2017

Nos limites do mundo

por David Lapoujade

Resumo

Ao contrário dos Estados, que impõem mutuamente os limites de seus territórios, o capitalismo não conhece tais fronteiras e “não cessa de multiplicar os seus limites para assegurar as condições de seu bom funcionamento”. O Estado instaura-se de forma lenta, sob o peso das leis, das instituições e dos poderes constituídos. Em suma, ele quer delimitar suas fronteiras, quer territorializá-las. Já o capitalismo é ágil e voraz e, nesse sentido, para usar a expressão de Deleuze e Guattari, busca a desterritorialização, de onde notamos a sua atual globalização, tanto quanto suas ações e suas lógicas de funcionamento e preservação. É nas cidades que encontramos suas expressões precursoras. O historiador Fernand Braudel destaca as atividades das cidades durante a Idade Média e seu funcionamento complexo mercantil, citando os exemplos das cidades portuárias de Gênova, Veneza e depois Amsterdã. Isso incluía o acúmulo de capital, conexões e negócios constantes com regiões distantes do Oriente, mas era um circuito pré-capitalista e pré-industrial. Da oficina medieval, à fábrica do século XIX e depois à empresa, em nossa era pós-industrial o poder concentra-se na “marca”, sendo, portanto, de cunho imaterial cujo valor é agregado ao produto. Contemporaneamente, o capitalismo passou a ter como meio principal o ciberespaço, baseando-se na distribuição do fluxo de informações e no processo de terceirização na cadeia produtiva, bem como na já antiga e conhecida exploração da força de trabalho, cada vez mais tendente à criação de subempregos (um retrocesso no sentido das condições de trabalho, o que nos faz refletir sobre os trabalhadores do início da Era Industrial). Essa engrenagem que integra o biopoder (FOUCAULT) marginaliza e rechaça (para as favelas, periferias, complexos industriais abandonados, zonas de refugiados etc.) os que não querem, mas principalmente os que não conseguem a ela integrar-se. O capitalismo participa intensamente desse processo, pois “não vê nada fora do seu mundo”. Fora desse mundo, os indivíduos ainda podem viver ou sobreviver, não são considerados criminosos, apesar de estarem muito mais sujeitos a situações de violência, vulnerabilidade e criminalidade, sendo relegados a uma “zona de não direito”.


[1]

A ideia, com Adauto, era homenagear um dos ciclos de conferência que tinha por título “A outra margem do Ocidente” (e que abordava, na época, sobretudo as relações históricas, as “trocas” entre Velho e Novo Mundo). Contudo, em vez de retomar a questão do Ocidente, era preciso transformá-la para aplicá-la ao nosso mundo. A questão torna-se então quase poética, pois interroga “a outra margem do mundo”. Mas que sentido dar a essa fórmula? Ela não deixa de ter relação com a questão da utopia que um ciclo recente de Mutações explorou, já que se trata de saber se, no extremo do mundo no qual vivemos, há outro mundo. Mas para isso temos já de atingir o “extremo do mundo”. E esse mundo tem um limite? Ouvimos a toda hora falar de globalização. Falam-nos de um mundo sem fronteiras, sem limites. E esse mundo é o do capitalismo. Pois o capitalismo é sem limites, exceto os que ele mesmo se fixa e que não cessa de deslocar e de ultrapassar, como esses escritórios com divisórias portáteis que devemos imaginar, no caso presente, em perpétuo deslocamento. Seus meios são múltiplos e sempre inovadores, graças a seus avanços tecnológicos, graças à “liberalização” crescente das políticas econômicas, fiscais, graças ainda à circulação cada vez mais fluida, mais rápida, dos fluxos monetários, dos bens e das pessoas. Cada avanço num domínio permite um avanço noutro, de modo que todos esses fatores se reforçam mutuamente, favorecendo uma expansão sem limites. Faz-se o retrato

de um mundo globalizado; mas seria mais justo dizer que o capitalismo é que engloba o mundo. Ele faz da Terra um globo, envolvendo-o em suas redes e em seus circuitos. Ele se apropria das energias do mundo e as redistribui segundo suas novas redes. Seu desenvolvimento é tal que parece, de fato, não ter limite algum. Eis aí um quadro que todos nós conhecemos, com as variações afetivas que o acompanham e que vão da esperança ao desespero, do encantamento à deploração profunda. A tonalidade com que falamos desse englobamento da Terra depende da maneira pela qual somos afetados por ele.

