A lógica atormentada
por Adauto Novaes
A razão arde pensativa
Álvaro Mendes, “Valéry”
No ensaio “O filósofo e a sociologia”, Merleau-Ponty nos lembra que, em sua última obra, Edmund Husserl nos deixou como herança uma advertência: estamos diante de dois possíveis: a racionalidade ou o caos. Na mesma época, Paul Valéry descrevia o destino da civilização e a crise do espírito em tom tristemente célebre: nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais, dizia ele. “Tanto horror não teria sido possível sem tanta virtude. Sem dúvida, foi preciso muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens, aniquilar tantas cidades em tão pouco tempo. Saber e Dever, sois, portanto, suspeitos?”
Para falar da crise da razão, o poeta invoca como testemunha um “Hamlet intelectual” que contempla milhares de espectros, medita sobre a vida e a morte das verdades e tem por fantasmas “todos os objetos de nossas controvérsias”; mas ele hesita entre dois abismos, “porque dois perigos não cessam de ameaçar o mundo: a ordem e a desordem”.
O “Hamlet intelectual” recolhe e interroga, um a um, os crânios de alguns expressivos cultores da razão; ao ver Leonardo da Vinci, observa: “Sabemos que o homem voador, montado num grande cisne (il grande uccelo sopra del dosso del suo magnio cecero), tem em nossos dias outras tarefas além da de buscar neve nos cimos dos montes para jogá-la nas calçadas das cidades nos dias de calor […]”. Outro crânio é o de Leibniz, “que sonhou com a paz universal. Este aqui foi Kant, Kant que gerou Hegel, que gerou Marx, que gerou…”.
Passados tantos anos depois dessa dupla advertência, a de um filósofo e a de um poeta, não se pode dizer que vimos o triunfo da razão: as guerras tornaram-se o lugar-comum das nossas vidas; diariamente, sem nenhuma emoção, vemos nos jornais e na televisão as descrições de centenas de mortos; vivemos na cidade do temor e da tristeza, adotada como o lugar natural e necessário; os relatos de escravidão já não espantam; os excessos tornaram-se verdadeira necessidade: o corpo busca “excitantes brutais, emoções breves e grosseiras” para sentir e agir. O isolamento do indivíduo é cada vez maior, superado apenas pelo sentimento de impotência diante das flutuações políticas. Resta o consolo da superstição e dos cultos, expressões ingênuas de refúgio de felicidade, como se o bem pudesse resultar do encontro de vários males. Fundamentalistas dirigem a política, seitas fanáticas espalham-se por vários países, cultos diabólicos, imolação de crianças, suicídios em massa, massacres políticos. Os tarôs, as cartomantes e os videntes ocupam o lugar da ciência política. A crise política, a crise ética, a crise de sensibilidade atestam mais uma vez a percepção de Valéry, que se espantava com o próprio pensamento: “Excuso-me (e me acuso) por sonhar às vezes que a inteligência do homem, e tudo aquilo através do que o homem se afasta da linha animal, poderia um dia enfraquecer-se e a humanidade, insensivelmente, voltar a um estado instintivo […] Sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade de uma vida”.
Não podemos, portanto, pensar o nosso presente sem evocar a crise. Mas o que é uma crise? Quais são suas origens e a sua natureza? Se a crise não é um acontecimento apenas, ou um conjunto de acontecimentos que configuram um mundo — nosso mundo presente —, é porque ela guarda também um sentido oculto que nos leva a procurar reencontrar o que nela, ou por causa dela, foi perdido.
A crise exige de nós reflexão: falar da crise da razão nos leva a pensar não apenas os acontecimentos “históricos”, mas também os “fundamentos da crise”, que, em última análise, são não-acontecimentos, uma vez que podem ser entendidos como uma “continuação do mesmo”. Eis uma hipótese que o ciclo de conferências procura discutir: a crise já estaria dada no próprio momento de fundação da ideia de razão? Heidegger, em sua Introdução à metafísica, pensa assim: “O declínio da determinação do logos — declínio que torna a lógica possível — já começa precisamente em Platão e Aristóteles”. O declínio já está constituído na grandeza mesma do primeiro acontecimento e por isso não há declínio no sentido de um erro (o famoso acidente de percurso) que nos faria deslizar por descuido para fora da grandeza do começo, mas uma continuação. A crise da razão estaria, pois, na essência mesma do começo. Podemos interpretar esse pensamento de várias maneiras, e uma delas é que, de início, o acaso dá ao homem não o bem ou o mal, mas necessariamente começos daquilo que pode ser um grande bem ou um grande mal: compete aos homens trabalhar racionalmente suas vidas.
