Lemos em Hume, no Tratado da natureza humana, que a crença “consiste não na natureza nem na ordem de nossas ideias, mas na maneira pela qual a concebemos e de como a sentimos no espírito. Confesso”, escreve Hume, “que não posso explicar perfeitamente este sentimento, esta maneira de conceber. Podemos empregar palavras que exprimem algo de aproximado. Mas seu verdadeiro nome, seu nome próprio, é crença. Cada um compreende este termo na vida corrente. Em filosofia, não podemos fazer mais do que afirmar que o espírito sente, que algo distingue as ideias do julgamento das ficções da imaginação”. Na mesma linha de Hume, Le Bon também afirma que as crenças não são formadas por uma decisão voluntária submetida à parte racional do nosso espírito. Nenhuma crença pode ser justificada pela razão. Ou melhor, ela é indiferente aos apelos da razão. Pertencem mais ao universo da imaginação. Ora, o principal crédito dos milagres, das visões, dos encantamentos e de tais efeitos extraordinários vem, como diz Montaigne, “da potência da imaginação agindo principalmente contra as almas do vulgo, as mais frágeis: a crença apoderou-se delas de tal maneira que elas pensam ver o que não veem”.

Montaigne, então, conclui: “o homem é um animal que crê”. Acrescentemos: um animal que crê coletivamente. O que há de peculiar na crença é que ela é um sentimento facilmente contagioso, exatamente porque lida com as paixões — diferente, pois, do saber, quase solitário, que exige trabalho e só é reconhecido com lentidão e paciência.

  1. Comecemos, pois, com a concepção de crença ativa. Ao afirmarmos que a atual revolução tecnocientífica é feita no vazio do pensamento e que, como insistem Paul Valéry e Robert Musil, estamos na era na qual os fatos dominam nossas vidas, queremos, com isso, reconhecer também o predomínio, hoje, de um enorme descrédito em que caiu o pensamento. Musil inverte a forma de pensar: para ele, a descrença do nosso tempo pode ser vista não na negação, mas como momento de uma afirmação, ele só acredita nos fatos, e “sua representação da realidade só reconhece o que é, por assim dizer, realmente real”. Acredita-se no fato como verdade, como se acredita também na opinião como fato. Ora, sabemos, como já foi dito, que nenhuma sociedade estrutura-se, organiza-se, sem as “coisas vagas”, que são, entre outras coisas, as crenças no pensamento abstrato, como define Valéry. São essas crenças que ordenam os sentimentos, a política com suas normas morais e o próprio imaginário. Mesmo nas ciências da natureza puramente racionais, escreve Musil, “é impossível construir uma teoria apenas com a indução, a partir dos fatos apenas. A partir dos casos particulares jamais se encontrará a regra geral que os rege sem se recorrer a um pensamento orientado no sentido oposto e que implica sempre, como ponto de partida, um ato de fé, uma intervenção da imaginação, uma suposição”. “Ato de fé”, suposição”, presunção, conjecturas são termos do universo da crença. A crença no pensamento é, portanto, para nós, a maior das crenças, aquela que define o tipo de relação com a experiência. A derrota do pensamento está na expressão do homem comum, resignado com a sua condição. Assemelha-se ao que escreveu Alain Badiou: o rosto do santo é “um rosto esquecido dos seus pensamentos”.
  2. Outro caminho importante para se pensar a crença ativa é-nos dado, mais uma vez, por uma das inúmeras interrogações postas por Brochard: se nós reivindicamos o direito de “acreditar racionalmente”, não teríamos, a partir daí, “o dever de examinar a natureza da crença, pesquisar os motivos sobre os quais ela se funda, procurar saber como ela se produz?”. Se formos ainda mais longe — ou melhor, mais perto de nós mesmos, abandonarmos as abstrações do conceito de crença — e interrogarmos a relação do homem com a crença, poderemos recorrer à conclusão de Paul Valéry em sua Pequena carta sobre os mitos: “O que seríamos nós sem o socorro daquilo que não existe? Pouca coisa, e nossos espíritos desocupados se desfaleceriam se as fábulas, as abstrações, as crenças, os monstros, as hipóteses e os pretensos problemas metafísicos não preenchessem com seres e imagens sem objetos nossas profundezas e nossas trevas naturais.

