2017

Tempo e história

por Marcelo Jasmin

Resumo

Os paradigmas tão primordiais quanto conhecidos do tempo cíclico e do tempo linear têm reaparecido de diferentes formas em escritos de cunho historiográfico. Vivemos atualmente o que se pode chamar de uma “aceleração do tempo” por meio de incontáveis transformações no campo da ciência e da tecnologia e também uma “diminuição do espaço” através da facilitação de interações físicas e virtuais, envolvendo pessoas e lugares, distâncias insuperáveis há relativamente pouco tempo. Mas, diante dessas novidades, “há pouco a esperar no sentido de uma alteração qualitativa das relações políticas, sociais e morais”, noção que se aproxima da dialética negativa de Adorno. Como defende Nicole Loraux, estamos diante de uma aceleração cujo sentido permanece obscuro. A história do século XX, marcada por acontecimentos trágicos e de alcance global (como as duas Grandes Guerras e a ameaça da aniquilação do homem pelo homem através de um terceiro conflito total), gerou traumas e desilusões, principalmente entre aqueles que ainda acreditavam num processo civilizacional crescente. A derrocada do socialismo também produziu pensamentos teleológicos próprios de nossa época, como o que foi defendido por Francis Fukuyama em seu controvertido livro O fim da história e o último homem. Em meio a tempos cíclicos e linearidades, e considerando que ambos são marcados por suas próprias revoluções e involuções (Voltaire), como seria possível pensar na construção do conhecimento histórico? Ensaiar respostas a essa pergunta capital é o que impulsiona a Filosofia da história. Já em meados do século XVIII Voltaire escrevia contra uma perspectiva erudita de uma história coletora de fatos sem fim e reivindicava que a razão humana buscasse um fio condutor sob os eventos. É certo que por traz dessa reivindicação havia o ideário iluminista e a busca particular de modelos de transformação na história estaria a serviço do aperfeiçoamento do homem civilizado. Assim, tais modelos virtuosos deveriam ser imolados. Eis outro problema incontornável para os historiadores: a politização da memória conflita com distanciamento metodológico necessário ao seu ofício. Seria preciso suspender o juízo temporariamente em favor do distanciamento do sujeito em relação ao seu objeto de estudo? Esse dilema não está isento dos inúmeros recortes de temas, de acontecimentos, ideologias, discursos particulares, somados, enfim, à própria experiência do pesquisador da área.


Nenhuma história universal conduziu do selvagem ao homem

civilizado; muito provavelmente há uma que leva da funda à

bomba atômica.

T. Adorno

Parece não haver nada, no horizonte de expectativas imaginadas nesta década e meia de século XXI, que desminta a afirmação pessimista de Adorno em sua Dialética negativa. Mesmo que mantenhamos ativa a crença de que a crítica da razão e do progresso são condições para o avanço da Auf klärung, os sinais de um progresso geral e persistente da humanidade (tal como concebido no âmbito dos iluminismos europeus e das filosofias da história e, portanto, distinto dos progressos particulares e localizados, da tecnologia, da ciência etc.) parecem desaparecidos, para dizermos o mínimo. Significa dizer que aquelas noções de tempo e de história que acompanharam as modernidades esclarecidas e liberais, assim como as perspectivas hegemônicas do socialismo do século passado, têm nos ajudado pouco na descrição e na compreensão do passado e do presente e ainda menos na previsão ou prescrição do futuro humano plausível ou desejável como faziam tais modernidades. Embora se leia muita historiografia hoje, as funções do conhecimento histórico parecem apontar antes para a erudição, para a detecção de permanências e mudanças, para a investigação da alteridade e da diferença e para o deleite da leitura do que para a orientação do agir ou o vislumbre do que se deve esperar ou do que poderá vir adiante. Apesar da rapidez com que a indústria da tecnologia de ponta apresenta os seus novos produtos e da inédita velocidade de obsolescência dos mesmos, há pouco a esperar no sentido de uma alteração qualitativa das relações políticas, sociais e morais. Como se tal mudança acelerada tivesse se tornado rotina e repetição.

Em inícios do século passado, intelectuais como Georges Sorel e Walter Benjamin imaginaram a possibilidade da interrupção do tempo e da história do capitalismo a partir da destruição e da catástrofe, seja pelo mito da greve proletária geral (Sorel), seja por algo assemelhado à violência divina[1]. Entre nós, hoje, a catástrofe parece ter se integrado ao horizonte de uma “normalidade” incômoda, de um cotidiano prenhe da experiência e da memória da guerra, do genocídio, do terror, da matança hodierna em nossas cidades, dos horrores diários veiculados na instantaneidade dos atuais meios de comunicação. Os seriados de TV trazem muitos e novos bandidos, “homens do mal” admirados não exatamente pelo que fazem, não propriamente por seus crimes, mas talvez, como dizia Sorel a respeito dos personagens do “grande criminoso”, por revelarem às avessas as amarras da ordem moral e a hipocrisia que ela nos exige para continuarmos a suportar a vida, como dissera Freud no eclodir da Primeira Guerra Mundial[2].

Quando se acreditava que o tempo era o da repetição ou da circularidade, a história teve a função de ensinar através dos seus exemplos, guiando os seres humanos no presente de incertezas, dando-lhes alguma segurança em relação ao futuro pela remissão incessante às narrativas dos feitos dos antepassados, vitoriosos ou fracassados. Quando se concebeu o tempo como uma linha infinita pela qual transcorria um processo consistente de mudanças que deixava o passado para trás, a história foi alçada ao patamar de ciência da humanidade, ganhou unidade ontológica, direção e significado, tornando-se a principal responsável por indicar os caminhos para um futuro mais ou menos seguro, por vezes redentor. Sem linha nem círculo, o tempo de hoje parece combinar a latência inultrapassável do “bárbaro” ou do “primitivo” – como antípodas do “civilizado” – com os raios velozes de uma tecnologia renovada sem fim e sem significado. As mutações contemporâneas da história se dão num espaço dividido com a memória e com o testemunho, e as tecnologias do registro da imagem, do som e do movimento inundam o presente de passado, reivindicando, talvez, a nossa atenção para modos não convencionais ao historiador. Nas últimas três ou quatro décadas ficamos mais “convencidos da ironia da história, ou da violência de seus movimentos de aceleração do que da evidência de seu sentido”, como afirmara Nicole Loraux no ciclo de conferências Tempo e história, organizado por Adauto Novaes em 1992, e que celebramos neste texto[3].