O nosso ponto de partida e a estrutura que definiu este novo ciclo de conferências são o que alguns pensadores definem como a grande cisão que separa o homem do Ser, o sujeito do objeto, a ciência da filosofia, a liberdade da necessidade, o acaso da razão, a razão da imaginação, a paixão da razão etc. Vemos que, ao longo da história, foram sendo criados conceitos que se contrapusessem à razão. Esses contrapontos produziram imagens da razão que, em última instância, levam à negação da própria ideia de razão, abrindo, dessa maneira, caminhos para as crises. Para discutir a crise da razão, concentramos nosso esforço nos opostos, isto é, naquilo que foi produzido para anular a ideia de razão. Assim, teremos uma dupla reflexão: o conceito de razão em determinados momentos de passagem na história das ideias e a constituição de seus opostos. Mas, ao trabalhar a ideia de opostos, nossa atenção está voltada também para outro problema fundamental: o oposto (a imaginação, o acaso, as paixões…) não deve ser entendido apenas como o outro radicalmente incomunicável com a razão: não se pode pensar em subordinação absoluta de um dos termos. Caso contrário, cairíamos em um determinismo insuportável, e o próprio ciclo de conferências não teria sentido. Em toda determinação racional existe uma margem de indeterminação, um dado ainda a determinar, certamente provocado pelo oposto da razão, criando o movimento ou passagem de uma razão latente à razão manifesta. São experiências racionais e imaginárias desfeitas e refeitas no curso do tempo. Ora, a razão não é a autonomia plena que existe fora do seu contrário, mas uma autonomia que se constitui no triunfo sobre cada um dos contrários, não fugindo deles, mas lutando com eles e submetendo-os. Esse é o movimento que permite a criação permanente e concreta da razão, uma vez que ela não cessa de ser interrogada pela presença do termo suprimido. Estamos, pois, diante não de um conceito racional instituído mas de um pensamento em ação, uma razão instituinte, que existe não apesar dos contrários mas graças também à ação desses contrários. Só a religião e a racionalidade técnica — dois momentos de uma lógica semelhante — podem apresentar-se como razão absoluta, um Deus que não se discute, harmonia plena. A razão, no sentido forte do termo, traz em si mesma uma lógica atormentada que, a cada momento, presta contas do poder que exerce. Assim, toda razão é enigma, se entendermos razão como o encontro com os opostos em um movimento sem fim. Nesse sentido, crise e razão têm um só e mesmo destino: se formos à origem do vocábulo, vemos que a palavra crise deriva do grego krisis, que quer dizer “julgamento”, “decisão”, “capacidade de julgar”; o logos grego (ou a ratio latina) também quer dizer “julgar”, “faculdade de pensar”, e pensar, como todos sabem, é “pesar”, “decidir”. Crise e razão já nasceram de mãos dadas. Como nos lembra, por exemplo, Cornelius Castoriadis (no texto “Imaginário político grego e moderno”), a democracia traz em si, desde a origem, a ideia do trágico; é um regime sujeito à hybris, à sua autolimitação: “A tragédia é também e principalmente a exibição dos efeitos da hybris e, mais do que isso, a demonstração de que razões contrárias podem coexistir (é uma das lições da Antígona) e que não é insistindo na própria razão que se torna possível a solução dos graves problemas que pode ter a vida coletiva (o que não tem nada a ver com o consenso indolente da época contemporânea)”.
A crise da razão vai pôr também em discussão outro problema essencial: a partir da criação dos opostos resultou a ideia de que a razão é sempre exterioridade, isto é, ela é sempre aquilo que não somos. No seu livro A solitude da razão, Ferdinand Alquié nos mostra que, nesse sentido, para ser racional é preciso primeiramente submeter-se e ceder à força externa: “A ordem dos objetos”, escreve Alquié, “constitui sempre para o meu desejo uma ordem à qual é necessário obedecer e, portanto, uma ordem imperativa. Mais ainda, se o racionalismo é verdadeiro, eu mesmo devo ser explicável: a razão não é, portanto, o que em mim trago, mas antes o que me conduz e pode me explicar”. O que Alquié propôs e aquilo a que outros filósofos contemporâneos se dedicam é a criação de um racionalismo metafísico. Ou melhor, aquilo que Merleau-Ponty chamou de “metafísico no homem”, entendendo por metafísica não uma construção de conceitos “através dos quais tentaríamos tornar menos sensíveis nossos paradoxos; é a experiência que fazemos dela em todas as situações da história pessoal e coletiva — e das ações que, assumindo-as, transformam-nas em razão”. Talvez seja esse um dos caminhos contra irracionalismos e superstições que afirmam o não-valor do mundo e contra a racionalidade técnica que se impõe aos homens e às coisas.