Os mitos são as almas de nossas ações e de nossos amores. Só podemos agir movendo-nos em direção a um fantasma. Só podemos amar aquilo que criamos”.

O que Valéry afirma acima, entre outras possíveis interpretações, é que a crença não é o outro lado da evidência ou da certeza, mas a “membrura” que une o homem ao mundo da imaginação criadora. Existe na dissimulação e na ausência uma “força estranha que obriga o espírito a voltar-se para o inacessível”, escreve Jean Starobinski, e essa força estranha é constituída de “imagens sem objeto” que, em última instância, são nossas invenções. É deste imperioso apelo da ausência, destas “imagens sem objeto”, que nascem as obras de arte, as obras de pensamento e as ações políticas. É nesse sentido de invenção permanente do que não existe ainda que devemos entender também a crença política e as crenças da imaginação criadora. “O invisível”, escreve Merleau-Ponty, “reside aí sem ser ‘objeto’, é a pura transcendência, sem máscara ontológica. E até mesmo os próprios ‘visíveis’, em última instância, também estão apenas centrados sobre um núcleo de ausência.” “Para mim”, conclui Merleau-Ponty, “a verdade é este além da verdade, esta profundeza onde existem ainda diversas relações a considerar.” Que seria, pois, destas “relações a considerar” sem a existência daquilo que tem a propriedade de, ao mesmo tempo, manifestar e ocultar, esta propriedade da “ausência ativa”? A experiência mostra-nos que até mesmo as crenças podem não ser inteiramente irracionais.

Mas a eficácia da crença está nesta simples proposição de Valéry: receber palavras, retribuir em atos. Palavras, imaginação e atos formam, portanto, — no sentido pleno de dar forma — as crenças. Ou, mais precisamente, dão origem à incontornável criação de crenças. Imaginar, escreveu Merleau-Ponty, é formar um certo modo de relação com o objeto ausente.

  1. Em uma de suas célebres “Propostas”, Alain sintetiza essa relação: Conheço alguém que mostrou as linhas da mão a um mago a fim de conhecer seu destino; ele o fez por brincadeira e sem acreditar, como me disse. Se me tivesse pedido conselho eu o teria dissuadido, porque isso é jogo perigoso. É fácil não crer quando nada foi dito ainda. A incredulidade é fácil no começo, mas logo em seguida torna-se difícil e os magos sabem disso muito bem. […] Mas se o mago é, para seus próprios olhos, verdadeiro mago, então ele é bem capaz de lhe anunciar desgraças terríveis; e você, espírito forte, vai rir. Não é menos verdade que suas palavras permanecerão na memória, que elas voltarão sem previsão nos devaneios e sonhos, perturbando um pouco, até o dia em que os acontecimentos pretendam querer ajustar-se ao que disse o adivinho. […] Existe toda sorte de acontecimentos no mundo e daí encontros que abalam o mais firme dos julgamentos. Alain conclui que nota que tudo o que acontece de importante a qualquer pessoa é imprevisto ou imprevisível, e “quando se está curado de uma curiosidade, resta sem dúvida curar-se da prudência”.

Em síntese, quem deseja saber deve renunciar à ilusão. O problema é que somos testados a cada instante; a cada instante devemos escolher entre crença ilusória e saber.

A análise da crença está, certamente, no desvendamento da passagem da palavra ao objeto ausente, que é feito de imagens mentais e, portanto, sem uma representação dada. Neste processo, o papel da imaginação é essencial: imaginar, lembra-nos ainda Merleau-Ponty, é sempre fazer aparecer no presente um ausente, uma quase presença, uma presença mágica para um objeto que não está aí. A partir disso, pode-se procurar entender como o sujeito realiza essa espécie de encarnação ausente nos dados da sua percepção”. O certo é que essas pequenas crenças cotidianas — e também as grandes — modificam nossas relações com o mundo, relações tão mais complicadas quanto destituídas de qualquer mediação com o pensamento. Relações, portanto, irracionais.

