2005

Pensar o mundo

por Adauto Novaes

Uma dedicatória de Henri Michaux ao filósofo Maurice Merleau-Ponty resume de maneira sutil e precisa os problemas da relação entre arte e pensamento: “Poucas palavras, sem tese nem caminho real”. Michaux escreveu sobre pintura, literatura, poesia, mas é principalmente sobre a palavra, instrumento de sua arte, que ele nos convida a meditar, como se ela guardasse uma força estranha que obriga o espírito a voltar-se contra si mesmo, no ato de criação. Mais: para ele, o livro pode ser um tédio se nele não houver livre circulação, e o caminho já estiver traçado.

Poetas que pensaram o mundo propõe uma multiplicidade de caminhos, e cada leitor, como observador de um grande quadro, começa por onde quiser. Convidar os poetas a mostrar caminhos é uma exigência do nosso tempo: a ciência — a tese de que fala Michaux —, que pretendeu responder a todas as questões, hoje não consegue dizer onde estamos e menos ainda para onde vamos. Alguns, pessimistas, afirmam que a conquista das coisas pela ciência positiva leva-nos à barbárie; os otimistas dizem que o futuro se esgotou, que vivemos em um presente efêmero, e que o passado já não conta. Este é um momento singular da história, sem as experiências do passado nem a perspectiva do futuro, as “duas maiores invenções da humanidade”, segundo o poeta Paul Valéry. Sabemos apenas que nosso tempo é marcado pelo desaparecimento de todos os referenciais e, portanto, pela dificuldade de nos orientarmos no pensamento. Voltemos, pois, às artes, que não pretendem explicar o mundo por meio de conceitos e sim falar de experiências do mundo. Os ensaios aqui publicados partem de fragmentos poéticos que dão expressão a mundos mudos.

No prefácio às Cartas persas, de Montesquieu, Valéry afirma que a ficção nos leva menos ao sonho do que aos pensamentos, e conclui: “Como a barbárie é a era do fato, é necessário, pois, que a era da ordem seja o império das ficções — porque não existe potência capaz de fundar a ordem apenas sobre a repressão dos corpos sobre os corpos. É preciso a força da ficção […] A ordem exige, portanto, a ação de presença de coisas ausentes […] Um sistema fiduciário ou convencional desenvolve-se, introduz entre os homens ligações e obstáculos imaginários cujos efeitos são bem reais. Eles são essenciais à sociedade”.

Em tempos de barbárie, recorramos, pois, aos poetas e suas cosmogonias, mesmo sabendo dos riscos da “velha querela” entre o saber dos poetas e a prática filosófica do logos. No livro coletivo La politique des poètes, Jacques Rancière aponta, nessa relação, um erro de origem: a “mais bela das tragédias”, isto é, a constituição filosófica da política, excluía — escreve ele — sua contrafação, “a constituição poética da política, aquela que, ao incluir a tragédia dos poetas nas suas instituições, põe de volta seu regime de vida sob a legislação dos muthoi poéticos e do prazer sofredor do teatro, instalando nele o comando desregrado produzido pela aparência poética”. Em recente entrevista ao jornal francês Le Monde, Jean-Pierre Vernant volta a esse tema reafirmando que o nascimento da tragédia é inseparável da organização cívica, da elaboração da democracia ateniense: “Por trás da tragédia” — diz Vernant — “há uma interrogação geral: qual a relação do homem com seus atos? Em que medida ele é realmente o autor dos atos? Seus atos não são a resultante de outros elementos dos quais ele só vai perceber mais tarde? […] A presença daquilo que chamo o mundo, o universo, não é um universo simples. Ele é ambíguo e contraditório, uma vez que as divindades que intervêm na cena trágica também são cindidas. Não se trata de condenar, trata-se de mostrar as dificuldades de compreender o que é o homem nas suas relações com o universo ambíguo. A tragédia é uma forma dessa interrogação sobre o homem e o mundo, sobre o justo e o verdadeiro. Ela exprime uma profunda ambiguidade”. Com o que acabam de dizer, os dois filósofos mostram, enfim, que a querela é a própria filosofia. É ela que é posta em questão com as respostas no Livro X da República: “Que sabem e que ensinam os poetas? Que fazem os poetas? A resposta platônica na sua radicalidade é: nada”. A dificuldade de origem em enquadrar o poeta pode ser lida em uma das conclusões de Rancière: o poeta participa do pensamento político de uma maneira muito singular que consiste em um não-pertencimento ao ignorar os usos da política. Esse “pertencimento não pertencente” está marcado no “conceito que geralmente lhe é apropriado, este conceito-limite que designa o fundamento e o abismo da política, o telos de sua instituição e a palavra de ordem de sua dissolução, este nome de liberdade que o poeta teria por vocação escrever no seu caderno escolar”.