A partir desse quadro geral muito sumário, gostaria de colocar três questões que giram em torno da noção de limite, a cada vez sob um ângulo distinto.

A primeira questão é: o que se passou para que o capitalismo seja visto agora como sem limite? O que havia, antes, que o “limitava”, ainda que ele já sonhasse estender-se e sua expansão fosse mundial? Em outros termos, que limites ele rompeu ou venceu? A segunda questão: não é verdade, igualmente, que neste mundo agora sem limite há regulamentações, quadros, imperativos e limitações cada vez mais numerosos? Sem limite exterior, o capitalismo não cessa de multiplicar os limites para assegurar as condições de seu bom funcionamento. Mas esses são limites que ele mesmo dita. Assim haveria uma terceira questão: há um mundo fora do capitalismo? Há um mundo na outra margem do mundo?

Antes de começar, esclareço que se trata apenas de indicar aqui pistas de reflexão: o assunto é muito amplo para ser abrangido por essas questões.

PRIMEIRA QUESTÃO

Começo pela primeira, sobre o que havia antes do capitalismo. Antes do capitalismo havia um mundo, mas não era ainda englobado, ou não ainda globalizado. Por quê? Não se pode invocar apenas a ausência de meios técnicos, há outras razões. De certa maneira, a globalização era impedida por outras forças presentes. Podemos seguir aqui a hipótese de Braudel que observa bem vastas redes se desenvolvendo com o aparecimento das grandes cidades, especialmente cidades portuárias italianas como Gênova ou Veneza (depois Amsterdã). As cidades desenvolvem verdadeiros circuitos que fazem transitar através do mundo as mercadorias, que elas redistribuem nos países atrasados. Os meios técnicos não fazem falta, há os bancos, o desenvolvimento das técnicas marítimas, as primeiras concentrações de capitais, as primeiras oficinas, a ponto de se poder falar de período pré-capitalista (ou mesmo pré-industrial). Tudo está aí, no entanto, o englobamento não aconteceu.

E o que é que impediu que se desenvolvesse essa primeira tentativa de englobamento? A hipótese do historiador Fernand Braudel em seu livro volumoso que reconstitui a longa história da formação do capitalismo é a seguinte: foi o desenvolvimento dos Estados[2]. São eles que, para se desenvolver, se apropriam da rede das cidades e suas riquezas. Ora, o Estado não funciona de modo algum da mesma maneira que as cidades. Como diz Braudel, as cidades visam à riqueza, enquanto os Estados visam ao poder. Mais ainda, os Estados não desenvolvem circuitos através do mundo. Eles se apropriam de territórios a partir dos quais constroem a abstração de um espaço geométrico (a terra), espaço no qual exercem sua soberania. Na Europa, por exemplo, os aparelhos de Estado suplantam progressivamente o mosaico das estruturas feudais (e de seus poderes locais) para assentar a soberania de um poder central sobre o conjunto de uma terra com limites definidos. Pode-se dizer que eles englobam de fato uma terra, mas é, justamente, uma terra limitada. Jamais o Estado quer englobar a terra inteira, mesmo que lhe aconteça de querer estender-se (caso contrário, entra-se na lógica do império, que é de outra natureza). O território submetido à soberania do Estado é necessariamente limitado. Mas justamente o limite territorial se revela um objeto de disputa considerável; ele é a marca ou o traçado do poder soberano, um dos sinais de seu poderio que se dirige não apenas aos súditos/cidadãos, mas aos outros Estados. Há certamente outras formas de poder, mas o poder soberano se reconhece no fato de traçar um território cujo limite é, de direito, intransponível. Transpô-lo constitui uma verdadeira declaração de guerra, no sentido próprio e no figurado. Transpor o limite legitima o uso da força, pois é uma ofensa feita à soberania do Estado. Os Estados fazem guerras nas quais o limite desempenha um papel crucial, pois é ele que decide a política militar. “Há limites que não se devem transpor”, conhecemos todos essa frase, mas o que importa é a legitimidade soberana que ela implica ou suscita. Ela é inseparável de um investimento simbólico e libidinal considerável.