Em suas Meditações cartesianas, Husserl atribui a crise — ou decadência, como ele insiste em dizer — à divisão e fragmentação do espírito. Escreve Husserl:
O estado de divisão em que se encontra atualmente a filosofia, a atividade de sordenada na qual ela se desdobra dão o que pensar. Do ponto de vista da unidade científica, a filosofia ocidental está, desde meados do século passado, em um estado de decadência manifesta em relação a eras precedentes. A unidade desapareceu em todos os lugares: na determinação do fim tanto quanto na posição dos problemas e do método.
Último depositário da grande tradição racionalista herdada de Descartes, Husserl insistia ainda em um possível domínio do real pela racionalidade, articulada à ideia de responsabilidade e de uma ética da razão. No entanto, o que movia o pensamento de Husserl era muito mais a crise da humanidade e da racionalidade na Europa dos anos 30 do que propriamente a questão política que envolvia toda a geração. É certo que existe uma enorme incompreensão de certos comentadores que o chamaram “apolítico”, ou mesmo “reacionário”, justo ele que tinha não apenas a consciência mas também a vivência dos horrores da guerra, afetado pessoalmente com a perda de um filho e outro gravemente ferido, isso ainda na Grande Guerra. Em resposta à crise, Husserl acreditava ainda em um retorno dos velhos ideais racionalistas ao proclamar em 1935, portanto, em um dos momentos mais delicados da nossa história recente: “As ideias são mais fortes que todas as potências empíricas”. Frase que revela não apenas uma crença na visão idealista do mundo, como também um retorno ao passado.
Em uma conferência pronunciada em Viena em maio de 1935, Husserl dá a resposta aos que o chamavam reacionário: “Tenho tudo para acreditar que eu, pretenso reacionário, sou mais radical e mais revolucionário do que aqueles que, hoje, se conduzem verbalmente de maneira tão radical”.
Ao insistir na ideia de decadência, Husserl quer dizer — vale a pena lembrar mais uma vez — que houve um momento de apogeu do pensamento que era sintetizado na ideia da unidade. Ou melhor: se, para ele, o múltiplo é pensado em termos negativos é porque a unidade é uma das necessidades da razão. Esse momento é descrito pelos comentadores como o cartesianismo da época de Descartes, o momento do “Grande Racionalismo”, do século XVII, como o define Merleau-Ponty, que dava à natureza e à metafísica um fundamento comum, acordo extraordinário entre o interior e o exterior, tempo no qual “o universo mental não era cindido e no qual o próprio homem podia, sem concessões nem artifício, dedicar-se à filosofia, à ciência (e se desejasse à teologia)”. Em sua famosa “Conferência de Viena”, Husserl cita Descartes, mas essa citação é quase que o lamento de uma perda e uma nostalgia: “Da mesma maneira que o Sol é o único sol que ilumina e aquece todas as coisas, a razão também é única”. A dedução é uma só: é irracional tudo o que foge à razão única.
A visão de Merleau-Ponty é bem outra: essa indivisão cartesiana só poderia durar enquanto se permanecesse apenas à entrada dos três caminhos (o da ciência, o da filosofia e o da teologia). Valéry vai no mesmo caminho ao dizer que a filosofia não é, de nenhuma maneira, ciência, e talvez ela devesse até mesmo se livrar de toda ligação incondicional com a ciência: “Ser a ancilla scientiae não vale mais para ela do que ser ancilla theologiae”. Mais ainda: Valéry põe em questão a própria ideia de ciência, tal como a entenderam os cartesianos. Para ele, a ciência é filha do acaso, e sem acaso não pode haver nem não-acaso nem “razão”: “A ciência resultou dos acidentes felizes, dos homens não racionais, dos desejos absurdos, das questões extravagantes; dos amadores das dificuldades, dos ócios e dos vícios; o acaso permitiu encontrar o vidro; a ciência resulta também das imaginações de poetas”. O que nos separa do século XVII, escreve Merleau-Ponty, “não é uma decadência, é um progresso de consciência e experiência”.