* * *

O convite de Adauto Novaes para participar deste ciclo de conferências que comemora trinta anos de intensa atividade de pensamento, reflexão e crítica, para tratar do tema “Tempo e história”, foi para mim uma grande honra e a reafirmação de uma amizade intelectual que tem proporcionado uma experiência de diálogo crítico, polifônico, instigante e desafiador rara no mundo acadêmico e intelectual de hoje. E se foi com muita alegria que aceitei o convite, é também com grande respeito e com algum temor que participo dessa obra de trinta anos com uma pequena contribuição ao concerto de vozes que compõem esse patrimônio cultural justamente elogiado por Antonio Candido no pequeno texto em homenagem a Adauto Novaes que se publicou no caderno de resumos do presente ciclo.

Ao reler os artigos daquele livro publicado pela Companhia das Letras e que registrava o resultado do ciclo de palestras daquele ano de 1992, refiz uma viagem maravilhosa por entre as palavras de José Américo Pessanha, Nicole Loraux, Catherine Darbo-Pechanski, Gerd Bornheim, Claude Lefort, Benedito Nunes, Franklin Leopoldo, José Leite Lopes, Olgária Matos, Newton Bignotto, Miguel Abensour e tantos outros textos que avaliavam os mais diferentes aspectos da discussão teórica acerca do tempo e da história, assim como a crítica das efemérides do momento: os marcos da Semana de Arte de 1922 e do modernismo, de 1792 e do Terror revolucionário francês, e de 1492, o registro da descoberta da América pelos europeus ou o da invasão europeia das terras indígenas americanas, a depender da narrativa a que se recorresse.

O primeiro impulso quis elaborar uma espécie de balanço das questões que, desde então, vêm se desenvolvendo no campo dos estudos da teoria da história e, especialmente, em sua relação com o tempo, mas felizmente logo percebi a desmesura de lidar sinteticamente com as mutações pelas quais estamos passando desde aquele ano de 1992, ao mesmo tempo tão perto e tão longe do nosso aqui e agora. Em 1992, a queda do Muro de Berlim e a desmontagem do comunismo soviético ainda eram novidades, e Francis Fukuyama publicava o seu livro então altamente provocador, O fim da história e o último homem, no qual proclamava a vitória final do capitalismo mundial e da democracia representativa sobre o comunismo e, consequentemente, o encerramento da dialética que fizera mover os conflitos e a história desde o final do século XVIII. O capitalismo parecia se renovar, e, embora ainda não existisse o euro como moeda única europeia, a sua ideia já recebera aprovação. Boris Yeltsin lutava contra o Soviete Supremo pelas reformas, enquanto Miloševic era sagrado, pela segunda vez, presidente da Sérvia. Bill Clinton se elegia presidente nos Estados Unidos pela primeira vez, e o que um dia conhecemos como Tchecoslováquia viveu o seu último ano de existência como um país unificado. Naquele ano de 1992, o então tenente-coronel Hugo Chávez fracassava na sua tentativa de tomar o poder político na Venezuela por via militar. No Rio de Janeiro se reunia a conferência sobre o meio ambiente, a ECO-92, mas as Olimpíadas aconteciam em Barcelona. Na cidade de São Paulo assistimos aterrorizados ao massacre na penitenciária do Carandiru (no ano seguinte viveríamos a chacina da Candelária no Rio, mas ainda não o sabíamos). O impeachment, no Brasil, era o de Fernando Collor de Mello.

Muita coisa aconteceu de lá para cá, e uma lista minimamente consistente levaria dias para ser lida, mas ainda assim deixaria a impressão de sua incompletude. Certamente não poderíamos deixar de lembrar a radical reconfiguração do mapa nacional do Centro e do Leste europeus, as guerras étnicas que pareceram reemergir do fundo da história, os atentados de 11 de Setembro e as represálias com as guerras do Iraque e do Afeganistão. No Brasil seria impossível esquecer que um operário foi eleito presidente do Brasil por um Partido dos Trabalhadores, e que na América do Sul movimentos originados à esquerda prometeram renovar o quadro social e político também na Argentina, na Bolívia, no Equador e na Venezuela. Que outros marcos escolheríamos para traçar, como pedrinhas, os caminhos trilhados pelas populações no Brasil e no mundo? E como fazê-lo sem cair nos tradicionais vieses raciais, nacionais, de gênero ou religiosos que vêm sendo sistematicamente denunciados na elaboração dessas cronologias e de todo tipo de história universal? Parece que hoje uma perspectiva abrangente exigiria a reencarnação daquele judeu errante, Ahasverus, condenado a vagar eternamente pelos eventos do mundo e que seria, no dizer de Kracauer, o único a ter “um conhecimento de primeira mão dos desenvolvimentos e transições, porque só ele, em toda a história, teria tido a oportunidade não intencionada de experimentar o processo do devir e da decadência[4]”. Esse mesmo Ahasverus, contudo, condenado a mover-se incessantemente e a nada esquecer, “carregado com seu fardo de recordações, memória viva do passado do qual é infeliz guardião”, tornou-se objeto de nossa compaixão, pois, como nos assevera o historiador italiano Enzo Traverso, “não encarna nenhuma sabedoria, nenhuma memória virtuosa e educadora, mas unicamente um tempo cronológico homogêneo e vazio[5]”.