  1. Sem se desfazer do poder das palavras, Wittgenstein dá outro sentido para a relação delas com as crenças. Para ele, por exemplo, ao falar da religião, o que dá sentido às palavras é a prática: “Gostaria de dizer que o que conta aqui não são as palavras que pronuncio ou o que se pensa ao fazer isso, mas a diferença que elas produzem em diferentes lugares da vida”. Segundo comentário de Jacques Bouveresse, Wittgenstein relembra sempre que os problemas religiosos devem ter e conservar uma relação claramente determinável com a vida real. “Uma ‘questão religiosa”, escreve Wittgenstein, “é apenas uma questão de vida ou então palavrório (vazio). Esse jogo de linguagem, pode-se dizer, só se joga com questões de vida. Da mesma maneira que a expressão ‘Ai — está doendo’ só tem significação se for um grito de dor. Quero dizer: se uma beatitude eterna nada significa para minha vida, ‘minha maneira de viver’, então não tenho que me preocupar com ela, se posso pensar sobre isso racionalmente, então o que penso deve estar em uma relação exata com minha vida, sem isso, o que penso é flan, ou minha vida está em perigo.” Ao dar esta concretude às crenças através das palavras, Wittgenstein procura desfazer a contradição entre crença e verdade. Isto é, transfere a contradição do campo explicativo e teórico para o campo da “descrição de um processo efetivo na vida do homem”. Desfaz também a crença de que ciência e técnica ou, mais precisamente, a civilização científica pode “pôr as sociedades modernas ao abrigo de temores e esperanças de natureza religiosa”. A questão não pode ser reduzida a um conhecimento ou desconhecimento científico, mas a uma maneira de viver, ou a modos diferentes de pensamento e prática. Em uma nota escrita em 195O, Wittgenstein conclui: “’Convencer alguém sobre a existência de Deus’ é uma coisa que se poderia talvez fazer por uma espécie de educação, pelo fato de se dar à sua vida esta ou aquela configuração. A vida pode se educar na crença em Deus. E são igualmente ‘experiências’ que fazem isso, mas não ‘visões’ ou experiências sensíveis de outra espécie que nos mostram ‘a existência deste ser’, mas, por exemplo, dos sofrimentos de diversas ordens. E elas nos mostram Deus não como uma impressão sensível nos mostra um objeto, e elas também não nos fazem ‘conjecturar’. Experiências, pensamentos — a vida pode nos impor esse conceito. Nesse caso, talvez ele seja semelhante ao conceito ‘objeto’”. Como conclui Bouveresse, o conhecimento científico “não pode eliminar aquilo que, contrariamente ao que sugere uma das maiores superstições de nossa época, não foi simplesmente, nem mesmo principalmente, produto da ignorância”.
  2. Mas essa é a condição humana: pôr-se em situação de ilusão, erro e verdade. Cabe à razão encontrar o sentido de tudo o que é vivido, real ou imaginariamente; experiência exterior ou experiência interior, através das crenças. O objeto destas imagens sem objeto acaba sendo o próprio corpo com os signos impressos pelas paixões, solo que expressa a essência das crenças. Quando me ajoelho diante de um Deus que não vejo, explicitação de uma experiência interior, expresso submissão, humildade, reverência e culpa. A análise do confronto entre crença e experiência pode ser um dos caminhos para a reflexão. É no confronto da experiência que as realidades imaginárias das crenças podem ser conhecidas. Transformar a “quase presença” ou a presença mágica numa presença real através dos sinais. Este é um dos caminhos para compreender as crenças.
  3. Outra concepção a considerar é a da crença passiva. Uma das crenças capazes de causar mais espanto ao pensamento é o costume. Talvez porque seja uma crença prática sem julgamento, que não exige persuasão e aprovação explícita. Talvez porque, seguindo Montaigne, ele é de produção enigmática. No comentário à interrogação de Montaigne — De onde vêm os costumes? — Bernard Sève opta por uma resposta negativa: o costume não vem da natureza, nem de Deus e muito menos da razão humana: “Montaigne apresenta os costumes como fatos isolados, fatos que ele não procura inscrever em uma rede de causalidade”. Mais adiante, Sève escreve: “O costume permite compreender como o espírito individual é moldado segundo o espírito coletivo já existente; mas ele não permite evidentemente compreender como a invenção individual se generaliza para dar conta de sua própria existência como costume”. Talvez porque o costume seja também a expressão mais bem-acabada da servidão voluntária. Como nos ensina Le Bon, o costume, forma do hábito, faz a força das sociedades e dos indivíduos, dispensando-os de pensar cada caso que se apresenta para se formar uma opinião. Daí o costume ser definido como uma crença fácil que nos faz acreditar nas coisas, como escreve Pascal, “sem violência, sem arte, sem argumento” e conduz todas as nossas potências de tal forma que nossa alma se inclina naturalmente. Se o costume nos dispensa de pensar, passamos a acreditar nos signos, nas palavras, nas metáforas. É mais fácil persuadir as massas através de signos do que com argumentos. Em um Propos simples, irônico, mas extremamente profundo, brincando com as palavras coutume costume, Alain resume de maneira admirável o costume como crença. Ele começa assim: “Costume c’est coutume, mas explicarei o segundo sentido pelo primeiro; e no lugar de dizer que o hábito é costume, direi que costume é hábito. Os animais não têm hábito; assim, eles não têm costume; sua maneira de ser depende apenas de sua forma… Nossas casas também