O que vale para a tragédia vale também para toda forma poética. A exemplo da tragédia grega, que inventa não apenas um estilo literário mas traz à tona também o homem trágico, as outras formas poéticas podem ser pensamentos que levam o homem a interrogar suas ações. O senso comum costuma simplificar a questão ao dizer que todo grande poeta é “tomado pela inspiração”. Valéry nos adverte que essa maneira de definir o trabalho poético resulta da oposição que se faz entre poesia e pensamento. A inspiração dispensa o trabalho do pensamento, é pensamento que não se pensa e que se perde no próprio esquecimento. Valéry escreve em um ensaio célebre: “Diz-se ‘Poesia e Pensamento abstrato’ como se diz o Bem e o Mal, o Vício e a Virtude, o Quente e o Frio. A maioria das pessoas acredita, sem refletir, que as análises e o trabalho do intelecto, os esforços de vontade e precisão no qual se engaja o espírito não combinam com a ingenuidade da fonte, este excesso de expressões, esta graça e esta fantasia que distinguem a poesia, e que a fazem ser reconhecida desde as primeiras palavras. Se se encontra profundidade em um poeta, esta profundidade parece ser de outra natureza que não a de um filósofo ou de um sábio”.

Essa maneira de pensar, mais do que expressar uma rivalidade, revela um entendimento errôneo do que seja poesia. Mais: implicitamente está dito que para ser poeta é preciso, primeiro, arruinar o pensamento. Ora, basta ver que todos os grandes poetas, a exemplo dos grandes pensadores, lidam com a mesma matéria e trabalham para o mesmo fim: poesia e pensamento são formas de interrogar o mundo, uma espécie de “ciência” das coisas e do homem no mundo — não no sentido de uma sociologia do saber, mas no sentido de invenção, de experiências sensíveis por intermédio do movimento, do entendimento e da relação entre as palavras. Nem poderia ser diferente: basta seguir o conselho de Carlos Drummond de Andrade — “Penetra surdamente no reino das palavras” — e ir ao dicionário para ver que “poesia”, do grego poíesis, quer dizer criação, fabricação, ação de compor obras poéticas. Não que o poeta, nesse processo de fabricação, viva de teses, de provas ou da construção de um “caminho real”. Mais que construir ideias, o poeta, como o filósofo, propõe matrizes de ideias, a serem retomadas pelos leitores e todos os seus pósteros: “Um poeta deve deixar vestígios de sua passagem, não provas”, escreve o poeta-filósofo René Char.