Excesso de erudição e tempo homogêneo por muitas vezes se combinaram. Em meados do século XVIII, Voltaire escrevia contra uma perspectiva erudita de uma história coletora de fatos sem fim e reivindicava que a razão humana buscasse um fio condutor sob os eventos registrados pela história, de modo que ao acúmulo de informações deveria substituir-se uma filosofia da história, um pensamento que buscasse um significado para as épocas e para o desenrolar da história humana, escapando, simultaneamente, dos excessos detalhistas, do acúmulo sem fim da informação e da ausência de propósito da história humana. Todavia, o próprio Voltaire nutria certo ceticismo acerca desse sonho iluminista que ele formulava conceitualmente pela primeira vez. É exemplar, nesse sentido, o primeiro capítulo d’O século de Luís XIV, em que o philosophe estabelece quais seriam as grandes épocas da humanidade. A Grécia clássica, a Roma imperial e republicana, o Renascimento italiano e a época de Luís XIV. Contudo, as três primeiras teriam sido sucedidas por períodos de trevas, de decadência, de catástrofe cultural, de involução do saber e das ciências. O período macedônico, a Idade Média e as guerras de religião na Europa demonstravam que os progressos alcançados nos períodos antecedentes não haviam sido sustentáveis, embora vistos do momento em que Voltaire escreve o conjunto pudesse sugerir um avanço mais ou menos consistente, embora sofrido, da razão humana[6].

Para nós, neste início de século XXI, a busca de um sentido, uma direção e um significado para a história humana parece inteiramente inacessível, se não incompreensível. Entre nós, esse sonho não é passível de ser levado adiante com serenidade. Escolho, então, no período que nos separa daquele início dos anos 1990, dois fragmentos dentre os tantos eventos significativos que me parecem importar à pesquisa das mutações e sem os quais, penso, teríamos dificuldade de nos reconhecermos no mundo de hoje: em 1990, dois anos antes daquele seminário, foi instalada a primeira rede de telefonia celular no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro; e em 1995, três anos após o seminário, foi liberado o uso comercial da internet. Significa dizer, por exemplo, que não tínhamos, de modo acessível à população em geral, nem e-mail, nem Facebook, nem páginas digitais ou jornais on-line. Penso que não precisamos de muito mais para descobrirmos como nos transformamos de repente: de lá para cá, no mundo inteiro, o enorme desenvolvimento da instantaneidade e da globalização da informação alcançou o que, comparativamente, nos parece ser o seu paroxismo, embora provavelmente não o seja, e uma quantidade sem precedentes de bits invadiram os nossos lares, nossos locais de trabalho e de lazer, primeiro pelas telas televisivas e logo em seguida através de nossos computadores e telefones celulares, 24 horas por dia, qualquer que seja o dia, sem descanso e quase sem respiração.

Penso que essas referências básicas são suficientes para nos darmos conta do quão relativas são as nossas medidas temporais. Ninguém poderia responder ao certo se é pouco ou muito esse tempo que se passou entre 1992 e 2016. A resposta tradicional, métrica, espacial – que afirmaria matematicamente que se passaram 24 anos – não nos diz muita coisa de relevante sobre o que pode interessar às questões da história e do tempo. Henri Bergson e Martin Heidegger, na primeira parte do século XX, já chamaram a nossa atenção para as dificuldades de se lidar com o tempo através de medidas espaciais, métricas, e termos como intensidade, duração, instantaneidade, historicidade e simultaneidade se difundiram na tentativa de dar conta dos fenômenos temporais cuja comensurabilidade se mostrava, no mínimo, problemática.

É verdade que quando comparamos esses vinte e poucos anos a outros períodos da história conhecida, percebemos que vivemos uma aceleração inédita do tempo, cujo parentesco mais próximo seria com a Revolução Industrial europeia de finais do século XVIII e inícios do XIX, embora permaneçam as dificuldades da comparação. De todo modo, naquele momento, vários dos processos que experimentamos hoje ganharam impulso e intensidade, como a integração mundial sem precedentes de todas as esferas da vida, a sensação da aceleração crescente do tempo, associada à radical redução das distâncias do mundo: Ocidente, Oriente, África, todos os continentes e todas as regiões nunca pareceram estar tão próximos de nós e entre si. Tempo e espaço, duas categorias sem as quais não se pode falar em história, se transformaram radicalmente. As expectativas de futuro que tínhamos em nossos horizontes do possível em 1992 não se realizaram como se podia então prever, de modo que o presente visto daqui em grande parte não se coaduna com o futuro visto de lá. Fukuyama reviu a sua tese em tom autocrítico. Não há segurança na transmissão da experiência anterior para as gerações futuras. Parece que vivemos uma espécie de fragmentação dos tempos históricos na qual cada geração tem um acesso direto, imediato, ao que a ela se apresenta sem que possa se beneficiar da preparação e do aprendizado transmitidos pela sabedoria e pela tradição. Sobre isso, aliás, já nos alertava Walter Benjamin, logo após a Primeira Guerra Mundial, na sua distinção entre a experiência vivida diretamente na emergência mesma do momento (Erlebnis) e a experiência transmitida (Erfahrung) pela linguagem ao longo das gerações.

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É muito difícil afirmarmos com precisão a partir de quando passamos a viver sob essa nova relação com o tempo. Alguns historiadores nos lembram que ainda nos anos 1960 a juventude no Ocidente estava prenhe de projetos generosos de futuro, e tais esperanças só viriam a esmorecer definitivamente com o fim do comunismo e a consolidação de um fosso entre o contemporâneo e as crenças na continuidade e no progresso da história. Outros pensadores, na esteira de Walter Benjamin, observaram retrospectivamente essa descontinuidade dos tempos históricos e a dificuldade de estabelecermos um nexo significativo entre os eventos da história mundial, ao longo de todo o século passado, e viram na Primeira Guerra Mundial a experiência que “questionou quase todos os supostos básicos sobre a natureza do tempo histórico”, aí incluída a suposição de que haveria “continuidade da história humana”[7].

