No silêncio do pensamento único: intelectuais, marximo e política no Brasil
Resumo
Na formação das nações estruturadas por “capitalismo tardios” como é o caso do Brasil, os intelectuais tiveram lugar de destaque. A literatura, por exemplo, discutia o país, a sociedade e o projeto de nação antes mesmo das ciências sociais.
No século XX, as novas instituições e formas do Estado brasileiro encontraram seus melhores formuladores nos autoritários clássicos. Celso Furtado foi o intelectual-mor do desenvolvimentismo.
O marxismo foi tardio na formação dos intelectuais brasileiros. O Partido Comunista surgiu numa convergência de trabalhadores e intelectuais mas o “marxismo soviético” (Marcuse) abortou qualquer tentativa de elaboração da crítica marxista. As principais razões foram: a militarização do PCB por Prestes, seu positivismo, e o reformismo causado pela clandestinidade e pelo abandono da visão revolucionária.
O marxismo no Brasil teve uma produção teórica pobre (com exceção de Caio Prado Jr.), embora o Partido tenha reunido os melhores intelectuais brasileiros de 1930 a 1964 e influenciando a cultura brasileira e a formação das políticas públicas e estatais até mesmo durante a ditadura militar.
Ao mesmo tempo em que teve a participação política banida, o marxismo chegou às universidades trazido por estudantes. Marx tornou-se leitura obrigatória. Apesar da vida curta nas universidades, o marxismo ampliou o alcance da crítica à ditadura e ao sistema capitalista influenciando nitidamente a Teologia da Libertação e alcançando toda a América Latina.
Nesse momento nasce o Partido dos Trabalhadores, também de uma convergência entre trabalhadores, intelectuais e Comunidades Eclesiais de Base que, com uma valiosa dimensão ética, tornou possível uma elaboração crítica do capitalismo e da sociedade brasileira que poderia ter tido um alcance latino-americano, talvez mundial.
Mas, com exceção ao que diz respeito às políticas sociais e à crítica à política econômica da ditadura e da Nova República, de Fernando Collor e de FHC, os intelectuais do PT foram usados como ornamento.
Com a chegada ao poder, as políticas do PT situaram-se no lado oposto ao que a crítica do capitalismo havia elaborado para as condições específicas do subdesenvolvimento periférico. Frente a complexidade da nova etapa do capitalismo, o PT refugiou-se no conservadorismo.
Assim, o “pensamento único” caracterizou a produção intelectual no Brasil e houve uma evidente vitória ideológica da direita. Quando muito, a esquerda assumiu posições nacionalistas anacrônicas: JK é hoje seu herói. Como afirmou Roberto Schwarz, “a conjuntura é péssima, ótima para renovar o pensamento brasileiro pelo marxismo.”
A formação da sociedade brasileira inscreve-se na família “francesa”, do ponto de vista do lugar e do papel dos intelectuais. Aliás, isto é quase uma característica da formação das nações estruturadas por “capitalismos tardios”, que não é o caso, evidentemente, da França. As sociedades dos “capitalismos tardios” se empenharam, então, com lugar de destaque para os intelectuais, em promover, e acelerar, por todos os meios, processos identitários que pudessem constituir os solos “nacionais”. O caso alemão é bastante conhecido: o esforço dos hegelianos de esquerda em auscultarem os sinais da revolução burguesa sempre frustrada é eloquente. Mesmo a ácida crítica de Marx, que também a seu modo buscou cimentar uma revolução burguesa até o tempo da Gazeta Renana, não diminui o fato de que contribuíram para criar um ambiente de discussão e interlocução da filosofia com a política que fecundou esta última; a Itália apresentou também uma laboriosa interlocução entre a produção intelectual e a política, sobretudo já no século XX com o diálogo entre liberais e marxistas, Piero Gobetti, Norberto Bobbio e Palmiro Togliati como emblemas, à sombra da inspiração dos gigantes Benedetto Croce e Antonio Gramsci.[1]
O caso russo é excepcional. O papel dos intelectuais na Revolução de Outubro é inegável e protagônico. Lenin, Trotski, Bukharin,[2] para citar os mais conhecidos, foram as lideranças de um novo paradigma revolucionário, que inaugurou o ciclo das revoluções proletárias e antiburguesas, e uma forma de relação entre a intelectualidade e a política que fez a história da maior parte do século XX. Pode-se dizer que o “paradigma russo” dessa relação é tão importante nessa história quanto o “paradigma francês”, do qual, de certa forma, ele é a continuidade e o desenvolvimento.