Ora, as passagens do pensamento sempre são acidentadas e cheias de armadilhas. De Homero a Valéry, o pensamento pede prudência e astúcia contra os dogmas. Os dois poetas recorrem à mesma metáfora — o mar — para descrever as inclinações da alma, a coragem e as seduções do poder. Em Homero, o navegante Ulisses é seduzido pelo canto de potências estranhas e imaginárias, canto que “uma vez ouvido, abria em cada palavra um abismo e um convite a desaparecer nele”, como analisa Blanchot. A astúcia de Ulisses foi se fazer prender no mastro do navio e tapar com cera os ouvidos de seus companheiros para fugir aos encantos das sereias. Mas a melancolia de Ulisses, como a de todo pensador, era saber que a imagem de Ítaca fugia dele constantemente. Valéry nos convida a pensar sobre a desordem do mundo atual e nossa fragilidade diante de tanta técnica: em uma passagem entre Toulon e Brest, em meio a um belo dia, de repente Valéry e a armada são cercados por uma bruma espessa nas paragens perigosas da ilha de Sein, rodeada de rochedos. Ele descreve a situação, retrato do nosso tempo: seis encouraçados, trinta navios leves, submarinos, de repente cegos à mercê do vento e das correntes, no meio de campos minados: o mínimo choque poderia detonar essas cidadelas carregadas: “estes grandes navios prodigiosamente maquinados, montados por homens de ciência, coragem, disciplina, dispondo de tudo o que a técnica moderna pode oferecer de potência e precisão, reduzidos de repente à impotência na obnubilação, condenados a uma espera ansiosa por causa de um pouco de vapor que se formou no mar”. Canto das sereias e canto da técnica são promessas ou caminhos com intenção deliberada. O que existe de original nas narrativas citadas é que havia algo de maravilhoso nos dois projetos que não souberam cumprir suas promessas. Ou melhor, os homens se perdem pelas promessas que as sereias e a técnica não sabem e não podem cumprir. Sempre foi possível pensar — observa Blanchot — que todos os que se aproximaram do objetivo “não fizeram senão aproximar-se e morreram de impaciência por terem afirmado prematuramente: é aqui; aqui lançarei âncora […] o encantamento, por uma promessa enigmática, expunha os homens a serem infiéis a eles mesmos, a seu canto humano e mesmo à essência do canto”. Desconfiar da essência do canto produz novas disposições no pensamento. No lugar de um diálogo mudo do pensamento com o pensamento, a poesia, que opera não apenas no campo das ideias, altera a sensibilidade, e, em um processo sem fim, leva o pensamento a desconfiar do pensamento.

A dedicatória de Michaux é a tradução dessa desconfiança. É também um elogio a Merleau-Ponty, o filósofo que dedicou o melhor de sua vida à crítica da visão positivista na cultura, na filosofia e na política e que soube aproximar arte e pensamento. Lemos, por exemplo, em A prosa do mundo: “O que é insubstituível na obra de arte — o que faz dela não apenas uma ocasião de prazer, mas um órgão do espírito do qual o análogo encontra-se em todo o pensamento filosófico ou político, se ele é produtivo — é que ela contém, mais que ideias, matrizes de ideias; ela nos fornece emblemas cujo sentido jamais acabaremos de desenvolver, e justamente porque ela se instala e nos instala no mundo do qual não temos a chave; ela nos ensina a ver e nos dá a pensar como nenhuma obra analítica pode fazê-lo, porque nenhuma análise pode encontrar em seu objeto outra coisa a não ser aquilo que pusermos […]. O que há de ambíguo e irredutível em todas as grandes obras de arte não é um defeito provisório da literatura […] é o preço que é preciso pagar para se ter uma linguagem conquistadora que não se limite a enunciar o que já sabíamos, mas que nos introduza em experiências estranhas, em perspectivas que jamais serão as nossas e nos desfaça, enfim, de nossos preconceitos”. O que Merleau-Ponty diz é que nenhuma obra, de arte ou de pensamento, pode ser total, e que toda verdadeira obra é feita de significações abertas. Restaria saber — na visão dele — se a filosofia não se limitaria a exercer, como em uma segunda potência e em uma espécie de reiteração, o mesmo poder de expressão elíptico que faz a obra de arte: “As metamorfoses da filosofia de Descartes são célebres: nós a esclarecemos com nossas luzes como a pintura moderna aclara El Greco ou Tintoreto”. Em filosofia, como em arte, não há superação absoluta.