Ora, que mundo se perdeu com a crise da unidade científica e cartesiana? O que Paul Valéry queria dizer ao escrever, em “A crise do espírito”, que “nós outros, civilizações, sabemos agora que somos mortais”? Que mundo é este que desaparece “por inteiro”, a exemplo de Nínive, Babilônia…? Esse mundo é certamente o da razão monológica: ou, de modo mais preciso, uma modalidade do mundo moderno que tinha uma ideia bem precisa e determinada do que era o homem com seu mundo cultural e político em certa unidade existencial. Se generalizarmos a noção de moderno e a designarmos como um modo de existência, somos levados a reconhecer que o homem moderno é hoje estruturalmente diferente. A melhor definição do nosso moderno hoje é ainda mais uma vez de Valéry:
Vejo passar o “homem moderno”, com uma ideia de si mesmo e do “mundo” que não é mais uma ideia determinada — que não pode deixar de ter várias ideias, que quase não poderia viver sem essa multiplicidade contraditória de visões —, ao qual se tornou impossível ser o homem de um só ponto de vista e de pertencer realmente a uma só língua, a uma só nação, a uma só confissão, a uma só física… Em consequência, as ideias, mesmo os hábitos, começam a perder o caráter de essenciais para assumir o caráter de instrumentos.
É este “mundo moderno”, de posse de um capital técnico prodigioso, inteiramente penetrado de métodos positivos, que “não soube, entretanto, se dar uma política, uma moral, um ideal, nem leis civis ou penais que estivessem em harmonia com os modos de vida que ele criou e até mesmo com os modos de pensamento que a difusão universal e o desenvolvimento de certo espírito científico impõem pouco a pouco a todos os homens”. Eis a questão: a crise imposta pelo espírito científico teria condições de ganhar uma resposta a partir do instrumental clássico de análise de que dispomos? Tal resposta não deveria levar em conta — como um dado inegável — a própria ideia de fragmentação do espaço, do tempo, da política e do próprio pensamento? Falando no congresso internacional de filosofia organizado para homenagear Descartes pelo terceiro centenário da publicação do Discurso do método, Valéry volta ao tema da crise do nosso tempo: “A filosofia […] parece-me estar, como todo restante das coisas humanas deste tempo, em um estado crítico de sua evolução…”.
Descartes está no centro das controvérsias. Como observa Jacques Bouveresse, em comentário aos textos de Valéry sobre a crise, Descartes é precisamente a origem da transformação que mais tarde levaria também à situação de crise do próprio pensamento. Ninguém questiona a influência de Descartes sobre o espírito racional do Ocidente e sua grande importância na história do pensamento ao dar à razão um estatuto autônomo. Mais ainda: ao pôr em dúvida a própria formação, os livros que leu, seus preceptores, Descartes, pai da filosofia moderna, queria não apenas esquecer a tradição e inventar um novo modelo de pensamento mas também deixar claro que a experiência absoluta já não coincide com a experiência do absoluto e passa a ser averiguada em termos simplesmente humanos, como escreve Gerd Bornheim num dos ensaios publicados neste volume. Mas em que consiste esse sistema que, de certa forma, busca a experiência do absoluto? Consiste na ciência pensada como “espírito humano”, espírito uno aplicado aos objetos, geometrização do pensamento, do universo e do próprio corpo humano: a “Sexta meditação” é excelente exemplo, quando Descartes compara a mecânica do corpo com a mecânica do relógio.
Mas, afinal, quais são os pressupostos dessa teoria que vai ser a base da racionalidade contemporânea em crise? O primeiro e mais importante deles é o prestígio dado ao pensamento matemático, afirmação absoluta que interdita a possibilidade de controvérsia: esse pensamento será, durante muito tempo, a medida de todas as ciências e modelo para a própria filosofia. Nas cartas a Regius, Descartes escreve: “Fala-se em persuasão quando existe alguma razão capaz de nos levar a duvidar; mas no caso da ciência a persuasão vem de uma razão tão forte que não pode ser abalada por nenhuma outra mais forte”. No comentário de Jean-Marie Beyssade, a originalidade das matemáticas vem de sua indiferença “à existência ou à não-existência de seu objeto”, uma vez que as disciplinas de que elas tratam se reduzem a um único método, definido no Discurso do método “para bem conduzir sua razão e procurar a verdade nas ciências”.
Como bom cartesiano, Alexandre Koyré responde de maneira precisa a uma questão bem precisa: que ideias se apresentam ao espírito de maneira tão clara e tão distinta que não se tenha mais razão de pô-las em dúvida?