Obteve-se, como resultado quase geral, é claro que não por obra e graça (exclusiva) das formulações intelectuais que tampouco estiveram alheias a elas, intensas transformações produtivo-sociais sem revoluções burguesas, ou seja, sistemas fortemente autoritários e, nos casos-limite, pesadamente totalitários. Em todos esses casos, a intelectualidade desempenhou um papel de proa — conhece-se menos o do Japão —, os “intelectuais orgânicos” da teorização gramsciana. Mesmo nos casos liberais, a intelectualidade também desempenhou papel de igual relevo nas passagens das revoluções burguesas, ainda que não estivessem combatendo sistemas fortemente ancorados em anteriores identidades e sujeições feudais. Nos Estados Unidos, os próprios founding fathers foram os teóricos e os ativistas do federalismo, permanecendo como referências clássicas: Hamilton foi secretário do Tesouro e o pai da moderna teoria protecionista, e Madison chegou à Presidência dos Estados Unidos; John Jay, o terceiro da tríade clássica, foi o primeiro presidente da suprema corte norte-americana. Suas produções intelectuais têm uma forte marca nacionalista e são menos interessadas no conflito de classes, mesmo porque sua revolução liberal — a Guerra da Independência — foi mais uma guerra de libertação.[3]
O caso brasileiro inscreve-se, pois, como um caso “francês” no “capitalismo tardio” periférico; e tem alguns elementos do caso “russo”, sobretudo na crítica às formações anteriores, inclusive a um suposto feudalismo. De fato, observando-se mais de perto, as duas grandes passagens no século XIX, a abolição da escravatura e a república, contaram com intelectuais já “modernos” na elaboração ativa, com forte intervenção na política. Nomes como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Benjamin Constant, José do Patrocínio e Castro Alves compunham a linha de frente nos embates ideológicos, e, sutilmente, por trás, como era de seu feitio, Machado de Assis fez os tipos ideais das elites imperiais, vergastando nas suas crônicas diárias da vida da capital do Império as condutas, os hábitos, os caracteres das classes dominantes e seus representantes políticos, de que resultaram os magníficos romances da fase dita “madura” de Machado.[4]
A República Velha não foi, como geralmente se pensa, um período nulo de intervenção dos intelectuais na política. O próprio Rui, que já se havia afirmado como “intelectual orgânico” das causas abolicionista e republicana no Império, ascende a vice-chefe do governo provisório com Deodoro e à pasta da Fazenda. Concorre por três vezes à Presidência da República, e será, talvez, o último intelectual liberal importante na história brasileira moderna. O “príncipe dos poetas brasileiros”, o parnasiano Olavo Bilac, lidera movimentos em favor da vacina obrigatória e do recrutamento compulsório.
Em causa, a modernização do Estado brasileiro, que terá nos pensadores chamados autoritários, Oliveira Vianna, Alberto Torres e Francisco Campos, os elaboradores de um paradigma de interpretação da formação da nação classicamente autoritário, cujas ressonâncias ainda se ouvem no senso comum sobre o homem brasileiro e a sociedade que ele construiu. Tais pensadores foram políticos ativos, intervindo na construção de instituições republicanas, propondo em geral modelos antidemocráticos. Foram, por exemplo, os grandes redatores da legislação do trabalho e das leis de exceção que Vargas adotará na transição da economia. Se suas chaves eram nitidamente autoritárias, não eram, entretanto, anacrônicas, pois o que tematizavam e procuravam corrigir era o nanismo do Estado brasileiro, diante de uma economia que se tornava crescentemente mercantil, com instituições fracas que, para eles, representavam o risco da anarquia clânica.[5]
O período que se inaugura com a Revolução de 1930 será riquíssimo na renovação da interpretação do Brasil e nas relações dos intelectuais com a política. Os três grandes autores da geração, Freyre, Buarque de Holanda e Prado Júnior, reviram pelo avesso a interpretação dos autoritários, abrindo novas perspectivas também para a política. A valorização das heranças constitutivas, ibérica, negra e indígena, terá notável influência na aposta democrática, pela afirmação das capacidades para o diálogo, para a plasticidade das relações sociais, e, na chave do Caio Prado Júnior, para a decifração do enigma de uma economia cujo principal produto de exportação, o café, se tornava a primeira do comércio mundial, mas permanecia se reproduzindo por uma combinação novo-velho que se revelaria fatal. Fundavam-se os pilares do que depois seria trabalhado pela teoria do subdesenvolvimento.[6]
Até a política institucional os tentou: Gilberto Freyre foi deputado à Constituinte e ajudou a fundar dois partidos, ideologicamente antípodas: a Esquerda Socialista, da qual saiu depois o Partido Socialista Brasileiro (ao qual o mestre de Apipucos não aderiu), e a UDN — União Democrática Nacional, que ficou como o partido da direita brasileira até o golpe militar de 1964. Caio Prado Júnior foi deputado estadual em São Paulo, pelo Partido Comunista, até a cassação do registro do velho Partidão em 1947. Sérgio Buarque de Holanda foi membro do Partido Socialista Brasileiro de antes de 1964 e depois, junto com Mario Pedrosa e Antonio Candido, entre outros, um dos intelectuais mais importantes do Partido dos Trabalhadores.