Assim, a importância daquilo que diz o filósofo e do que faz o artista mede-se pela extensão do poder que suas obras nos conferem sobre as coisas e sobre nós mesmos. O aforismo de Valéry sintetiza de maneira exemplar essa ideia que vemos realizada em toda a sua obra: “Nietzsche não é um alimento — é um excitante”. Por excitante deve-se entender que a obra de arte ou a obra de pensamento convida o leitor não a um consumo passivo, um alimento apenas. Ele é chamado a participar da obra por meio das interpretações. Prioridade, portanto, do fazer sobre o saber. Sabemos que todo excitante provoca, e os efeitos são necessariamente repartidos entre os pares: ser excitado é ser afetado. Mais: todo grande poeta é um excitante particularmente poderoso, e é por isso que voltamos sempre a ele. Nietzsche “não representa uma ‘filosofia’ (felizmente para ele) — mas um compositor, um composto, um ‘poeta’ do sistema nervoso”. Essa ideia nos remete ao original conceito de Valéry de “sensibilidade intelectual”. Como observa o filósofo Jacques Bouveresse, “a ideia de que o intelecto também tem suas sensações, suas emoções e seus afetos, que bem ou mal existe uma sensibilidade do intelecto, uma poesia e uma poética possíveis das produções puramente intelectuais é, como se sabe, uma ideia que Valéry teve muito cedo e sobre a qual voltou frequentemente”. Em “Poesia e pensamento abstrato” Valéry diz o que entende por sensibilidade intelectual: “Por exemplo, uma aproximação brusca de ideias, uma analogia me tocava […] Mas, desta vez, no lugar de um poema, era a análise desta sensação intelectual súbita que me possuía. Não eram versos que se desprendiam mais ou menos facilmente nesta fase; mas alguma proposição que se destinava a incorporar-se a meus hábitos de pensamento, alguma fórmula que deveria então servir de instrumento a pesquisas posteriores […] Mas o efeito de poesia e a síntese artificial desse estado por alguma obra são coisas distintas; tão diferentes quanto o são uma sensação e uma ação. Uma ação seguida é muito mais complexa que qualquer produção instantânea, principalmente quando ela deve exercer-se em um domínio tão convencional quanto o da linguagem.

Aqui vocês veem em minha explicação a esse famoso pensamento abstrato que o uso opõe à poesia”. Essa “sensação intelectual súbita” pode ser traduzida não com o trabalho da observação e do raciocínio indutivo, mas como produto da imaginação. Nesse sentido, um de seus escritos que mais se prestam à análise da poesia e do pensamento abstrato de tendência nada positivista está no Cahiers 2: “A Ciência deve-se a felizes acidentes, a homens sem razão, a desejos absurdos, a questões bizarras; a amadores de dificuldades, a divertimentos e vícios; ao acaso que fez encontrar vidro, a imaginações dos poetas”. Em uma evocação do que ele designa o “poeta filósofo”, Valéry escreve: “Nietzsche excitava em mim a combatividade do espírito embriagador da presteza das respostas […] Ele me agradava também pela vertigem intelectual do excesso de consciência e de relações pressentidas, por certas passagens no limite, pela presença de uma vontade superior intervindo para se criar os obstáculos e as exigências sem as quais o pensamento só se saberia fugir. Notei nele não sei que íntima aliança do lírico e do analítico que ninguém ainda havia tão deliberadamente realizado […] Nietzsche estava como que armado de filologia e de fisiologia combinadas”.

A relação entre poesia e saber foi sempre objeto de todo grande poeta. Edgar Allan Poe, por exemplo, escreveu “Eureka” em 1848, poema que iria transformar radicalmente a poesia moderna e o próprio pensamento de Valéry. Influenciado pelo filósofo Schelling, “Eureka” seria, segundo o ensaísta Jean Starobinski, ao mesmo tempo “sonho e pensamento rigoroso, poema e saber”. Nele, Poe relaciona valor estético e verdade científica. “O universo, na perfeição da sua simetria, é simplesmente o mais sublime dos poemas. Ora, simetria e consistência são termos reciprocamente conversíveis: assim, a Poesia e a Verdade tornam-se um. Uma coisa é consistente em razão de sua verdade — verdade em razão de sua consistência. Uma perfeita consistência, repito, não pode ser senão absoluta verdade.” Em Poe, a relação entre poesia e pensamento se faz pelas ideias de consistência e simetria, que são a ciência do universo. É sintomático que Valéry tenha publicado o seu ensaio sobre “Eureka” não nos Estudos literários mas nos Estudos filosóficos. Para ele, “o universo é construído sobre um plano cuja simetria profunda está presente, de alguma maneira, na íntima estrutura do nosso espírito. O instinto poético nos deve conduzir cegamente à verdade”. Valéry cita essa proposição de Poe: “Cada lei da natureza depende em todos os pontos de todas as outras leis”. Uma lição “científica” de unidade imaginária para todo grande poema.

