Olhar e memória
Resumo
No livro Memória e sociedade — lembranças de velhos, Ecléa Bosi trata a questão do olhar e da memória. Para Éclea, nos velhos, a memória não é evasão. A memória é a liberdade criadora de acessar o presente com visões de um outro tempo. A memória nos solicita, revigora, nos faz ver o fato, faz o cruzamento entre a história e a intimidade, entre o público e o pessoal. Nossos olhos apreendem as coisas como significantes do que somos. Toda vez que transformação dos espaços da casa, do bairro, da cidade é violência precisamos resistir.
Simone Weil, a filósofa da atenção, pensa a questão do enraizamento. Para Simone, o desenraizamento é uma doença perigosa. Seres desenraizados têm dois comportamentos possiveis: inércia da alma ou tentativa de desenraizar, muitas vezes de forma violenta, os que ainda estão enraizados. Simone reconhece o desenraizamento também no ethos capitalista, o dinheiro e o desejo de ganhá-lo destruindo as raízes.
Simone defende que não é com medidas jurídicas (como a nacionalização de indústrias-chave ou supressão da propriedade privada) que se destruirá a condição proletária. As reivindicações dos operários exprimem todas, ou quase todas, o sofrimento do desenraizamento. Por temerem o desenraizamento do desemprego querem controle do emprego e a nacionalização das industrias. Se querem abolir a propriedade privada, é porque estão cansados de serem admitidos no lugar de trabalho como imigrantes que se deixam entrar por favor.
Para Simone Weil, é preciso mudar o regime da atenção no decorrer das horas de trabalho, mudar a natureza dos estímulos que levam a vencer a preguiça ou o esgotamento — estímulos que hoje são apenas medo e dinheiro.
Merleau-Ponty, em suas reflexões em torno do marxismo, insiste numa compreensão em que a vida econômica contaria não como “uma ordem separada a que as outras se reduzem” mas que, no encontro do olhar e da memória, acolhemos sem incompatibilidades a dimensão material da vida intersubjetiva e a dimensão significante da vida concreta. Os lastros mnêmicos que se insinuam nas matérias sociais à nossa volta são decisivos no firmamento da cultura de um povo.
A onipresente rede de fast-food McDonald’s é um exemplo preciso de olhar sem memória. As lanchonetes MacDonalds impõem-se nas cidades sem nenhum vínculo com a história do lugar. Com seus mastros luminosos, cores primárias e plásticas, objetos isentos sem marcas nem fissuras, sua imagem parece não remeter a nada para além de si mesma.
A aproximação destas duas experiências pode no mínimo intrigar a mentalidade contemporânea, posto que a modernidade habituou-se a tomá-las como incompatíveis, concentrando o olhar ao imediato sem interioridade e atrofiando a memória ao ponto estéril de uma função supérflua.
Assim é que a reunião destes dois temas — olhar e memória —, ao menos no caso da psicologia social brasileira, deve sua postulação quase que inteiramente ao trabalho alerta e decisivo de Ecléa Bosi. Seu livro extraordinário, Memória e sociedade — lembranças de velhos[1], será referência imprescindível e permanente ao longo destas reflexões.
Friso, então, o limite desta minha pouca contribuição: escrevo como aprendiz: efetivamente, o que realizarei será apenas o comentário de uma aprendizagem, até agora em andamento, reunindo-me a todos aqueles que ainda se surpreendem com a descoberta da espessura existencial e política da memória.
MEMÓRIA E TEMPO (APONTAMENTOS)
I
Naquele que está comovido pelo sonho de um território sem classes, os trabalhos da memória talvez estimulem a atenção de um olhar zeloso, entusiasmando luta política não apenas em direção ao futuro mas também em direção aos mananciais simbólicos e esperanças históricas do passado.
O olhar que se desperta em direção ao passado, divertindo-se e compenetrando-se nas imagens de um outro tempo, suscitadas nos materiais e nas obras que a memória impregnou, longe de constituir-se num impedimento nostálgico à história, instaura um desequilíbrio na relação com o presente, presente vivido e representado como progresso. Ergue-se uma oposição ao fetichismo do moderno, oposição à desqualificação e esvaziamento da experiência, pressionada pelos ditames extrínsecos, sempre inéditos e arrogantes de uma razão administrativa, tecnocrática, que confunde mudança com variações regidas pela obsessão do novo. Sob a aparência dos incrementos desenvolvimentistas, politicamente isentos, vão-se reduzindo todos os motivos, como previne Simone Weil[2], ao motivo do Capital, cuja avidez encolhe e aliena nossos esforços para obter felicidade e mantém autorizadas as garantias de algumas vidas sobre os impedimentos de outras. Perde-se dos dois lados: suprimimos o passado, confundido com o obsoleto e o irracional, e não suprimimos a divisão burguesa do trabalho.
Ainda o desequilíbrio e a oposição podem se instaurar, então, também na relação com o futuro, se futuro vivido e representado como curado, onde a história, solucionada, estaria encerrada sob os auspícios de um poder inequívoco, cuja incumbência, daí por diante, seria apenas a de uma profilaxia social, agenciada por vontades robustas e moralizantes. A este espírito de higiene e intolerância, que estende o juízo e a revisão em toda parte, das instituições aos interstícios dos pequenos encontros, a memória expõe, no contraponto, a amabilidade e a brandura ante os sabores, os aromas, as cores, as sonoridades, as formas essenciais de uma cultura: significantes de uma maneira de ser que a subjetividade e a intersubjetividade compuseram de modo mais ou menos inconsciente e que, como desta vez previne Merleau-Ponty,[3] revoluções ansiosas podem violar: incapazes de suportar os riscos da liberdade, autorizar-se-ão absolutos de negação — recusa indiscriminada de tudo que não foi imediatamente justificado perante grosseiros programas de reforma. A longo prazo, novas opressões quando se pretendia suprimi-las e talvez precisamente porque se pretendia de modo infalível suprimi-las.
No horizonte da ideologia, assim, à direita ou à esquerda, ficam excluídos o acaso, o dom, as contradições da espontaneidade, o desejo, ou seja, tudo o que justamente atravessa o tempo da memória.
A memória revê o curso da existência como heterogêneo e fértil de possibilidades imprevistas, repleto de pequenos acidentes nunca negligenciáveis, suspendendo qualquer relação de mando e obediência entre o sujeito e a história, insuflando-a de mistério e surpresa, risco e expectativa, iniciativa e observação. Diria Merleau-Ponty:
A contingência da história significa que, mesmo que as diversas ordens de acontecimentos formem um só texto inteligível, entretanto não estão rigorosamente ligadas, havendo jogo no sistema.[4]
As lógicas da história não superam a própria história como leis essenciais: não possuem, como sublinha Marilena Chaui, “uma garantia transcendente à própria história”.[5] Pois no tempo da memória, ocorre que todo empreendimento foi tentativa, todo projeto foi voto, anseio, desejo. Aquilo que apareceu como fracasso, desvio, interrupção, aquilo que apareceu como antinomia, como contradição lógica ou anti-sistêmica, que se deveria corrigir ou suprimir, a memória pode reencontrar como impasse existencial ou conjuntural, e que pode inspirar, desafiando a inteligência, fazendo inventar novo ponto de vista e novas ousadias.
II
Se é possível distinguir “uma memória voltada para a ação, feita de hábitos, e uma outra que simplesmente revive o passado”, é desta última que tratamos: esta memória que desempenham os velhos, tarefa para a qual estão maduros: “tranquilizar as águas revoltas do presente pelo alargamento de suas margens”.[6]
Nos velhos, procedimento de um corpo exausto, a memória não é evasão. Já afastados, natural e socialmente, dos ritmos frenéticos, o lembrar dos velhos não é paixão escapista, mas a liberdade criadora de ir ao acesso do presente, ungidos por visões (mediadoras) de um outro tempo — recurso privilegiado e honroso da velhice, que a cultura pode reverenciar se não descarrilhou no anátema de tudo que é lento, gradual, penoso.
A memória, aqui, é olhar e trabalho. Olhar em direção ao passado, “olhar desgarrado com que, às vezes, os velhos olham sem ver, buscando amparo em coisas distantes e ausentes”. Olhar fugidio mas que é paradoxalmente estilo dum ofício inserido no presente: o velho recolhe imagens de outrora, mas reclamadas nas nervuras de uma vida em ato: “relembrar exige um espírito desperto, a capacidade de não confundir a vida atual com a que passou, de reconhecer as lembranças e opô-las às imagens de agora”: “não há evocação sem uma inteligência do presente”: aturada e apurada reflexão pode preceder e acompanhar a evocação: “uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito”. E, de resto, que haja ocasião para o trabalho mnêmico, pois “um homem não sabe o que ele é se não for capaz de sair das determinações atuais”.[7]
O exercício da memória, seu exercício mais intenso e mais contundente, é indissociável da presença dos velhos entre nós. Quando ainda não contidos pelo estigma de improdutivos, quando por isso ainda não constrangidos pela impaciência, pelos sorrisos incolores, pela cortesia inautêntica, pelos cuidados geriátricos impessoais, pelo isolamento, quando então ainda não-calados, dedicam-se os velhos, cheios de espontaneidade, à cerimônia da evocação, evocação solene do que mais impressionou suas retinas tão fatigadas, enquanto seus interesses e suas mãos laborosas participavam da norma e também do mistério de uma cultura. Cerimônia inesquecível para as crianças nela envolvidas. Eis como Ecléa Bosi comenta o vínculo entre memória e socialização:
Enquanto os pais se entregam às atividades da idade madura, a criança recebe inúmeras noções dos avós, dos empregados. Estes não têm, em geral, a preocupação do que é “próprio” para crianças, mas conversam com elas de igual para igual, refletindo sobre acontecimentos políticos, históricos, tal como chegam a eles através das deformações do imaginário popular. Eventos considerados trágicos para os tios, pais, irmãos mais velhos são relativizados pela avó enquanto não for sacudida sua vida miúda ou não forem atingidos os seus. Ela dirá à criança que já viu muitas revoluções, que tudo continua na mesma: alguém continuou na cozinha, servindo, lavando pratos e copos em que os outros beberam, limpando banheiros, arrumando camas para o sono de outrem, esvaziando cinzeiros, regando plantas, varrendo o chão, lavando a roupa. Alguém curvou suas costas atentas para os resíduos de outras vidas.
O que poderá mudar enquanto a criança escuta na sala discursos igualitários e observa na cozinha o sacrifício constante dos empregados? A verdadeira mudança dá-se a perceber no interior, no concreto, no cotidiano, no miúdo; os abalos exteriores não modificam o essencial. Eis a filosofia que é transmitida à criança, que a absorve junto com a grandeza dos socialmente “pequenos” a quem votamos nossa primeira afeição e que podem guiar nossa percepção nascente do mundo. Depois esse tempo ficará o tempo subjacente, dominado, e mergulharemos no tempo da classe dominante que prepondera uma vez que assume o controle da vida social.
[…]
Os atos públicos dos adultos interessam quando revestidos de um sentido familiar, íntimo, compreensível no dia-a-dia. Os feitos abstratos, as palavras dos homens importantes só se revestem de significado para o velho e para a criança quando traduzidos por alguma grandeza na vida cotidiana. Como pode a anciã justificar a glória do filho premiado na academia científica se ele não ajuda os sobrinhos pobres, ou se ele não cura o reumatismo da cozinheira?
Há dimensões da aculturação que, sem os velhos, a educação dos adultos não alcança plenamente: o reviver do que se perdeu, de histórias, tradições, o reviver dos que já partiram e participam então de nossas conversas e esperanças; enfim, o poder que os velhos têm de tornar presentes na família os que se ausentaram, pois deles ainda ficou alguma coisa em nosso hábito de sorrir, de andar. Não se deixam para trás essas coisas, como desnecessárias. Esta força, essa vontade de revivescência, arranca do que passou seu caráter transitório, faz com que entre de modo constitutivo no presente. Para Hegel, é o passado concentrado no presente que cria a natureza humana por um processo de contínuo reavivamento e rejuvenescimento.[8]
A memória nos solicita e revigora. Desconcerta, alargando motivações que o tempo acanhou. Vejam, por exemplo, a possível ressonância em nós da evocação da infância:
Se o adulto não dispõe de tempo ou desejo para reconstruir a infância, o velho se curva sobre ela como os gregos sobre a idade de ouro.
Se examinarmos criticamente a meninice podemos encontrar nela aspirações truncadas, injustiças, prepotência, a hostilidade habitual contra os fracos. Poucos de nós puderam ver florescer seus talentos, cumprir sua vocação mais verdadeira. Comparamos acaso nossos ideais antigos com os presentes? Examinamos as raízes desse desengano progressivo das relações sociais?