Como se chama esse investimento? Que nome lhe dar? Todos o conhecem: é a propriedade. A propriedade delimita um domínio no qual reina soberanamente (como mestre) seu possuidor (ou proprietário). A propriedade não é apenas a posse; é um direito, o enunciado de um direito de possuir este ou aquele corpo. Como o diz Rousseau no século XVIII, na célebre abertura do Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens: “O primeiro que, tendo cercado um terreno, ousou dizer: isto é meu, e encontrou gente bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. E, aliás, no interior do Estado, a terra se distribui em propriedades públicas e privadas (com frequência, seguindo o traçado de antigas territorialidades) que são zonas de soberanias secundárias, derivadas, em seu modelo, daquele do Estado em relação ao país. A terra é quadriculada pelos limites da propriedade privada que o Estado engloba no interior de limites soberanos (os do reino ou da nação).

Ora, esses limites anteriores ao capitalismo, o que eles limitam? São o limite de quê? O que eles limitam são, antes de tudo, corpos. Reencontramos uma velha definição do limite como limite dos corpos. Já os gregos diziam do corpo que ele se define por seu limite próprio. O que define um corpo é o limite que ele é enquanto desenhado no espaço, isto é, enquanto forma (por oposição à desordem do ilimitado, que é informe). O limite designa, portanto, a propriedade de um corpo, mas com a condição de observar que isso vale para toda espécie de corpo, os corpos orgânicos individuais, mas também os sociais, corpos da nação, corpos dos funcionários, corpo burocrático, corpo social. “Esse corpo me pertence, ele é meu.” Todos esses corpos são submetidos a limites que os definem como corpo e propriedade de um Estado, de um reino ou de um indivíduo.

O que o capitalismo ultrapassa, em primeiro lugar, são todos esses limites que acabo de lembrar em linhas gerais. Diferentemente dos Estados que são, por assim dizer, fixados pela terra que eles governam, o capitalismo não tem limites territoriais, reterritorializantes. Ele é desde o início multinacional ou apátrida. Pois o problema dos Estados é que eles formam, justamente, um corpo social relativamente fixo, e a distribuição

das propriedades privadas é um meio, entre outros, de sedentarizar os cidadãos. Segundo Deleuze e Guattari em Mil platôs, a lógica do Estado é a da sedentaridade, mas isso se deve em parte aos corpos sociais que eles constituem e que são pesados e difíceis de deslocar. Por mais poderosos e vastos que sejam, os Estados são imobilizados por todos os corpos sociais que eles governam, corpos de funcionários, corpo burocrático, corpo social e, evidentemente, o corpo da terra sobre a qual reinam. É quase um problema de física social. O limite dos Estados é o peso de seus corpos.

Com o capitalismo aparecem fluxos de trabalhadores, uma mão de obra móvel (e barata) que não está mais ligada à terra, fluxos monetários e fluxos de matérias que dependem agora de uma acumulação de capitais. Se o capitalismo é sem limite, é primeiramente no sentido de que ele não encontra limite territorial. Se trava combates, não são mais combates pela conquista ou a defesa de uma terra, mas sim em favor da extensão de um mercado. Como o dizem Deleuze e Guattari, o capitalismo não está ligado à terra, ele é totalmente indiferente à terra e aos territórios. Para retomar um termo que eles inventaram, o capitalismo é um processo de desterritorialização; ele se arranca da terra e arranca a terra dela mesma, arranca as populações da terra e dos territórios para fazê-las servir ao capital e só a ele. Seu corpo – a saber, o dinheiro abstrato – não é um corpo como os outros[3]. Não é um corpo limitado, orgânico. Não é mais um corpo finito, limitado no espaço e territorializado; o corpo do dinheiro é um corpo fluido, abstrato, que circula através dos corpos criados, inclusive e sobretudo aqueles que ele mesmo cria (novos corpos de trabalhadores, mas também fábricas, entrepostos etc., como novos tipos de corpos físico-sociais). Em outros termos, para o capitalismo os corpos não são mais um limite.

Ou melhor, o limite dos corpos é doravante o que se deve explorar; é preciso levar os corpos ao seu limite em função de uma produtividade que se tornou primordial, essencial. Os corpos se tornam o objeto de uma exploração máxima. De certa maneira, o corpo do capital – a saber, o dinheiro abstrato – não é um corpo como os outros. Não é um corpo limitado, orgânico; é antes um corpo fluido que passa através dos corpos sólidos, que os impele a seus limites respectivos (produtividade, guerras mundiais, exploração produtivista das máquinas, emigração) e que, sobretudo, se alimenta da exploração deles, como um vampiro. Ou seja, o que o Estado sedentariza por necessidade, o capitalismo o desterritorializa para se estender e favorecer sua expansão.