Que linguagem é capaz de traduzir consistência e simetria? Ao escrever que “a poesia é incomunicável”, Drummond estava propondo uma distinção entre uso prático da palavra e linguagem poética bem no estilo valeriano. Para os dois poetas, a linguagem da poesia é absolutamente intransitiva. A linguagem ordinária, isto é, a prosa, serve sempre de passagem da palavra para outra coisa exterior à linguagem, transição imediata e insensível a algo não verbal — eu falo, você faz — e tem como objetivo fazer-se compreender de imediato — a utilidade prática. A linguagem ordinária é “anulada no próprio momento em que é compreendida”. Mas a linguagem poética, intransitiva e “incomunicável”, “deve ter esse caráter mágico” cuja função é produzir excitações sobre “os nervos do espírito”, criar “um estado de encantamento” muitas vezes sem referência com o real. O compromisso da linguagem poética é com a linguagem apenas. Assim, a poesia jamais pode ser tomada como “sistema de expressão”, intermediário útil e cômodo para o espírito que quer compreender e se fazer compreender, “mas como uma potência de transformação e de criação, feita para criar enigmas mais que esclarecer”, como escreve Blanchot, bem na linha de Paul Valéry, no seu comentário à estética de Mallarmé. Já se disse de forma reiterada que é a linguagem que funda a realidade humana e o universo e é nisso que consiste o enigma e mesmo o paradoxo da poesia: lidar com a realidade e com o segredo, com o visível e o invisível do mundo.

Os enigmas do universo são enigmas do nosso espírito. A essência da obra do poeta e da obra do pensador é, portanto, a mesma: ela é menos a descrição e a análise do que está diante de nós e mais o olhar daquilo que, na criação, se oculta de si mesmo. O poeta e o filósofo trabalham, portanto, o indizível, o impensado, o invisível: “Quando se trata de pensar”, escreve Heidegger, “maior é a obra feita que não coincide com a extensão e o número de escritos, mais rico é, nesta obra, o impensado, isto é, o que, através dessa obra e apenas por ela, vem a nós como jamais pensado ainda”. É por isso que pensamento e poesia são definidos como enigma. Que diferença pode haver, portanto, entre pensamento e poesia quando pensamento se define pela busca permanente do “jamais pensado ainda” e a poesia por aquilo que Valéry chama de “infinito estético”? A menos que se confunda pensamento com um tipo de positivismo que procura fixar o conceito, abolindo, portanto, o movimento das ideias, transformando-o em instrumento de poder apenas. No universo da sensibilidade, a “satisfação” momentânea faz renascer, indefinidamente, mais desejo. Poesia e pensamento têm isso em comum, “desejo que permanece desejo”.

É certo que a poesia é a arte da linguagem, combinação de palavras que produzem, além de emoção, pensamento. Ou, como escreve Valéry, a forma-poema já é, ela mesma, uma maneira de pensar: “compreende-se”, diz ele “o que é forma em matéria de arte quando se compreende que a forma dá (ou deve dar) tanto pensamento quanto fundo”. Ora, no uso da vida prática, como observa Mauric Blanchot, a linguagem é um meio, um instrumento que utilizamos para nos fazer entender, é o caminho usado pelo pensamento “que se desfaz logo que o percurso acaba”. Mas, no ato poético, “a linguagem cessa de ser instrumento e mostra-se na sua essência, que é a de fundar um mundo […] Fundar as coisas pela palavra”. Não é essa também a essência do pensamento, a de fundar mundos, tornar-se fundamento das coisas e da realidade humana?

