Intelectuais em tempos de incerteza
por Adauto Novaes
Nous entrons dans l’avenir à reculons.
Paul Valéry
O título O silêncio dos intelectuais suscitou muita controvérsia. Em meio a uma profusão de tagarelices, algumas discussões insinuaram covardia, cumplicidade política, desinteresse. Poucos souberam ouvir o que se dizia à época do ciclo de conferências e que pode ser resumido assim: vivemos um momento de radical transformação seguida de uma anemia criadora em todas as áreas de atividade, entre elas a política e o pensamento.
A situação se radicaliza à medida que valores universais — liberdade, justiça, razão, verdade —, matérias do intelectual, perdem legitimidade e valor. Mais: não sabemos responder às velhas questões postas pelo Iluminismo: Onde estamos? Para onde vamos? Há uma dificuldade em representar o mundo atual, o que nos leva, portanto, ao tempo de silêncio e reflexão. Por que o silêncio incomoda tanto? Ora, sabemos que o silêncio não é simples ausência momentânea de imagens, mas passagem de uma experiência do pensamento a outra. Ou melhor, o silêncio é uma espécie de substância secreta que abre caminho à expressão. A relação com o mundo, escreve Davi Le Breton em ensaio sobre o silêncio, não é tramada apenas “na continuidade da linguagem, mas também nos momentos de suspensão, contemplação”, isto é, nos muitos momentos em que o homem se cala.
Vale ainda lembrar o que Merleau-Ponty escreveu em Signes: “Consideremos a fala antes que ela seja pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de envolvê-la, sem o qual ela nada diria; é preciso ainda pôr a nu os fios de silêncio nos quais a fala está enredada”. O silêncio é, pois, constitutivo da fala, impressão interrogativa, análoga a um olho nas trevas “que nada vê, mas se sente prestes a ver”. Ele designa uma presença que pede para ser desvendada. Qualquer palavra, qualquer frase sempre guarda uma perspectiva imaginária e uma dimensão obscura, presença alusiva. Só uma visão positivista espera que a fala revele o pensamento por inteiro: toda palavra é habitada pelo impensado e por paradoxos.
Mas há momentos nos quais o silêncio se torna expressão de uma “crise”. Ora, se interrogarmos as origens do silêncio dos intelectuais hoje, é preciso admitir que, entre outras causas, há uma que é determinante: o processo de mutação por que passa a civilização no Ocidente: o que melhor define esta mutação é a ideia paradoxal do tempo da ordem e da desordem. O diagnóstico do filósofo Jacques Bouveresse é preciso:
A novidade não consiste na ideia de que estamos engajados há um bom tempo no processo de estagnação e mesmo de declínio preocupante. Isto era uma coisa mais ou menos sabida. Entretanto, parece-me que, com tudo isso, não tínhamos conhecido ainda o pior. É a partir da ideia de desastre, ou, falando de maneira mais delicada, de metamorfose que é preciso discutir a última mudança que a imprensa cultural nos informa, a saber, o fato de os intelectuais — mesmo que sua estrutura não possa ser comparada à de seus ilustres predecessores — não desfrutarem de menos prestígio, poder e favor das mídias. Eles não hesitam mais a se exprimir abertamente de uma maneira que pode ser qualificada de neoreacionária?
Bouveresse retoma os termos estagnação, declínio e metamorfose, conceitos que a tradição filosófica desenvolveu para falar das mutações da civilização ocidental.
Paul Valéry foi um pensador que dedicou o melhor de sua vida intelectual a desvendar os mecanismos da civilização do Ocidente e sua radical transformação. Para ele, por causa do excesso de precisão ou do aumento desmesurado de potência, a civilização está a ponto de se destruir pelos meios que ela própria criou. Estranha transmutação, escreve ele:
Estamos, a partir de agora, na situação de um jogador que percebia com estupor que a mão do seu partenaire lhe dá figuras jamais vistas e que as regras do jogo são mudadas a cada lance. Nenhum cálculo de probabilidade é mais possível, e ele nem mesmo pode lançar as cartas à mesa do adversário. Por quê? É que, mais ele o encara, mais se reconhece nele! […] O mundo moderno se constrói à imagem do espírito do homem.