Os “intelectuais orgânicos” pululavam, abrindo novas perspectivas, arejando-se com as tendências mais contemporâneas, às vezes em chaves ainda autoritárias, na característica combinação da longa “via passiva” brasileira. Villa-Lobos na música quis ensinar o Brasil inteiro a cantar afinado, Niemeyer-Lucio Costa, na arquitetura e urbanismo, apostaram na força do espaço para a construção de um novo país e sociedade,[7] Capanema, apoiado em Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, na educação como chave do progresso; muito mais tarde, já fora do Estado Novo, Darci Ribeiro e Florestan Fernandes.
Na passagem da economia de base agrária para a urbano-industrial, a figura de Celso Furtado ganha o maior relevo. Talvez sua influência se equipare à de Oliveira Vianna e o grupo principal de sua geração. Até porque seu tema foi o mesmo dos autoritários: o nanismo do Estado, sua incapacidade para regular uma economia que ganhava em complexidade, e já numa chave democrática, a mesma solução: o planejamento como método do Estado. Furtado está entre os intelectuais brasileiros que mais dialogaram com a política, escapando dos fortes carimbos ideológicos. Embora seja arriscado pespegar-lhe um termo que geralmente recebe conotações ideológicas negativas de defesa de interesses de classe, pode-se dizer que Furtado foi o “intelectual orgânico”-mor do desenvolvimentismo. Serviu sob três presidentes antes do golpe de 1964 e voltou a ser ministro, da Cultura, no governo Sarney.[8]
O marxismo foi tardio na formação dos intelectuais brasileiros, e mesmo na universidade — que também no Brasil é tardia —, onde entrou de fato apenas nos anos 60-70 do século passado. A interlocução do marxismo com a política é praticamente automática, quase indeclinável, pela presença de um partido comunista, que se formou, como quase em todos os lados, numa confluência de relações entre trabalhadores e intelectuais, e, no caso brasileiro, também dos militares do Exército. O marxismo brasileiro, com os militares, foi contaminado, desde a entrada de Prestes e outros, pelo positivismo, e evidentemente pelo nacionalismo, cuja estruturação ideológica mais acabada ocorreu apenas nos trabalhos do ISEB,[9] instituição cujo objetivo explícito era a formulação de uma doutrina nacionalista; nomes como Ignácio Rangel, Ewaldo Correia Lima, Roland Corbisier, Álvaro Vieira Pinto e, no princípio, Helio Jaguaribe, realizaram um enorme esforço intelectual para ir além do doutrinarismo e alcançar patamares de alta teorização. A predominância do partido russo ou soviético no movimento comunista internacional levou a que a doutrina quase geral dos PCs se convertesse no que Marcuse chamou de “marxismo soviético”, em que as razões do Estado soviético ditaram muito da tática e da estratégia revolucionárias do universo comunista. No caso brasileiro, a combinação dessas orientações internas com a externa soviética —, com a clandestinidade a que o partido foi forçado a partir de 1935, estiolou a produção teórica comunista. No princípio o Partido insistiu na centralidade da classe operária, para depois se deslocar para o tema da revolução burguesa como porta de passagem obrigatória para uma revolução proletária. A guerra fria levou a produção marxista do Partido a concentrar-se no tema do imperialismo, uma notável aquisição para o repertório brasileiro, mas que, do ponto de vista de uma teoria do capitalismo na periferia, na verdade pouco ultrapassou os umbrais do nacionalismo, e, posteriormente, com a hegemonia do pensamento da CEPAL, a orientação e a produção teórica comunista no Brasil terminou sendo um mix de cepalismo e nacionalismo. O cepalismo justificou teoricamente a orientação política reformista, o Estado como demiurgo de uma burguesia até anti-industrial. Nas etapas stalinistas a ordem era, em primeiro lugar, a união anti-imperialista, em segundo, a hegemonia do capital nacional, e, em terceiro lugar, a revolução proletária. A aliança que presidiu o evento de 1935 foi uma espécie de aplicação daquele etapismo, a antesala de uma revolução burguesa que teria como motores o proletariado e os militares, empurrando uma burguesia não revolucionária. No caso, esta concepção situava-se como pré-soviética, pois ainda se prendia à orientação tática pré-teses de abril de Lenin.