Como afirmou recentemente o historiador Lucian Hölscher, com quem tendo a concordar neste ponto:

A aceitação da ideia de que o tempo histórico é descontínuo foi uma consequência necessária das experiências históricas que mudaram a compreensão europeia da história durante e após a Primeira Guerra Mundial. Mesmo hoje, um século depois, esta mudança não pode ser revista sem danos aos que a sofreram e aprenderam com ela. Defender a continuidade do tempo histórico implicaria negar as experiências dos que passaram pelas atrocidades da guerra; daqueles que foram iludidos por suas crenças na justiça divina e no progresso da cultura, da civilização e da natureza humana. Para a maior parte dos contemporâneos [dos anos 1920], o mundo após a guerra não tinha mais nada a ver com quaisquer noções de futuro anteriores a ela. O futuro daquele passado [antes da guerra] não era propriamente este presente [depois da guerra], e do mesmo modo que mudara o futuro, também mudara o passado […]. A guerra fez mais do que marcar o fim de uma época e o começo de outra: ela pôs fim a um modo de pensar acerca da história, um modo de conceituar o tempo[8].

A sequência dos eventos do século XX não deixaria de alimentar essa descontinuidade. Provavelmente, a consequência mais duradoura dessas rupturas foi o que poderíamos chamar de desnaturalização do tempo, uma consciência progressiva de que aquilo que chamamos tempo não se resume a um dado natural e cosmológico. O tempo ganhou complexidade, profundidade, historicidade e se transformou em objeto de estudo dos historiadores, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. A relação entre presente, passado e futuro deixou de ser vista como a sequência cronológica neutra para ganhar densidade em “estratos do tempo[9]”.

Mas não foi apenas a partir dessa experiência da ruptura temporal que a história perdeu a sua unidade épica – como história universal que narrava a totalidade ordenada da aventura humana na Terra – e se fragmentou no século XX. As sucessivas experiências catastróficas do último século puseram na linha de frente da observação historiadora o tema do trauma, da “ferida psíquica que não cura” e que parece estar na origem da inundação de memória a que assistimos nas sociedades ocidentais no último terço daquele século. Nas palavras da egiptóloga e professora de estudos literários Aleida Assmann:

As conquistas assassinas e as guerras destrutivas dos impérios e nações ocidentais constituem um passado “quente” [hot past] que não desaparece automaticamente em virtude da mera passagem do tempo, mas permanece presente nas terras ensanguentadas [bloodlands] da Europa e de toda parte do mundo. Quando chegamos ao trauma não há divisão entre o reino da experiência e o horizonte de expectativa; pelo contrário, passado, presente e futuro se fundem de vários modos. Por isso, esses crimes contra a humanidade, como hoje os chamamos, não desapareceram silenciosamente mas reapareceram nos anos 1980 e 1990 com um impacto impressionante. Junto com o retorno de passados traumáticos, testemunhamos uma dramática alteração no paradigma da escrita da história, na qual a perspectiva das vítimas pôs em xeque aquela dos vencedores. Vivemos agora num mundo em que, por todo o globo, as vítimas do colonialismo, da escravidão, do holocausto, das guerras mundiais, dos genocídios, das ditaduras, do apartheid e de outros crimes contra a humanidade elevam as suas vozes

para contar a história de seu ponto de vista e reclamar por uma nova perspectiva da história[10].

Nesse contexto traumático, o passado não pode ser identificado ao conjunto asséptico de fatos subsumíveis à pesquisa acadêmica, como gostariam de concebê-lo algumas das perspectivas mais científicas da historiografia dos séculos passados. O passado, através da memória e do trauma, é reiteradamente reconectado com o presente a partir de laços políticos, morais e afetivos que exigem a identificação de responsabilidades criminosas, reparações de vários tipos e mesmo julgamentos posteriores com pedidos de condenação e prisão.

Como afirmou outro historiador contemporâneo, Chris Lorenz: “A suposição de que um presente ‘quente’ [hot present] vai se transformar em um passado frio [cold past] é a estrutura temporal favorita daqueles que preferem deixar o passado descansar. Com frequência, é o quadro temporal preferido por aqueles que têm de temer a sentença da lei[11]”.

A noção de crimes imprescritíveis fez o seu caminho por essa via e muitas vezes se reivindicou a participação dos historiadores em comissões da verdade, nos processos de justiça de transição e em julgamentos políticos. As linhas de separação entre a verdade histórica produzida pela compreensão dos eventos do passado e a decisão jurídica voltada para a imputação de responsabilidade e condenação criminosa tornaram-se, por vezes, perigosamente tênues.

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Temos, então, aqui, duas dimensões significativas das mutações que o tema da história vem sofrendo nestes últimos anos. De um lado, a percepção de como o passado tem se tornado tão presente e tão plural em nossos cotidianos – um fenômeno especialmente visível na invasão da memória no espaço público e na forte politização do passado; de outro, a radical desnaturalização do tempo e das relações entre passado, presente e futuro – especialmente visível na florescente história do tempo e na reflexão historiográfica acerca da temporalidade.

Tenho duas hipóteses para indicar. A primeira é a de que essa emergência e a politização da memória, que implicam uma forte presença do passado em nossos cotidianos, têm representado um desafio aos cânones de uma historiografia acostumada à noção de que o objeto do historiador seria o passado em si, algo que não é mais e, como tal, deveria ser posto à distância metodológica e compreendido de um ponto de vista afastado que viabilizasse a suspensão, ainda que temporária, do juízo. Nesse contexto de emergência da memória no espaço público, especialmente na difusão midiática, em enorme velocidade, de imagens e recordações, de testemunhos autênticos, mas também de versões falsas e irresponsáveis, a memória coloniza a imaginação pública e ameaça se confundir com a história. A segunda hipótese é a de que a reflexão teórica e historiográfica contemporânea acerca da pluralidade dos regimes temporais oferece um caminho profícuo, se não profilático, para lidar com a presença do passado em tempos contemporâneos e avaliar as nossas dificuldades em lidar com o futuro. Num contexto de “passado quente” a expertise historiográfica na crítica das fontes e nas várias formas de contextualização se tornam ainda mais imprescindíveis.