Assim, Poetas que pensaram o mundo — ciclo de conferências em homenagem ao centenário de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade — é um livro concebido não para falar de poesia apenas, mas de uma história do pensamento por meio da poesia. Para essa tarefa, filósofos e poetas-filósofos foram chamados: comecemos com Drummond, para quem, de acordo com a palestra de José Miguel Wisnik, “o mundo não dá poesia: esta só se faz através da penetração surda no ‘reino das palavras’ nas quais se esbate a interrogação de ‘mil faces secretas’ em cada face única, perguntando por uma chave que não está em lugar nenhum. A reflexão poética, em Drummond, supõe uma recusa sistemática do mundo, se compreendido como matéria assuntiva que se confirma a si mesma”. Ou melhor, lemos ainda na interpretação de Wisnik que o poeta está no mundo mas não extrai poesia das coisas: “Vem daí que poesia e mundo, simultaneamente excludentes includentes, se contenham e se neguem: que o mundo, visto a partir dela, se pertença e não se pertença a si próprio”.

Da mesma maneira, o De natura rerum, o livro mais original e vigoroso da poesia latina, não é uma simples visão de mundo, como afirma o filósofo Francis Wolff em sua conferência. Ao recriar poeticamente a “rude e severa prosa” do filósofo Epicuro, Lucrécio mostra que a poesia é como o mel que reveste a amarga poção destinada a curar os males que os homens sofrem, principalmente o medo da morte e o temor dos deuses: “eles degustam o prazer dos versos e engolem ao mesmo tempo o tratamento filosófico”, escreve Wolff. Em “Tudo é corpo ou vazio”, Wolff expõe todo o materialismo de Epicuro-Lucrécio, para quem o ser, o único ser verdadeiro, é o corpo. E o não-ser, o vazio, e é nele que os corpos existem e graças ao qual eles se movem. Temer os deuses? Não. “Nós mesmos, nossos pensamentos, nossas almas, os deuses, tudo isso é corpo e vazio.” É inquietante? — pergunta Wolff. “Não, é assim. Não existe nada além dos corpos, nada aquém do vazio. Nada a temer nem esperar. Tudo está aqui, presente, dado. Já Antonio Medina nos leva à Grécia arcaica para falar dos dois lados do épico na construção do mundo: um é o modo de apropriação guerreira e sua consequência mais forte, a recomposição contínua de uma ideologia aristocrática; o outro consiste na visão de mundo em que a própria guerra de pilhagem mostra sua limitação transcendental e que podemos chamar de leis da hospitalidade, tal como mostra o texto de Homero que narra o encontro de Glaucon e Diomedes.”

As conferências de Newton Bignotto e Carlos Antônio Leite Brandão remetem às profundezas das intenções e contradições de dois dos maiores poetas da história: um é Dante com seu céu noturno, ou melhor, uma incursão pelo inferno e pelo purgatório; o outro é Shakespeare com os sonetos de amor, conflitos, esperanças e angústias. Há um Dante filósofo, diz Bignotto em sua palestra, que “conhece e analisa a filosofia tomista em busca de uma ordenação racional das estruturas do mundo”. Há também um Dante que questiona a ideia de que existe apenas uma verdade “fundada na perfeita consonância entre fé e razão”. Mas é na travessia pelo inferno e pelo purgatório que vemos o novo mundo que põe no centro das suas controvérsias o homem e suas misérias. Já a escolha dos sonetos de Shakespeare, escritos provavelmente entre 1593 e 1599, é vista como uma estratégia política para nossos tempos de incerteza. Carlos Brandão considera os sonetos uma das últimas manifestações de um mundo e de um pensamento pré-modernos: pensar sobre eles, afirma o autor, serve para avaliar se há naquilo que a modernidade marginalizou “alternativas para superarmos os limites do pensamento contemporâneo e construirmos nossa humanidade presente”.