A criança sofre, o adolescente sofre. De onde nos vêm, então, a saudade e a ternura pelos anos juvenis? Talvez porque nossa fraqueza fosse uma força latente e em nós houvesse o germe de uma plenitude a se realizar. Não havia ainda o constrangimento dos limites, nosso diálogo com os seres era aberto, infinito. A percepção era uma aventura; como um animal descuidado, brincávamos fora da jaula do estereótipo.[9]
III
A memória tece lembranças assentadas na efetividade de acontecimentos, miúdos ou grandiosos, e no impacto e eloquência que impuseram a observadores participantes, que nestes acontecimentos se engajaram integralmente.
O movimento de uma lembrança vibra fora dos compassos rígidos e desvitalizados de um conceito permanente, de uma ideia eterna, de um princípio abstrato: o ânimo que fomenta é gerado na espessura de uma experiência. Uma experiência possui plasticidade: não fixa saberes, remetendo sempre nossa atenção para os sentidos inesgotáveis de uma práxis. Possui perceptibilidade: oferece traços inconfundíveis que a singularizam. Possui realizabilidade: impõe-se como realidade incontestável através das diversas interpretações que pode sustentar.[10]
A evocação de uma experiência muito concreta, quando não demasiadamente desfigurada pelo nosso desejo de categorias nítidas e de explicação, recolhe tudo o que ativamente sofremos, em todo seu vigor nascente, em toda sua ambivalência: recolhe o bonito mas também o feio, o íntegro mas também o incoerente, o comum mas também o incomum, o adequado e o inconformado, o resultado e o fracasso, a empresa e o desespero, o amor e o medo, a luta e a preguiça: a vida e também a morte. Destaca, então, menos os pensamentos, os programas, as definições, e mais a exuberância e o drama de existências que arbitraram estes pensamentos, programas e definições, existências que chamamos pelos nomes: Alice, Brites, Amadeu, Abel, Lavínia, Ariosto, Risoleta, Antônio.
O trabalho da memória entra em contraste, então, com o esforço das ciências quando interpretam a história renunciando nela tomar parte, quando se dedicam à tentativa de um olhar sem subjetividade, que pudesse apanhar as ações sociais como conjuntura de circunstâncias positivas e exteriores, evoluindo segundo a métrica de um processo objetivo, isolável, sem sujeito. A memória, ao contrário, faz ver o fato a partir dos indivíduos ao mesmo tempo que reencontra neles a ascendência mais pertinente dos acontecimentos, as influências mais profundas e indeléveis de uma época.
A memória oferece o passado através de um modo de ver o passado: exercício de congenialidade,[11] onde há, pois, investimentos do sujeito recordador e da coisa recordada, de maneira que ao termo e ao cabo do trabalho de recordação já não podemos mais dissociá-los: então fará tanto sentido entender o sujeito a partir do que recordou quanto o que recordou a partir do modo como o fez. A recordação traz a marca dos padrões e valores mais ou menos ideológicos do sujeito, a marca dos .seus sentimentos, a colorir eticamente e afetivamente a lembrança, traz a marca de sua inteligência, a encontrar razões do passado — e a recordação traz, ao mesmo tempo, as determinações do passado na urdidura daqueles padrões, daqueles valores, daqueles sentimentos, daquela inteligência.
A memória faz cruzar a história e a intimidade, o mais público e o mais pessoal, em crônicas muito originais e prenhes de contingência, crônicas do indivíduo na família, na escola, no trabalho, no bairro ou na cidade, em todo grupo onde os homens se nutriram simbolicamente e onde empenharam, não sem contradições, aquilo que eles são: aí onde os sujeitos aparecem imantados por pulsões discordantes e que esquema nenhum pode abarcar: ora agiram em acordo com a ideologia, ora a suspenderam; ora foram fiéis a seus conceitos e preconceitos, ora pareceram negligenciá-los: aí, pois, onde o nexo das atitudes humanas não pode ser resolvido por nenhuma sociologia ou psicologia normalizadoras, mas apenas intermitentemente aludido pelo desempenho de algumas vidas. Ou seja: nexo que então aflora não de modo deliberado e sem misturas, mas apenas esporadicamente, cristalizando-se numa insistência que, atravessando as variações da experiência, configura focos e direções existenciais. Focos e direções que, em meio à diversidade dos acontecimentos vividos, oferecem-nos algo dos motivos profundos e obstinados de alguns sujeitos: sujeitos colocados, como nós, na encruzilhada da cultura e do desejo, da estereotipia e da idiossincrasia.
A evocação de pessoas concretas atinge-nos não apenas o pensamento, mas também e sempre de novo a imaginação, a fantasia e as emoções, a espontaneidade e a inventividade, numa palavra, todas as camadas do humano.[12]
À margem das histórias autorizadas e apologéticas, a memória dos dominados resiste, entretanto, na tradição oral de grupos algo coesos, algo comunitários, onde pode ocorrer que os impasses do presente, tendo frisadas sua solidez e sua gravidade, sejam percorridos por uma espécie de teimosia. Entre coragem e paciência, uma teimosia que é engordada na lembrança de episódios fragmentários, envolvendo pessoas queridas e veneradas, que conheceram elas mesmas o peso daqueles impasses, pessoas que sofreram e morreram, mas obstinadamente se sustentaram no amor por direitos comuns inalienáveis, de cuja busca já não podiam mais prescindir a não ser mediante o sacrifício de sua própria dignidade, isto é, mediante o esfacelamento do que internamente os movia na convivência com as coisas, com as estruturas humanas, com os outros e consigo mesmos.
Nas primeiras páginas do ensaio “Em toda e em nenhuma parte”, Merleau-Pont discute a relação da filosofia com seu passado. Recusa qualquer recuperação do pensamento de um sujeito inserido como a recuperação de uma obra sem inerência que atravessaria incondicionalmente o tempo e o espaço, outorgando-se como posse (sobrevoante) da verdade. Recusa igualmente acercar-se da obra passada como de uma tentativa relativa, entre inúmeras outras que a antecederam e sucederam, de tal modo presa às circunstâncias psicológicas e sociais de seu tempo, que pudesse apenas figurar num catálogo de “pontos de vista” ou de “teorias”, à disposição de uma curiosidade eclética, desobrigada, sem inquietude. Assim: nem a obra destacada de sua contemporaneidade nem tampouco nela enterrada. Mas também recusará assumir a obra passada como esboço provisório de uma única doutrina em curso, como se houvera sistema filosófico imaginário, contemporâneo de todas as filosofias e que delas se arvora o juiz, decidindo o que de cada uma permanecerá como parágrafo das realizações de um Espírito Absoluto: mantida a obra sem a sua integridade, dirá Merleau-Ponty, sem suas palavras e sem seus conceitos, sem a estrutura que a oferece como um trabalho articulado, nós a perdemos inteiramente.
Só então é que se exprimirá afirmativamente e deste modo:
Certa vez, Sartre opôs o Descartes que existiu, viveu esta vida, pronunciou estas palavras, escreveu estas obras — bloco inquebrantável, limite indestrutível — ao cartesianismo, “filosofia errante” que muda incessantemente nas mãos dos herdeiros. Tinha razão. Nenhuma fronteira indica até onde vai Descartes e onde começam seus sucessores, e enumerar os pensamentos que estão em Descartes e os que estão neles teria tanto sentido quanto fazer o inventário de uma língua. Feitas essas restrições, realmente o que conta é a vida pensante que chamamos Descartes e cujas obras são a esteira, felizmente conservada. Se Descartes está presente é porque, rodeado de circunstâncias hoje abolidas, atormentado com preocupações e com algumas ilusões de seu tempo, respondeu a esses acasos de tal maneira que nos ensina a responder aos nossos, embora diferentes, e diferente nossa resposta.
Ninguém entra para o Panteão dos filósofos por se dedicar somente a ter apenas pensamentos eternos, pois o tom da verdade só vibra longamente quando o autor interpela sua vida. Não é o espírito das filosofias do passado que sobrevive, como se fossem momentos do sistema final. Seu acesso ao intemporal não é entrada para o museu. Ou duram com suas verdades e loucuras, como tentativas globais, ou não duram de modo algum. O próprio Hegel, esta cabeça que quis conter o Ser, vive hoje e nos dá o que pensar, não somente por suas profundezas, mas também por suas manias e tiques. Não há uma filosofia que contenha todas as filosofias, em certos momentos, a filosofia está inteira em cada uma delas. Para retomar a expressão famosa: seu centro está em toda parte e sua circunferência, em nenhuma.[13] Um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem não os viveu e até humanizar o presente. A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de arte. Para quem sabe ouvi-la é desalienadora, pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem-criador de cultura com a mísera figura do consumidor atual.
Hoje, fala-se tanto em criatividade, mas, onde estão as brincadeiras, os jogos, os cantos e danças de outrora? Nas lembranças de velhos aparecem e nos surpreendem pela sua riqueza. O velho, de um lado, busca a confirmação do que se passou com seus coetâneos, em testemunhos escritos ou orais, investiga, pesquisa, confronta esse tesouro de que é guardião. De outro lado, recupera o tempo que correu e aquelas coisas que, quando as perdemos, nos fazem sentir diminuir e morrer.[14]
ENRAIZAMENTO E ATENÇÃO (APROXIMAÇÕES)
I
Num texto de 1943 e de imenso significado, Simone Weil, com a inteligência insuflada pelos ânimos da resistência ao nazismo, debruça-se vigorosamente sobre a questão do enraizamento, expressão, que inesquecivelmente celebrizou:
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber quase que a totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios de que faz parte naturalmente.
As trocas de influências entre meios muito diferentes não são menos indispensáveis das que o enraizamento no ambiente natural. Mas um determinado meio deve receber uma influência exterior, não como uma importação, mas como um estimulante que torne sua própria vida mais intensa. As importações exteriores só devem alimentar depois de serem digeridas. E os indivíduos que formam o meio, só através dele as devem receber. Quando um pintor de real valor vai a um museu, confirma sua originalidade. Deve acontecer o mesmo com as várias populações do globo terrestre e os diferentes meios sociais.[15]
Numa pequena canção de Philip Glass[16] e Suzanne Vega, confirma-se o interesse das estéticas minimalistas em atingir experiências limites, em que o ainda humano em nós quase agoniza, agarrando-se por um triz a seus alicerces irredutíveis, na fronteira subjetiva do ser e do nada. Aí, onde tendendo assintoticamente à suspensão de toda cultura, esbarramos porém no extremo mínimo do que somos, extremo irrenunciável do que ainda nos faz ser. O título da partitura, Freezing, prepara o nosso encontro com um. texto pungente, em que podemos reconhecer a marcha imaginada de um desenraizamento:
Freezing
If you had no name
If you had no history
If you had no books
If you had no family
If it were only you
Naked on the grass
Who would you be then?
This is what he asked
And I said I wasn’t really sure
But I would probably be
Cold
And now I’m freezing
Freezing
Congelando
Se não tivesses nome
Se não tivesses história
Se não tivesses livros
Se não tivesses família
Se fosses apenas tu
Nu sobre a grama
Quem serias então?
Eis o que ele perguntou
E eu disse não ter realmente certeza
Mas eu provavelmente estaria
Frio
E agora estou congelando
Congelando
Freezing, como forma inglesa abreviada, pode referir-se especificamente ao ponto termométrico de solidificação da água: estado em que sua energia cinética tende ao mínimo. Freezing. Em sua forma completa: Freezing point, ou seja: o grau zero na escala Celsius, ponto em que o que era fluente é gelo. O título da canção contrasta com o do álbum: Songs from liquid days (Canções de dias líquidos).