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O tema da memória tem sido exaustivamente discutido, dentro e fora do mundo acadêmico, e seria necessário um longo excurso acerca das suas relações com a história para pormos o problema em termos minimamente rigorosos, o que não se pode fazer aqui. Recorro a alguns poucos elementos relativos ao dilema acima referido, elaborados a partir de leituras diversas, com especial atenção às ponderações do já citado Enzo Traverso que me parecem conseguir o difícil equilíbrio entre a necessidade de incorporar as memórias e seus fundamentos subjetivos ao relato da história e a incontornável insistência no caráter crítico do trabalho historiográfico e de seu compromisso com o factual e o verdadeiro.

Extraída da experiência vivida, no sentido de Walter Benjamin, a memória é eminentemente pessoal e subjetiva em sua primeira enunciação. Nasce do que assistimos, sofremos, vivemos, de fatos de que fomos testemunhas e mesmo atores, e resulta das impressões que tais vivências gravaram em nosso espírito. É nesse sentido primário que podemos dizer que a memória é qualitativa e singular, não se preocupando com comparações ou contextualizações. “O portador de uma memória não necessita de provas. O relato do passado de um testemunho – sempre e quando não seja um mentiroso consciente – sempre será a sua verdade, ou seja, a imagem do passado depositada nele[12].” Mas sabemos também que essa impressão inicial, mesmo quando duradoura, não se fixa definitivamente, e vai sendo reelaborada à medida que vivemos, ressignificamos nossas experiências, as racionalizamos numa narrativa sempre aberta e revista em função do que experimentamos e dos inevitáveis lapsos derivados ou não do trauma.

[A memória] se parece mais com uma obra aberta […] se modifica diariamente graças ao esquecimento que nos atinge, para reaparecer depois, por vezes muito depois, tecida de uma forma distinta daquela da primeira recordação. O tempo não apenas erode e debilita a recordação. A memória é uma construção, sempre filtrada por conhecimentos adquiridos posteriormente, graças às reflexões que se seguem aos acontecimentos, graças a outras experiências que se superpõem à primeira e modificam a recordação[13].

Seria correto afirmar que a história – enquanto conhecimento cientificamente orientado – também sofre de males semelhantes, pois revê o passado à luz de novas experiências presentes, de pensamentos antes impensáveis, de descobertas acerca da vida em geral. A revelação de documentos antigos até então desconhecidos ou a divulgação de novas memórias atuais acerca de fatos passados também transforma a historiografia numa espécie de obra aberta. A memória, ou melhor, as memórias trazidas pelos novos testemunhos tendem a humanizar a história, a enriquecê-la com a trama da experiência vivida, a revelar verdades que dificilmente seriam acessíveis pelas tradicionais vias documentais, como nos casos notórios da tortura de prisioneiros ou dos campos de extermínio. Para usar a metáfora de Chris Lorenz, a verdade testemunhada pela memória dá calor à história, lhe dá alma, humaniza.

Contudo,

Se semelhante “contaminação” da historiografia por parte da memória revelou-se extremamente frutífera, não se deve […] ocultar uma constatação metodológica tão banal quanto essencial, a saber, que a memória singulariza a história, na medida em que é profundamente subjetiva, seletiva [absoluta, eu diria] e, com frequência, desrespeitosa das escansões cronológicas e indiferente a reconstruções [mais abrangentes]. Sua percepção do passado só pode ser irredutivelmente singular[14].

Por isso, se o historiador tem por obrigação incorporar tais memórias como fontes em sua documentação e explorá-las cuidadosamente, tem também o dever de não se submeter a elas no sentido de confundir a verdade do testemunho com a verdade do relato histórico.

[O historiador] não tem o direito de transformar a singularidade desta [ou daquela] memória num prisma normativo de escrita da história. Sua tarefa consiste, sobretudo, em inscrever esta singularidade da experiência vivida em um contexto histórico, tratando de esclarecer as causas, as condições, as estruturas, a dinâmica do conjunto. Isto significa aprender com a memória ao mesmo tempo em que a examina e a submete a um processo de verificação objetiva, empírica, documental, fática, assinalando, se necessário, as suas contradições e armadilhas[15].

Não se trata aqui de reviver formulações clássicas do positivismo ou negar as muitas inscrições mais ou menos subjetivas do trabalho dos historiadores ou dos juízos emitidos por eles, mas de manter ativa a distinção entre um conhecimento crítico e racionalmente construído pelo historiador, que exige uma disposição compreensiva e polifônica em relação às vozes do passado – o que não deve ser confundido com justificativa –, e as afirmações também verdadeiras que derivam do ponto de vista da experiência vivida[16].

Nesse sentido, parece-me que é tarefa do historiador trazer as memórias para dentro de sua investigação, incorporá-las em sua análise, aprender seus conteúdos, criticá-los e pô-los num contexto polêmico que permita a visualização das muitas possibilidades e sensibilidades humanas investidas neste ou naquele momento. Significa abrir mão daquele discurso unívoco, certeiro, que pretendia uma narrativa definitiva do que realmente aconteceu, e reconhecer a polifonia da história, a agonia de seus personagens, a multiplicidade do sofrimento humano presente nos conflitos e nas misérias em que se enredam os nossos contemporâneos como os nossos antepassados. Significa, ainda, reconhecer que a dor, os testemunhos e os traumas dos próprios historiadores são parte integrante de sua atividade profissional.

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A mesma impossibilidade de um discurso unívoco da história se apresenta quando revisitamos as muitas noções de futuro que a historiografia investiga pela história dos regimes temporais e, especialmente, pelo reconhecimento de que nos horizontes de expectativas que reconhecemos em cada período histórico as esperanças de futuro ali manifestas poucas vezes se realizaram naquilo que aconteceu na sequência temporal. O que se imaginou, num dado momento, que iria acontecer mais adiante não se confunde com os demais tempos presentes que se sucederam, indicando uma dialética fascinante entre expectativa e realização.