são hábito, e Balzac nada ignorou desta relação admirável que faz com que a rampa de escada, um quarto, velhas madeiras, uma luz mais ou menos controlada sejam partes do nosso caráter como o corpete, o vestido, o chapéu, a gravata. O homem nu é desvestido também da maioria de seus pensamentos; eu diria de quase todos; mas o homem nu não está ainda desligado de hábito. A cidade, a casa, as terras cultivadas, a opinião e mesmo o escândalo, tudo isso o veste ainda. Toda a história o veste, os livros, os poemas, as canções. Apague tudo isso, não resta outra memória a não ser a estrutura; e isso remete, me parece, todas as suas ações àquilo que chamamos instinto. O pensamento é costume, ou instituição, mais do que queremos crer”. O problema não é a criação de signos e emblemas através do costume. O grande problema é que ele tende a se solidificar e ser obstáculo à mobilidade essencial do espírito. Se, de um lado, “o espírito não quer viver em sua obra”, e busca de maneira permanente renegar aquilo que ele mesmo criou, como tão bem definiu Valéry, de outro o hábito luta contra qualquer potência de transformação. Mais, ele se alimenta de si mesmo, como define Nietzsche e impressiona pela precisão: “Todo hábito urde em torno de nós uma rede cada vez mais sólida de fios de aranha; e logo percebemos que os fios tornaram-se lagos e que nós mesmos permanecemos no meio, como uma aranha presa e que deve alimentar-se do próprio sangue. Eis por que o espírito livre odeia todos os hábitos e regras, tudo aquilo que dura e torna-se definitivo… ainda que ele deva sofrer as consequências com pequenas e grandes feridas, é dele mesmo, de seu corpo, de sua alma que ele deve arrancar estes fios”.
  4. O princípio mais geral da crença passiva pode ser assim enunciado: o homem submete-se ao poder das crenças ao tomar as coisas singulares — o ente, para usar um termo da filosofia — como o Ser, ou essência universal. Ou melhor, constrói passionalmente mundos a partir de uma coisa singular. A crença passiva procura desfazer a contradição entre a particularidade do sujeito e a universalidade absoluta. Essa é uma das origens das diversas formas de superstição e intolerância: o particular que se apresenta como o Ser, como o universal abstrato: primeiro, foi a ideia de Deus no Ocidente; depois, com o “mundo sem Deus”, o Homem da modernidade passa a ocupar um lugar na crença universal. Se de início a ciência iluminista era um meio para questionar a religião, ela se tornou, aos poucos, um problema para o próprio homem. Pensadores contemporâneos anunciam a dissipação, a decomposição da figura do homem, enfim, a morte do sujeito. A divinização do homem dá, assim, lugar ao pós-humanismo radical na figura da racionalidade técnica: “Em nossos dias, só se pode pensar no vazio do homem desaparecido”, escreveu Foucault. Ora, a hipótese aqui é de que o culto da ciência e da técnica passa a ocupar o vazio que há no espaço que seria destinado, hoje, à crença: ciência e técnica encarnam os princípios da onipresença, onipotência e onisciência. Como escreveu Valéry em um de seus “Cadernos”: “Tudo aquilo que é fiduciário desfaz-se […] O que resta? As ‘ciências’, reduzidas às suas operações e seus poderes”. Postas como uma nova religião”, elas se apresentam na sua abstração como inquestionáveis do ponto de vista ético: ou melhor, nada podemos saber, nada queremos saber e, ainda que quiséssemos, nada saberíamos. Os desígnios da ciência são tão desconhecidos quanto eram os desígnios de Deus. Estamos, então, no reino do que Alain chama de “ideia funesta”, que afirma que para tudo há uma explicação científica, o que leva ao advento de um futuro regido por leis gerais da ciência. O mais problemático nessa concepção está no que se denomina “o vazio do pensamento, a que se segue a quietude do espírito como potência de transformação”. Derrotado,”a partir de agora, o espírito permaneceria em repouso, não lhe restando outra coisa senão esperar as consequências de um saber definitivo, e a evitar, por alguma aplicação dos mesmos princípios, os últimos sobressaltos do imprevisível”. Entramos no tempo em que a autonomia da ciência e do pensamento é recoberta pela ideia de indivisão. Essa indivisão leva ao fim do que Merleau-Ponty define como o antigo compromisso entre filosofia e ciência: superar a ciência sem destruí-la; limitar a metafísica sem excluí-la. A indivisão destrói, enfim, a ideia de uma contingência radical do mundo, a ideia de que o mundo é inexplicável, o que, portanto, leva-nos a uma eterna interrogação — ou o infinito negativo” — e põe em seu lugar a ideia de “infinito positivo”. Enfim, a indivisão é um determinismo de fórmulas aceitas com alegria selvagem por homens que as amam sem nem mesmo conhecê-las” (Alain). As fórmulas científicas são um fatalismo de aparência racional “sensível ao coração supersticioso”. Alain chama esse fatalismo de “religião instintiva”. Isso nos remete ao domínio das paixões. Pode-se, então, dizer que crença é paixão que nos põe fora de nós. Só podemos crer na ciência porque abolimos o pensamento. Este esquecimento produz no crente uma torção: “Vê seu destino, teme-o, e ainda assim o deseja” cegamente. Lembremos ainda de outro aspecto que merece atenção no ciclo sobre as crenças. Em O futuro de uma ilusão, Freud pergunta qual pode ser o futuro das representações religiosas uma vez que sua origem psicológica tenha sido descoberta, bem como reconhecido seu caráter ilusório.
  5. Mas como enfrentar esta nova crença movida pelo determinismo?