Entre os antigos chineses, no período anterior à dinastia Chou (1150-249 a.C.), cunharam-se os Kua, signos muito singelos, figuras lineares mas de valor semiótico surpreendente, dada a sua larga versatilidade: aludem à natureza ou à história, ao que está à nossa volta ou ao que nos é interior, às paixões ou à liberdade, ao que faz cair e ao que ascende. O mundo humano e o mundo das coisas aparecendo como irreversivelmente imbricados, reciprocamente modificados, um a atrair o outro: ambos atravessados pelas tendências de atividade e repouso, movimento e inércia, ligação e desprendimenio, que polarizam a mutação do universo todo — universo que, assim, já não é apenas substancial nem apenas anímico. Nos comentários que acompanham os Kua, comentários que então mais tarde a tradição Chou e o próprio Confúcio lhes acrescentaram, procurando evitar o obscurecimento do poder expressivo daqueles significantes, poderemos encontrar a ideia de existência (tal como ocidentalmente a entendemos) muitas vezes aproximada da imagem de águas frescas e suaves, em sua descida fluida desde a nascente: ante nada recuam, como também nada arrastam: mergulham, ladeiam, acariciam, conformam-se, desviam, insistentes, em seu vigor terno e livre.[17]
Este movimento áqueo parece apoiado em marcos que, se excessivamente resistentes, represam e estagnam, mas, se ausentes, impedem a formulação de uma fisionomia: a diversidade cederia ao traço retilíneo das águas conduzidas pelo único motivo da gravidade: não haveria caminhos, nuanças, ondulações, trechos, pequenos lagos, quedas irisadas, formações da natureza: desamparadas, as águas não adquiririam perfis. Metáfora da condição paradoxal dos homens na cultura: achatados pelo contorno da ideologia, aprisionam-se nas convenções e, nas instituições, ao mesmo tempo, se despossuídos de quaisquer marcos, não teriam um ponto desde onde fazer partir o desejo: estariam apáticos, letárgicos, o desejo desnutrido de materiais e códigos de cultura estaria paralisado, congelado: banzo: a saudade mortal da Africa.
Banzo: saudade ontológica da cultura.
Somos um país de tradição escravagista. Lemos em Gilberto Freire[18] — ainda que numa obra algo negligente quanto a este aspecto — que houve negros “que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros”, houve os que ficaram penando ausentes em profunda melancolia, abusando da aguardente, do fumo, masturbando-se compulsivamente como se na tentativa de recuperar um sentimento (perdido) de si mesmos. Houve os que definharam até a morte, recusando-se a comer, recusando-se às coisas já destituídas de condimentos simbólicos: recusa da condição estranha e hostil, retraimento de um mundo onde a subjetividade não encontrava mais onde ecoar.
O desenraizamento, percebe Simone Weil,[19]é a “mais perigosa doença das sociedades humanas, porque se multiplica a si própria. Seres realmente desenraizados só têm dois comportamentos possíveis: ou caem numa inércia de alma quase equivalente à morte […] ou se lançam numa atividade que tende sempre a desenraizar, muitas vezes por métodos violentíssimos, os que ainda não estejam desenraizados ou que o estejam só em parte”. Lembro os caçadores negros de negros fugitivos. Simone lembra os espanhóis e os ingleses (poderíamos incluir portugueses) que a partir do século XVI massacraram ou sujeitaram populações negras ou índias, alertando nossa atenção: “eram aventureiros quase sem contato com a vida profunda de seus países”. Dirá também: “Os alemães, quando Hitler se apoderou deles, eram realmente, como ele o repetia continuamente, uma nação de proletários, isto é, de desenraizados; a humilhação de 1918, a inflação, a industrialização a todo custo e sobretudo a extrema gravidade da crise de desemprego trouxeram para eles a doença moral num grau tão agudo que acarretou a irresponsabilidade”. E concluirá: “Quem é desenraizado desenraíza. Quem é enraizado não desenraíza” .
Lembro o banzo, lembro os negros capitães-do-mato e lembro, para nosso alento e coragem, a resistência dos quilombos.
II
Intriga, após linhas em que Simone Weil parece tão desinibidamente pensar o enraizamento, reencontrar sua observação de que se trata de uma das necessidades humanas (um direito humano fundamental) mais difíceis de definir.
Definir sugere a realização de uma operação instituinte, em geral estabelecida por uma razão ativa que lança as vigas de uma entidade significativa, até então indiscriminada, desapercebida. Ocorre que definir o enraizamento é como pretender configurar o que precisamente nos configura, conter uma realidade que mais nos contém do que nós a ela. Trata-se de uma necessidade humana de tal maneira basal que nos solicita, primordialmente, num nível como que pré-reflexivo, onde para aquém de um cogito separado, ensimesmado, habituado a desprender-se dos objetos e a fundá-los, somos silêncio e atenção.
Na atenção, Simone Weil[20] reconhece o motor das funções poéticas, criadoras. Para ela, a atenção é o esforço não apegado ao objeto, é:
Recuar diante do objeto que perseguimos. Só o que é indireto [não imediato] é eficaz. Nada se faz se não se recuou primeiramente.
Arrancando pelo cacho fazemos os bagos cair no chão.
Roland Barthes,[21] após atravessar a ideia nietzschiana de compaixão como união pelo sofrimento, unidade de sofrimento, comenta:
Sofrerei portanto com o outro, mas sem me apoiar, sem me perder. essa conduta, ao mesmo tempo muito afetiva e muito vigiada, muito amorosa e muito policiada, pode-se dar um nome: é a delicadeza: ela é como a forma “sã” (civilizada, artística) da compaixão. (Atê é a deusa da perdição, mas Platão fala da delicadeza de Atê: seu pé é alado, toca levemente.)
Estar atento, sugere-nos Simone Weil,[22] é beatitude: é como comer — atingir as coisas em sua presença real, consistente, diferente de nós e digeri-las —, mas comer com os olhos… sem destruir. Alegria difícil, mas que se chama alegria: “estado no qual olhar é comer”.
Diferença e proximidade: eis o terreno em que brota atenção. Terreno em que não haja o sacrifício do outro à nossa lógica e nem dela a ele, como Merleau-Ponty[23] gostava de supor na “experiência etnológica, incessante prova de si pelo outro e do outro por si”, onde pudessem “encontrar lugar o ponto de vista do indígena, o do civilizado e os erros de um sobre o outro”:
A etnologia não é uma especialidade definida por um objeto particular — as sociedades “primitivas” -, é a maneira de pensar que se impõe quando o objeto é “outro” e que exige nossa própria transformação. Assim, também viramos etnólogos de nossa própria sociedade, se tomarmos distância com relação a ela […]. Método singular: trata-se de aprender a ver o que é nosso como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro (…) Verdade e erro habitam juntos na intersecção de duas culturas, seja porque nossa formação nos esconde aquilo que há para conhecer, seja porque, ao contrário, ela se torna, na pesquisa de campo, um meio para sitiar as diferenças do outro.
A atenção solicita um espírito disponível, “está ligada ao desejo. Não à vontade, mas ao desejo. Ou mais exatamente, ao consentimento”.[24]
A vontade só domina alguns movimentos de alguns músculos, associados à representação do deslocamento dos objetos próximos. Posso querer colocar a mão espalmada sobre a mesa. Se a pureza interior, ou a inspiração, ou a verdade no pensamento estivessem necessariamente associadas a atitudes desse gênero, poderiam ser objeto da vontade. Como não é assim, só podemos implorá-las. Implorá-las é acreditar que temos um Pai nos céus. Ou parar de desejá-las? Haverá coisa pior? A súplica interior é a única razoável, pois evita endurecer músculos que não têm nada a ver com a questão. Haverá algo mais tolo que endurecer os músculos e serrar os maxilares a propósito de virtude ou de poesia, ou da solução de um problema? Será que a atenção é outra coisa?
O orgulho é esse enrijecimento. Falta graça (nos dois sentidos da palavra) ao orgulhoso.[25]
- graça como espontânea elegância, desembaraço sem artifícios, atrativo de gestos e expressões muito pessoais; e
- graça como dom, como o que gratuitamente vem; não o incausado mas o que tem determinações, porém determinações abertas, incontroláveis.
A pensadora francesa e militante operária apela radicalmente para o empenho da atenção: não prescinde do pensamento, não há nela qualquer laxismo intelectual, todavia insere a reflexão em motivações que não serão tanto epistemológicas quanto sobretudo existenciais e políticas. Assim é que a atenção de Simone Weil nos oferece palavras de ainda notável contemporaneidade:
– Assim é que reconheceu o desenraizamento não apenas na conquista militar ou na violência colonialista, mas também no ethos capitalista:[26]
O dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os motivos pelo desejo de ganhar. Vence sem dificuldade os outros motivos porque pede um esforço de atenção muito menor. Nada mais claro e simples que uma cifra.
E ainda:
Existe uma condição social inteira e continuamente presa ao dinheiro, é a do assalariado, sobretudo desde que o salário por empreitada obriga cada operário a ter sua atenção sempre voltada para a contagem dos tostões. Nessa condição social é que a doença do desenraiza-mento é mais aguda.
– Assim é que pensou o conceito de revolução, referindo-o às urgências antropológicas do enraizamento:[27]
[…] sob o nome de revolução, e muitas vezes sob palavras de ordem e temas de propaganda idênticos, se dissimulam dois conceitos totalmente opostos. Um consiste em transformar a sociedade de forma que os operários possam ter nela suas raízes; o outro em estender a toda a sociedade a doença do desenraizamento que foi imposta aos operários. Não se deve dizer ou pensar que a segunda operação possa ser algum dia um prelúdio para a primeira; é errado. São duas direções opostas, que não se encontram.
[…] Seria vão voltar as costas ao passado para só pensar no futuro. É uma ilusão perigosa acreditar que haja aí uma possibilidade. A oposição entre o futuro e o passado é absurda. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; nós é que, para construí-lo, devemos dar-lhe tudo, dar-lhe nossa própria vida. Mas para dar é preciso ter, e não temos outra vida, outra seiva a não ser os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós. De todas as necessidades da alma humana não há outra máis vital quern o passado.
O amor pelo passado não tem nada a ver com uma orientação reacionária. Como todas as atividades humanas, a revolução extrai toda a seiva de uma tradição.
[…] É preciso […] encarar, antes de mais nada, em toda inovação política, jurídica ou técnica suscetível de repercussões sociais, uma conciliação que permita aos seres humanos reencontrarem suas raízes.
Isso não significa confiná-los. Pelo contrário, em tempo algum o arejamento foi mais indispensável. O enraizamento e a multiplicação dos contatos são complementares.
[…]
Não é com medidas jurídicas que se destruirá a condição proletária, quer se trate da nacionalização das indústrias-chave, quer da supressão da propriedade privada, ou de poderes concedidos aos sindicatos para a conclusão de convenções coletivas, ou de delegados de fábricas, ou do controle de emprego. Todas as medidas propostas, tenham a etiqueta revolucionária ou reformista, são puramente jurídicas, e não é no plano jurídico que se situam a infelicidade dos operários e o remédio para essa infelicidade. Marx o teriacompreendido perfeitamente pela probidade com seu próprio pensamento, pois é uma evidência que salta aos olhos nas melhores páginas do Capital.
Não se pode procurar nas reivindicações dos operários o remédio para a sua infelicidade. Mergulhados na desgraça de corpo e alma, inclusive a imaginação, como iriam eles imaginar algo que não trouxesse essa marca? Se fazem um esforço violento para se livrarem, caem em sonhos apocalíticos, ou procuram uma compensação num imperialismo operário que desencoraja tanto quanto o imperialismo nacional.
O que se pode procurar em suas reivindicações é o sinal dos seus sofrimentos. Ora, as reivindicações exprimem todas, ou quase todas, o sofrimento do desenraizamento. Se querem controle do emprego e a nacionalização, é porque estão obcecados pelo medo do desenrai-zamento total do desemprego. Se querem abolir a propriedade privada, é porque estão cansados de serem admitidos no lugar de trabalho como imigrantes que se deixam entrar por favor. Aí está também a mola psicológica das ocupações de fábricas em junho de 1936. Durante alguns dias eles sentiram uma alegria pura, sem mistura, de estarem em suas casas nesses mesmos lugares; uma alegria de criança que não quer pensar no amanhã. Ninguém podia razoavelmente crer que o amanhã seria bom.
[…]
É preciso mudar o regime da atenção no decorrer das horas de trabalho, a natureza dos estímulos que levam a vencer a preguiça ou o esgotamento — estímulos que hoje são apenas medo e os tostões —, a natureza da obediência, a quantidade demasiado fraca de iniciativa, de habilidade e de reflexão exigida dos operários, a impossibilidade em que estão de tomarem parte pelo pensamento e pelo sentimento no conjunto do trabalho da empresa, a ignorância, às vezes completa, do valor, da utilidade social, do destino das coisas que fabricam, a separação completa entre a vida do trabalho e a vida familiar. Seria possível alongar a lista.
– Assim é que Simone Weil mergulhou no exame, entre outros, das máquinas burguesa:[28]
[…] se há uma certeza que apareça com uma força irresistível nos estudos de. Marx, é de que uma mudança nas relações das classes será pura ilusão se não for acompanhada pela transformação da técnica, transformação cristalizada em novas máquinas.