O tempo não é coisa que se defina de modo claro e distinto. O que chamamos tempo é tanto a condição de toda experiência, como também uma variedade de formas culturais de conceber o decorrer da vida em geral e da vida humana em particular. A historiografia, o trabalho dos historiadores, resulta sempre numa operação contra o tempo no sentido de apostar na preservação intelectual daquilo que, como fenômeno, está fadado ao desaparecimento. Mas os modos pelos quais grupos humanos e sociedades inteiras conceberam o que o tempo é, o que faz conosco e o que podemos fazer com ele, não foram sempre os mesmos.

Quando Heródoto ou Tucídides produziam a imortalização dos feitos humanos pela operação dos relatos históricos, no século V a.C., supunham que a utilidade de seu conhecimento estava no caráter exemplar das histórias que forneceriam paradigmas de conduta aos que viessem a agir em qualquer outro presente no futuro. Supunham a existência de um certo continuum temporal no qual as circunstâncias futuras seriam análogas àquelas que narravam. Imaginavam um futuro semelhante ao seu próprio presente e ao seu passado, de modo que as lições que apresentavam em seus relatos serviriam para sempre. Certamente não podiam conhecer o futuro, mas imaginavam, concebiam, esperavam que o futuro fosse como o presente, povoado por homens e mulheres semelhantes aos que conheciam, por circunstâncias análogas, por batalhas que se espelhariam naquelas por eles narradas.

Cícero chamou essa história de mestra da vida porque suas narrativas ensinavam aos homens, independentemente do tempo em que vivessem, como se conduzir em cada circunstância presente, política ou guerreira. Acostumamo-nos a ouvir que os antigos concebiam o tempo ciclicamente, o que não sei se é a melhor maneira de nos referirmos a essas concepções na historiografia clássica, mas há, certamente, um tempo da repetição dos eventos e das circunstâncias em que os seres humanos se encontram. Não era suposto que as coisas seguissem sempre numa mesma ordem, numa sequência eternamente idêntica a si mesma, embora possamos encontrar essa figura do tempo, por exemplo, no ciclo das formas de governo tal como descrito na história de Políbio. Mas acreditava-se tanto numa certa regularidade dos modos de vida, como na estabilidade da própria natureza do homem, o que viabilizava a imaginação de uma estrutura temporal na qual a projeção do futuro estava colonizada pelo que já acontecera. O “horizonte de expectativas”, para usarmos as categorias meta-históricas de Reinhart Koselleck, aparecia colonizado pelo “espaço de experiências[17]”.

Bem diferente seria a experiência temporal dos modernos e, com ela, as suas concepções acerca do que a história é ou do que se pode fazer dela e com ela. Se há algo que as filosofias históricas da modernidade acreditavam ter descoberto era que a história humana não se repetia indefinidamente porque havia algo inscrito na natureza humana que a fazia transformar o mundo de modo permanente e em novas direções até então desconhecidas. As concepções de homem nessa modernidade, especialmente a partir do século XVIII europeu, apreendem um ser humano dotado do que Ernst Cassirer chamou de libido sciendi, uma energia jamais satisfeita de querer sempre saber mais, que se adequa à faculdade da perfectibilidade que impulsiona os seres humanos para o esclarecimento de todas as coisas[18]. Retornamos à referência feita anteriormente aos iluminismos europeus e sua busca, sob as muitas histórias relatadas, daquele fio condutor que viabilizaria a filosofia da história, pensada por Voltaire em seu Ensaio sobre os costumes, que forneceria um sentido à totalidade da aventura humana na Terra.

Os olhares iluministas não se interessavam mais pelas histórias no plural, cada uma delas dotada de uma exemplaridade específica que poderia servir de orientação para a ação humana num futuro qualquer. Tratava-se aqui da história universal, de uma história só, enunciada no singular coletivo, grafada em várias línguas com letra maiúscula, e que reunia os diversos momentos da vida humana num único processo de desenvolvimento da humanidade, das cavernas ao contemporâneo, da barbárie à civilização, como se acreditou naquele final de século XVIII. Vislumbrou-se outra experiência muito diferente da história, tanto o objeto como o seu conhecimento, e outra sensibilidade temporal que não se coadunava com a repetição mas, sim, com a mudança permanente e com o progresso. Poderia haver, sim, repetições e involuções, mas não eram estas as prioridades do olhar do historiador filósofo do Iluminismo. Pelo contrário, a sua atenção estará voltada para aquelas transformações fundamentais que alteraram a própria condição humana, os modos de vida e as circunstâncias em que se encontram os seres humanos a cada momento do tempo.

Falamos aqui, com frequência, de um tempo linear, uma seta apontada para o infinito na direção de um télos sempre aperfeiçoável, seja a liberdade, a igualdade ou a felicidade. Todavia, essa metáfora da linha não deve nos enganar. Não se concebiam processos sem reviravoltas, como se o espírito não encontrasse resistência e retrocesso em sua caminhada em direção à autodeterminação ou à autoconsciência. Pelo contrário, o processo histórico universal aparecia carregado de lutas encarniçadas, de retornos a condições anteriores do saber, de involuções e de revoluções, como já se referiu a respeito de Voltaire. O resultado da pesquisa esclarecida, no entanto, como no caso de Adam Smith e Adam Ferguson, entre outros escoceses que conceberam o que chamaram de história natural da humanidade, era a determinação de uma sequência de etapas que a humanidade teria passado ao longo dos milênios de sua existência e que revelaria padrões consistentes de desenvolvimento na divisão social do trabalho, passando por várias revoluções, que representariam os progressos na autonomia da espécie humana em relação à natureza. Nesse contexto, apesar dos manifestos ceticismos, o tempo ganhou atributos ausentes no modelo antigo, especialmente o caráter de portador da mudança permanente em direção a um futuro promissor.