Ora, de que maneira se expressa o tempo da ordem e desordem, ou da construção e desconstrução? No texto mais célebre de Valéry — La politique de l’esprit, notre souverain bien — lemos, por exemplo, que o estado presente, que é nossa obra, mostra o futuro como coisa incerta, impossível de imaginar, e essa dificuldade de visualizá-lo é a grande novidade. Ora, o trabalho mental da previsão é, segundo Valéry, uma das bases essenciais da civilização. Ou melhor, é a ausência de passado e de futuro — um presente eterno e fugaz — que define a mutação, sem que saibamos onde estamos e para onde vamos.
É nesse sentido que podemos ler uma das frases enigmáticas em Regards sur le monde actuel: “Nous entrons dans l’avenir à reculons” (Entramos no futuro de costas), frase que nos remete ao célebre fragmento de Walter Benjamin sobre o quadro Ângelus Novus, de Klee. O quadro representa um anjo “que parece querer afastar-se para longe daquilo que está olhando fixamente”, escreve Benjamin. “Seus olhos estão arregalados, a boca aberta, as asas estendidas. O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está voltado para o passado. O que para nós aparece como uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas como catástrofe que não cessa de empilhar a seus pés ruínas sobre ruínas […]. A tempestade o impele de maneira irresistível para o futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto diante dele o monte de escombros cresce até o céu. O que chamamos progresso é esta tempestade.” É como se jamais pudéssemos tirar os olhos do pensamento acumulado e suas profundas lembranças, e também como se tivéssemos medo daquilo que não se pode saber ainda o que será. São os tempos de incerteza.
Esta é a razão pela qual, para pensar nossa civilização, Valéry recorre à figura do “Hamlet europeu”, que medita sobre a vida e a morte das verdades. Mais: para falar sobre a civilização moderna, o olhar permanece retrospectivo: descreve mundos desaparecidos — Nínive, Babilônia — como se reconhecesse amargamente “que só pode ser conhecido aquilo que deixou de existir”, segundo Edouard Gaède. A descrição das razões das transformações feitas por Valéry é bem curta, mas precisa:
Jamais transformação tão profunda e tão imediata, a terra inteiramente reconhecida, explorada, equipada, diria mesmo inteiramente apropriada; os acontecimentos mais distantes conhecidos no mesmo instante; nossas ideias e nossos poderes sobre a matéria, sobre o tempo, sobre o espaço concebidos e utilizados de maneira completamente diferente do que foram para nós até agora. Qual o pensador, o filósofo, o historiador, mesmo o mais profundo, o mais sagaz e o mais erudito, que se arriscaria hoje a profetizar minimamente? […] Não sabemos mais nem mesmo distinguir a guerra da paz, a abundância da falta, a vitória da derrota.
Antes de concluir o ensaio, cujo mote é “nós outros, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, Valéry aponta a origem da grande mutação. Sem negar os avanços trazidos pela ciência, mostra como problema para a civilização o fato de o espírito científico distanciar o homem da vida. Gaède analisa o paradoxo apontado por Valéry: é o exercício da ciência, a mais legítima obra do espírito, que ameaça o espírito, “privando-o de seus mais preciosos recursos, sua iniciativa, inventividade, capacidade de improvisação, em uma palavra, espontaneidade”.
A ciência reduz o espírito a um papel de autômato e “exige dele não apenas o sacrifício da pessoa, mas também o sacrifício do intelecto”. Ora, devemos evitar uma leitura ingênua dos textos daquele que exerceu todas as nuances ao longo de sua vida intelectual. É certo que, para Valéry, o problema não está na ciência, mas na passagem da ciência-saber à ciência-poder, isto é, sua aplicação prática. Mais ainda: a invenção da tecnociência. Assim, Valéry escreve em outro texto clássico sobre a civilização:
Tantos horrores não teriam sido possíveis sem tantas virtudes. Foi necessária, sem dúvida, muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens, aniquilar tantas cidades em tão pouco tempo; mas foram necessárias também não menos qualidades morais. Saber e dever, sois portanto suspeitos?
Ora, sabemos que não existe área da atividade humana que não passe hoje por revisão profunda. É disso que tratam, já há alguns anos, os ciclos de conferências Civilização e barbárie, Congresso internacional do medo, O silêncio dos intelectuais e O esquecimento da política. Nada, portanto, mais inconsequente do que vincular as discussões sobre o silêncio dos intelectuais a questões conjunturais como tentou fazer parte dos meios de comunicação.