O marxismo teve, assim, uma produção teórica muito pobre, com a clara exceção de Caio Prado Júnior, cuja interpretação do “sentido da colonização” fez escola na historiografia brasileira, uma espécie de “raio num dia de céu azul”. Bernardo Ricupero trabalhou bem essa excepcionalidade de Caio num marxismo marxisticamente infértil. Deve-se assinalar, também, com justiça, a produção de Astrojildo Pereira no ensaio de uma crítica literária materialista, cuja consumação esperará por Roberto Schwarz já antes do golpe de 1964 e definitivamente depois.[10] Nelson Werneck Sodré, como historiador — inclusive da formação da literatura brasileira —, fez escola no Partido e no pensamento de esquerda em geral com sua tese do feudalismo da formação sociopolítica brasileira: deve-se citá-lo pela importância da tese na estratégia do Partido e na criação de uma filière teórica que até hoje tem repercussão, mas do ponto de vista teórico ela não se equivale à de Caio Prado Júnior.
Mas o mesmo não vale para a influência dos marxistas — mais que do marxismo — na cultura brasileira e na formulação de políticas estatais e públicas. Não há, praticamente, nenhum terreno dessas áreas que não tivesse sido fecundado pela produção dos marxistas. O melhor da intelectualidade brasileira passou pelos quadros do antigo Partido Comunista do Brasil, depois Brasileiro, entre 1930 e 1964. A produção marxista brasileira funda-se, predominantemente, na matriz marxista-leninista, como foi quase regra nos que formavam a Terceira Internacional; o marxismo da Segunda Internacional de Kautsky não medrou no Brasil, como alhures abafado pelo marxismo soviético. Mesmo os socialistas brasileiros não foram muito influenciados pelo marxismo da tradição socialdemocrata alemã. Também um Gramsci chegou tardiamente ao Brasil, apenas pelos anos 60, portanto às vésperas do golpe militar de 1964, enquanto José Aricó já o havia traduzido em Buenos Aires nos anos 40; mesmo tardio, deu lugar a uma importante produção teórica no eixo da “revolução passiva”, que ajudou a reformular o subdesenvolvimento exatamente como a forma daquela “revolução” na periferia. Influências derivadas da Escola de Frankfurt são escassíssimas, e o trotskismo, execrado, embora sempre tenha existido em pequenos grupos. Uma das “ressurreições” mais surpreendentes a partir dos anos 80 é a do trotskismo no Brasil. Mas deve-se dizer que os trotskistas brasileiros tampouco foram originais: não se conhece uma interpretação do Brasil de matriz trotskista que apresente alguma originalidade, e sua interlocução com a política também foi pouco expressiva. Desde logo, nenhuma dessas interpretações ou correntes heterodoxas influenciou minimamente as táticas e estratégias do Partido Comunista Brasileiro.
A influência política do marxismo foi defenestrada da vida política brasileira em 1964, com o golpe de Estado, e a já longa experiência de clandestinidade do PCB imediatamente levou-o a refluir para os subterrâneos da política — não exatamente os da liberdade, como no título de Jorge Amado. Continuou a existir e aplicou sua velha tática de submergir nos partidos oficiais, no caso no Movimento Democrático Brasileiro, pelo qual fez deputados federais, estaduais e vereadores, e mesmo algum senador trabalhando em sintonia com o velho Partidão.
Paradoxalmente, foi a partir daí que o marxismo fez sua entrée na universidade. A tremenda ampliação dos cursos de pós-graduação nas ciências humanas foi o ambiente onde cresceu o marxismo acadêmico, cuja influência passou em alguns sentidos para os partidos de esquerda clandestinos, através dos militantes de classe média que a universidade marxistizou. Das maestrias e doutorados, espraiou-se para os movimentos sociais, chegou, timidamente, até o sindicalismo — este sempre refratário aos intelectuais —, e irrigou as dissidências políticas do Partidão, do PCdoB, da Ação Popular, da Polop, que se multiplicaram como cogumelos,[11] a maioria enveredando pelas ações armadas.
