1999

A outra margem do Ocidente

por Adauto Novaes

Um mundo jamais visto antes. Aos olhos da Europa, uma sociedade inquietante se revela: são homens sem lei, sem fé e sem rei que habitam a outra margem do Ocidente, margem que, a partir de 1500, passou a situarse simbolicamente na confluência de dois mundos, o Velho e o Novo. Ora, toda margem delimita; ao mesmo tempo inclui e exclui, integra e divide, transita entre o diferente e o mesmo: a descoberta foi a ponte lançada entre as duas margens, a civilização ocidental e as civilizações primitivas. Toda ponte é sempre uma travessia, ponto de partida e ponto de passagem.

Ao longo dessa travessia, o Ocidente abriu dois caminhos contraditórios: o da força e o da consciência europeia.

Confrontados pela primeira vez com um tipo de sociedade radicalmente diferente – “um estado social pleno e acabado” que o olhar estrangeiro não soube ver-, os ocidentais não hesitaram em impor sua concepção de sociedade humana. Nas suas representações políticas não havia lugar para o diferente. No imaginário europeu, o mundo político dos selvagens era literalmente impensável. Pela força, o Ocidente impôs ao Outro sua singularidade absoluta. Hoje, quinhentos anos depois, quando instituições públicas e privadas insistem apenas na ideia de comemoração festiva, forma hipócrita do esquecimento, a empresa inaugurada no século XV chega ao fim, como nos lembra Pierre Clastres: “Um continente inteiro estará livre de seus primeiros habitantes, e esse Mundo logo poderá, com justiça, proclamar-se Novo. Tantas cidades arrasadas, tantas nações exterminadas, tantos milhões de pessoas passadas pelo fio da espada, e a mais rica e bela parte do mundo transtornada pela negociação de pérolas e da pimenta. Mecânicas vitórias.’ Assim Montaigne saudava o triunfo da civilização ocidental”. É como se o Ocidente cumprisse e selasse inteiramente o sentido e o destino das sociedades indígenas: a palavra ocidente quer dizer literalmente “ocaso”, “queda”, “declínio”.

O outro caminho trilhado foi o da própria consciência europeia, desfeita e refeita nessa viagem que já dura quinhentos anos. O Ocidente de 1500 vivia, politicamente, um processo universal de identificação do mesmo no mesmo. Os primeiros viajantes e os filósofos do século XVI nos mostram que, através dos contatos com as sociedades indígenas, inicia-se o longo itinerário da descoberta do Outro. É como se, tendo forçado os limites do horizonte, o ocidental fosse encontrar o seu Outro, como se o olhar não tivesse outra saída a não ser o reflexo de si mesmo no Outro; o ocidental começa a tornar-se consciente no contato com um novo mundo exterior. As sociedades indígenas revelaram para o Ocidente o seu lado oculto que ele ignorava. De início, o europeu espanta-se ao descobrir-se particular, quando, antes, sentia-se universal, obrigando-o a recomeçar a pensar sua própria condição, não a partir de uma abstrata “história da humanidade”, mas a partir do próprio homem redescoberto. (Não se trata, bem entendido, de invalidar a ideia de universal, mas de abrir uma outra via em direção ao “universal lateral” de que fala Merleau-Ponty, que exige de cada um o questionamento de si pelo Outro.) O reflexo no espelho da cultura não produz apenas o duplo, produz também a consciência da diferença. E foi exatamente porque as sociedades indígenas mostraram para o europeu o outro lado da história – faces diferentes de uma mesma realidade humana – que hoje se pode dizer (o que nem sempre é reconhecido politicamente) que existem sociedades diferentes, formas diferentes de organização política, pensamentos diferentes que produzem diferenças no interior da própria ideia de Ocidente. É a invenção de uma nova maneira de pensar que se impõe. Mas, a partir de 1500, o pensamento ocidental vive de um duplo: ora dominado pela imaginação, ora tentando penetrar no mundo do Outro. Essa contradição tem história. Para alguns pensadores, só chegamos ao ser humano de maneira enganosa, uma vez que a humanidade sempre se desmente e logo passa da bondade à crueldade mais baixa, do pudor à extrema desfaçatez, do aspecto mais fascinante ao mais odioso: “Muitas vezes”, escreve Georges Bataille, “falamos do mundo, da humanidade, como se houvesse alguma unidade: na realidade, a humanidade é composta de mundos, vizinhos segundo a aparência mas na verdade estranhos um ao outro”.