Basta relembrar duas ou três questões postas pelos ensaios aqui publicados: Quem é intelectual? Os novos tempos decretam o fim do intelectual engajado? Pode o intelectual sobreviver sem utopias? Na era do predomínio do relativismo, perde o intelectual a matéria de seu trabalho, isto é, os ideais universais de liberdade, justiça, razão, verdade? Se assistimos hoje ao esgarçamento do espaço público, de que maneira e a quem dirigir a sua fala? Que tipo de novo intelectual pode surgir a partir da grande revolução tecnocientífica?
Acrescentemos a essas questões outra pergunta feita por Ignácio Ramoneda na edição de maio de 2006 do jornal Le Monde Diplomatique cujo tema é “intelectuais midiáticos, pensadores da sombra”: a sociedade encontra-se órfã de uma interpretação pertinente e mobilizadora, sob o risco de ignorar seus próprios sintomas e ser condenada a viver novas “crises”; escreve ele:
Existem ainda intelectuais que são referência? De que maneira a explosão midiática tumultuou seu magistério? Por que o ódio tipicamente fascista (cf. Goebbels) do intelectual ou a aversão que lhe dedica a direita americana se justapõe a uma espécie de autodestruição pelo excesso de exibição (cf. Bernard-Henri Levy)?
No mesmo número do jornal francês, o professor do Collège de France Pierre Rosanvallon dá uma resposta incisiva aos críticos apressados:
Que os intelectuais fossem os vigilantes, que alertassem, que interviessem no fórum era fundamental nas sociedades dos séculos XVIII e XIX, quando o fórum era muito pequeno, quando a liberdade de imprensa era reduzida. Voltaire tomar a palavra era decisivo. Quando o sufrágio universal não se realizava, que um escritor de renome falasse em nome dos esquecidos, dos sem-voz era decisivo; [hoje] existem muitos grupos que tomam a palavra. Não há déficit de tomada da palavra em nossa sociedade. Existe, sim, déficit de compreensão. Ora, a vida intelectual concebe-se sempre como se ela fosse definida pela função de resistência, de tomada da palavra, de alerta. Mas ela se esquece de que seu verdadeiro trabalho é o trabalho da análise, de compreensão da realidade.
Diante da reação inusitada a essas propostas de discussão, pode-se deduzir que a civilização não se sabe como mutação. Tenta-se dar resposta utilizando-se de conceitos criados nos séculos XIX e XX para problemas de um mundo inteiramente outro. A experiência, hoje, funda-se no esquecimento de suas origens, o que produz no espírito de nossa época um singular mal-estar; isto é, um descompasso entre as práticas e os princípios, “separação cada vez maior entre as forças postas a serviço do homem e as inteligências que as comandam”, como escreve ainda Paul Valéry.
Estas são as considerações gerais que levaram à reflexão sobre o papel do intelectual hoje. De início, grande parte dos ensaios aqui reunidos não define ou mesmo discute a intervenção direta dos intelectuais na política prática, mesmo porque, como veremos adiante, o intelectual, no sentido forte do termo, só participa do campo político à distância, uma “presença ausente”.
Tomamos o intelectual como emblema de uma crise maior no campo da cultura e também como ponto de partida para discutir a crise dos universais, o relativismo, o ceticismo e outros problemas postos para a política e para o pensamento. De Julien Benda, que escreveu o célebre livro A traição dos clérigos, até o último Jacques Derrida, passando por Adorno, Walter Benjamin, Deleuze, Foucault, Peter Sloterdijk e Jacques Rancière, o papel do intelectual está posto em questão hoje. Pergunta-se: o que levou ao silêncio os intelectuais, antes tão ativos, diante do que acontece?
Em uma das Teses sobre a filosofia da história, Benjamin fala de “acédia”, tristeza que torna o intelectual mudo por não conseguir dominar as imagens da história. Já se disse, de maneira reiterada, que vivemos hoje uma crise sem precedentes. Política, cultura, valores morais, estética, noções de espaço e tempo, relações entre o público e o privado, paixões, enfim, não há atividade humana que não esteja afetada. Ao contrário da ideia de crise, que se centra sempre em uma das áreas em determinados momentos da história (crise conjuntural, como diz a sociologia), a natureza da mutação consiste em afetar todo o conjunto das atividades humanas (estrutural).