Há pouco disso entre nós hoje. Aprendemos a olhar para o futuro de outros modos, mas também aprendemos a compreender como os horizontes de futuro de épocas passadas não se confundem com os nossos. É no mínimo curioso observarmos a heterogeneidade do que aparecia como legítimo no caminho para o futuro melhor naqueles dias do Iluminismo e as nossas certezas humanistas acerca dos direitos humanos, por exemplo.

Exemplifico o ponto com duas passagens retiradas das histórias dos suplícios físicos a que eram submetidos os criminosos à época da Enciclopédia e da discussão, à época da Revolução Francesa, das virtudes da guilhotina como forma privilegiada para a execução de criminosos, ambas trabalhadas pelo historiador e teórico da arte Daniel Arasse, em livro intitulado A guilhotina e o imaginário do Terror[19]. A primeira delas referese ao verbete “Anatomia”, redigido em “boa lógica filosófica” pelo bom Diderot para a Enciclopédia, no qual o philosophe defende a tese de que o suplício dos criminosos deveria ser feito por vivissecção, sem anestesia à época, é claro, substituindo-se a roda de suplícios, a fogueira e o cadafalso pelo anfiteatro médico, de modo que cirurgiões e anatomistas pudessem retirar dessas experiências os progressos da ciência.

A anatomia, a medicina e a cirurgia não encontrariam vantagens nessa condição? Quanto aos criminosos, não há um que prefira a morte certa a uma operação dolorosa; e quem, para não ser executado, não se submeteria à injeção de licores no sangue, ou à transfusão deste fluido, e não permitiria que lhe amputassem a coxa na articulação, ou que lhe removessem o baço, ou que lhe retirassem uma porção qualquer do cérebro, ou que fossem ligadas as suas artérias mamárias e epigástricas, ou serrada uma porção de dois ou três pedaços, ou cortado seu intestino ali onde se ligam a parte superior e a inferior, ou que lhe abrissem o esôfago, ou se ligassem os vasos espermáticos sem envolver o nervo, ou ensaiar qualquer outra operação em qualquer outra víscera. As vantagens desses ensaios são suficientes para aqueles que sabem se contentar com a razão […][20].

Como nota Arasse, Diderot não cogita a abolição do suplício ou o abrandamento das penas, como pensaríamos ser uma atitude progressista hoje. O que ele propõe é “rentabilizar” o suplício, fazê-lo contribuir para o progresso da razão filantrópica, em nome da humanidade. Afinal, pergunta-se Diderot no mesmo verbete: “O que é a humanidade senão uma disposição habitual do coração a empregar as nossas faculdades a benefício do gênero humano? Isto posto, o que há de desumano na dissecação de um malvado?[21]”. O que ali se propunha, com detalhes anatômicos, como medida humanitária a benefício de todos, seria qualificado como tortura e desumanidade pelos nossos manuais mais conservadores. Mas a separação dos horizontes mentais e temporais entre as épocas, trabalho obrigatório para a historiografia, mas nem sempre para a memória, nos permitiria compreender os sentidos próprios que Diderot e seu contexto atribuíam às noções de humanidade, filantropia, ciência etc.

A segunda referência que ilustra o questionamento da continuidade entre o que lá se considerava progresso e o que vinculamos hoje a essa palavra está na história da guilhotina, tão associada à Revolução Francesa e ao Terror. Não preciso insistir que ela não foi uma invenção francesa, nem que não foi exclusividade da revolução, nem que o médico – que fora jesuíta – Joseph-Ignace Guillotin não foi o seu inventor, nem que esse senhor não foi executado na sua suposta invenção. Nada disso aconteceu, embora a memória difusa nos faça acreditar ainda hoje em todas essas coisas.

Monsieur Guillotin era um homem de preocupações humanitárias. Aos 50 anos propôs ao rei a petição dos cidadãos parisienses que reivindicava, para o terceiro estado, um número de deputados no mínimo igual ao dos demais estados. Foi eleito deputado em 1789 e participou do grupo daqueles que reclamavam, “quando não a abolição da pena de morte, pelo menos o abrandamento das penas e o fim dos suplícios[22]”. A discussão humanitária e progressista que levara à adoção da guilhotina pela revolução já se arrastava havia décadas. Num concurso organizado pela Sociedade dos Cidadãos de Neuchâtel, em 1777, Marat apresentara o seu Plano de legislação criminal, cujo mote era conciliar a certeza do castigo com a sua suavidade. Nele lemos que “[a]s penas raramente devem ser capitais […]. E mesmo nos casos mais graves (liberticídio, parricídio, fratricídio, assassinato de um amigo ou de um benfeitor) […] que a morte seja suave [douce no original][23]”.

Nesse contexto, a ideia de Guillotin era simplesmente aprimorar tecnicamente um método de execução já utilizado na Itália, na Inglaterra, na Alemanha, e mesmo na França, e cujas maiores virtudes humanitárias se mostravam num triplo sentido: por um lado, o mecanismo de lâmina afiada era muito mais eficiente em seu desígnio do que o uso de machados ou espadas por parte de carrascos – a velocidade e a precisão da decepagem evitaria o suplício cruel, anulando a dor; em segundo lugar, se promoveria uma humanização do público espectador que deixaria de participar dos horrores prolongados dos tradicionais suplícios da morte pública, sendo esta agora reduzida ao rápido espirrar do sangue e à coleta da cabeça ao cesto; finalmente, se aboliria também a figura ancestral do carrasco e a relação direta, corpo a corpo, entre este e o condenado, para substituí-las pela “simples mecânica”, pela mediação impessoal de uma máquina que exigia apenas um acionador qualquer (como posteriormente na cadeira elétrica ou na injeção letal)[24].