EXPERIÊNCIA E DESTINO

Como se dá a experiência de ver o Outro? Ver o Outro é, em parte, um ato intelectual. A aparência do que se vê é preenchida por todas as noções construídas anteriormente de forma imaginária. Entregue a si mesma, sem o recurso da experiência, a imaginação não pode dar conta da história dos povos primitivos. Comentando o livro Mitologia primitiva, de Lévy-Brühl, o filósofo Edmund Husserl pergunta como conhecer as sociedades primitivas mediante a simples imaginação quando se é europeu, nascido na Alemanha no século XIX, isto é, em um “meio” que não é apenas um “meio imóvel”, mas “um mundo que tem um futuro em parte realizado (o “passado” nacional) e em parte a realizar”. Husserl conclui que, para conhecer essas sociedades, seria necessário reconstituir a própria experiência e o próprio meio do que é primitivo. Abolindo, de início, o trabalho da experiência, ou melhor, recorrendo apenas à experiência imediata, o europeu estabeleceu com o selvagem uma relação de não-conhecimento. Ora, sabe-se que toda experiência imediata – tanto a experiência sensível como a experiência da percepção do Outro – é uma experiência daquilo que já está dado, já está pensado previamente, e que toma a aparência como realidade. É a mediação do trabalho do pensamento que nega o imediato da experiência e “descobre” o que está oculto na própria experiência. Ao afirmar que o oculto fascina, os pensadores do século XVII queriam dizer que a experiência traz em si mesma o novo. O fascínio decorre dessa busca do novo. Mas, por não refletir sobre a própria inovação, a experiência imediata tende a ocultar esse novo “nas máscaras do já sabido”. Quando é mediada pelo trabalho de pensamento, pela reflexão, a experiência leva nossos atos de expressão a ultrapassarem os dados que serviram de ponto de partida e nos aponta em direção a outra coisa. “Fecundidade indefinida” (Husserl) de cada momento do tempo que institui operações culturais que exigem as velhas operações mas ao mesmo tempo criam outras, novas. Como escreve Merleau-Ponty (La prose du monde), essas operações inventam a tradição. A cultura consiste em “jamais começar e jamais terminar no instante”, e, portanto, em implantar um sentido que antes não existia e que, longe de se esgotar no próprio instante do acontecimento, “abre um campo, inaugura uma ordem, funda uma instituição ou uma tradição […]”.

Mas boa parte da tradição do Novo Mundo foi criada exclusivamente a partir do imaginário europeu.

Lemos no ensaio L’empire de l’imaginaire, de Jean Starobinski, que a consciência imaginante pode tomar suas distâncias e projetar suas fábulas sem levar em conta a coincidência possível com os dados da experiência reflexiva e com os dados da realidade: agindo assim, a imaginação é “ficção, jogo, ou sonho, erro mais ou menos voluntário, fascinação pura”. Quando se trata da história de um povo e, portanto, de não-ficção, ela cria ideias falsas ou apresenta a verdade de maneira distorcida.

* * *

No descobrimento, o enigma está em saber por que o europeu – à exceção de Jean de Léry, André Thevet, Hans Staden e alguns poucos narradores geniais – persistiu em definir as sociedades indígenas apenas seguindo sua imaginação. É certo que os modelos de análise dominantes baseavam-se na ideia de representação, isto é, tomar o objeto como algo representado e imaginado pelo sujeito. Não havia propriamente um trabalho de pensamento a exigir reflexão em torno do que era visto, mas apenas conhecimento, caso se defina conhecimento como “apropriação intelectual de um campo empírico ou de um campo ideal de conceitos”. Sabe-se que a concepção clássica do conhecimento baseava-se nas ideias de verificação, observação, exposição e demonstração do já conhecido. Com ideias constituídas previamente e lidando empiricamente com os fatos, o europeu passou a carregar uma dupla imagem do Outro: a herança de todo o imaginário que antecedeu o descobrimento e a construção de um novo imaginário; viu o Outro mas não foi capaz de pensar sua história. Mais ainda: durante muito tempo confundiu imagens com ideias. Não foi capaz de dar um novo sentido à ideia de homem europeu e homem selvagem – não uma metamorfose simples, mas no sentido da retomada de um e de outro. Foi incapaz de compreender, enfim, de que maneira cada um se descentra e se torna um duplo de si mesmo, abrindo espaços para refazer expressões já sedimentadas.

PAGÃOS E BÁRBAROS

O primeiro ato de fundação do conquistador começa, pois, com a construção imaginária da figura do Outro. Em vez de entrar no mundo dos gestos, signos e símbolos que permitiriam compreender o sentido e o poder da cultura e das instituições, dos mitos, dos símbolos e das palavras dos primitivos, o Ocidente apressou-se em desenhá-lo como o bom e o mau selvagem, o violento, o canibal, sem história, sem memória e sem formas de organização política. Ao entrar em contato com o Outro, os ocidentais passaram a defini-lo através de um sistema de axiomas já consagrados. É verdade também que só se pode nomear algo a partir da comparação com o já conhecido, e o conhecido do século XVI era cristão ou pagão, civilizado ou bárbaro. Tomando, portanto, a própria imagem como modelo para o Outro, o Ocidente transforma as diferenças em qualidades opacas, destruindo os possíveis acordos de totalidades rivais. Criase uma nova “causa instituinte” baseada nos valores ocidentais, valores com poderes instituintes postos em causa desde o começo pelas relações violentas dos índios, como podemos ler no texto de John Monteiro e no de outros autores deste livro.