A grande novidade em relação às crises anteriores é que, desta vez, se torna quase impossível imaginar o futuro. É como se fosse impossível deduzir algo do passado, uma vez que o presente se dá como “inteiramente novo”, reconstruído aparentemente sem referências. Abole-se aquilo que o poeta e ensaísta Paul Valéry definiu como as duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro, em nome de um “presente eterno”, abrindo espaço para uma nova civilização que não sabemos nomear ainda. Quando tudo aquilo que uma civilização cultivou como “virtude” na ordem do pensamento, do senso comum, dos sentimentos e da política transforma-se em seu contrário, em um “mal”, essa civilização não se reconhece mais.
Mais do que atribuir moralmente todos os males ao criador de “saberes e deveres”, Valéry quis localizar o intelectual como parte de uma crise que ele mesmo ajudou a criar. É preciso deixar claro que, ao propor essa discussão centrada na figura do intelectual, não pretendemos fazer uma crítica moral desse trabalhador, difícil de ser definido, que foi — e é — muitas vezes ridicularizado. Os ensaios não fazem coro com a moda anti-intelectualista do momento.
Trata-se de entender qual foi o papel histórico desse personagem e quais são suas funções hoje, o que equivale, de certa forma, a tentar responder à questão: estaríamos vivendo hoje um segundo momento daquilo que Julien Benda definiu, nos finais da década de 1920, como a traição dos clérigos, isto é, a morte do intelectual desinteressado e o surgimento desse “novo clérigo” submisso à vontade de potência, ao dinheiro, ao prestígio e ao poder?
Antes, é preciso definir quem é o intelectual. Sabe-se que ele não é, necessariamente, o homem de letras, o artista, o político, o historiador, o filósofo, o escultor, o sábio etc., ou seja, sabe-se que nem todo homem de letras, nem todo artista, nem todo político etc. é intelectual, o que não significa que um deles não possa vir a ser. Penso, aqui, na definição de Maurice Blanchot: o intelectual é “uma parte de nós mesmos que não apenas nos desvia momentaneamente de nossa tarefa, mas que nos conduz ao que se faz no mundo para julgar e apreciar o que se faz”.
Não existe, portanto, essa figura do intelectual em tempo integral ou inteiramente intelectual. Para transformar-se em intelectual, o ser deve desdobrar-se, acumular momentaneamente nele mesmo outras funções, deixar de lado os saberes particulares para se dedicar ao trabalho da crítica e à luta pelos ideais universalizantes: razão, justiça, liberdade e verdade.
Daí o intelectual se caracterizar pelo desvio de todo determinismo e lidar com potências indeterminadas. Ele não é o teórico, muito menos o homem da vida prática e do saber objetivo: pode-se dizer, mais precisamente, que ele encarna o espírito crítico, capaz ao mesmo tempo de reconstruir o passado e construir idealmente o futuro.
Já no seu surgimento, no século XIII, “momento decisivo na história do Ocidente”, como nos lembra Alain de Libera, o intelectual medieval seria definido pela contraposição: “O intelectual é o ator da mudança social; o universitário, um espectador indiferente”. Uma contraposição primordial que deve ser vista com nuances, no entanto: “O intelectual não se renega pelo simples fato de ser universitário, e não basta ‘tomar suas distâncias’ em relação à universidade para ser um intelectual”. Essa é uma das fragilidades do conceito gramsciano de “intelectual orgânico”, funcionário a serviço da Igreja, do Estado ou do partido. Entre o bispo e o príncipe, o intelectual cria o seu espaço. Em relação à Igreja, marca sua diferença quando o homem abandona a ideia de que Deus pensa em nós, anunciando o começo do fim de uma inteligência impessoal.
Em relação ao príncipe, ele estabelece novos vínculos políticos com a comunidade. A matéria do intelectual são, pois, dois abismos, a ordem e a desordem do mundo e das coisas. O intelectual é, enfim, aquele que tenta infatigavelmente construir a si mesmo e a todas as coisas através de atos articulados do espírito. Mais: por encarnar os ideais universais, procura reunir em si o que está disperso: “Dispersão e junção, essa seria a respiração do espírito, o duplo movimento que não se unifica, mas que a inteligência tende a estabilizar para evitar a vertigem de um aprofundamento sem fim”.