Simone conheceu na carne os sofrimentos da condição operária, tanto na fábrica quanto na mina. Conheceu, como exprime Ecléa Bosi, o ritmo natural violentado, quando o organismo é abatido, pelo ritmo da máquina, também fazendo romper os ritmos sociais — as horas de encontro, de refeição, perdendo qualquer coerência.[29] Nas palavras da psicóloga:
Quando descreve “essa horrenda britadora que agita com sacudidas ininterruptas durante oito horas o homem que está agarrado nela”, é porque trabalhou com ela numa mina dos arredores onde procurou se empregar. Percebe que essa máquina não é modelada sobre a natureza humana mas sobre a natureza do carvão e do ar comprimido, e os movimentos têm que seguir um ritmo estranho ao ritmo do movimento da vida. A britadora dobra violentamente o corpo humano a seu serviço.
Para abolir tal servidão não bastaria ao trabalhador apropriar-se da mina: seria preciso uma revolução na técnica. Certas máquinas são por si mesmas a opressão.[30]
A atenção não é, pois, algum procedimento intuitivo que dispensaria, inusituado, o enfrentamento inteligente das sociedades humanas. Tampouco seria momento primeiro, ainda que decisivo, no método da razão. A atenção, em Simone Weil, sugere mais um campo existencial onde radicar a descoberta do mundo: uma posição subjetiva, um lugar político desde onde a razão se abre e se alarga. Insistir na atenção não significa, assim, o desprestígio da razão nem mera epistemologia. Significa deixar agir a inserção da razão numa escolha, num desejo: acolhimento do seu engajamento, destronando-a do lugar metafísico donde imaginava evidenciar neutralmente o absoluto. Não é por acaso que o título de um pequeno livro biográfico dedicado à filósofa da atenção é: Simone Weil, a razão dos vencidos. Deste lindo livrinho, salta aos olhos uma passagem de infância:
Seu tio-avô contava como na Itália os nobres eram simples. Imagine-se que um marquês durante uma recepção a que ele presenciou, conversava intimamente com sua velha ama tratando-a por tu. Ouvindo de seu canto, a edificante história, Simone pergunta: — E a velha ama, ela também tratava por tu o Marquês?[31]
A atenção, em Simone Weil, é o que faz ver justamente aquilo que á ideologia põe à margem, tendo dirigido nosso olhar e interesse apenas para as imagens oficiais, ocultando contradições e impasses, estreitando o âmbito das fisionomias humanas dignificadas — excluindo a empregada-ama.
OLHAR E MEMÓRIA
I
O destino de homens e mulheres é político. Não é puramente natural: está condicionado pelo poder de organizarmos coletivamente a vida à nossa volta, organizarmos de maneira mais ou menos livre as relações com a natureza, as relações de trabalho, as relações de sobrevivência e de convivência. O modo de organizá-las, mais ou menos espontâneo, é índice de subjetividade. Há uma interioridade inscrita nas formas sociais de existência, húmus onde a subjetividade se alimenta e desabrocha, talvez solo árido onde padece e se contrai ou se enrijece.
Há correntezas do passado, germinadoras da vida intersubjetiva e que investiram as matérias sociais, imbuindo os objetos, os lugares, os seres. Correntezas do passado que, como exprime Ecléa Bosi, “podem reviver numa rua, numa sala, em certas pessoas, como ilhas efêmeras de um estilo, de uma maneira de pensar, sentir, falar, que são resquícios de outras épocas. Há maneiras de tratar um doente, de arrumar as camas, de cultivar um jardim, de executar um trabalho de agulha, de preparar um alimento que obedecem fielmente aos ditames de outrora”.[32] E sustentam a ética, a sabedoria e a técnica de uma gente.
A memória rodeia, roça e penetra os materiais de cultura, neles se apoiando, neles se agarrando e se arraigando, compondo o campo de uma economia, de uma geografia e de uma arquitetura intrinsecamente existenciais: aí onde a paisagem humana convida não ao olhar insolente, desdenhoso, dos vínculos consumistas, em que as coisas todas, intercambiáveis, reduzidas ao espectro de uma mercadoria, perderam sua intimidade, sua atmosfera; mas aí onde a paisagem humana convida à fruição de um olhar semiológico, comovido e distanciado, que toma as coisas em seu valor distintivo.
Merleau-Ponty,[33] em suas reflexões em torno do marxismo, insiste numa compreensão em que a vida econômica contaria não como “uma ordem separada a que as outras se reduzem”. Dirá que é na vida econômica “que as concepções se inscrevem e se estabilizam. Mais seguramente que os livros e os ensinamentos, os modos do trabalho transmitem às gerações maneiras de ser novas com relação às precedentes. É verdade que num dado momento, em uma sociedade dada, a maneira de trabalhar exprime a estrutura mental e moral […]. Mas, ao mesmo tempo, a vida econômica é o suporte histórico das estruturas mentais […]” . As relações inter-humanas se cristalizam e se generalizam no modo de produção social da existência; “os fenômenos da civilização, as concepções do direito, encontram nos fenômenos econômicos um ancoradouro histórico […]”. Os fenômenos econômicos: “Não explicam tudo o que se passa, mas nenhum progresso na ordem da cultura, nenhum passo histórico é possível sem um certo arranjo da economia, que é uma espécie de esquema ou símbolo material deles”. A vida, em sua materialidade, compõe o esboço visível de um tempo e, sem esgotar o sentido de uma civilização, abre-se ao nosso trabalho interpretativo.
A atenção para o efetivo, o material, não reclama uma razão empirista, de olhos imediatos, que viesse apenas frisar nas coisas sentidos objetivos, unívocos, invariáveis. Tampouco reclama uma razão transcendental, sem olhos, que, por sua vez, fosse doadora de sentidos essenciais às coisas. Mas a atenção para o efetivo, o material, reclama uma razão de olhos inseridos e acolhedores, que tece sentidos sempre entranhados no interior de nossos encontros concretos com o mundo humano: aí onde pensamos por perspectivas e não metafisicamente.
Ou seja, no encontro do olhar e da memória, houve um deslocamento para aquém da mira dualista — a favorecer ou uma psicologia idealista ou uma sociologia positivista — e, de outra forma, descobrimo-nos acolhendo sem incompatibilidades tanto a dimensão material da vida intersubjetiva quanto a dimensão significante da vida concreta: aí, onde as realidades humanas são tomadas, diriam os lacanianos, como realidades marcadas pela letra: suas significações devendo ser buscadas em elementos muito efetivos, muito materiais, mas elementos que “um a um nada significam, menos exprimem um sentido do que marcam uma variação de sentido em relação aos demais”[34] elementos que estruturam uma rede de significantes, a impressionar e solicitar nossa atenção sob ângulos diversos, cada um a percorrer um dos muitos caminhos (mas não quaisquer caminhos) de significação do que somos. A malha visível de uma cultura faz imergir na necessidade de sua trama as nossas observações, hospedando o muito que se poderá dizer acerca dela e também balizando o que não se poderá dizer: obriga à inerência sem proibir múltiplas interpretações, mas sempre solicitando o vínculo dos argumentos com as possibilidades e limites de suas linhas significantes.
II
Importa alertar, então, para os lastros mnêmicos que se insinuam nas matérias sociais à nossa volta, lastros muito tênues de memória mas decisivos no firmamento da cultura de um povo, lastros que suscitam e suportam a evocação do que somos; lastros muito vulneráveis, perecíveis num contexto de violência militar, econômica ou psicológica.
Em Tristes trópicos, Claude Lévi-Strauss descreve seu fortíssimo impacto quando recém-chegado à aldeia Kejara, nos limites com a Bolívia, uma das três aldeias bororo do rio Vermelho onde a ação colonizadora ainda não havia se exercido intensamente, dado o penosíssimo acesso à região:
Como passamos, não sei; a viagem permanece em minha memória como um pesadelo confuso: acampamentos intermináveis para vencer alguns metros de obstáculo, carregamentos e descarregamentos, paradas em que estávamos tão esgotados pelo deslocamento dos troncos diante do caminhão, cada vez que ele conseguia progredir uns metros, que adormecíamos no chão, para ser, em plena noite, acordados pelo ronco vindo das profundezas da terra: eram as térmitas que subiam para o assalto às nossas roupas e que já cobriam de um lençol fervilhante o exterior das capas de borracha que nos serviam de impermeáveis e de tapetes.[35]
As habitações Kejara já revelavam alguma influência neobrasileira — plano retangular e não mais oval, distinção entre paredes e cobertura ao invés do teto arredondado descendo quase até o solo —, mas conservavam as dimensões e os materiais (ramos de palmas) tradicionais:
[…] habitações cujo tamanho as torna majestosas, apesar da sua fragilidade; utilizando materiais e técnicas que consideramos medíocres: visto que essas moradias são menos edificadas do que entrançadas, tecidas, bordadas e desgastadas pelo uso; em lugar de esmagar o habitante sob a massa indiferente das pedras, elas reagem com flexibilidade à sua presença e aos seus movimentos; ao contrário do que acontece entre nós, permanecem sempre submetidas ao homem.[36]
O intérprete do antropólogo e seu principal informante é assim apresentado:
Esse homem, com mais ou menos 35 anos, falava regularmente o português. Dizia que soubera ler e escrever (embora fosse então incapaz de fazê-lo), fruto de sua educação na missão. Orgulhosos de seu triunfo, os padres o tinham enviado a Roma, onde fora recebido pelo papa. Na sua volta, quiseram, segundo parece, casá-lo cristãmente e sem observar as regras tradicionais. Essa tentativa provocou nele uma crise espiritual de que saiu reconquistado pelo velho ideal bororo: foi instalar-se em Kejara onde levava, há dez ou quinze anos, uma vida exemplar de selvagem. Inteiramente nu, pintado de vermelho, o nariz e o lábio inferior perfurados pelos tembetás, emplumado, o índio que vira o papa revelou-se maravilhoso professor de sociologia bororo.[37]
Nesta sociedade ainda viva e fiel à sua índole, Lévi-Strauss encontra os bororo de Kejara organizados segundo aldeia ainda circular. Eram 26 cabanas, dispostas numa só fileira, contornando o baitemannageo — grande casa central onde dormem os homens solteiros, onde se encontram todos os homens (quando não ocupados com a caça, pesca ou cerimônias no terreiro da dança) e aonde o acesso das mulheres é rigorosamente proibido.
Além de envolver-se nas atividades bororo, Lévi-Strauss passava os dias a circular de casa em casa, recenseando os habitantes e estabelecendo seu estado civil. Pôde então perceber o espaço da aldeia dividido em diferentes setores, a sustentar um intrincado jogo de privilégios, de graus hierárquicos, de regras cerimoniais, de direitos e obrigações recíprocos. Com varinhas, no solo, traçou as linhas ideais que pareciam recortar a clareira da aldeia, tornando visível algo do imaginário geográfico bororo.
Uma das linhas, diâmetro paralelo ao rio Vermelho, divide os bororo em dois grupos: de um lado os cera (pronuncia-se “tchera”), de outro os tugaré:
[…] a divisão é essencial por duas razões: primeiro, um indivíduo pertence sempre à mesma metade que sua mãe; a seguir, não pode desposar senão um membro da outra metade. Se a minha mãe for cera, eu sou também, e a minha mulher será tugaré.[38]
Ocorre assim que:
As mulheres habitam e herdam a casa onde nasceram. No momento do casamento, um indígena masculino atravessa, pois, a clareira, franqueia o diâmetro imaginário que separa as metades e vai morar no outro lado. A casa dos homens tempera esse desenraizamento, uma vez que a sua posição central ocupa território das duas metades. Mas as regras de residência explicam que a porta que dá para um território cera se chama porta tugaré e a que dá para o território tugaré, porta cera.[39]
Ou seja, o homem casado, de um dos lados, entra portanto no baitemannageo pela porta cujo nome é o do seu lado materno(!):
Nas casas de família, um homem casado nunca se sente na sua própria casa: a casa em que nasceu e à qual se ligam suas recordações de infância está situada do outro lado: é a casa da sua mãe e das suas irmãs, agora habitada pelos seus maridos. No entanto, ele volta lá sempre que quer: tendo a certeza de ser sempre bem acolhido.[40]
Nos momentos em que “a atmosfera do domicílio conjugal parece demasiado pesada” para o esposo (por exemplo, quando os irmãos de sua mulher aí estão em visita, situação que pode instigar no anfitrião a nostalgia do que a maturidade transformou), o homem casado pode escolher dormir no baitemannageo, onde reencontra suas recordações de adolescente ou a camaradagem masculina, as intrigas sobre raparigas ou o ambiente religioso, tudo a amenizar as saudades de seu coração adulto.