É evidente que o marxismo acadêmico foi uma importação europeia,[12] principalmente da França, pelo intercâmbio produzido entre estudantes brasileiros de mestrado e doutorado frequentando as universidades francesas. Ou, como prefere Perry Anderson, uma versão do “marxismo ocidental” cuja principal característica é seu desligamento da revolução; o reparo à aplicação do quase-conceito de Perry é que essa esquerda “acadêmica” era revolucionária, mas não dispunha de interlocução com a ampla massa de trabalhadores, que crescia formidavelmente nos anos do “milagre brasileiro”.[13] Foi o auge da interlocução marxista com toda classe de movimentos políticos. Uma poderosa “vulgata” tornou-se obrigatória na discussão brasileira, até o ponto de afirmar-se como senso comum para os militantes, evidentemente, já que chegou de forma muito rarefeita às camadas mais populares. Luta de classes, interesses de classe, sobredeterminação — Althusser e Balibar —, aparelhos ideológicos — Althusser e Poulantzas — exerceram poderoso fascínio, tornando fácil o que era extremamente difícil, isto é, explicar uma ditadura militar expansionista, industrializante, nos quadros do capitalismo periférico. Aqui, uma vez mais, foi a sofisticação gramsciana que ajudou a avançar, com a interpretação da “revolução passiva” nas mãos de Carlos Nelson Coutinho e Luís Jorge Werneck Vianna. Uma interpretação original e não subsidiária de qualquer dessas vertentes teóricas no marxismo foi a de Florestan Fernandes com A revolução burguesa no Brasil, em que o mestre paulista lança a definitiva pá de cal sobre as teses anteriormente defendidas pelo Partido Comunista sobre o caráter revolucionário da burguesia brasileira.[14]
Seria falso dizer que o florescimento dessas vertentes teóricas não influenciou as táticas e estratégias dos que se opuseram à ditadura militar e ao chamado “modelo brasileiro”, excluído, pelas razões já apontadas, o próprio Partido Comunista. Mesmo a fração maoísta, que fundou o Partido Comunista do Brasil, foi atraída por ela, evidentemente em sua fantasia “camponesa”, com a pretensão de derrotar a ditadura a partir de uma guerrilha rural, no Araguaia. A própria Teologia da Libertação é claramente um produto dessa fecundação, e é interessante ver como a crítica de Joseph Ratzinger — o atual papa Bento XVI —, como principal teólogo conservador pós-Vaticano II, no longo papado de João Paulo II, reconheceu a influência do marxismo na referida teologia, que ele combateu ferozmente. O alcance da crítica à ditadura ampliou-se muitíssimo sob o influxo de um marxismo liberado pelo declínio do Partido Comunista Brasileiro.
Mas a crítica ao capitalismo, no sentido de repensar uma teoria original para a periferia latino-americana, foi dificultada pela confusão com a crítica à ditadura. Teria sido o momentum frankfurtiano da crítica.
Aproximou-se dele ao tentar caracterizar um “modelo brasileiro”, mas não foi adiante. Sobra dizer que, como a interpretação marxista tinha se obnubilado sob a sombra da teoria do subdesenvolvimento da Cepal-Prebisch-Furtado, quando esta entrou em declínio, acuada pelos golpes e as ditaduras militares que se sucederam como cascata na América Latina, a interpretação marxista também perdeu fôlego, restando sobretudo como análise. Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto ainda tentaram um movimento de atualização das teses marxistas sobre o imperialismo com a produção da teorização do binômio “Dependência e Desenvolvimento”, que também esteve no centro da produção de Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos.[15]
Décadas depois, quando a luta e o conflito de classes levaram à redemocratização, vê-se o prejuízo causado: quase todas as interpretações analíticas que caucionam as demandas políticas e econômicas desde então, e até hoje, estão lastreadas numa espécie de torna a Furtado, uma crença no desenvolvimento com base nacional, como se a intensa globalização não tivesse afetado as estruturas de classe e as formações estatais.
O marxismo acadêmico sentiu também o golpe da desmarxistização na academia francesa, sobretudo. Uma espécie de fim do ciclo da moda marxistizante. E, mais terrivelmente, o da queda do regime soviético. Embora o marxismo oficial soviético de há muito já fosse intelectualmente estéril, a subsistência do regime soviético, com seu inegável domínio do binômio técnico-científico, era uma prova dos nove da possibilidade da transformação do capitalismo. A crítica antissoviética nas mãos da esquerda procedia principalmente do lado trotskista, que nunca foi capaz de apontar as insuficiências do regime soviético, salvo no que diz respeito à burocratização. Mas uma teoria econômica do socialismo ficou sempre nos prolegômenos, e a perspectiva crítica frankfurtiana nunca foi incorporada pelos trotskistas, devido à implacável crítica à ciência e à racionalidade, de cuja mitificação a esquerda, em geral, nunca abriu mão.