A “máquina do mundo”, Canto X de Os Lusíadas de Camões, é laboriosamente analisada por João Adolfo Hansen, para quem o poema inclui todos os tempos: doutrina aristotélica da épica exposta na Poética, a emulação quinhentista das epopeias gregas (Homero) e latinas (Virgílio), a tópica renascentista do uomo universale, astronomia, ciências árabes, navegações…, enfim, uma consistente análise da mais importante das epopeias modernas.

O salto de Camões a Hölderlin, Baudelaire, Rimbaud e Valéry é grande, mas as questões que esses poetas põem têm enorme ressonância contemporânea. Amigo de Hegel e Schelling em Tubingen, Hölderlin é definido pela crítica como um dos mais originais e importantes pensadores do idealismo alemão. Mas foi sua obra poética, como nos lembra Antonio Cicero na conferência “Hölderlin e o destino do homem”, que influenciou não apenas os dois amigos de Tubingen, mas também o pensamento de Heidegger e Walter Benjamin. A partir da análise de um dos mais famosos poemas, Hipérion, Antonio Cicero pergunta: como relacionar as investigações filosóficas e a poética de Hölderlin para entender a história e o destino trágico do homem? O filósofo e poeta Michel Déguy retoma um fragmento do livro Poésie perdue de Paul Valéry para dizer que estamos não no “começo do mundo finito” como afirmara o poeta em 1895, mas sim no fim: para nós, do século XXI, observa Déguy, este “tempo do mundo finito” que se inicia por Valéry (mesmo que ele tivesse começado quatro séculos antes)… acabou. Denominamos este fim “mundialização”: “Um findar que não acaba de findar, como todo fim, é nosso problema: é algo que (re)começa bem, ou algo que acaba mal? A ‘globalização’ tanto destrói quanto recompõe o todo”. Déguy analisa a lucidez de Valéry, que inventa em prosa poética o que será teorizado quase cem anos depois ao escrever: “As questões, os enigmas necessários terão sido rebaixados. Nascer, sofrer, morrer não serão mais dificuldades. Haverá muito que a energia, os materiais, os seres vivos auxiliares estarão à disposição. O comércio e a indústria não mais existirão. Haverá uma única ciência e ela será quase inata. A Terra será apenas uma cidade. Nada mais será feito naturalmente — isto é, às cegas”.

Em Rimbaud, a questão é a liberdade. Partindo de um poema escrito em 1870, Marcelin Pleynet pergunta: “O que é que, embora livre por essência, busca sempre libertar-se?”. No seu ensaio, Pleynet responde a outras perguntas feitas por ele mesmo na conferência:

O que se quer saber sobre Rimbaud? Que sua obra, inicialmente marginalizada na categoria de poetas malditos, impôs-se de modo progressivo até despontar hoje como um acontecimento de grande importância na história da poesia e da prosa? Ou o que se procura saber é se, em consequência, e de forma não menos essencial, ela se apresenta hoje como o único pensamento capaz de esclarecer as muitas e sombrias contradições daquilo que se fez e se faz, em particular depois da Revolução Francesa de 1789, tantas vezes de maneira dramática em nome da liberdade?

Dois textos a partir de Flores do mal de Baudelaire ajudam a compor o quadro do poeta diante da modernidade: a professora Olgária Matos vai dizer que em um mundo sem homens e sem deuses realiza-se a antinomia kantiana de um Deus diabólico e um Demônio divino, pois, para Baudelaire, Satã é, ao mesmo tempo, o Senhor do Mal e o Grande Vencido. Para o crítico de arte Jorge Coli, Baudelaire foi, por sua poesia, a consciência, a vítima e o herói da modernidade. Recebe de herança Sade, os românticos e a metrópole industrial. As análises de Coli tomam como ponto de partida os “Projetos para um epílogo” de 1861 das Flores do mal, onde se pode ver Baudelaire como consciência do mundo e como consciência poética de si no mundo moderno.