A ciência-pensamento responde com o conceito de indeterminismo. É certo, como escreveu Jean Wahl, que a ideia de indeterminismo sempre existiu, mas hoje ela se torna cada vez mais visível. Na física contemporânea, o indeterminismo liga-se à ideia de incerteza, desenvolvida por Heisenberg. Ou, dito de outra maneira, a ciência contemporânea reconhece que é cercada de limites, cercada de um “outro que não ela mesma”, não exterior ao mundo, como quer a religião, mas interior ao próprio mundo. No interior desse mundo, observa Wahl, “existe algo que é outro que não nós e outro que não a ciência. Esse outro traz nele a ciência, diz Heidegger, mas não pode ser tocado por ela. Existe, portanto, uma finitude da ciência. A ciência é finita como nós somos finitos… E é porque é finita que a ciência é uma possibilidade essencial da existência do homem”.

  1. Indeterminação, incerteza e dúvida são, portanto, as noções mais importantes que nos ajudam a entender a crença na era da tecnociência. De Plotino à física contemporânea, a crença no indeterminado dá-nos, portanto, a chave para entender a própria crença: “O que é a indeterminação da alma, pergunta Plotino. Seria um desconhecimento completo e uma ausência? Não: o indeterminado consiste em algo de positivo e, como a escuridão é para os olhos a matéria de toda cor visível, assim a alma, tendo extraído dos objetos sensíveis tudo o que existe neles como uma luz, não pode mais definir o que resta; ela se torna igual a uma visão no escuro e identifica-se com esse escuro do qual tem uma espécie de visão. Mas ela vê realmente? Sim, tanto quanto pode ver o que não tem figura, cor nem luz… Mas essa impressão que existe na alma não chegaria a nada pensar? Quando não pensa em nada, nada enuncia; mas, quando pensa na matéria, recebe dela como uma impressão do que não tem forma”. Pode-se afirmar, então, de outra maneira, que a contingência é invisível, em nada perceptível na coisa. Assim, a filosofia oriental mostra-nos que a mais bela imagem não tem forma.