A divisão da tribo em dois setores não regula apenas os casamentos, mas também Outros aspectos da vida social:
Todas as vezes que um membro de uma metade se torna sujeito de direito ou de dever, isso verifica-se em proveito ou com a ajuda da outra metade. Assim, os funerais de um cera são conduzidos pelos tugaré, e reciprocamente. As duas metades da aldeia são portanto como parceiros e todo o ato social ou religioso implica a ajuda do que está em frente e que desempenha o papel complementar daquele a quem esse ato competia.[41]
E eis finalmente o que tragicamente observa Lévi-Strauss quanto às aldeias mais colonizadas:
A distribuição circular das cabanas em torno da casa dos homens é de tal importância no que se refere à vida social e à prática do culto que os missionários salesianos da região do rio das Graças logo perceberam que o meio mais seguro de converter os bororo consistia em fazê-los abandonar sua aldeia por outra em que as casas estivessem dispostas em linhas paralelas. Desorientados com relação aos pontos cardeais, privados do plano que fornece um argumento ao seu saber, os indígenas perdem rapidamente o senso das tradições, como se seus sistemas social e religioso [… indissociáveis] fossem complicados demais para dispensar o esquema que o plano da aldeia tornava patente e cujos contornos os seus gestos cotidianos refrescavam perpetuamente.[42]
Quando Simone Weil[43] escreveu sobre os povos da região d’Oc, cujo espírito cintilou no século XII e que foram aniquilados na avalanche das cruzadas contra os cátaros, acentuou não haver nada mais cruel em relação ao passado que o lugar-comum segundo o qual a força é impotente para destruir os valores mais profundos e elevados, aqueles que estavam encarnados em circunstâncias preciosas nunca facilmente repostas pela história, aqueles que correspondem “a aspirações que não desapareceram e que não devemos deixar desaparecer, mesmo que não possamos mais esperar satisfazê-las”. Este preconceito bem-intencionado que se apressa em considerar toda perda reparável, mata pela segunda vez o que foi destruído e nos associa com a crueldade das armas ou do Capital: otimismo maníaco que teme a memória como teme a reaparição dos mortos, podend nela consentir apenas como “saudosismo estéril”, “conservantismo” ou “mórbida nostalgia”. E, de fato, é inquietante a memória quando ressuscita a voz dos que foram apagados, quando revela o que não conhecemos e não vivemos mais. Mas é ela também nosso único instrumento para reencontrar e habitar ocasiões outra vez favoráveis.
Ecléa não será menos enfática: “Como na natureza, as belas organizações são irreversíveis, quando se perdem não se reconstituem”.[44] E adverte sobre o quanto a mobilidade extrema entre as famílias pobres, migrantes ou nômade-urbanas, impede a sedimentação das pérolas do passado: “[…] não há memória para aqueles a quem nada pertence. Tudo o que se trabalhou, criou, lutou, a crônica do indivíduo e da família, vão cair no anonimato ao fim de seu percurso errante. A violência que separou suas articulações, desconjuntou seus esforços, esbofeteou sua esperança, espoliou também a lembrança de seus feitos”.[45]
Reconhecemos, então, a organização social da vida humana não como uma solução exterior e funcional de necessidades apenas econômicas, função estrita da sobrevivência natural, mas, mais profundamente, descobriremos os objetos e as práticas sociais — que traçam nossa existência — como internamente motivados, solicitando do observador, mais além da objetividade, atenção para os suportes efetivos da memória, ordenadores empíricos da vida intersubjetiva, apoios consistentes do campo simbólico em que brincam, trabalham e se encontram os homens. Numa palavra: referências concretas de nossas iniciativas de conservação ou de mudança.
O mesmo esforço do antropólogo, desta vez dirigido para a urbanidade, é retomado por Ecléa Bosi quando faz perceber a substância subjetiva, intransferível, da casa, dos objetos de intimidade, das pedras da cidade, dos pedaços de bairro. Nas citações que se seguem a autora percorre, a seu modo, caminho aberto por Maurice Halbwachs quando pôs as coisas humanas em perspectiva social e mnêmica:
A casa[46]
A casa materna é uma presença constante nas autobiografias. Nem sempre é a primeira casa que se conheceu, mas é aquela em que vivemos os momentos mais importantes da infância. Ela é o centro geométrico do mundo, a cidade cresce a partir dela, em todas as direções. Fixamos a casa com as dimensões que ela teve para nós e causa espanto a redução que sofre quando vamos revê-la com os olhos de adulto.
[…]
O espaço da primeira infância pode não transpor os limites da casa materna, do quintal, de um pedaço de rua, de bairro. Seu espaço nos parece enorme, cheio de possibilidades de aventura. A janela que dá para um estreito canteiro abre-se para um jardim de sonho, o vão embaixo da escada é uma caverna para os dias de chuva.
[…]
A criança muito pequena pode ignorar que seu lar pertence a um mundo mais vasto. O espaço que ela vivenda, como o dos primitivos, é mítico, heterogêneo, habitado por influências mágicas. A mesa da família possui um lado onde é bom comer, o lado fasto onde senta-se mamãe e é agradável estar; no lado de lá, o retrato do tio-avô que me olha fixo, às vezes feroz, torna o lado nefasto onde eu recuso comida e choramingo. Tudo é tão penetrado de afetos, móveis, cantos, portas e desvãos, que mudar é perder uma parte de si mesmo; é deixar para trás lembranças que precisam desse ambiente para reviver. Para a criança que ainda não se relacionou com o mundo mais amplo, a mudança pode ter um caráter de ruptura e abandono.
[…]
Há sempre uma casa privilegiada que podemos descrever bem, em geral a casa da infância ou a primeira casa dos recém-casados onde começou uma nova vida. Alguns detalhes chamam a atenção: o número de janelas que dão para a frente, as ruas eram gostosas de se ver, nem havia a preocupação de isolamento, como hoje, em que altos muros mantêm a privacidade e escondem a fachada. Então, janelas que dão para a rua são encarecidas e, naturalmente, o quintal para a criança e o porão.
Os objetos [47]
Se a mobilidade e a contingência acompanham nosso viver e nossas interações, há algo que desejamos que permaneça imóvel, ao menos na velhice: o conjunto dos objetos que nos rodeiam. Nesse conjunto amamos a quietude, a disposição tácita mais expressiva. Mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade. Mais que da ordem e da beleza falam à nossa alma em sua doce língua natal. O arranjo de salas cujas cadeiras preparam o círculo das conversas amigas, como a cama prepara o repouso e a mesa de cabeceira os instantes prévios, o ritual antes do sono. A ordem desse espaço povoado nos une e nos separa da sociedade: é um elo familiar com sociedades do passado, pode nos defender da atual revivendo-nos outra. Quanto mais votados ao uso cotidiano, mais expressivos são os objetos: os metais se arredondam, se ova lam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos, tudo perde as arestas e se abranda.
São estes os objetos que Violette Morin chama de objetos biográficos, pois envelhecem com seu possuidor e se incorporam à sua vida: o relógio da família, a medalha do esportista, a máscara do etnólogo, o mapa-múndi do viajante. Cada um desses abjetos representa uma experiência vivida. Penetrar na casa em que estão é conhecer as aventuras afetivas de seus moradores. Daí vem a timidez que sentimos ao entrarmos em certos quartos em que os objetos nos revelam quem é seu dono.
[…]
Cada uma dessas coisas preciosas tem sua individualidade, seu nome, suas qualidades, seu poder. Os tecidos bordados com faces, olhos, figuras animais e humanas, as casas, as paredes decoradas são seres. Tudo fala, o teto, o fogo, as esculturas, as pinturas. Os pratos e as colheres com as quais se come solenemente, decoradas e esculpidas, blasonadas com o totem do clã, são coisas animadas, feéricas.
A casa onde se desenvolve uma criança é povoada de coisas também preciosas, que não têm preço. Nas lembranças pode aflorar a saudade de um objeto perdido de valor inestimável que, se fosse encontrado, traria de volta alguma qualidade da infância ou da juventude que se perdeu com ele.
Pedaços de cidade[48]
Esses lugares são descritos sob os vários pontos de vista. O sr. Ariosto, que ia ao centro da cidade com seu pai, observa: “Naquela época estavam fazendo a catedral da praça da Sé: vi quatro, seis operários carregando um bloco de pedra para a igreja”. Observa o sr. Amadeu que a catedral levou vinte anos para terminar, tanto que d. Brites nos conta um entrevero com os integralistas no largo da Sé: “Comunistas, socialistas, anarquistas, todos se juntaram e se esconderam na própria catedral que ainda estava com andaimes e desses andaimes mandaram pedra lá de cima”.
Alguns locais são evocados, pontos de atração da velha São Paulo: a chácara do Marengo, a Penha, centro de devoção, o Hotel d’Oeste, a Confeitaria Fasoli, a Casa Alemã, a Farmácia Baruel, o Parque Antártica onde os operários dançavam na grama nas festas do 1° de Maio, o Anhangabaú, o vale do povo nos comícios, o prédio Martinelli. Com todos esses pontos poderíamos desenhar um mapa afetivo da cidade: São Paulo era familiar como a palma da mão quando suas dimensões eram humanas. Seus velhos habitantes dizem: “ali no Gasômetro, ali na ponte do Bom Retiro, ali na Estação”, como se estivessem vendo tais logradouros, ali adiante… É com satisfação que dizem de muitos desses locais que “ainda estão lá”.
Todos se lembram das matas que estavam bem perto de seus bairros, as belas matas típicas do planalto paulista. As crianças atravessavam, para ir à escola, trilhas na mata, de lá vinham os bons ares, as estações certas do ano e as joaninhas vermelhas do jardim de d. Brites: “Quando a gente achava uma joaninha vermelha com pinta .preta, como a gente fazia festa! Os besouros vinham do mato próximo bater no lampião de gás. As joaninhas desapareceram, penso que é por falta de mato. Nunca mais vi uma joaninha […]. Quando eu era criança entre a Lapa e Santa Cecília havia mata”.
O fluxo da memória, ao jorrar, vem todo margeado por “pontos onde a significação da vida se concentrou: mudança de casa ou de lugar, morte de um parente, formatura, casamento, empregos, festas”.[49]Estes eventos e outros mais vão se apegando aos materiais que os acompanharam, vão modelando o sentido íntimo das coisas que durante anos resistiram a nós com sua alteridade e acabaram por tomar algo do que fomos.[50] Ao final, a morfologia da cidade, dos minúsculos objetos aos grandes bairros, foi subjetivamente diferenciada: as experiências, os afetos imanizaram os lugares, demarcando núcleos em torno dos quais vão gravitar as lembranças.
Há algo na disposição espacial que torna inteligível nossa posição no mundo, nossa relação com outros seres, o valor do nosso trabalho, nossa ligação com a natureza. Este relacionamento cria vínculos que as mudanças abalam, mas que persistem em nós como uma carência.[51]
Não somos nunca inteiramente dependentes, mas também nunca inteiramente independentes dos espaços da memória. Porém estes olhos que esposam as coisas não como coisas mas como significantes do que somos, esta virtude neles inscrita fica sempre na dependência de que os espaços de convivência da casa, do bairro, da cidade não sejam irreversivelmente destruídos pelo que não repõe outros espaços nutritivos de convivência. Um modo de produção da existência social que reduz o trânsito urbano e a ocupação dos bairros a exigências estritamente econômico-financeiras torna difícil, às vezes impossível, o reconhecimento dos trabalhos do imaginário na construção dos espaços da cidade: as paisagens sociais vão tendo violada sua numinosidade antropológica, a que sustenta os desejos de encontro, troca de experiências, histórias e mitos, danças e festas, jogos e comícios. Há que se estar atento, há que resistir toda vez que transformação é violência, encolhimento de tudo ao “predomínio das relações de dinheiro sobre outros vínculos sociais”.[52]
Destruída a parte de um bairro onde se prendiam lembranças da infância do seu morador, algo de si morre junto com as paredes ruídas, os jardins cimentados. Mas a tristeza do indivíduo não muda o curso das coisas: só o grupo pode resistir e recompor traços de sua vida passada. Só a inteligência e o trabalho de um grupo [uma sociedade de amigos de bairro, por exemplo] podem reconquistar as coisas preciosas que se perderam, enquanto estas são reconquistáveis. Quando não há essa resistência coletiva os indivíduos se dispersam e são lançados longe, as raízes partidas.[53]
McDONALD’S: O OLHAR AMNÊMICO
Num texto em que discute problemas ligados à cultura das classes pobres, Ecléa Bosi decidiu nos conduzir a um recanto descurado e mísero do município de Osasco, onde observa a resistência de seus moradores ao arranjo industrial do bairro. A resistência é reconhecida no modo mais ou menos inconsciente por que o espaço das casas (interno e externo) é recomposto pelas famílias trabalhadoras de modo a restituir o diverso, o peculiar, o humano em meio à paisagem que a fábrica tornara descolorida, homogênea e impessoal. Recomendo vivamente a leitura deste texto.[54]
E gostaria de convidar o leitor, desta vez, também a considerar a presença entre nós do grupo empresarial McDonald’s. Infelizmente, neste caso, não se pode prometer o consolo de outras formas de resistência.