Que ninguém se engane: isso não quer dizer que o capitalismo não teve necessidade de corpos sociais ou de estruturas sedentárias. Ele inclusive se propagou através delas. Se o Estado produz e inventa corpos (sociedade civil, nação), o capitalismo também os cria – associando-se com o Estado; assim a oficina, depois a fábrica e hoje a empresa (enquanto o Estado, por seu lado, constrói escolas e prisões, como mostrou Foucault em Vigiar e punir). Foucault vê aí a base comum de um poder que o século XIX manifesta de maneira ostensiva: é o poder disciplinar que se pode definir aqui, por comodidade, como a constituição de corpos produtivos no interior de limites definidos.

Mas convém lembrar que, paralelamente, o capitalismo tem necessidade de corpos móveis. É nas populações submetidas às migrações forçadas, provocadas por fome, miséria, desemprego; é nas deslocalizações que ele obtém as forças de trabalho que necessita para se estender (mesmo que crie emprego e infraestruturas que permitem todos esses movimentos de populações, de bens, de matérias). Nunca antes na história tinha havido tanta migração, e os progressos no domínio dos transportes e das comunicações não explicam tudo. A lógica do capitalismo não é, nunca é apenas uma lógica local de sedentarização. Ela é sempre já desterritorializante, expansionista e globalizante.

Mas o que faz que se possa dizer hoje (mais ainda que ontem) que o capitalismo é sem limite? É que o capitalismo, no seu esforço de desterritorialização, acaba por se liberar dos próprios corpos. O que significa isto, liberar-se dos corpos? É a nova invenção da empresa. Sabe-se hoje que a nova tendência das empresas consiste em não mais produzir os produtos que ela, não obstante, vende. Sua finalidade não é mais a produtividade, mas somente a venda, isto é, o marketing. Em outros termos, a ponta avançada do capitalismo tende a se livrar dos corpos produtivos, em vez de explorá-los. A maior parte das novas grandes empresas não possuem sequer os meios de produção que utilizam (o chamado capital fixo), pois isso é ainda um meio de territorializar, de imobilizar o capital, de impedir as mutações necessárias para uma adaptação cada vez mais rápida.

Quanto mais uma empresa se estende, tanto menos seu capital se fixa em equipamentos pesados ditos industriais e tanto menos ela é produtiva. Ela tampouco possui armazéns nem administra os estoques; não possui sequer uma grande parte de seus assalariados, que, cada vez mais, dependem de firmas terceirizadas. É como se ela se livrasse dos corpos e se desmaterializasse.

O limite que o capitalismo ultrapassa, portanto, é o dos corpos sociais, materiais, industriais, que ainda há pouco o obstruíam. As empresas não produzem mais os corpos que elas vendem; o que elas produzem e vendem por sua conta são conceitos (por exemplo, o universo de uma marca, já que as marcas são doravante “universos”). Elas se apropriam do imaterial. Uma empresa vive do conceito da marca que ela desenvolve, estende e faz variar. Mas o que são esses conceitos que substituem os corpos e os produtos clássicos? Idealmente, um conceito é um conjunto de serviços variados, desenvolvidos em redes, interconectados – ou, ainda, proposições de experiências (destinadas a se imiscuir no interior das nossas e, com o tempo, a substituí-las). As marcas não vendem mais produtos, mas universos cujos acesso e serviços elas comercializam. É nesse sentido que se pode falar de um capitalismo pós-industrial ou mesmo imaterial.

Isso quer dizer que os corpos desapareceram? Não, mas sua definição mudou. O que importa num corpo não é mais sua produtividade. O que assegurava sua produtividade era sua massa e sua força. Um corpo são forças produtivas, tanto para o capitalismo quanto para os sindicatos que, por seu lado, formam corpos maciços de protesto ou de resistência numa manifestação. Como utilizar a força dos corpos? É a questão que os dois campos se colocam, se podemos dizer. De certa maneira, o corpo se define por sua resistência nos dois sentidos do termo. Ele resiste a uma pesada carga de trabalho (assim como se fala de resistência dos materiais), ao mesmo tempo em que, por sua força e sua massa, pode opor uma resistência aos poderosos que o exploram. Com isso toda relação se define como relação de forças. É o que faz que tenhamos há muito concebido a relação com os poderes como relação de forças. Não se trata de dizer que essa dimensão desapareceu ou que daqui por diante não tem futuro, longe disso; mas ela não entra mais nos projetos do capitalismo mais avançado.