Essa maneira de agir era parte da constituição do próprio pensamento europeu: à medida que tomava consciência de si mesmo, precisava forjar seu Outro. Como nos lembra Jacques Leenhardt, no ensaio L’Europe se regarde: le miroir des Amériques, “diferenças geográficas, culturais e religiosas serviram para fixar os quadros de referência daquele que não era grego, civilizado ou cristão”. Em compensação, depois da Idade Média, na época da descoberta e conquista do mundo, a Europa jamais reencontrará seu “Outro”: a partir de então será a si mesma que em espelhos diversos a Europa terá de confrontar. Eis por quê, logo depois da “descoberta”, a América deixou de pertencer ao antigo sistema de produção do imaginário que pensa o mundo por meio de oposições simples. A América será uma Europa “além do mar atlântico quando os limites do mare nostrum foram ultrapassados. […] Contrariamente ao que a África ou o Oriente puderam sugerir como meditações, o jogo de espelhos do qual a América é parte tem isto de particular: é confrontação ao mesmo tempo com o Outro e consigo mesmo, talvez confrontação com sua própria alteridade”. A imagem do índio resume, pois, referências simbólicas do pensamento ocidental, e inscreve nele um destino trágico: os selvagens foram o Outro do Ocidente, “o lugar no qual ele pôde ler sua diferença para em seguida querer suprimi-la … Não se sabe se, por algum contragolpe estranho [o encontro] trará igualmente em si a morte inesperada de nossa história, da história do nosso mundo em sua figura contemporânea”.

A outra margem do Ocidente, segundo volume da série Brasil 500 anos – experiência e destino, recobre, em dois movimentos, realidades heterogêneas e distintas: o Ocidente e as sociedades indígenas. Mais do que falar sobre os índios, trata-se de falar com eles, repensar a história e a política no Ocidente, à luz da experiência selvagem. Ouvimos, na abertura do ciclo de conferências, a advertência de Davi Yanomami: “Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento. Há muito tempo guardamos as palavras de nossos antepassados dentro de nós, e as continuamos passando para nossos filhos”.

Se invocamos a experiência das sociedades indígenas é porque procuramos não apenas nos tornar seus contemporâneos, apesar da diferença temporal, mas também buscar o sentido de certas noções hoje esquecidas por nós, ocidentais: o que é o esquecimento das origens, qual o trabalho da memória, como funcionavam sociedades que eram estruturadas radicalmente contra a ideia de Estado? O que é o Outro?

É certo que o pensamento político ocidental não se permite compreender-se apenas a partir de si mesmo: compreender o Ocidente exige, também, um descentramento, um outro olhar e um olhar no outro, que pode ser entendido como “passagem da política como dogma à política como ética ou antropologia”.

O comentário de Gilbert Vaudry à obra de Pierre Clastres, em Do silêncio ao diálogo: o fim das tribos, é preciso: “Sabe-se que a relação Ocidente-selvagens é, na história, marcada por um desastre. Em todos os lugares”, escreve Clastres,

a conjunção permanente entre a expansão da civilização europeia e o aniquilamento das culturas primitivas obriga a pensar nossa civilização na sua incapacidade de reconhecer o Outro, e põe em evidência, de modo imanente a ela, a vizinhança constante da violência e da razão, a primeira exercendo-se sobre tudo o que escapa ao campo da segunda. E é a partir dessa dupla face do Ocidente, sua face completa, que se deve articular a questão de sua relação com as culturas primitivas: a violência efetiva da qual estas são vítimas não é estranha ao humanismo; ela não é senão o signo visível de uma proximidade mais distante da razão.

O que um pensamento exigente busca nas sociedades indígenas? O que o ocidental pode ver no índio? Projeção de uma sombra que enuncia um mundo esquecido? Viagem do Mesmo ao Outro? Retomada profunda, busca de um pensamento selvagem, do “ser bruto”, primeiro, primordial, e, portanto, busca do ser consciente de seus começos? Na realidade, com a descoberta do Outro, ficamos diante de duas faces do humano, ou melhor, diante de duas humanidades diferentes, uma ajudando a outra a se reencontrar como humanidade: singular descentramento do olhar. Com as sociedades indígenas, podemos pensar questões políticas sempre presentes e sempre resolvidas por elas de maneira diferente. É uma nova maneira de pensar, como escreve Merleau-Ponty no ensaio De Mauss a Claude Lévi-Strauss, “que se impõe quando o objeto é ‘outro’ e exige que nós mesmos nos transformemos. Tornamo-nos também etnólogos de nossa própria sociedade e nos distanciamos dela […] Trata-se de aprender a ver como estrangeiro o que é nosso e como nosso o que é estrangeiro”. Mais ainda: “Não se trata de ter razão diante do primitivo ou de lhe dar razão contra nós; trata-se de nos instalarmos em um terreno no qual sejamos um e outro inteligíveis, sem redução nem transposição temerária […] A tarefa consiste, pois, em alargar nossa razão para torná-la capaz de com preender o que em nós e nos outros precede e excede a razão”.