I
A McDonald’s Corporation estende sua rede de lanchonetes intercontinentalmente. Onipresente, vai demarcando as cidades metropolitanas, absorvendo sobre si as referências dos caminhos citadinos, antes apoiadas nos pedaços de cidade que guardavam seus traços mais próprios. As torres sonoras de pequenas igrejas, a imponência da matriz ou dos teatros municipais, as casas destacadas pela originalidade de suas linhas e arranjos arquitetônicos, as esculturas de praça ou as árvores ainda resistentes, tudo que está embebido pelos feitos e contradições da cidade ou pelos casos e tramas ‘mais miúdos de sua gente vai-se substituindo, em sua tarefa simbólica, pelos mastros luminosos McDONALD’s HAMBURGERS – DRIVE THRU que, sem largueza subjetiva, remetem apenas à notificação de mais uma estação de consumo.
A arquitetura dos franchises (como são conhecidos, em linguagem empresarial, os estabelecimentos associados ao McDonald’s System), em suas cores primárias e plásticas, em suas formas e módulos mais ou menos fixos, é monótona e repetitiva, sempre a lembrar Walt Disney e suas histriônicas e tecnológicas casas de diversão, quer se imponham em São Paulo, nos cruzamentos das avenidas Rebouças e Henrique Schaumann ou nos da Washington Luís e Prof. Vicente Rao, quer numa paisagem semibalneária do Rio de Janeiro, quer num bulevar parisiense, num quarteirão nova-iorquino ou numa esquina romana. Vai estendendo sua glutoriaria mercadológica de traços permanentes: instala-se com desinibição e indiscrição tanto na ambiência oriental de Tóquio quanto na atmosfera latino-americana de Caracas, tanto em meio aos ares frios e de estações bem definidas na Holanda quanto em meio aos ventos oportunos de monções nas Filipinas, convivendo imperturbavelmente tanto com a pobreza extrema de Bancoc como com a opulência ostensiva de Washington, presente tanto nas cercanias dos conflitos sectários da Irlanda quanto nas cercanias dos conflitos revolucionários de El Salvador, instalando-se em meio à lógica familiar do liberalismo competitivo canadense como pretendendo imiscuir-se em meio ao socialismo burocrático iugoslavo. Acima da diversidade, a empresa impõe-se unívoca e abstrata, reduzindo a heterogeneidade espessa dos paladares à fome apressada de cheeseburgers.
II
Concentremo-nos no caso paulistano.
Em poucos dias, estabelecem-se nos bairros, com indiferença e arrogância, noticiando sua chegada extrínseca: Aqui, em breve, mais uma lanchonete do Grupo McDonald’s, como se respondendo com presteza à demanda aflita de cidadãos cheios de expectativa, quando na verdade a inserção destas unidades representa apenas um desafio de mercado, seqüência necessária da expansão multinacional do capital terciário.
As fundações McDonald’s seguem imperativos financeiros, a busca de uma classe média familial e consumidora, processo despojado da numinosidade das construções mais ou menos espontâneas, agarradas às necessidades fundamentais de uma gente, quando suas edificações reuniriam respostas materiais e ao mesmo tempo simbólicas às nossas carências: lá onde as realizações humanas atenderiam não a um corpo instintual mas a um corpo desejante. No entanto, estas lanchonetes imensas impõem-se suficientes, sem nenhum vínculo com a história do lugar, com os episódios concretos da cultura local, com as idiossincrasias muito eloqüentes da vizinhança. E, em breve, atraem para si as atenções comuns, logo viciando e simplificando a ordenação subjetiva do bairro: “ali, onde tem um McDonald’s”.
Os olhares, ante estes palácios de sanduíches, já não são mais solicitados a uma visão mnêmica, subjetivamente densa, que remeteria à interioridade das formas, a ponto de configurar radicais de cultura e desejo nas composições de um bairro, mas aqui o olhar é apanhado na imediatez da contemplação consumista: a visão é franzina, bidimensional, chapada, detida na fascinação superficial do luxo plástico norte-americano. Somos sorvidos no círculo dos espetáculos oportunistas que, num excesso abrupto de efeitos sinestésicos, exaurem a imaginação e a assimilação do que vemos: a emoção e o pensamento perdem o estilo de um trabalho poético e, deixando de burilar a imagem, de que gradualmente e penosamente se aproximariam, alienam sua qualidade significante. O que vemos parece não remeter a nada para além de si mesmo: espelho que pressiona e inclui nossos sentidos na alucinação de um paraíso disponível, exacerbando nossa ansiedade, induzindo satisfações de descarga e não de criação.
Aos poucos sela-se em nós uma intolerância estética, incapaz de fazer-nos debruçar sobre imagens não hollywoodianas (imagens não artificialmente encharcadas), a solicitar de nós a ternura de um olhar paciente e interpretativo, olhar de evocação, olhar de reconhecimento de nós mesmos pelo vislumbre da maneira de ser de um outro: olhar ético e curioso.
Como não entender, pois, que num contexto em que os olhos, socialmente detidos no imediato, exercem-se sem memória ou contra ela, também a memória se inibirá nos limites da nostalgia, ou seja: sem que possa mais dialogar com o presente, lança-se apenas à melancólica ruminação de um passado ausente do qual não consegue se desapegar para o livre e tenso jogo com a modernidade.
III
Mas prossigamos a atenção, agora encaminhando-nos para dentro destes postos coloridos de deglutição: no interior, a uniformidade impecável e fastidiosa dos objetos e dos gestos.
As mesas metálicas, plásticas (ou então, quando se quer sugerir monumentalidade, marmóreas, talvez de madeira esmaltada), recusam qualquer fissura, arranhão ou manchas que, caso contrário, logo seriam reparados pela reposição de idênticas placas de cobertura, sempre impedindo que se iniciassem nas marcas as insígnias do espaço humano, espaço habitado pelos sinais dos acasos e acidentes cotidianos.
No entanto, os objetos, sempre isentos, não parecem aguardar a chegada e ocupação dos indivíduos mas apenas a passagem indiscriminada dos consumidores, numa rotatividade ágil e dirigida que impede diferenciar e personalizar a decoração. As mesas e cadeiras freqüentemente fixas imobilizam a distribuição dos objetos segundo o esquema impessoal da instituição. A subjetividade está desamparada nestes espaços onde o olhar não logra reconhecê-la.
Sem acolher os rastros do tempo, toda a instituição se suspende num presente absoluto — diga-se de passagem que, até recentemente, o slogan brasileiro do McDonald’s era: Este é o momento. Que gostoso que é. Acima da história, permanece a instituição metafísica, despida de passado ou futuro, inteiramente atualizada no presente: fantástica metáfora da ordem política e da ciência burguesa que se pretendem definitivas e incondicionais.
A fórmica, com seus compostos fenólicos, assegura o isolamento térmico e elétrico; os pedaços de madeira, sobrecarregados pela película sintética e translúcida dos poliure-tanos com seu brilho separado e superposto, ou os pedaços de mármore polidíssimos e também resinados, tudo nos afasta do contato com as rugosidades e falhas das madeiras ou das pedras. Como se não fosse suficiente, então, estes edifícios imperecíveis, porque sempre restaurados, destinados à imortalidade do empreendimento calculado, ainda vão selando a impaciência contemporânea das crianças vorazes ante tudo que parece vulnerável, feio, incompleto, desarmonioso: impaciência ante os velhos, os loucos, os cegos, os surdos, os coxos; em seu desdobramento narcísico, impaciência ante a dificuldade, ante o desacerto, ante a ignorância, ante a crise, a doença, o desencontro, a arte; em seu desdobramento ideológico, impaciência ante a mulher, ante o negro, ante o índio, ante o trabalhador braçal.
Nestas casas do Fast food service, a agilidade, a prontidão, o automatismo, a ins-tantaneidade são norma, suprimindo-se qualquer demora quando, de outra forma, a lentidão justamente poderia assinalar o comparecimento humano no trato e tempero dos alimentos: no entanto, aqui, fica o sabor dos produtos a remeter apenas à participação eficaz e ilusionista dos engenhos mecânicos e eletroeletrônicos sofisticadíssimos, empobrecendo-se o prazer nesta gastronomia tecnológica, sem pessoa.
IV
Não há distâncias destes lugares: desviando-se de um, fica a chance de se reencontrar o gêmeo num bairro vizinho, poupando-se o consumidor da pena dos afastamentos, da perda, da separação. Pois poupado de tudo o que inquieta e incrementa o psiquismo, fica o cidadão também privado de acordar para os recantos únicos da cidade e que, combinando com nossas preferências e manias mais pessoais, ofertariam o abrigo de nossa própria singularidade, aqueles lugares cuja lembrança é uma saudade e uma alegria insubstituíveis.
Ante estas lanchonetes que não escapam nunca, que são as mesmas aqui e acolá, nenhum zelo é solicitado; ante estas lanchonetes que não escapam nunca, que se repõem aqui e acolá, o olhar nunca se detém na atenção aos detalhes, sobretudo àqueles em que se teria investido o élan da gente da casa. Ora, esta casa consumista parece de ninguém.
Tudo que grosseiramente discrimina um desses edifícios alimentares, na massa das aparências da cidade, é suficiente para reconhecê-los: basta, para que mais uma vez o reencontremos sem surpresa, sem reverência, sem o encantamento próprio do que é excepcional e pode extinguir-se.
O planejamento funcional multiplica as construções milionárias das lanchonetes nos pontos estratégicos da cidade, em que a fome é sempre igualmente atraída e dirigida para a espiral abreviada e enfadonha do consumo reprisado e reprisado, a ponto de nos encarcerarmos na imitação de um prazer que não se sente mais, procedimento inercial no qual já não estamos mais internamente presentes.
Os objetos, mergulhando como valores de troca no remoinho dos comércios, padecem uma deserotização — não estarão historicizados, não falarão de sua gênese e de seus percursos —, podendo atender apenas a nossos anseios muito paliativos, aos quais nos agarramos, fingindo grotescamente estarmos em festa.
McDONALD’s: PORQUE VOCÊ MERECE SEMPRE MAIS!
De fato: ao sairmos, fica o coração a merecer mais.
V
Que dizer dos seus funcionários?
Nós os encontramos todos jovens em sua grande maioria (os gerentes e talvez alguns supervisores façam exceção, exceção que confirma a regra). A longevidade e uma jovialidade aparentes é que ficam como impressão geral daquele mundo quase apenas habitado por moços.
Seus nomes, já expostos em crachás, oferecem-se ao nosso conhecimento súbito, fora da cadência das aproximações, para o exercício de nossa autoridade de clientes sobre eles. A simpatia postiça, os dizeres automatizados: “Obrigado”, “Bom apetite”, “Volte sempre” pode-se ouvi-los quer nos limites dos Jardins quer no eixo final de Santo Amaro, assinalando os eficientes treinamentos de pessoal.
Os uniformes vincados e asseados cobrem os corpos proletários, que são habituados a uma performance emocional com os clientes e com a instituição. As diferentes cores dos uniformes listrados sugerem diferenças de função. A vestimenta padronizada parece desprender nos funcionários os humores de uma farda, deixando alguns com o sentimento de uma débil auto-estima. Outras vezes, essas vestes, com suas listas e quepes, podem lembrar a caracterização comum, no cinema e na televisão, de urn presidiário. De um desses jovens, que se vestia de vermelho e cuja tarefa era escorrer e limpar as mesas, recolher bandejas e papéis, a quem perguntei se havia diferenças entre quem se veste de uma cor e quem se veste de outra, a resposta veio em tom respeitoso e orgulhoso: “Ah! tem diferença sim! Vermelho é todos os funcionário. [Os demais não são funcionários? O lapso indica que a valorização dos trabalhadores é matizada.] Quem veste amarelo é quem trabalha diretamente com o cliente. Azul é quem trabalha na cozinha… [Vacila. Depois, erguendo os braços e mirando o teto:] e assim vai indo! [Sorri, como se parecesse desconhecer a graduação superior da pirâmide ou estando bem abaixo dela, mas enunciando o seu “e assim vai indo!” tal qual a declaração de uma lei natural].