Nasce então o Partido dos Trabalhadores. Também de uma confluência entre trabalhadores e intelectuais, mas sem a presença de militares — pois se estava ainda em 1980 —, embora o “militarismo” penetrasse pelos egressos da tradição comunista sob várias formas, sobretudo pelos que sobreviveram ao massacre dos grupos da luta armada pelo regime militar. Com a novidade da presença de cristãos oriundos das Comunidades Eclesiais de Base, que eram, basicamente, trabalhadoras e trabalhadores, cuja contribuição pela reivindicação da ética na política tanto marcou a presença do PT na política brasileira. Havia chegado a hora de retomar, ampliando-a sem limites, uma elaboração crítica do capitalismo e da sociedade brasileira que poderia ter alcance latino americano, no mínimo, e, por que não dizê-lo?, mundial, tendo em vista o declínio da esquerda. Algo da cultura marxista não esteve ausente, por certo, nas postulações do Partido dos Trabalhadores. Mas este não provocou um revival da crítica marxista ao capitalismo. A confluência trabalhadores + intelectuais foi mais aparente que real: os primeiros ressentiam-se do clássico anti-intelectualismo, que foi uma espécie de praga nas experiências do sindicalismo em escala mundial, e o sadio descolamento do PT do “socialismo real” soviético resultou numa indefinição fatal para a elaboração teórica: o duro fracasso do “socialismo real”, então já evidente, e a necessidade de não se deixar incluir no campo do totalitarismo levaram o PT a nunca definir que socialismo sua mensagem encarnava. Um expediente no princípio tático revelou-se, de fato, uma incapacidade de elaboração de uma nova proposta para o socialismo, e o PT terminou por fazer sua uma crítica ao “modelo brasileiro” bastante superficial e em uníssono com outras forças de oposição à ditadura militar.
A crítica era mais analítica que teórica. A complexidade da nova forma do capitalismo, já globalizado principalmente para as periferias, que precocemente anunciaram um modo de acumulação à dominância financeira — Chesnais[16] —, não foi entendida radicalmente pela crítica, que ficou nos umbrais da dependência financeira, da vulnerabilidade externa, que retirava força e autonomia ao processo de acumulação de capital e enfraquecia o Estado nacional. Uma espécie de retorno a Furtado, com tudo de positivo, mas de clara insuficiência teórica.[17] O debate brasileiro se acendeu de forma extraordinária, mas permaneceu “economicista”. Tudo parecia ser uma questão de gestão e não de pertencimento à estrutura da produção material capitalista. Daí que mesmo os melhores esforços de políticas sociais, avalizadas por uma intensa renovação das pesquisas sociológicas sobre os movimentos sociais, nunca tivessem passado do nível de políticas compensatórias.[18] A debilidade teórica não alcançava nem mesmo os patamares do keynesianismo, para quem as políticas de seguridade, de seguro desemprego e de previdência são as verdadeiras estruturadoras da demanda agregada, enquanto as concepções vencedoras no Brasil a encaram apenas como custo do Estado. Isto diz quase tudo. Quando ocorreu a produção do “pensamento único” e a hegemonia de Mont Pellérin, o keynesianismo foi superado pelo seu próprio êxito, vale dizer, quando ele liberou — isto é, as políticas anticíclicas — imensas forças produtivas que jogaram para a frente poderosos processos de concentração e centralização de capitais. Este era o seu limite: a partir daí, a crítica ao capitalismo não poderia ficar apenas na teorização sobre a probabilística irracionalidade intrínseca das decisões individuais-privadas dos agentes econômicos, mas deveria ultrapassá-la para colocá-la novamente no terreno do conflito social.
O “pensamento único” produziu, então, um enorme silêncio. Um silêncio ruidoso. Em lugar da anedota clássica atribuída a Benedito Valadares, folclórico mas eficaz cacique da política mineira, “estou rouco de tanto ouvir”, ficamos surdos de tanto falar. A hegemonia da direita fez-se evidente. Não apenas pelo silêncio dos anos de Fernando Henrique Cardoso, que, de fato, aparece como o vitorioso do longo período que começou com Fernando Collor de Mello: a oposição de esquerda, localizada predominantemente no PT, adotou suas teses, fez suas as políticas tenazmente perseguidas. O cardosismo, a versão brasileira do neoliberalismo, é teoricamente infértil: não tem uma única ideia nova, mas apesar disso é a grande vitoriosa.
O lema anunciado certa vez por uma campanha publicitária, de que “o bom do capitalismo é ser capitalista”, tornou-se o orientador geral da sociabilidade numa sociedade tão desigual: enquanto os ricos se transportam em helicópteros pela cidade de São Paulo, que já vai requerer regularização do espaço aéreo urbano, os pobres debatem-se entre o desemprego, os biscates, o narcotráfico controlando abertamente as imensas favelas, e o salve-se quem puder instalou-se. Bush não precisa se preocupar: a desregulamentação e o sucateamento dos serviços do Estado, uma forma sutil de terrorismo de Estado, ao lado da violência praticada pelo narcotráfico, civil e urbano, sobre os pobres é a forma perversa do “bom do capitalismo é ser capitalista”.