O intelectual seria, pois, uma espécie de “matemático que trabalha com símbolos e os combina com certa coerência sem nenhuma relação com o real”. Assim, ele está, como lembra ainda Blanchot, tanto mais próximo da ação e do poder quanto mais não se mistura com a ação e com o poder político. Ao mesmo tempo, ele não pode ser um desinteressado da política: “Afastado da política, não sai dela, mas tenta manter esse espaço de afastamento e esse esforço de retirada para aproveitar essa proximidade que o distancia, a fim de se instalar nela (instalação precária) como um guardião que está lá apenas para velar, manter-se alerta, por uma atenção ativa onde se exprime menos o cuidado de si do que o cuidado dos outros”. Talvez a clássica divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual não dê mais conta da complexidade do tema. Divisão datada do século XIX, quando a função do intelectual começou a ser reconhecida, em grande parte como consequência do Affaire Dreyfus, a partir do qual escritores passam a ter grande papel político tanto pelo renome quanto pelas obras: Victor Hugo, Zola e Lamartine devem ser lembrados. Destacadamente, Marx, que dedicou boa parte de sua reflexão à divisão do trabalho e à definição de um conceito pouco discutido, hoje, nos meios acadêmicos, que, em tempos de domínio da tecnociência, merece a nossa atenção: a alienação, chave da diferenciação entre intelectual e trabalhador intelectual. Como isso se dá? É evidente que o trabalhador intelectual se distingue do trabalhador manual pela maior educação formal, pelos títulos acadêmicos e pela sua posição nas divisões de classe e trabalho, enfim, ele é o “servo vaidoso”, como escreveu um pensador americano. Podemos, por exemplo, identificar o trabalhador intelectual na figura do publicitário, que vende uma marca de sabão ou um candidato político. Então, nessa tarefa, ele difere muito pouco do trabalhador manual que, por dever de ofício, não domina a totalidade da produção, ou seja, é um especialista, e isso diferencia ambos, em essência, do intelectual que procura, permanentemente, fazer relações com as demais áreas da atividade e da existência humana. Ao contrário deste, a marca mais forte do trabalhador intelectual está na separação consciente entre meios e fins, isto é, a separação entre a ciência e a técnica, de um lado, e os valores, de outro. É comum ouvi-lo dizer: pensei a bomba, mas quem a detonou foi o militar ou o político. Ele é o cultor do mito da “neutralidade” científica, que lhe permite abandonar os ideais universais em troca da defesa dos interesses imediatos e práticos. Essa questão se põe até mesmo no insuspeitável campo da filosofia, como afirma, em tom amargo, o filósofo Jacques Bouveresse: o que se tornou impossível ou inaceitável não é a filosofia, mas o que os “especialistas” fizeram dela. Ora, se a situação do intelectual hoje é complicada, se sua condição está em xeque, é porque ele fez uma série de escolhas que o conduziram a isso. Vejamos, de maneira sucinta, algumas delas.
A primeira e uma das mais importantes é a apontada pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk: pensando a revolução, o intelectual contemporâneo errou de alvo: ela estava sendo conduzida não pelo proletariado, mas pela técnica. No fim, o jogo foi feito, a revolução aconteceu, e os intelectuais revolucionários não perceberam o que se passava. Muitos elementos nos levam a crer, escreve Sloterdijk, que deixamos o espaço das revoluções políticas para entrar no das revoluções técnicas e mentais — o que obrigatoriamente põe fim ao papel clássico do intelectual. Sloterdijk acerta no diagnóstico, mas deixa muitas dúvidas quanto ao significado do termo “intelectual”, uma vez que, para ele, “o revolucionário profissional hoje é o designer ou o consultor, e suas missões não têm nenhuma relação com o antigo estatuto do revolucionário profissional no seminário de filologia e de sociologia”. No mesmo sentido, Jacques Derrida vai mais longe: para ele, a “alta tecnologia” ou a teletecnologia faz de cada trabalhador, “cidadão ou não”, um “intelectual”: “Deduzo, a partir daí, que, exceto traindo sua ‘missão’ (nova traição dos clérigos), um intelectual reconhecido jamais deveria escrever ou tomar a palavra publicamente nem ‘agir’ em geral sem pôr em questão o que parece dispensar explicação, sem procurar associar-se aos que se veem privados do direito à fala e à escrita, sem exigir isso para eles — diretamente ou não. Daí a necessidade de escrever em outros tons, de mudar os códigos, os ritmos, o teatro e a música… Não acredito dever abrir mão das responsabilidades, dos deveres e dos poderes que ainda me são, a título de ‘intelectual’, reconhecidos”.