As ideias obscuras e confusas, que fazem nascer a dúvida e que são, por sua vez, destruídas pela dúvida, são aquelas que nos vêm da tradição e dos sentidos. Quanto às ideias claras, verdadeiras, são, antes de tudo, as ideias matemáticas. E a razão é igualmente a razão matemática. Porque é apenas nas matemáticas que o espírito humano chegou à evidência e à certeza, e conseguiu constituir uma ciência, uma disciplina verdadeira, na qual progride na ordem e na clareza, das coisas mais simples às construções mais complicadas.
Koyré apenas comenta com precisão um dos famosos fragmentos de Descartes, para quem “entre todos os que buscam a verdade nas ciências, apenas os matemáticos encontraram algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes”. A essência do pensamento matemático para Descartes consiste em “dividir cada uma das dificuldades […] em tantas parcelas quantas forem possíveis e necessárias para melhor solucioná-las […] e conduzir meus pensamentos, em sua ordem, pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos”. Verdadeira revolução do pensamento, comenta Koyré, na medida em que, em oposição à ordem estática dos gêneros e das espécies da lógica escolástica, a lógica cartesiana se apresenta como viva e fecunda, “ordem da produção e não da classificação, ordem na qual cada termo depende do que o precede, e determina, por sua vez, o que o segue […] Ciência, portanto, puramente racional, inteiramente clara para o espírito, uma vez que, nela, o espírito não estuda senão suas próprias ações, suas próprias operações, suas próprias razões”.
Eis, portanto, a proposta de um universo inteiramente métrico, científico, construído a partir da ideia e não das coisas, que segue a ordem das razões e não das matérias, como escreveu Koyré. Mais ainda: a antiga física, que se funda no dado imediato dos sentidos, é substituída por “uma física das ideias claras, física matemática que bane do mundo real todo dado sensível, que caça toda ‘forma’, toda força e toda qualidade, e que apresenta uma imagem (ou uma ideia?) nova do Universo, de um universo estrita e unicamente mecânico”. Ou, dito em outros termos, a prioridade dada ao infinito sobre o finito. Tomando a matemática como paradigma, essa razão aponta para o consenso universal. Transitando pelo território da universalidade, ela propõe, como disse certa vez em conferência o filósofo José Américo Pessanha,
modelos abstratos, fala do possível, resulta de verdadeira ortologia: rigorosa retidão imposta ao logos, ao discurso da razão. Retidão tão rigorosa que abandona o discurso dos mortais, as linguagens nossas de cada dia… Por isso mesmo, mostra Perelman, constrói-se como razão divina, intemporal, monológica, que pretende se dirigir, como Descartes, a um “auditor qualquer”. É um discurso monárquico, irretorquível, uma fala “real” a serviço de algum tipo de monismo absolutista: teológico, axiológico, político, metodológico […]
A razão cartesiana abandona, pois, a antiga pretensão filosófica de ser um modo de vida; transforma-se em mecânica do pensamento. A razão passa a ser linguagem abstrata. É a ciência que “manipula as coisas e se recusa a habitá-las”, como definiu Merleau-Ponty.
Mas qual é a contrapartida de uma fala “real”, monológica?
A resposta é dada pelo poeta Paul Valéry: “A única coisa em que penso com amor, penso também com dor. Que coisa é esta? É você ou sou eu”. Com essa frase, Valéry traz de volta não apenas a aderência de meu pensamento comigo mesmo e com o outro, como quer a fenomenologia de Merleau-Ponty (contra a comunicação com um “pensador universal”), mas também todo enigma de um pensamento que passa necessariamente pelo corpo e pelas paixões. Sentido e tradição e todo o seu cortejo — ordem e desordem, sujeito e objeto, necessidade e acaso, visível e invisível, divisível e indivisível etc. — passam a compor a ordem da razão. Relação da razão com a carne do mundo, como diz Merleau-Ponty, “no qual o mundo sensível e o mundo histórico sejam sempre intermundos”. O cogito vem, pois, acompanhado do objeto de cada cogitação. O acesso ao mundo se dá não apenas através do “espírito interior”, por meio da reflexão, mas também através do espírito difundido nas relações históricas e no meio humano. Ou, mais precisamente, “não há homem interior”, como escreveu Merleau-Ponty no prefácio à Fenomenologia da percepção. Mais ainda: esta nova relação do cogito exige de nós experiência. Se é verdade, diz ainda Merleau-Ponty, que Husserl procura, “pelos estudos dos fenômenos, enraizar a razão na própria experiência, não se deve espantar que sua filosofia resulte, no fim de sua carreira, em uma teoria da ‘razão oculta na história’. Mas”, adverte o filósofo, “não basta viver esta experiência: é preciso que se extraia dela o seu sentido ou sua significação”. Para isso, é preciso, antes de tudo, fazer a distinção entre “experiência” e “experiência sensível”, ou melhor, responder à pergunta: o que vivemos através da experiência?, para assim, através dela, saber desvelar o que há de inteligível, saindo da minha particularidade e ascendendo a um saber que é válido para todos.