O filósofo Benedito Nunes define A terra desolada e Quatro quartetos de Eliot como a expressões de que História e espírito humano podem fundir-se para realçar a força da convergência da poesia. Ressaltando a concepção platônica e agostiniana do mundo inerente à poesia de Eliot, o autor mostra que é na História que se opera a ascese, a depuração do espírito, por meio do qual o tempo se transforma em eternidade.

Márcio Suzuki retoma toda uma tradição de pensamento para demonstrar que Goethe é a expressão do poeta filósofo. Suzuki cita a célebre carta de Friedrich Schiller que atribui a Goethe o desejo de construir “geneticamente” a natureza, “desde suas figuras mais simples até as mais complexas, e só pôde dar conta da enorme tarefa porque era conduzido pela mão do seu próprio gênio, por um ‘instinto filosófico’ que o levava de maneira inconsciente, mas certeira, aos resultados mais altos que a razão especulativa poderia obter”. É a luta da alma com o espírito do mundo, observa Suzuki: não se pode querer entrar à força na “técnica secreta da natureza”, mas é preciso deixar que essa técnica secreta, que o “instinto filosófico” fale por si mesmo. “Neste sentido, não é propriamente o poeta que reflete sobre o mundo. É antes o mundo que o invade e se pensa nele”.

Mas como escrever o Livro do Mundo? Eis a pergunta que se põe Haquira Osakabe na sua análise de Fernando Pessoa a partir de Livro do desassossego. Um empregado de escritório — Bernardo Soares, semi-heterônimo de Fernando Pessoa — escreve, entre nomes de “fazendas e dinheiro”, o Livro do Mundo, que inclui “os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas de todas as eras, todos eles sem escrita, vasta prole expulsa dos que fazem a valia do mundo”. “Há algo de demiúrgico nesse simples ato de sentar-se à escrivaninha e lançar-se ao registro de somas, perdas e de pretensas operações aritméticas ou contábeis”, segundo Haquira Osakabe em sua conferência: “Assim, diz ele, o pesado livro vai tingindo suas páginas brancas da coloração da alma de seus autores, Pessoa, Bernardo Soares, ou, mais longinquamente, Vicente Guedes, e vai integrando em suas linhas e colunas o significado insuspeitado da existência que as personagens do escritório recobrem”.

Por fim, Marcelo Coelho nos traz um dos poetas contemporâneos mais originais, Francis Ponge. Ele investe sua poesia no mundo dos objetos: um pedaço de carne, o sabão, o cigarro, a chuva, uma árvore. Cada coisa liberta-se do seu mestre, diz Marcelo Coelho, que cita o crítico Maurice Blanchot: “A árvore de Francis Ponge é uma árvore que observou Francis Ponge e se descreve como imagina como ele poderia escrevê-la”. Mas o autor vai mais longe em sua conferência sobre Ponge: “ Tomar o ‘partido das coisas’, dessubjetirvar a poesia, entender o mundo externo sem fazer uso da perspectiva, ‘do ponto de vista do sujeito’, é tanto ‘ser dito’ pelo objeto quanto ‘ser lido’ pela linguagem. O poema que citamos, ‘a ardósia’, é a esse respeito significativo: apresenta-se como um elogio descritivo, duramente descritivo, da pedra ‘em si mesma’. Mas uma rede de citações ao livro, à lousa, à leitura também se faz rapidamente notar; e, em camadas sucessivas de texto, poderíamos descobrir nesse poema referências a Du Bellay, Dante, Poe, Mallarmé: a lousa é também morte, ameaça, queda, catastrophe, tombeau do próprio poeta, que na obscura ardósia se reflete”.

Poetas que pensaram o mundo propõe, pois, ao leitor, uma multiplicidade de caminhos. Não poderia ser de outra maneira: se o poeta procura interpretar os sonhos de uma época e encontra um campo de ruínas, seus poemas vão criar desvios e caminhos errantes, conscientes de que jamais chegarão ao fim e jamais encontrarão o caminho real.