Pode-se verificar, hoje, a “segunda traição dos intelectuais” na relação que esses têm mantido com os novos meios de comunicação, em particular os audiovisuais, aos quais costumam atribuir equivocadamente sua própria crise e a do pensamento. Tal postura é no mínimo uma indelicadeza dessa “República”, que deve grande parte do seu prestígio à relação que mantém com a televisão. Relação essa que, em si, não é o problema, mas que se transforma nele quando o intelectual se submete à lógica dos meios, traindo os princípios universais de luta da razão, da liberdade, da justiça e da felicidade. Ao contrário, quais são os temas que os intelectuais são convidados a discutir, hoje? Poder, luta de interesses, economia doméstica, jogos amorosos… Lemos na introdução ao Tratado da natureza humana, do filósofo David Hume, uma passagem que define perfeitamente a questão: “As discussões multiplicam-se, como se houvesse apenas incerteza. Em toda essa agitação, não é a razão que ganha, é a eloquência; encontram-se defensores do proselitismo para as mais extravagantes hipóteses se forem bastante hábeis para pintá-las com cores favoráveis. A vitória não é garantida pelos soldados em armas… mas pelas trombetas, tambores e músicos do exército”. Não é preciso dizer quem são os músicos. Em um texto sobre as razões de certa “decadência” da filosofia, que, em última análise, é um libelo sobre a decadência intelectual, Jacques Bouveresse escreve: “Os intelectuais não perdem a ocasião de relembrar que a escravidão e outras instituições consideradas hoje como inteiramente inaceitáveis foram durante muito tempo descritas e aceitas como ‘naturais’ e inevitáveis. Mas a ideia de que as injustiças e as desigualdades por vezes escandalosas que reinam na sua própria sociedade resultem simplesmente da natureza das coisas habitualmente não os incomoda. É a razão pela qual os intelectuais de esquerda que enchem a boca com as palavras ‘democratização’, ‘descentralização’, ‘autonomia’, ‘multiplicação dos centros de decisão’ etc. acham, no final das contas, inteiramente normal, no seu próprio domínio, que o essencial do poder seja concentrado nas mãos de algumas dezenas de ‘intellocrates’”. Os ideais, desigualdade e justiça, e o direito à crítica são sempre bons para as outras profissões, nunca para a própria.
Outro problema posto aos intelectuais por eles mesmos foi a instauração do reino do relativismo. Certa tendência estruturalista da década de 1970 levou a desqualificar, em nome de poderes anônimos, todo trabalho intelectual que buscasse certa universalidade. No famoso texto Os intelectuais e o poder, diálogo entre Foucault e Deleuze, lemos, por exemplo, que os intelectuais descobriram, enfim, “que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muitíssimo bem. Mas existe um sistema de poder que barra, interdita, invalida esse discurso e esse saber”. Mais radical é a tese: “Não temos que totalizar o que só se totaliza do lado do poder, e que só podemos totalizar, do nosso lado, restaurando as formas de centralismo e de hierarquia. Em contrapartida, o que temos a fazer é chegar a instaurar as ligações laterais, todo um sistema de redes, de bases populares”. Luta “não por uma tomada de consciência (há muito tempo que a consciência como saber é adquirida pelas massas, e que a consciência como tema é tomada, ocupada pela burguesia)… mas pelo poder”. A teoria deve ser, pois, local e regional, não totalizadora. E certamente, também, o poder. O texto Os intelectuais e o poder sugere pelo menos dois grandes problemas, além da evidente destituição do objeto do intelectual que são os universais: como definir esse sujeito impessoal (as massas) e como lidar com uma teoria que abole uma das noções fundantes do pensamento clássico, a subjetividade consciente e voltada para a ação? Ora, esse sonho de comunidades autônomas da década de 1970 parece não ter prosperado. Mais: a própria ideia de comunidade é desacreditada pelo ceticismo estabelecido e, de certa forma, a recusa contemporânea da razão é uma expressão disso. Nesse sentido, Bouveresse aponta que a concepção reinante hoje “é a de grupos humanos reunidos em um espaço e por um tempo limitados por um sistema de convenções arbitrárias, cambiantes, e funcionando de maneira mais ou menos tirânica. O estruturalismo conseguiu combinar de maneira expressiva os três ingredientes que são os mais susceptíveis de seduzir um homem tão instruído e desabusado como o de hoje: o determinismo psicológico, sociológico e cultural, o relativismo e o cientificismo. É, aliás, em grande parte por causa da impressão que ele dá de ser nitidamente mais ‘científico’ do que seus adversários que o relativismo extremo conhece hoje um sucesso tão considerável”.