A passagem do PT à condição de “partido da ordem” sequestrou as organizações e movimentos sociais, e casou-se com uma progressiva profissionalização da academia, transitando agora, com desenvoltura, pelas grandes reuniões internacionais, onde o marxismo é, no máximo, tolerado com certo fastio, um dar de ombros. Há um constrangido silêncio entre os intelectuais de esquerda. Uns, por considerarem que o PT ainda está em disputa; outros, por temerem a volta dos tucanos, que, de pobre ave da fauna sul-americana, se transformou em feroz predador. Outros ainda por considerarem, na velha chave da estigmatização dos dissidentes, que estes fazem o serviço da direita, uma chantagem de triste lembrança stalinista. Terceiros, por considerarem que, numa sociedade abissalmente desigual, a crítica a um governo liderado por ex-operário é uma crítica de claro viés classista de direita. O que se transforma numa versão do “silêncio obsequioso”, copiado da venerável Santa Madre Igreja, cuja capacidade dialético-alquimista de transformar chumbo em ouro é ainda insuperável. Com isso retira-se o operariado do terreno da história e volta-se a uma teleologia, que tem como resultado aceitar as inevitabilidades.
Há uma clara vitória ideológica da direita. A esquerda voltou a posições nacionalistas anacrônicas: Juscelino é hoje seu herói. Mesmo Cardoso declarou-se o novo Juscelino, embora tenha prometido enterrar de vez a era Vargas, sem se dar conta de que JK foi Vargas levado quase às últimas consequências — mas, diferentemente do estadista gaúcho, o avanço dos direitos sociais sob JK foi quase nulo, confiado à dinâmica do crescimento da economia. E Lula já o cita desenvolto e olha-se no espelho e vê o político “pé-de-valsa”, o “peixe vivo” refletido. Pretensão e água benta são de graça, como sabe quem frequenta as igrejas católicas. Mas, como disse Roberto Schwarz, a conjuntura é péssima, ótima para renovar o pensamento radical brasileiro pelo marxismo. O que explica o “silêncio obsequioso” é claramente a falta de uma crítica radical ao capitalismo globalizado contemporâneo, tanto na própria e ampla esfera global como em cada uma de suas satrapias. Retomando, aliás, a crítica que em passado recente encostou a ditadura no canto da parede nas reuniões da SBPC, na criação das sociedades científicas em todos os ramos do conhecimento, no desafio à ditadura no seu próprio campo de competências. Há debates por todos os lados, inquietação, no princípio frustração, que se vem transformando em indignação, e em alguns setores rapidamente transitando para o desafio claro ao “partido da ordem” e ao mito antipolítico de Lula; por entre dores de um tremendo dilaceramento, já existe um enorme esforço de distinguir o petismo do lulismo, essa forma personalista de usurpação do maior patrimônio político que o Brasil acariciou e formou ao longo dos últimos quarenta anos. De desfavorável, existe certamente o fato de que o sequestro dos movimentos sociais pelo governo Lula retira bases de interlocução, sem o que o papel dos intelectuais pode voltar apenas ao redil do “marxismo ocidental”. Não se trata de uma tarefa fácil para o marxismo brasileiro e latino-americano: as condições de nossas sociedades mudaram radicalmente, com o mix de globalização e privatizações. Talvez as chaves que a ciência social forneceu ao próprio marxismo estejam grandemente desatualizadas. Se o marxismo foi capaz, e também no Brasil, de abrir-se e enfrentar decididamente o desafio que lhe foi imposto no campo da cultura, da literatura, da psicanálise, e da própria religião, terrenos onde antes reinava a ortodoxia mais impenetrável, tornando-se indispensável à compreensão do mundo contemporâneo, ele ainda não o fez no seu terreno privilegiado de origem: na economia política. Sem uma nova economia política marxista, o capitalismo contemporâneo tornar-se-á imune à crítica. Pois um “amor sem uso” fenece, e o amor dos intelectuais marxistas continuará sendo a Revolução com R maiúsculo pelas novas sendas que a história, de que somos não apenas contempladores analíticos mas sujeitos ativos, forjará. A Revolução é sempre uma invenção.