É que o corpo agora se define de outro modo. Ele não é mais força e massa, capacidade de resistência. Tornou-se inteiramente informação. O que importa num corpo (seja um corpo individual ou um corpo coletivo) são as informações que ele veicula, pois é disso que se trata agora de se apropriar. Isso vale para quem está conectado a uma rede e fornece dados sobre seu comportamento e o conjunto de sua existência, dados que se tornam comercializáveis ou são vendidos com a finalidade de favorecer estratégias de venda; mas vale igualmente – e talvez ainda mais – para os corpos biológicos. É o caso de sementes que se tornam a propriedade exclusiva de grandes grupos biotecnológicos (tanto assim que nos Estados Unidos, por exemplo, não é mais possível replantar os grãos oriundos de uma colheita anterior; é preciso necessariamente passar por um grupo agroalimentar e comprar as sementes autorizadas da colheita seguinte, para não se expor a processos judiciais). Mas é também o caso de nossas próprias moléculas que se tornam a propriedade de grupos farmacêuticos que as exploram. O que se obtém de um corpo, agora, são seus dados informacionais e não mais sua força produtiva. Os corpos não têm mais a densidade de uma massa ou a profundidade da força, eles têm a transparência das imagens médicas. Pois o que se trata de vender ou de explorar são, precisamente, informações, isto é, dados imateriais.

É o que ilustra o célebre caso de John Moore, que, em 1976, teve uma forma rara de câncer do baço. Ao cabo de sete anos, o médico que o salvou (Dr. Golde) lhe pede para assinar um formulário de consentimento de umas trinta páginas. Ele descobre então que esse médico e uma sociedade de biotecnologia chamada Genetics fizeram um pedido de patenteamento das células do baço do paciente (cujos tecidos secretavam uma proteína que facilita a produção de glóbulos brancos, que são agentes anticancerígenos eficazes). Moore os ataca na justiça. O veredicto histórico pronunciado pela Corte Suprema da Califórnia testemunha a mutação de que falamos: ela não reconhece a John Moore nenhum direito de propriedade sobre suas células “para não prejudicar a pesquisa médica, restringindo o acesso aos materiais necessários[4]”, afirma o veredicto. Não se trata mais de se apropriar do corpo do paciente nem mesmo de fazer dele uma cobaia ou um objeto de experimentação: trata-se de patentear as informações de certas células para em seguida comercializá-las. Os corpos se tornam pacotes de informações e fontes de patenteamento potenciais. De certo modo, pode-se dizer que o nosso corpo nos pertence, mas os séculos xix e xx compravam sua força (de trabalho), enquanto o século XXI compra suas informações.

Então, sim, o capitalismo pode englobar tudo, pois não é mais retido por nenhum corpo e por nenhuma máquina (concebida como capital fixo). Ele extrai informações através do fluxo dos corpos, quer se trate de corpos naturais, de corpos industriais, políticos ou culturais. É uma verdadeira estratégia de extração. Devemos então dizer que esse capitalismo é imaterial, por oposição ao capitalismo que explorava a força dos corpos num espaço real? O elemento no qual ele circula é menos o imaterial (termo bastante vago) que o que se pode chamar provisoriamente, na falta de termo melhor, o software (num sentido mais amplo que a programação informática). E o software funciona, ele mesmo, num espaço virtual que reúne todos os componentes necessários para a produção de corpos reais, os quais podem estar a milhares de quilômetros uns dos outros no espaço real. É o que vemos no caso de uma marca-conceito que envolve todas as empresas terceirizadas que trabalham para ela, em função do conceito, do universo que ela cria; é o caso também do sistema de franquias que dá uma universalidade de fato ou ubiquidade a uma marca. Eles pertencem ao espaço virtual do conceito que lhes é copresente. O espaço real e suas distâncias não são mais um obstáculo, pois tudo se passa num espaço virtual sem distância que engloba o espaço real num conceito (ciberespaço), levando em conta as redes que permitem esse englobamento.