Vale ainda lembrar que tal aproximação entre eficiência da execução e suavidade da morte – que seria associada à velocidade e à precisão da guilhotina – estivera, antes da revolução, reservada aos nobres que, quando condenados à morte, tinham direito a ser executados pela lâmina de espada ou à mannaia, e não pelo machado. As propostas de humanização da execução, de Marat a Guillotin, eram, portanto, também um libelo igualitário, e o uso generalizado da guilhotina seria mais um passo na abolição dos privilégios nobiliárquicos, o “privilégio aristocrático da decapitação”. “Ao propor um emprego igualitário da máquina, Guillotin anula[va] esse privilégio[25]”.

Se naquele fim de século XVIII podemos surpreender na adoção da guilhotina uma suavização dos suplícios compreendida como progresso da humanidade, vista daqui aparece como origem de uma mutação perversa. Como notou Enzo Traverso em seu livro sobre a violência nazista:

Por trás do espetáculo e da festa do massacre, a guilhotina oculta o início de um giro histórico pelo qual a revolução industrial entra no campo da pena capital. A execução mecanizada, serializada, logo deixará de ser um espetáculo, uma liturgia do sofrimento, para se converter num procedimento técnico do assassinato em cadeia, impessoal, eficaz, silencioso e rápido. O resultado [aqui a expressão é de Wolfgang Sofsky] é a desumanização da morte[26].

Não é ocioso lembrar que a guilhotina ainda foi usada na execução de condenados franceses ao longo dos séculos XIX e XX, até o dia 10 de setembro de 1977, quando decapitou, em Marselha, o tunisiano Hamida Djandoubi, acusado de torturar e assassinar uma menina. A guilhotina, que a memória difusa nos faz associar ao passado longínquo, embora ainda “morno” da Revolução Francesa, só veio a ser aposentada definitivamente em 1981, com a abolição da pena de morte naquele país. Estranhamos essa informação quando nos damos conta de que, ainda num passado tão recente, um mecanismo tão bárbaro de assassinato pelo Estado pudesse estar ativo na civilizada França. Mas esta é mais uma dessas peças que o tempo e a história nos pregam e nos fazem ver como são enganosas as nossas sensações temporais derivadas do desejo de deixar para trás o que nos provoca dor e pânico e aquilo que alimenta nossos traumas. Contudo, essa estranha proximidade com um passado menos remoto do que parece à primeira vista talvez se torne menos extravagante quando presenciamos, em pleno ano de 2016, a vitória de um candidato republicano à presidência dos Estados Unidos com a mais retrógrada das plataformas eleitorais e a força com a qual movimentos nacionalistas e fascistas europeus têm renascido para se apresentarem como um futuro possível para as nossas combalidas esperanças no século XXI.

Notas

  1. Georges Sorel, Reflexões sobre a violência, São Paulo: Martins Fontes, 1992; Walter Benjamin, “Para uma crítica da violência”, in: Walter Benjamin, Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2013, pp. 121-58.
  2. Sigmund Freud, “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, in: Sigmund Freud, Introdução ao narcisismo: estudos de metapsicologia e outros textos (1914-1916), Obras completas, vol. 12, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 209-46.
  3. Nicole Loraux, “Elogio do anacronismo”, in: Adauto Novaes (org.), Tempo e história, São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 57-70.
  4. Siegfried Kracauer, Historia: Las últimas cosas antes de las últimas, Buenos Aires: Las Cuarenta, 2010, p. 189.
  5. Enzo Traverso, El pasado, instrucciones de uso – Historia, memoria, política,Buenos Aires: Prometeo Libros, 2011, p. 39. [Tradução minha nesse e nos demais trechos citados dessa obra.]
  6. Voltaire, Le siècle de Louis XIV, vol. I, Paris: Garnier-Flammarion, 1966.
  7. Lucian Hölscher, “Mysteries of Historical Order: Ruptures, Simultaneity and the relationship of the Past, the Present and the Future”, in: Chris Lorenz; Berber Bevernage (eds.), Breaking up Time: Negotiating the Borders Between Present, Past and Future, Göttingen/Bristol, Vandenhoeck & Ruprecht, 2013, p. 138.
  8. Ibidem. [Tradução minha nesse e nos demais trechos citados dessa obra.]
  9. Reinhart Koselleck, Estratos do tempo – Estudos sobre história, Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2014.
  10. Aleida Assmann, “Transformations of the Modern Time Regime”, in: Chris Lorenz; Berber Bevernage (eds.), op. cit., p. 53.
  11. Citado por A. Assmann, op. cit., p. 54.
  12. E. Traverso, op. cit., p. 22.
  13. Ibidem.
  14. Ibidem, p. 24.
  15. Ibidem.
  16. Para ouvirmos, uma vez mais, a perspectiva de Traverso: “O historiador sofre os condicionamentos de um contexto social, cultural e nacional. Não escapa das influências de suas recordações pessoais nem daquelas de um saber herdado, das quais pode tentar se liberar, não por negá-las, mas fazendo um esforço de estabelecer uma distância crítica. Nesta perspectiva, sua tarefa consiste não em tentar evacuar a memória – pessoal, individual ou coletiva – mas em pô-la a distância e inscrevê-la em um conjunto histórico mais vasto”. Ibidem, p. 33.
  17. Reinhart Koselleck, Futuro passado – Contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006.
  18. Ernst Cassirer, A filosofia do Iluminismo, Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
  19. Daniel Arasse, La guillotine et l’imaginaire de la Terreur, Paris: Flammarion, 1987.
  20. Ibidem.
  21. Ibidem.
  22. D. Arasse, op. cit. [Tradução minha nesse e nos demais trechos citados dessa obra.]
  23. Ibidem.
  24. Ao lermos “A sociologia do carrasco” de Roger Caillois, escrita em 1939 após a morte do carrasco francês Anatole Deibler, vemos como as esperanças de Guillotin acerca da abolição dessa figura não se realizaram tão cedo naquele país. Ver Roger Caillois, Instinct et société, Genève: Gonthier, 1964, pp. 11-34.
  25. D. Arasse, op. cit., p. 33.
  26. E. Traverso, La violencia nazi: Una genealogía europea, México: Fondo de Cultura Económica, 2003, p. 32.

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