Notas
[1] Para uma boa discussão sobre alguns casos de “capitalismos tardios”, ver “Os capitalismos tardios e sua projeção global”, em José Luís Fiori (org.), Estados e moedas no desenvolvimento das nações, Petrópolis, Vozes, Coleção Zero à Esquerda, 1999. Walquíria Domingues Leão Rêgo realiza uma bela e interpretativa síntese do diálogo italiano no Em busca do socialismo democrático, Campinas, Editora da Unicamp, 2001.
[2] O papel de Plekhanov na difusão do marxismo na Rússia ajudou muito na formação da intelectualidade que fez a revolução, mas, sem dúvida, ele próprio se colocou sempre como um reformista, assim como toda a ala que foi denominada “menchevique” na divisão do Partido Operário Social-Democrata Russo.
[3] Ver Fernando P. Limongi, “O federalista: remédios republicanos para males republicanos”, em Francisco C. Weffort (org.), Os clássicos da política 1, São Paulo, Ática, 1989.
[4] Ver o sempre insuperável Roberto Schwarz e seu Um mestre na periferia do capitalismo — Machado de Assis, São Paulo, Duas Cidades, 1990.
[5] Ver, para breves comentários sobre estes pensadores e sua influência na agenda política brasileira, Francisco de Oliveira, “Diálogo na grande tradição”, em Adauto Novaes (org.), A crise do Estado-nação.
[6] Ibidem.
[7] É interessante observar, no plano urbanístico de Brasília, a obra maior dessa dupla maior, a concepção da sociedade igualitária explícita que a animava, seja do ponto de vista da habitação, seja do ponto de vista dos espaços para atividades comerciais e de serviços. É a igualdade social que dá o plano da cidade, ainda que um tanto hierarquizada. Ao mesmo tempo, a monumentalidade dos espaços e edifícios públicos comemora a força que organizava a sociedade. Pode-se dizer que foi no plano do transporte que a concepção de Costa-Niemeyer sofreu sua maior derrota: uma cidade para o automóvel, quando a experiência mundial do metrô já autorizava descartar a solução eminentemente privatista — e na verdade antiurbana — do automóvel. Evidentemente, a vida foi mais forte que a arte: o capitalismo oligopolizado e o papel do Estado na economia tornaram pó as concepções igualitárias, criando as amplas periferias pobres das cidades-satélites e o caráter quase exclusivamente estatal da vida brasílica.
[8] Ver Francisco de Oliveira, A navegação venturosa — ensaios sobre Celso Furtado, São Paulo, Boitempo Editorial, 2003.
[9] Ver Caio Navarro de Toledo, ISEB — Fábrica de ideologias, São Paulo, Ática,1977.
[10] O fundador da moderna crítica literária brasileira é Antonio Candido, de quem Schwarz é assumidamente discípulo. Mas Candido, embora socialista, não se considera marxista, mesmo que sua teoria de crítica literária seja, a meus olhos ineptos, decididamente materialista. Ver o seu Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 2 vols., São Paulo, Martins, 1959.
[11] Marcelo Ridenti assinala quinze organizações armadas cuja militância básica foi formada por universitários. Ver seu O fantasma da revolução brasileira, São Paulo, Editora Unesp, 1993.
[12] Inclusive a pretensa teorização sobre a guerrilha na América Latina, pelas mãos de Régis Debray, que mais do que ninguém se esforçou por dar um estatuto teórico às formulações guerrilheiras do Che Guevara. Deve-se dizer, desde logo, que o Partido Comunista Brasileiro sempre se opôs vigorosamente à luta armada em sua modalidade guerrilheira.
[13] Ver também, complementando o livro já citado de Marcelo Ridenti, Daniel Aarão Reis Filho, A revolução faltou ao encontro, São Paulo, Brasiliense, 1990.
[14] Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, 2a ed.,Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
[15] Ver, de Cardoso e Faletto, Dependência e desenvolvimento na América Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
[16] François Chesnais, A mundialização do capital, São Paulo, Xamã, 1996, e François Chesnais (org.), A mundialização financeira — gênese, custos e riscos, São Paulo, Xamã, 1998.
[17] A bibliografia é vastíssima e impossível de ser devidamente citada. Talvez o melhor exemplo dela esteja no próprio Furtado. Um pequeno mas substancioso livro, talvez seu testamento intelectual e político (Furtado morreria dois anos depois, em 2004), que resume uma longa lista de livros e artigos, indica a permanência do fundo teórico do autor: Em busca de novo modelo. Reflexões sobre a crise contemporânea, São Paulo, Paz e Terra, 2002.
[18] Uma bela discussão sobre o caráter da desigualdade social no Brasil, que resume — mas não é uma resenha — o avanço sociológico de algumas décadas, é a de Vera da Silva Telles, Pobreza e cidadania, São Paulo, Editora 34, 2001.