O ideal é quase um conglomerado de empresas que criam um mundo no qual só precisamos “escolher” as experiências que queremos viver – seguindo certos conceitos – e assiná-las. “Vocês não terão mais necessidade de sair de nossos conceitos que são outros tantos universos a explorar, atenderemos todas as necessidades, todos os desejos (dispomos dos dados para isso).” É um mundo que contém tudo o que precisamos no mundo exterior, portanto, deve substituir o mundo exterior. Eis aí a ausência de limite: idealmente, ele substitui toda a exterioridade do mundo. Não existe mais nada fora. Não há mais limite porque não há mais outro mundo.

SEGUNDA QUESTÃO

Chego agora à segunda questão que diz respeito aos limites internos que o capitalismo fixa, isto é, os limites no interior do mundo cujos contornos acabo de traçar em linhas gerais. Pois vocês notarão que, para que esses mundos se proponham a nós, é preciso curvar-se a certos imperativos, o que se descobre sobretudo quando se quer sair deles. Descobre-se o mundo das condições contratuais, de todas as regulamentações jurídicas, que faz que sejamos despojados de qualquer poder sobre esse universo. É a assinatura que não se pode desfazer, as incompatibilidades que nos impedem de fazer comunicar universos distintos, os novos contratos de trabalho que nos privam de todo recurso. Como se fosse fácil entrar num mundo, mas difícil sair dele sem ser totalmente despojado. Tem-se a impressão de que estar conectado é ser assinante. Chegou-se a falar de uma era do acesso, mas isso com a condição de se permanecer silencioso sobre a impossibilidade de sair sem ser em seguida totalmente desconectado e, por assim dizer, excluído de um campo de interações sociais, pessoais, profissionais etc. São os limites que se apresentam tão logo se sai dos percursos programados por esses mundos. Essa transformação do capitalismo é inseparável de novas normas jurídicas, novas licenças, novos códigos de trabalho. Assistimos a uma transformação incessante dos direitos sociais e cívicos, das liberdades individuais e coletivas.

Como se explica essa acumulação quase infinita de regulamentações, essa burocracia demencial que atinge tanto as populações quanto a circulação dos bens, dos materiais, dos corpos vivos e dos serviços? Isso sem contar os novos limites territoriais. Não penso aqui nas novas fronteiras (de 25 anos para cá, mais de 30 mil quilômetros de novas fronteiras internacionais apareceram no planeta), mas em todas as normas de segurança, portais magnéticos, controle de identidades, fichas a preencher, informações a dar antes de entrar em certos locais ou para ter acesso a alguns sites. Não são mais propriedades privadas, mas espaços ou zonas regulamentadas que multiplicam os limites a fim de obter informações sobre os fluxos em circulação. Compreende-se bem por que todos esses limites aparecem. É que, por um lado, há cada vez mais fluxos de toda espécie, mas, por outro, é preciso controlá-los para redistribuí-los. Como diz Deleuze, não vivemos mais em sociedades disciplinares (embora elas o

sejam ainda violentamente), vivemos em sociedades de controle[5]. É preciso controlar os fluxos. Não interrompê-los, mas controlar seu conteúdo, isto é, ter informações sobre eles. O limite consiste agora, sobretudo, em obter informações. Não entrem aqui a não ser dando informações que os identifiquem. Como diz ainda Deleuze, não somos mais indivíduos com uma assinatura individual, somos pacotes de dados.

Os limites tornam-se então aqueles no interior dos quais os fluxos podem escoar “livremente”. Eles atuam como portais ou controles de acesso. Paralelamente, definem os novos direitos, as novas condições de vida dos indivíduos no interior desse mundo em fluxo. São todos os limites que cada um encontra diariamente em seu trabalho, em seus direitos sociais, cívicos, em sua liberdade – liberdade tanto mais enquadrada quanto os comportamentos são o objeto de uma vigilância, de um controle incessantes. Nunca dispusemos de tantas informações sobre o conjunto das atividades humanas, animais, terrestres. Disso resulta correlativamente um enquadramento jurídico e normativo cada vez maior através de uma burocracia crescente. São múltiplos sistemas de proteção, não proteção dos indivíduos, mas contra todos os riscos que uma sociedade, um serviço ou uma empresa podem correr. A ideia de que a informação é uma proteção contra um risco (nem que seja o risco de ignorar a informação) é uma das mais presentes hoje. O modelo atual da informação é o alerta ou o alarme. Ora, a noção de proteção é ainda mais flutuante (mais englobante) que a de segurança. Pode-se querer proteger tudo, portanto, exercer um controle em todos os domínios. Desse ponto de vista, assistimos a uma regulamentação sem precedentes que diz respeito não só às pessoas, mas aos bens, à exploração das matérias-primas, aos serviços. A lista, a bem dizer, é interminável.