Na filosofia contemporânea, a noção de “indeterminismo” para se pensar a verdade é também fundamental. Em uma das notas do ensaio “O metafísico no homem”, de Merleau-Ponty, lê-se: “Bergson demonstrou com profundidade, na Introdução à metafísica, que a ciência deve ser considerada não apenas nas suas fórmulas acabadas, mas ainda com a margem da indeterminação que as separa do dado a conhecer. Pensada assim, ela supõe uma relação íntima com o dado ainda a determinar. A metafísica seria a exploração deliberada deste mundo antes do objeto da ciência ao qual a ciência se refere”.

  1. Mas nenhum filósofo pôs tanto em questão a ideia de crença quanto Nietzsche: ateísmo, niilismo, ceticismo, tudo nele leva a posições extremas e tudo o que é ligado à religião lhe parece suspeito. Muito se escreveu sobre sua crítica do cristianismo, em particular das instituições. Mais intrigante, entretanto, é sua afirmação da “morte de Deus” e não propriamente a “inexistência de Deus”. Para quem Deus era uma “hipótese muito extrema”, não deixa de ser curioso ver o processo de transformação intelectual e sensível de quem foi formado em um meio ultrarreligioso. Lemos, por exemplo, em um dos fragmentos escritos em 1881: “Para onde emigrou Deus? Esvaziamos o mar?”. E mais, em um manuscrito dado à impressão: “Esvaziamos o mar? Que espécie de esponja é esta com a qual fazemos desaparecer todo o horizonte? Como conseguimos apagar esta linha eterna à qual se remetiam até agora todas as linhas e todas as medidas que tomaram por modelo todos os arquitetos da vida, e sem a qual parece não haver mais perspectivas, nem ordem nem arte a construir?”. A sutil análise de Eugen Biser no ensaio Nem anticristo nem em busca de Deus nos remete a um conceito formal do divino, que é ao mesmo tempo o centro de gravidade do pensamento de Nietzsche, “tradição quase imemorial que procurava pensar Deus no plano estritamente formal como o mais universal de todos os conceitos”. Para alguns comentadores, é isto que o diferencia de certa crítica do ateísmo filosófico alemão que, ao combater sua forma histórica e dogmática, tende a conservar ainda alguns aspectos do cristianismo. O que Nietzsche denomina de niilismo é o questionamento do “valor dos valores”, ou a redução a nada dos valores tradicionais. Eis a radicalidade de Nietzsche: ela é, segundo Karl Löwith, “a tentativa de ‘transmutação’ de todos os valores do passado, isto é, valores cristãos, e, ao mesmo tempo e principalmente, a luta contra cristianismo ‘homeopático’ latente da civilização moderna”. Mas uma das crenças determinantes para Nietzsche, objeto de incessante combate e ao mesmo tempo fonte de um ceticismo radical, está no campo do pensamento. Aqui também, o ceticismo é radical: todas as teorias se equivalem e nenhuma tem valor. Qualquer determinação do ser substancial é suspeita: por exemplo, a ideia de “ente” é, para ele, segundo análise de Eugen Fink, o delírio que comanda e domina toda a loucura do homem, “fonte de uma rede que falsifica conceitos nos quais comumente os homens se prendem, fixação, endurecimento, imobilização da pretendida efetividade. Os conceitos falseiam e alteram na medida em que, por seu esquematismo estático, solidificam o movimento do real”. Em sua profunda desconfiança em relação ao conceito fixador, Nietzsche aposta na “intuição na qual explodem “imagens fortemente simbólicas através das quais surge um clarão mais profundo da realidade, rebelde a qualquer fixação conceituar. Enfim, a verdadeira realidade é o vir-a-ser e não o ser. O ser, comenta Eugen Fink, é a mentira da razão, ilusão do conceito que nos oculta o jogo mutante do vir-a-ser: “Nietzsche afirma que não existe, absolutamente falando, nenhum ‘ente’, apenas fluxo mutante da vida, o rio do vir-a-ser, nada de estável e de fixo, tudo em movimento.” A primeira resposta a esta ideia é dada por Fink: não podemos, diz ele, viver sem proteção no oceano cósmico e fluente do puro vir-a-ser, somos forçados a falsear o real: “as categorias significam a humanização do mundo, uma interpretação antropomórfica, que ‘nos põe em estado’ porque ela mesma é estática? As categorias são ficções, a ‘coisa’ é uma imagem enganosa, um instrumento racional da vida – nada mais. Seria propriamente o homem que se projeta em todas as figuras e que cria o mundo à sua imagem? Ou finalmente seria ele apenas um falso, um produto de ficção?”