Como a esta altura não surpreenderá mais, o espírito taylorista insinua sua presença estrutural (ficam evidentes a hierarquia, a divisão do trabalho entre mentais e braçais, a racionalização burocrática) e insinua sua presença ideológica (referimo-nos àquela aparência de uma alegre e harmoniosa solidariedade das partes: exemplo de coletividade feliz, liberal e democrática).
VI
E que é que os olhos vêem na propaganda?
Nos anúncios de TV, a “confusão planificada”: risos; passos ensaiados; o pipocar dos sanduíches; a figura do palhaço-emblema (Ronald McDonald); as satisfações orais tudo monopolizando; crianças, jovens, adultos e velhos bestificados e frenéticos, todos desempenhando a imorredoura farsa da “criança feliz — feliz a comer”.
Desde os primórdios de seu marketing, os empresários do McDonald’s concentram a propaganda não apenas no produto e no preço, mas miram alvos mais impalpáveis porém compensadores: as imagens de felicidade.
Num livro entediante e sobretudo indignante, que descreve episódios mercadológicos da empresa, podemos ler:
O McDonald’s tentava agora estender à publicidade (…) uma velha máxima de Kroc [Ray Kroc foi o fundador da empresa e seu primeiro presidente]: “Nós não estamos no negócio de hambúrgueres; nós estamos no ramo de diversões públicas”.[55]
A D’Arcy Advertising, de Chicago, foi a primeira grande agência de propaganda do Grupo McDonald’s, e vejam outra passagem do livro:
Os primeiros comerciais de lançamento do Big Mac transmitiam a mensagem de um grande hambúrguer, evitando a descrição séria e potencialmente maçante de um produto que a maioria das pessoas considera divertido comer. Assim, a D’Arcy representou o novo hambúrguer de duas camadas como um monumento de três andares, tão maior do que seu tamanho natural que era preciso um guia usando um importante capacete para apontar todos os seus componentes a um grupo de turistas. O mesmo estilo leve [leve?!] a agência usou para comunicar a reputação de asseio do McDonald’s, num comercial que destacava um coronel do Exército, de monóculo, fazendo uma inspeção rigorosa no McDonald’s [estilo levíssimo].[56]
E segue:
Mesmo quando tratou do produto mais importante do McDonald’s — sua batata frita D’Arcy o fez com calor humano. Um dos comerciais mais efetivos da agência mostrava um garotinho caminhando pelo parque comendo um saquinho de batatas fritas do McDonald’s, dando algumas para um esquilo e enfiando o saquinho vazio no seu bolso. A mensagem não era o produto, mas o prazer que ele proporciona.[57]
Ainda:
“Todas as nossas pesquisas de consumo indicavam que uma visita ao McDonald’s era, para cada membro da família, um acontecimento comparável a uma escapada para uma ilha de prazeres”, lembra Reinhard [agente da companhia de propagandas que se seguiu à D’Arcy]: “Os garotos podiam se deliciar com as montanhas de fritas, as mães escapar da cozinha e os pais fugir das atribulações do emprego.”[58]
No imaginário do Marketing McDonald’s desponta então:
- prazer identificado com diversão consumista.
- os produtos revestidos de propriedades fálicas: enormes hambúrgueres, montanhas de batatas fritas, para uma felicidade “completa”.
- ante as figuras do guia conhecedor, com seu renomado capacete, como do coronel exigente, com seu monóculo vigilante, a instituição pondo-se em bons termos com a ciência e com o poder: tudo caminhando bem, no estreito da ordem dominante.
- com o esquilinho comedor de batatas fritas, a Natureza vindo encobrir o estatuto histórico-político da instituição, outorgando-lhe atributos transculturais: Branca de Neve vendedora de hambúrgueres, a alegrar e satisfazer todos os seres, das florestas e das cidades.
- o garotinho fazendo do saquinho McDonald’s uma lembrança: a instituição produzindo fetiches, talismãs de prazeres orais.
- finalmente, a rotina que assola a vida das crianças ávidas e privadas, das mães enfurnadas e dos pais assalariados sendo aliviada por “merecida folga” no McDonald’s: a instituição como alternativa privilegiada de lazer passivo para uma vida sem desejo: folgo rápida, não nos esqueçamos, e, após a condescendência, tudo voltará à regra opressiva, resignadamente.
VII
Mas a presença do Grupo McDonald’s em São Paulo ainda nos reserva um problema ferino. No número 709 da avenida Paulista a empresa “restaurou” uma velha casa, construída no início da década de 30. Logo após sua inauguração, os consumidores, depois do pedido, recebiam nas bandejas, em meio aos produtos psicodélicos, um conjunto de quatro cartões destacáveis:
O primeiro, que encabeçava o grupo, trazia:
- na parte frontal, os dizeres realçados:
PAULISTA
709
O ENDEREÇO QUE O McDONALD’s PRESERVOU
- no verso, o seguinte texto:
O McDonald’s tem um grande respeito pelas cidades do mundo onde suas lojas são acolhidas. Por isso, ao escolher o número 709 da avenida Paulista, restaurou completamente o casarão construído em 1931. Para você saborear as delícias McDonald’s num clima gostoso, diferente e especial.
Os três outros são cartões postais: um traz foto da avenida Paulista na década de 30 (vê-se o bairro arborizado, largas calçadas, um simpático bonde além de poucos e velhos carros), o central traz foto da lanchonete (no verso deste postal se lê: “Foto da loja McDonald’s hoje, com a casa toda restaurada. Um presente para a memória da cidade de São Paulo.”), o último, foto da avenida Paulista em 1987 (a lente recortou ângulo dos mais empresariais da avenida: identificamos ao menos o prédio da FIESP-CIESP-SESI – entidades ligadas à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo — e o prédio do Bradesco-Seguros).
Eis, então, a pergunta a enfrentar: Será que tal iniciativa de “restauração”, apresentada como ação em favor da memória, prejudica a avaliação que vimos construindo acerca da empresa McDonald’s?
Não. E há que demonstrá-lo.
- Qual o sentido da restauração?
“Para você saborear as delícias McDonald’s num clima gostoso, diferente e especial.” A reunião dos adjetivos — “gostoso”, “diferente”, “especial” — parece conotar atributos do “pitoresco”, isto é, do que é divertidamente novo, imaginosamente recreativo, aquilo de cuja extravagância usufruimos para aplicação de nossos gastos. A perspectiva da memória ficando assolada pela perspectiva turística que, interessada na alteridade apenas como o que lhe dispensa prazeres utilitários, transforma a diferença em espetáculo burlesco (nas primeiras semanas após a inauguração da loja, alguns funcionários, para que se sugerissem ares da década de 30, eram vestidos a caráter, mas nada cuja força fosse além da comicidade, da sátira, da caricatura). Na inconsistência deste cenário, um dado apenas é firme e permanente: sua meta comercial, a estratégia de marketing, o projeto tático.
- Houve, de fato, restauração?
Restou a couraça da casa, seu esqueleto exterior, despojado do sopro cultural que inflamava sua aura. Os interiores foram reduzidos a três ambientes: balcão (de pedidos e cobranças), a cozinha tecnológica e tudo o mais recoberto pelas mesas de refeição. O interior predomina sobre o exterior, reduzindo este último à aparência museológica, morta. À noite, dentro da lanchonete, a veemente luminosidade das lâmpadas fluorescentes contrasta com a iluminação de fora, ratificando a necrose da fachada pela intensificação dos interiores, onde os sinais mcdonaldianos são inconfundíveis. De resto, a casa já era ruína, minada pela terciarização de toda a avenida Paulista, processo que o Grupo McDonald’s veio apenas agravar e através de métodos mais ardilosos.
- A empresa declara grande respeito pelas cidades do mundo que a acolhem. Consideremos este ponto.
O cartão central, com a foto da casa “restaurada”, parece querer amenizar o caminho do olhar, do primeiro postal (foto da década de 30) ao terceiro (1987), quando vemos as fartas copas de árvores e a paisagem diversificada sendo substituída pela congestão dos altíssimos edifícios e dos velozes automóveis: como se o McDonald’s System resistisse conosco à perda progressista dos últimos traços de um bairro outrora residencial e menos afoito. Entretanto, se nos detemos um pouco mais, percebemos todas as três fotos igualmente transformadas em postais, igualmente disponíveis para o correio dos consumidores: o passado perdido, o McDonald’s “restaurador” e o presente financista igualmente oferecidos a olhares que atravessariam com otimismo a história de São Paulo. No máximo, –quern sabe, o terceiro postal servisse para algum cidadão inconformado enviá-lo a um amigo, com considerações comuns sobre as agruras da vida moderna e da grande cidade: mero lamento, talvez reconfortado pela “restauração” com que a memória de São Paulo foi “presenteada” pela patente norte-americana.
Um dos mais deprimentes capítulos do livro de John Love[59] — o jornalista que garante pretender relatar com isenção as “admiráveis” realizações do Grupo McDonald’s e que termina por também nos “presentear” com um inescrupuloso manual de proselitismo empresarial, perfeitamente orientador de administradores locais sedentos pela obtenção de um franchise (franquia) de hambúrgueres — é aquele intitulado: “Exportando a tradição americana”, capítulo 17. Suas afirmações são inacreditáveis, expondo princípios de ação mercadológica que podem deixar o leitor “ingênuo” entre a hilaridade e a revolta.
Como eram incomuns noutros países os esquemas do fast food, escreve o jornalista:
Para ter sucesso no exterior, o McDonald’s teria de introduzir grande mudança cultural.[60]
Ou:
O McDonald’s podia ter modificado substancialmente seu sistema para adaptar-se às culturas estrangeiras. Em vez disso, ele se ateve aos elementos básicos do seu sistema e mudou as culturas para que se ajustassem a ele.[61]
Explica que a empresa sempre privilegiou o mercado infantil, já que o paladar das crianças não está predisposto contra o “cardápio americano”.
Logo esclarecerá a importância da rede internacional: segmento de mais rápida expansão da empresa e a maior esperança para evitar seu definhamento financeiro.
Conta que o grupo procura escolher operadores locais, preferencialmente nascidos na região (conhecedores, então; da alma dos consumidores) e escreve: “praticamente nenhum deles é tradicionalista em relação à sua terra natal [vejam que, aqui, “tradicionalista” torna-se indistintamente a designação mcdonaldiana tanto para o fanático nacionalista quanto para o indivíduo enraizado]. Na verdade, a maioria tem afinidade pelas práticas empresariais e pelos empresários americanos, e a maioria passou considerável tempo nos Estados Unidos.[62]Estes diretores gerentes das subsidiárias estrangeiras McDonald’s são especuladores ou empresários oportunistas, em geral envolvidos corn transações no setor de bancos e comércios. No Rio de janeiro, o sócio do grupo, Peter Rodenbeck, era “banqueiro de investimentos”.