TERCEIRA QUESTÃO

Se nos ativermos a esses dois aspectos, teremos a impressão de que não há nada fora do capitalismo e de que a terceira questão não faz muito sentido. Eu recordo: há um mundo fora do capitalismo? Pode-se formular a questão de outro modo: há um mundo que não seja capturado nessa universal comercialização, comprometido por ela, de uma maneira ou de outra? Levando em conta o que precede, parece não haver nada fora do capitalismo. Ou deveríamos dizê-lo de outro modo: o capitalismo não vê nada fora do seu mundo, a não ser as imagens-clichê de uma natureza ou de povos preservados (mas, por quanto tempo ainda? – é a questão que acompanha melancolicamente essas imagens desde o início) como reservas naturais, transformadas em santuários, destinadas de qualquer modo a desaparecer. O capitalismo não sabe produzir senão clichês.

Mas, em realidade, há um mundo fora do capitalismo. São todas as populações que são “inúteis” para seu funcionamento e sua expansão; são todos aqueles largados à sua sorte, dos quais nem se pode dizer que estão excluídos do mundo capitalista; simplesmente não se enquadram mais nele. Não se trata de eliminá-los, trata-se apenas de empurrá-los para fora. Mas essas populações são também certas forças que temos em nós e que expulsamos, a fim de entrar ou de permanecer nos quadros que as empresas e o novo mundo social nos impõem.

Então se descobre que o capitalismo tem, de fato, limites. Mas esses limites não são da mesma natureza que os precedentes. Não são mais limites internos, relativos, como o são as regulamentações, os quadros econômicos, jurídicos e sociais que podemos chamar de limites inclusivos. Inclusivos porque definem as normas que se aplicam às condutas, aos bens, aos fluxos de materiais, e que têm por função nos incluir nos universos de que falávamos. Mas o outro limite, o que lança fora todos aqueles que as normas não integram mais, convém chamá-lo de limite exclusivo. Qual a diferença entre os dois? São muitas, mas me limitarei a uma só: é que eles não são portadores do mesmo direito.

No primeiro caso, o direito é um direito positivo no sentido de que enquadra ou regulamenta as transações financeiras, os contratos de trabalho; uma parte relativa cabe ao Estado através do “contrato” social que o liga a seus cidadãos. Claro que esses direitos são inseparáveis de um conjunto de sanções e de punições que constituem seu reverso repressivo. Pode-se deplorá-los, contestá-los, obter sua evolução, mas não sua supressão; eles asseguram o caráter coercitivo das normas. Não há normas sem sanções eventuais, o que permite assentar sua força política e social e conferir-lhes uma legitimidade. Mas essa repressão se exerce no interior dos limites das sociedades capitalistas. Ela não nos faz sair deles.

No caso do limite exclusivo, já não lidamos mais com o mesmo direito nem com o mesmo exercício da força. O direito pode tornar-se um direito de vida ou de morte. Não se trata apenas de eliminar (e não mais julgar) indivíduos considerados como criminosos (comprovados ou potenciais), mas de isolar os indivíduos em zonas de não direito, do outro lado de um limite agora intransponível. Esse direito consiste em tirar os indivíduos de toda zona de direito, de toda sociedade. Literalmente, eles estão fora. São fora da lei (outlaws). O que significa a ausência de direito? Significa que não se pode mais reivindicar nenhum direito. Pode-se apenas reivindicar o direito de viver. Mas se o poder é agora, segundo a hipótese de Foucault, um biopoder que tem por objeto a “vida” dos indivíduos, a vida, ao escapar à sua “gestão” biopolítica, se degrada em sobrevivência nos meios desérticos ou abandonados: estepes, florestas, favelas, no man’s land, zonas industriais abandonadas, campos de refugiados etc.