. A estas questões pode-se dar o nome de ceticismo radical e perfeito, um vir-a-ser do mundo conceitualmente indefinível. Mas o maior problema posto por tal visão de mundo está na própria proposta de solução: o vitalismo, a vida, a intuição, o instinto, “substitutos lamentáveis”, como escreveu Musil sobre os que criticam a razão e a ciência sem mediações: “Um sentimento que não inclui nele mesmo a referência ao verdadeiro e ao real permanece frágil como uma criança não desenvolvida e torna-se espessa como uma bolha de sabão”. É verdade também que a própria ideia de razão virou hoje moeda de crença, ou seja, acreditamos que deve existir uma razão para “ser assim aquilo que existe”. A isto se dá o nome de leis necessárias da natureza. Ora, como podemos ler na engenhosa análise do livro Après la finitude, de Quentin Meillassoux, como jamais descobriremos nem compreenderemos a razão de todas as coisas, só poderemos crer ou aspirar a crer nela. Assim, para romper o jogo sem fim do fideísmo e da metafísica, é preciso reverter nosso olhar sobre a não razão, “cessar de dizer que ela é a forma de nosso liame deficiente do mundo para fazer dela o conteúdo verídico do próprio mundo: é preciso projetar a irrazão na própria coisa e descobrir em nosso toque da facticidade a verdadeira intuição intelectual do absoluto. Intuição porque o que descobrimos é uma contingência sem outro limite a não ser ela mesma, intelectual porque esta contingência não é nada visível, nada de perceptível na coisa: apenas o pensamento acede a ela como ao Caos que subentende as continuidades aparentes do fenômeno”. A nossa incerteza resulta do nosso desconhecimento da relação entre elas. Como escreve Alain Badiou no prefácio do livro, uma coisa apenas é absolutamente necessária: que as leis da natureza sejam contingentes.
  2. Enfim, se consideramos que as crenças estão no domínio das sensibilidades, como trabalhá-las de maneira racional? Penso que um dos caminhos foi apontado por Valéry, que dedicou o melhor de seu pensamento às ideias de fidúcia e crença. Lemos, por exemplo, em um fragmento belo e enigmático, no qual ele reúne duas esferas adversas: “com o coração do espírito”. Ora, sabemos que o coração significa, sempre significou, o domínio das paixões e da sensibilidade, e, para Valéry, o espírito significa “potência de transformação”. Espírito traz, portanto, mobilização, movimento incessante que se opõe às obras do próprio espírito. Emancipar-se da própria criação é obra do próprio espírito guiado pela crença na liberdade. Ou, como diz ainda Valéry, a liberdade da liberdade. Mas, diferente dos que atribuem a tal pensamento uma visão idealista, ou a simples contradição entre crença e saber, crença e razão, Valéry dá à potência do espírito não o sentido do “saber”, mas o do “fazer”. Ser espírito livre é renegar todas as crenças menos a fé na liberdade que quer dizer renegar e renegar-se de maneira incessante: “O que é excitante nas ideias não são ideias; o que excita é o que não foi pensado ainda, o que é nascente e não o nascido [. ..] Fiquem atentos — insisto: todas estas ficções referem-se necessariamente àquilo que não existe e opõem-se não menos necessariamente àquilo que existe, eis a coisa curiosa: é o que existe que engendra o que não existe e é o que não existe que responde constantemente ao que existe”. Materialista, Valéry procura situar a ideia do fazer em todos os domínios da atividade humana, fazer, desfazer, refazer. De maneira surpreendente, busca, inclusive, certa analogia de sua maneira de pensar com a dos místicos. Há aqui, no comentário de Jean-Michel Rey, uma “fraternidade nas maneiras de fazer”, um conjunto de operações que não param na obra, um trabalho “indefinidamente provisório”. “Místicos, oh vós! e eu à minha maneira — que trabalho singular nós fazemos! Fazer e não fazer —, não querer parar uma obra materialmente circunscrita — como os outros fazem, e nós o julgamos ilusório.., vós para Deus e eu para mim e para nada.” A ideia do “nada” tem para Valéry significação muito precisa: para ele, o ser é o nada, o que conta é a obra, isto é, o fazer. “Alain’ vem e me diz que eu não me ligo a nada — o que é verdade, se traduzirmos que sou separado de tudo. O eu é minha ‘obra’.” É esta ideia que o aproxima dos místicos — não os contemplativos — que acreditavam na eficácia da ação humana, São Paulo, São Francisco e mesmo Joana d’Arc. Ou seja, o fazer domina a existência. É também com uma imagem mística que o pintor Degas, amigo de Valéry e que ganhou dele o belo ensaio Degas, dança, desenho, o vê, como o próprio poeta lembra em um dos fragmentos dos Cahiers:

“Degas me chamava de ‘O anjo’.

Ele tinha razão em me definir assim mais do que poderia acreditar.

Ange = Etrange, estrange = étranger… bizarramente ao que existe e àquilo que ele é […]

Fazer sem crer — Minha divisa.

Tenho horror de acreditar e horror de nada fazer.”

Na luta incessante do “anjo” contra as crenças, lembremos da divisa pregada na parede de seu quarto em Montpellier: Desconfia sem cessar.

Enfim, para Valéry toda a estrutura social é fundada sobre a crença e sobre a confiança. Crer na palavra humana — falada ou escrita — “é tão indispensável aos humanos quanto confiar na firmeza do solo. É certo que duvidamos aqui e ali, mas só podemos duvidar em casos particulares”. Diante do indefectível domínio da crença, qual a saída possível? Mas não vemos em Valéry nenhum sinal de submissão passiva, de determinismo. Para ele, tudo depende do trabalho do espírito — potência de transformação. Ora, como ele insistiu em boa parte dos escritos, o espírito tem esta dupla propriedade de conservação e de transformação, de ordem e desordem. É por isso que o espírito tem horror à repetição e aos hábitos mecânicos. Assim, o espírito dedica o melhor de si à crença ativa, isto é, a especular sobre a nossa sensibilidade, sobre nossos sentidos, de maneira que “nosso espanto ingênuo em curiosidade, em paixão do conhecimento”, da mesma maneira que, “por uma singular exploração dos recursos”, pode transformar o próprio medo em espantosas produções: “O temor elevou templos, o temor transformou-se nestas maravilhosas suplicações de pedra, em edifícios magnificamente significativos que são, talvez, a mais alta expressão humana de beleza e vontade”. Assim, do duplo que constitui o espírito — o geométrico e o sensível, a ciência e as paixões —, transforma-se no um, que se concretiza na construção de obras de arte e obras de pensamento através da crença ativa. Ou, dizendo de outra maneira e que vem a dar no mesmo, a crença ativa é a ponte que liga a ciência e os sentimentos. Se, como escreve Valéry, o espírito geométrico considera nulo tudo o que não pode ser definido, uma espécie de “cegueira essencial”, o espírito sensível — “esprit de finesse” — corre o risco de pensar mal por meio de noções vagas apenas. É essa junção, na obra e no fazer, que dá sentido e expressão aos dois momentos do espírito, sem que um se oponha ao outro.