Não se pode, pois, pensar a razão sem a relação experiência-corpo-natureza-pensamento. Razão oculta na história: “Este corpo que sou jamais é o corpo que penso. É preciso dar-lhe qualidades ocultas”. Mas as qualidades ocultas só podem ser pensadas a partir do ser. É isso que Merleau-Ponty parece nos dizer quando designa a razão como “o invisível da idealidade”, apenas abertura das coisas e do ser. Cita mais uma vez Husserl para falar da relação do pensamento com o corpo, tomando como exemplo a experiência de um dado sensível, o tato:
Quando toco minha mão esquerda com minha mão direita, minha mão que toca prende minha mão tocada como uma coisa. Mas, de repente, noto que minha mão esquerda põe-se a sentir. As relações invertem-se. Temos a experiência de um recobrimento entre o aporte da mão esquerda e o da mão direita e de uma reversão de sua função. Essa variação mostra que se trata sempre da mesma mão. Como coisa física, ela permanece sempre o que é, e apesar disso ela é diferente se é tocada ou se toca. Assim, eu me toco tocando, realizo uma espécie de reflexão, de cogito, de agarramento de si por si. Em outros termos, meu corpo torna-se sujeito: ele se sente. Mas trata-se de um sujeito que ocupa espaço, que se comunica consigo mesmo interiormente, como se o espaço se pusesse a conhecer interiormente. Desse ponto de vista, é certo que a coisa faz parte do meu corpo. Entre eles, há uma relação de co-presença. Meu corpo aparece como “excitável”, como capacidade de sentir, como uma coisa que sente.
“O que em mim sente está pensando”, escreveu o poeta Fernando Pessoa. Ora, essa forma de pensar faz não apenas a crítica das clássicas cisões sujeito/objeto, pensamento/coisa, interior/exterior, e o consequente “pensamento de sobrevôo”, mas principalmente aponta para uma nova ontologia. É nesse sentido que Merleau-Ponty volta à discussão entre natureza e linguagem: podemos instituir entre elas todo tipo de oposição que quisermos, diz ele, pois há um “logos do mundo sensível e um espírito selvagem que animam a linguagem; a comunicação no invisível dá continuidade àquilo que é instituído pela comunicação no visível”, ela é um outro “lado”, como as coisas nos ensinaram que “há sempre um outro lado conjugado com o lado visível”. O que o filósofo nos ensina é que há valores, virtudes positivas, certezas que, um dia, se tornarão visíveis; é como aquela sensação positiva que temos nas trevas: nada vemos mas sentimos que estamos prestes a ver. Da mesma maneira que o exemplo do “tocar” de Husserl nos leva do mundo dos sentidos para o mundo da reflexão, da mesma maneira as relações do visível e do invisível, “do logos do mundo visível e do logos da idea lidade”, não apenas nos abrem para a relação do mundo sensível com o mundo da razão, criando novas razões, como ainda provocam a retomada daquilo a que Merleau-Ponty chamou, certa vez, dignidade ontológica do sensível. Nas notas do seu curso, no Collège de France, sobre o lugar do corpo e da natureza nos estudos da filosofia, Merleau-Ponty ilustra a relação natureza-razão citando Giraudoux, que diz na Églantine que o mundo é uma “cariátide do vazio”. Mas Giraudoux, observa o filósofo, “insistia no ‘vazio’. É necessário insistir na ‘cariátide’. O gigante Atlas está de pé sobre o solo”. Quer dizer, é preciso, antes de tudo, insistir no homem. Neste homem que está implantado no mundo suportando nos ombros todo o peso do vazio que deve ser desvelado a cada momento. Este é, certamente, um novo tipo de racionalismo, que não se contenta com uma explicação apenas através de noções e conceitos únicos, universais e abstratos; uma razão sensível que busca, de forma permanente, expressões tão “puras” quanto possível, uma verdadeira razão que tenha apenas por objeto o Ser, parece dizer o filósofo.