Em realidade, sai-se da humanidade (e multiplicam-se as imagens de acampamentos onde indivíduos vivem “como animais”, em condições inumanas) e não se tem mais acesso aos direitos elementares concedidos à humanidade. Os indivíduos não são mais reconhecidos como humanos, no sentido de que seu direito à vida não é tão “sagrado” quanto para os que vivem “protegidos” no interior do sistema capitalista. Eles não estão mais cobertos pelo biopoder; ao contrário, são definidos como uma ameaça para os que estão do outro lado do limite. Isso nada tem de abstrato. Todo aquele que sai do sistema capitalista conhece essa luta pela sobrevivência e enfrenta os limites que o rechaçam ou o mantêm sempre fora. São os países ricos que não querem acolher os migrantes, as grandes cidades que rechaçam a miséria para as favelas, toda uma periferia miserável em torno das sociedades capitalistas amedrontadas com os que vivem fora, do outro lado do limite, eventualmente interessadas apenas na mão de obra barata que eles fornecem em caso de necessidade.

Percebe-se bem o que tal limite encarna. Ele exprime uma alternativa exclusiva: capitalismo ou morte – seja morte rápida ou lenta, interminável, seja morte social, econômica, cívica, ou tudo isso ao mesmo tempo. É uma espécie de chantagem imunda em que não se tem outra escolha senão aceitar trabalhos precários, mal pagos, em condições de vida que se confundem com as da sobrevivência. Sob muitos aspectos, estamos próximos da descrição que faz Giorgio Agamben do traçado do limite no Império Romano, num texto sobre Kafka[6]. O limite dos domínios imperiais, tal como o traçava o agrimensor romano, era uma questão considerável. O agrimensor era criador de direito, tinha uma função sagrada. Podia mesmo ter direito de vida ou morte sobre quem transgredisse o limite. Talvez o capitalismo reencontre algo desse limite imperial, exceto que não o fundamenta mais em razões astronômicas ou cosmológicas como no tempo do Império Romano, mas em razões econômicas ou geoestratégicas. Para além desse limite, sua vida não é mais garantida. Você está numa zona de não direito onde o que se chama de biopoder desaparece. Você é subtraído a esse “cuidado” tão particular que é também o dos Estados e empresas que garantem o bem de seus cidadãos e clientes. Não apenas é expulso do espaço virtual que o capitalismo desdobra e estende sobre o espaço real que ele engloba, mas sai também de sua temporalidade. Torna-se a imagem de um anacronismo, de um mundo que imaginam findo: aquele de um corpo que luta, com outros, num espaço real para viver e sobreviver. Anacrônico, mas também obsoleto como o são os dejetos, os detritos, os materiais usados. Essa exclusão mostra o imperialismo do capitalismo. É nas fronteiras do “seu” mundo que o reconhecemos, mais ainda, se é possível dizer, que em seu englobamento da terra.

Mas essas imagens, por portadoras de real que sejam, são ainda imagens. Elas têm uma função no interior mesmo do capitalismo: a de nos impedir de acreditar que outro mundo possa existir, e a de nos fazer acreditar que fora do capitalismo só há miséria, desolação e morte, que não há nada vivo. Fazem-nos acreditar que nos relacionamos com uma realidade quando temos informações prévias sobre ela, que nos relacionamos com os corpos – inclusive os nossos – quando temos informações sobre eles, sua saúde, seu equilíbrio, sua beleza (comercial), sua sociabilidade, em suma, sua imagem. Passar para o outro lado do limite é, talvez, não poder acreditar nas imagens, mas ir ver no lugar o que se passa.

Notas

  1. Tradução de Paulo Neves.
  2. Fernand Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme — Le Temps du monde, tome III. Paris: Armand Colin, 1979, pp. 245 e 391-400.
  3. Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille plateaux, Paris: Minuit, pp. 34, 460 e 479.
  4. Jeremy Rif kin, L’Âge de l’accès, Paris : La Découverte, 2005, p. 95.
  5. Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris: Minuit, 2003, pp. 243-4.
  6. Giorgio Agamben, Nudités, Paris: Rivages poche, 2009, p. 33.

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  • expansão de mercado
  • expansionismo
  • Fernand Braudel
  • fluxo de informações
  • força de trabalho
  • Foucault
  • Giorgio Agamben
  • Kafka
  • terceirização do trabalho
  • território
  • “zona de não direito”