Se levarmos em conta o que diz Lévi-Strauss, talvez este seja o último legado que o destino trágico do Ocidente reservou para as sociedades indígenas: “A etnologia consciente”, escreve Lévi-Strauss, “data de um século apenas e tem diante de si apenas um século para viver, pois as sociedades primitivas estão em rápida extinção […] Somos, portanto, como astrônomos diante de uma conjuntura astronômica excepcional e que jamais se reproduzirá. Durante dois séculos, e dois séculos apenas, uma humanidade passará ao lado de outra humanidade e poderá observá-la”.

Cinco são os temas centrais deste livro: o primeiro deles concentra a reflexão sobre a ideia do encontro-desencontro, uma tentativa de voltar às fontes filosóficas e éticas do dualismo ameríndio, isto é, a “abertura ao Outro”. Na análise dos mitos dos gêmeos descritos por Lévi-Strauss na História de lince, aqui desenvolvida pelo historiador Frank Lestringant, enquanto no Ocidente o que se buscava era a identidade entre eles, nas sociedades indígenas o que se procurava era a diferença entre os gêmeos: “Assim, no pensamento dos ameríndios, sua existência implicava a dos não-índios. Muito antes da descoberta do Novo Mundo, o lugar dos brancos já estava marcado em seu sistema”.

O segundo tema do livro discute o poder político do índio. De Étienne de la Boétie a Pierre Clastres é afirmada a questão do como viver em sociedade. Como nos lembra Clastres,

longe de nos oferecer uma imagem amortecida de uma incapacidade de solucionar a questão do poder político, essas sociedades nos espantam pela sutileza com a qual a afirmaram e a resolveram. Muito cedo elas pressentiram que a transcendência do poder traz para o grupo um risco mortal, que o princípio de uma autoridade exterior e criadora de sua própria legalidade é uma contestação da própria cultura: foi a intuição dessa ameaça que determinou a profundidade de sua filosofia política.

O terceiro tema do livro questiona a supremacia da razão ocidental por intermédio da discussão sobre a metafísica indígena, o desejo da supra-humanidade, as origens do pensamento no sentido ocidental do termo. Esse conjunto de textos vai da política do espírito às questões da cosmologia indígena, da ideia de natureza à sexualidade e ao corpo como o lugar da pintura. Como nos lembra Lévi-Strauss, a imagem tradicional que fazemos da primitividade deve mudar: “Jamais e em lugar algum o ‘Selvagem’ foi este ser saído há pouco da condição animal, ainda entregue ao império de suas necessidades e de seus instintos, que muitas vezes se imaginou, e muito menos esta consciência dominada pela afetividade e mergulhada na confusão e na participação. Os exemplos citados […] testemunham em favor de um pensamento […] próximo daquele dos naturalistas e herméticos da Antiguidade e da Idade Média”.

Que tipo de influência o Novo Mundo exerceu sobre o pensamento político europeu? Esta é a questão central do quarto tema do livro. De Montaigne a Lévi-Strauss e Pierre Clastres, passando por Bodin, Voltaire, Diderot, Rousseau e outros filósofos, as sociedades indígenas nos deram o que pensar com o surgimento de uma nova etnologia, um saber que permite “forjar uma nova linguagem infinitamente mais rica; uma etnologia que, superando esta oposição central em torno da qual se edificou e afirmou nossa civilização, transformar-se-ia ela mesma em um novo pensamento”.

Por fim, qual o estado atual das sociedades indígenas? Ao lado dessa interrogação, silenciada pelos poderes instituídos, um problema se põe aos brasileiros. Os últimos dados nos mostram que, apesar de toda a história de massacres, as sociedades indígenas que restaram retomam, lentamente, o seu crescimento: o que fazer para garantir e respeitar a liberdade e a autonomia dessas sociedades?

O primeiro e o mais importante passo – e é isso que este livro propõe – é evitar, como nos convida Clastres, um discurso sobre as civilizações primitivas, mas sim estabelecer um diálogo com elas. Ainda que a resposta dos índios seja dada, às vezes, na forma de silêncio, “signo desolador de sua última liberdade”.