Antes de chegar ao silêncio atual, por razões que tentamos esboçar, a figura tradicional do intelectual passou por algumas metamorfoses a partir da década de 1970. A experiência da França, berço do Maio de 68, é exemplar: primeiro, foi a denegação da própria origem ao assumir a figura militante a serviço do povo. Esse movimento começa — como relatam Danielle e Jacques Rancière no ensaio Les intellectuels et la traversée du gauchisme — no quadro do “grande desprezo pelos intelectuais” quando os militantes de origem intelectual eram convidados seja a “recusar radicalmente os privilégios do seu estatuto estabelecendo-se nas fábricas, seja [a] buscar outros caminhos de reeducação ao renunciar as prerrogativas de sua função de suas competências”.
Para permitir que a fala das massas pudesse emergir nele, nesse primeiro momento o intelectual deveria “extirpar de sua pessoa tudo o que, na fala ou no seu modo de ser, poderia lembrar suas origens, tudo o que, nos seus hábitos, o separasse do povo”. Mas a voz que se ouvia, a partir de então, era a do chefe militante. O segundo momento de “liquidação” da figura do velho intelectual é mais duradouro. Baseia-se no estruturalismo e nas teorias e práticas de Michel Foucault: tratava-se de lutar não pela justiça (do intelectual e das massas), mas contra a justiça (do Estado), concebida como forma de poder constitutiva da opressão política, como lemos no ensaio dos Rancière: “E ao mesmo tempo a verdade não era percebida como o saber do intelectual ou o desejo das massas, mas como o jogo de uma luta sempre local: a luta pelo poder de falar sobre determinada forma de opressão. Dessa maneira, a união dos intelectuais e das massas tomava a figura de uma luta contra uma opressão determinada, unindo aos oprimidos de certo sistema de poder/saber (a prisão, o hospital, a informação) seus servos intelectuais em revolta contra seu estatuto”. Enfim, conclui Deleuze, “para nós, o intelectual teórico cessou de ser um sujeito, uma consciência representante ou representativa […] não tem mais representação, apenas ação”.
O ceticismo é, pois, outro tema posto pelos e para os intelectuais hoje. Dele é possível selecionar várias expressões: desde o “tudo se equivale” até a manifestação explícita de que não é mais possível dizer o que é verdade. Paul Veyne, historiador de renome, afirma, por exemplo: “As ciências não são mais sérias do que as letras, e, uma vez que em história os fatos não são separados de uma interpretação e que se pode imaginar todas as interpretações que se quiser, o mesmo pode acontecer com as ciências exatas”. Conformismo desse tipo não deixa de ser um traço marcante entre os intelectuais contemporâneo mais do que conformismo, a Escola de Frankfurt assinala contradições do intelectual contemporâneo, cujas consequências são trágicas: cortado da vida prática, “dedicado às coisas do espírito”, arrisca-se a cair no vazio; ligado à “ingênua e mentirosa importância dada aos produtos intelectuais da indústria da cultura, acrescenta novas pedras que a isolam do conhecimento”. Adorno conclui em um dos fragmentos da Minima Moralia: os intelectuais são ao mesmo tempo “aproveitadores dessa medíocre sociedade e aqueles cujo trabalho inútil determinará, apesar de tudo, o êxito de uma sociedade liberada do utilitarismo — contradição inaceitável que é preciso superar de uma vez por todas”.
Mais melancólica é a posição de Walter Benjamin: o intelectual tem “preguiça no coração”, tristeza, a “acédia” que o torna mudo porque sabe com quem, necessariamente, entra em relação: o vencedor e seu espólio, que ele define como bens culturais. Qualquer intelectual que professe o materialismo histórico só pode visualizá-lo à distância, o distanciamento de que fala Blanchot.
Foi nesse sentido que Benjamin escreveu o célebre axioma: “Não existe documento de cultura que não seja documento de barbárie. E a mesma barbárie que os afeta também afeta o processo de sua transmissão de mão em mão. Eis por que, sempre que possível, o teórico do materialismo histórico afasta-se deles. Sua tarefa, acredito, consiste em escovar a história a contrapelo”.