Sobre um sócio canadense, de nacionalidade norte-americana:
Ele conseguiu considerável cobertura da imprensa local envolvendo-se pessoalmente em obras de caridade e atividades cívicas canadenses […]. Ele acabou também profundamente envolvido em política, a ponto de contribuir na organização de jantares para levanter dinheiro para fns politicos e de estabelecer amizades com politicos influentes nas altas esferas governamentais. Um desses amigos, o então primeiro-ministro Pierre Trudeau, nomeou Cohon para o Conselho de Diretores do serviço postal canadense. Cohon também começou a falar como canadense, fazendo comentários tipicamente nacionalistas como “Washington não pode pensar no Canadá como seu quinquagésimo primeiro estado” e “Nossos lagos estão ficando poluídos devido a toda porcaria que vem dos Estados Unidos”. Mas, sem dúvida, o esforço mais dramático que Cohon fez para projetar uma imagem canadense foi em 1975: ele se tornou cidadão canadense. […] ocasionalmente ele sofre a pressão de estudantes queixando-se de que a companhia ainda é 100% americana. “Mas eu sou cidadão canadense” , ele costuma replicar. “E enquanto vocês nasceram aqui, eu o adotei por livre escolha.” Cohon afirma que “isso geralmente os deixa sem ação”.[63]
Sobre Den Fujita, o sócio japonês:
“Nossa escrita vem da China, nosso Budismo da Coreia, e depois da guerra tudo o que é novo, da Coca-Cola à IBM, veio da América.” Mas ele argumenta que a admiração do Japão por tudo que é ocidental é temperada por outro lado da mentalidade japonesa. “Os japoneses são basicamente antiestrangeiros” , explica Fujita. “Nós não gostamos dos chineses, nós não gostamos dos coreanos e não gostamos, especialmente, dos americanos, porque perdemos a guerra para eles. ” [ …]
Ele fez palestras […] nas universidades e obteve considerável cobertura da imprensa tecendo comentários exagerados sobre as propriedades do hambúrguer […]. “A razão de os japoneses serem tão baixos e terem a pele amarela é porque há dois mil anos eles não comem senão arroz e peixe”, disse ele aos repórteres. “Se durante mil anos comermos hambúrgueres e batatas do McDonald’s, ficaremos mais altos, nossa pele mais branca e nosso cabelo louro.”[64]
Sobre Bob Rhea, o inglês:
Obviamente, as reclamações dos operadores de food service locais de que os consumidores ingleses não se mostravam leais ao comércio provaram ser tão falsas quanto as previsões de que o verdadeiro inglês só comeria com garfo e faca. “Acabou-se provando que o cliente inglês não era diferente de ninguém”, afirma Rhea. “E era impressionante como o hambúrguer McDonald’s tinha o mesmo apelo para pessoas de todos os tipos.”[65]
Finalmente, referências sobre o mercado socialista:
Ritchie [o sócio australiano] recorda-se de uma carta que recebeu de uma australiana que acabara de regressar de uma viagem de três semanas à União Soviética. “Passei maus bocados tentando me acostumar com a comida de lá”, escreveu ela, “mas quando chegamos a Frankfurt, no caminho de volta, vimos um McDonald’s. Foi quase como se estivéssemos em casa.”
É possível que futuros visitantes da União Soviética possam sentir-se em casa também lá, em função do McDonald’s. De fato, o McDonald’s do Canadá esteve perto de fechar negócio com os soviéticos para participação do McDonald’s nas Olimpíadas de Verão de 1980 em Moscou. Embora as conversações não tenham tido êxito, George Cohon, do Canadá, não desistiu de perseguir essa ideia. Ainda que possa levar anos para que ela se desenvolva, o McDonald’s nunca deixou de ter paciência em sua tentativa de exportar seu sistema de refeição.
[…]
Como toda propriedade pertence ao Estado e todos os negócios pertencem aos seus trabalhadores, a economia iugoslava tem uma diferença de 180 graus em relação ao sistema econômico de onde o McDonald’s brotou.
A companhia, entretanto, descobriu um meio de preencher essa lacuna. Sua primeira unidade iugoslava será dirigida por uma joint venture entre o McDonald’s e a Prokupac, a companhia de processamento de alimentos de propriedade dos trabalhadores. Tecnicamente, o McDonald’s não tem lucro na empreitada, mas tem o direito de receber 50% de quaisquer dividendos declarados pelos gerentes e trabalhadores da lanchonete McDonald’s. Em essência, o McDonald’s está participando de uma empresa socialista.
Mas está também introduzindo sua própria marca empresarial num país que tem uma das formas mais liberais de marxismo do mundo. Apesar de que as duas primeiras lanchonetes iugoslavas vão ser operadas pela joint venture McDonald’s-Prokupac, as unidades adicionais incluirão um terceiro elemento no negócio — um operador empresário. “A Iugoslávia aceitou o conceito de que esse terceiro receba um terço do que sobrar, depois de deduzidas do faturamento todas as despesas da lanchonete”, diz Tamer [o presidente do McDonald’s que sucedeu Kroc]. “Ora, num país comunista eles não podem chamar isso de lucro, mas desde que nós saibamos o que é, não me importo como eles o chamem.”
[… ]
Desde 1983, as maçãs chinesas foram escolhidas para as tortas de maçã vendidas pelo McDonald’s no Japão. E atualmente o McDonald’s está ajudando a China Popular a desenvolver instalações centralizadas de distribuição de alimento, bem como moderna instalação para processamento de batatas, para que a China possa começar a suprir as unidades do McDonald’s no Pacífico. “O tempo que o McDonald’s vai levar para entrar na China, contudo, depende profundamente da presteza com que a República Popular desenvolva uma classe média.”[66]
Eles esperam, ai de nós.
Notas
[1] Ecléa Bosi, Memória e sociedade — lembranças de velhos, São Paulo, T. A. Queiroz, 1979.
[2] Simone Weil, “0 Desenraizamento”, in A condição operária e outros estudos sobre a opressão, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
[3] Maurice Merleau-Ponty, “As aventuras da dialética” in Merleau-Ponty (Col. Os Pensadores), São Paulo, Abril Cultural, 1980.
[4] Maurice Merleau-Ponty, “Em torno do marxismo”, op. cit., p. 23.
[5] Nota 53, estabelecida por Marilena Chaui, in “Em torno do marxismo”, op. cit., p. 23.
[6] Ecléa Bosi, Memória e sociedade, op. cit., pp. 39-40.
[7] Idem, ibidem, pp. 33 e 39.
[8] Idem, ibidem.
[9] Idem, ibidem, p. 41.
[10] Hans Küng, Vinte teses. Petrópolis, Vozes, 1979, pp. 60-1
[11] Umberto Eco, “A estética da formatividade e o conceito da interpretação”, in A definição da arte, São Paulo, Martins Fontes, 1986
[12] Hans Küng, op. cit., p. 60.
[13] Maurice Merleau-Ponty, “Em toda e em nenhuma parte”, op. cit., pp. 210-1.
[14] Ecléa Bosi, Memória e sociedade, op. cit., pp. 40-1.
[15] Simone Weil, “O enraizamento”, op. cit., p. 347.
[16] Philip Glass, Freezing, in Songs From Liquid Days (disco), CBS, 1986. (Agradeço a Viviana Bosi Concagh pelas sugestões na tradução).
[17] Richard Wilhelm, “Prefácio à edição brasileira”, in I Ching – o livro das mutações, São Paulo, Pensamento.
[18] Gilberto Freire, Casa-grande e senzala, Rio de Janeiro, José Olympio, 1975, p. 46:4.
[19] Simone Weil, “0 desenraizamento operário”, op. cit., p. 351.
[20] Simone Weil, “A atenção e a vontade”, op. cit., p. 386.
[21] Roland Barthes, “Compaixão”, in Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves, s.d., pp. 48-9.
[22] Simone Weil, “Contradição”, op. cit., p. 380.
[23] Maurice Merleau-Ponty, “De Mauss a Claude Lévi-Strauss”, op. cit., pp. 199-200.
[24] Simone Weil, “A atenção e a vontade”, op. cit., p. 386.
[25] Idem, ibidem, p. 385.
[26] Simone Weil, “0 desenraizamento operário”, op. cit., pp. 348-9.
[27] Idem, ibidem, pp. 351, 353-6.
[28] Idem, ibidem, p. 358.
[29] Ecléa Bosi, “Problemas ligados à cultura das classes populares”, in A cultura do povo. São Paulo, Cortez & Moraes – EDUC, 1979, p. 33. Esse texto foi também incluído na recente edição do livro Cultura de massa e cultura popular: leituras operárias. Petrópolis, Vozes (da mesma autora).
[30] Ecléa Bosi, “Simone Weil (1909-1943)” in A condição operária, op. cit., p. 23.
[31] Ecléa Bosi, Simone Weil – A razão dos vencidos, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 9. (Obs.: este livrinho é a reprodução do prefácio “Simone Weil (1909-1943)”, que já havia sido escrito para a publicação de A condição operária… e onde este episódio de infância aparece à p. 14).
[32] Ecléa Bosi, Memória e sociedade, op. cit., p. 33.
[33] Maurice Merleau-Ponty, “Em torno do marxismo”, op. cit., pp. 11-5.
[34] Maurice Merleau-Ponty, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, op. cit., p. 141.
[35] Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, São Paulo, Anhembi, 1957, p. 223.
[36] Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, São Paulo, Martins Fontes, 1981, p. 210
[37] Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, São Paulo, Anhembi, 1957, p. 227.
[38] Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, São Paulo, Martins Fontes, 1981, p. 215.
[39] Idem, ibidem, pp. 215-16.
[40] Idem, ibidem, p. 216.
[41] Idem, ibidem.
[42] Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, São Paulo, Anhembi, 1957, pp. 230-31.
[43] Simone Weil, “A agonia de uma civilização vista através de um poema épico”, op. cit., p. 233. Simone Weil reconhecia nos povos da região d’Oc um espírito tão livre e tão fecundo que aproximava-os do brilho único da Antiga Grécia. Conta-nos que naquela região frutificou uma tolerância nunca mais vista na história. Uma incomparável aptidão para combinar meios e tradições diferentes uniu nórdicos visigodos a românicos e arábes, católicos e cátaros, grupos cujos liames ancestrais chegavam à Pérsia, ao Egito, às civilizações pré-romanas do Mediterrâneo e do Oriente Médio, herdando algo do pensamento pitagórico, do platônico, da doutrina dos druidas ou do budismo. Ali, as ideias, comenta Simone Weil, não se chocavam: circulavam num meio nuançado mas algo contínuo, em que os valores cavalheirescos assumiram excepcional profundidade. Em Toulouse, o conde nada faz “sem consultar toda a cidade e não lhe dá ordens, pede seu apoio; este apoio, todos o concedem: artesãos, mercadores, cavaleiros, com a mesma dedicação alegre e completa”. Ali, homens livres punham-se generosamente a serviço de um mestre por uma espécie de fidelidade voluntária que permitia ajoelhar-se, obedecer, sofrer castigos sem nada perder de sua altivez, segundo um apego igualmente intenso à liberdade e aos senhores legítimos. Ali, encontraram-se o espírito feudal e o espírito das cidades. Ao lado de forte sentimento cívico definido pela língua comum, esta forma de obediência análoga àquela que, talvez trazida pelos mouros, impregnou durante séculos a vida espanhola: obediência que enobrece o subordinado ante o senhor legítimo e amado. Os que submeteram os povos de língua d’Oc, “trataram as populações conquistadas como inimigas, e esses homens acostumados a obedecer por dever e nobremente foram constrangidos a obedecer por medo e em situação de humilhação”. Nas regiões de onde vinham os vencedores desta guerra, tudo era diferente: “Uma barreira moral separava nobres e plebeus. Daí devia resultar, uma vez enfraquecido o poder dos nobres, o que resultou afinal, isto é, a subida de uma classe totalmente ignorante dos valores cavalheirescos; um regime no qual a obediência era coisa comptada e vendida; os conflitos agudos de classe que acompanham necessariamente uma obediência despojada de todo sentimento de dever, obtida unicamente pelos mais baixos motivos. Só pode haver ordem onde o sentimento de uma autoridade legítima permite obedecer sem rebaixamento; é talvez isso que os homens d’Oc chamavam de Parage. Se eles fossem vencedores, quem sabe se o destino da Europa não teria sido bem diferente? A nobreza então teria podido desaparecer sem arrastar atrás de si o espírito cavalheiresco em seu desastre, visto que nas terras d’Oc artesãos e mercadores tinham parte nele. Assim é que ainda em nossa época todos nós sofremos, diariamente, com as consequências dessa derrota” (cf. pp. 229-31).
[44] Ecléa Bosi, “Simone Weil (1909-1943)”, op. cit., p. 45.
[45] Ecléa Bosi, “Problemas ligados à cultura das classes pobres”, in A cultura do povo. São Paulo, Cortez & Moraes — EDUC, 1979, pp. 33-4.
[46] Ecléa Bosi, Memória e sociedade, op. cit., pp. 356-57.
[47] Idem, ibidem, pp. 360-61.
[48] Idem, ibidem, p. 367.
[49] Idem, ibidem, p. 337.
[50] Idem, ibidem, p. 362.
[51] Idem, ibidem, p. 370.
[52] Idem, ibidem, p. 362.
[53] Idem, ibidem, p. 370.
[54] Ecléa Bosi, “Problemas ligados à cultura das classes pobres”, op. cit., pp. 25-34.
[55] John F. Love, McDonald’s — a verdadeira história do sucesso, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1987, p. 368.
[56] Idem, ibidem, p. 368.
[57] Idem, ibidem.
[58] Idem, ibidem, p. 370.
[59] John F. Love, op. cit.
[60] Idem, ibidem, p. 499.
[61] Idem, ibidem, pp. 500-1.
[62] Idem, ibidem, p. 516.
[63] Idem, ibidem, p. 505-6.
[64] Idem, ibidem, p. 508-9.
[65] Idem, ibidem, p. 527.
[66] Idem, ibidem, pp. 533, 535-6.