2014

Treze notas sobre o silêncio e a prosa do mundo

por Adauto Novaes

Fala-se na Terra há muito tempo e três quartos do que se diz passam despercebidos. Uma rosa, chove, faz bom tempo, o homem é mortal. São para nós casos puros de expressão. Parece-nos que ela é completa quando assinala sem equívoco acontecimentos, estado de coisas, ideias e relações porque, aqui, ela não deixa mais nada a desejar, nada contém que não mostre e nos faz deslizar no objeto que designa.

O prosaico limita-se a tocar, por signos convencionais, significações já instaladas na cultura. A grande prosa é a arte de captar um sentido jamais objetivado até então e de torná-lo acessível a todos os que falam a mesma língua.

MAURICE MERLEAU-PONTY, A prosa do mundo

Se a palavra que você vai pronunciar não é mais bela do que o silêncio, não a pronuncie.

PRECEITO SUFI

1. Nenhum espírito pode ficar indiferente à tagarelice do mundo. Que fenômeno é este, tão presente na experiência de cada um de nós e ao mesmo tempo tão distante de nossas especulações? O que é perturbador, angustiante, para muitos dos autores deste livro, é que os temas do silêncio e da prosa nem sempre são objeto de reflexão. Em geral, os teóricos consideram que é preciso dar atenção a questões “mais elevadas”, como o destino da humanidade, as normas morais, os ideais políticos, os problemas da existência em geral, sem se dar conta de que, muitas vezes, circulam em puras abstrações ao se recusar a ir às coisas do mundo. Assim, o fenômeno da fala passa despercebido se não ficarmos atentos aos contornos sinuosos da nova realidade. Cada ensaio deste novo livro da série Mutações aproxima-se, pelo esforço conjunto, da construção indefinida de um pensamento sobre as grandes transformações do mundo hoje; entre elas, as ideias de silêncio e prosa. Fala-se tanto que nem tempo se tem para pensar. Damos com muita facilidade e até certo desprezo um “adeus” às palavras de maneira tão tirânica e tão natural que nem conseguimos colher imagens que elas nos propõem. Sem o tempo do pensamento, a simplicidade das palavras e a riqueza dos sentidos desaparecem no fluxo tagarela. Sem a experiência do silêncio não se entende o que se diz. Ora, conhecer uma coisa é experiência; conhecer o sentido da fala é experiência. Se formamos nossas primeiras ideias a partir de signos e palavras (disposição infantil do espírito) – e isso não quer dizer pouca coisa -, corremos também um risco desde o início da nossa existência: muitas vezes usamos signos e palavras sem pensar no seu verdadeiro sentido.

Os dados impressionam: pesquisadores afirmam que, só nos Estados Unidos, houve um aumento de quase sete trilhões de palavras faladas, a partir da invenção das novas tecnologias. As perguntas são inevitáveis: o que tanto se fala? Estamos entrando na civilização de falastrões em facebooks, twitters (escritos na cadência da fala), celulares, conversas on-line? A linguagem técnica domina a fala e põe em lados opostos os números, a percepção e a experiência, do mundo? George Steiner, em Linguagem e silêncio, escreve:

O alfabeto da ciência econômica moderna não é mais a palavra, mas sim a tabela, o gráfico, o número. […] Grande parte da sociologia atual é iletrada, ou, para ser mais preciso, antiletrada. […] Quando tem de permanecer verbal, toma emprestado o que pode do vocabulário das ciências exatas. […] Graças à matemática, as estrelas saem da mitologia para figurar na tabela do astrônomo.

Qual é a importância do silêncio para a criação de obra de arte e de obra de pensamento? Como enfrentar o paradoxo: se é graças à fala que o espírito se desenvolve e assim pensamos e, ao pensar, voltamo-nos contra a fala prosaica e nos livramos das evidências pronunciadas?

Uma segunda observação deve ser feita: ao relacionarmos silêncio e prosa, queremos, com isso, fazer o elogio da fala. É certo que a banalidade nos domina, mas é certo também que, sem a fala, seremos reduzidos a seres sem política, sem tolerância, sem poesia, em síntese, sem o humano. Do pensamento antigo (Epicuro, Platão, Sócrates – que nada escreveu e, mesmo sem o dom da oratória, seduzia os interlocutores com a fala extremamente irônica habilmente dialética) aos nossos dias, os exemplos da experiência da fala são infindáveis. Mas lembremos de um deles, mais recente, Karl Kraus, que, de 1910 a 1936, usou a fala como forma privilegiada para expressar seu pensamento em cerca de setecentas apresentações na Viena de entre as duas Grandes Guerras. Seguido muitas vezes por Wittgenstein, Schoenberg, Freud e grande público, em seu Teatro da poesia e do pensamento, Kraus exercia enorme fascínio, como nos lembra Steiner: “Como outros grandes profetas e vigias da noite, ele mantinha uma relação com a linguagem mais física, mais imediata, do que com qualquer outra capaz de ser posta por escrito”. O seu legado para a história do pensamento é inestimável e a fala era uma das suas virtudes. Ao ler seus famosos aforismos entendemos por que a sátira – uma das mais poderosas e demolidoras formas da fala – tende hoje a desaparecer, quando tudo é muito explícito e banal nos meios de comunicação: “Sátiras que a censura entende devem ser mesmo proibidas”.

Para tornar mais clara a relação entre silêncio e mutações, gostaria de tomar como exemplo a experiência de uma mutação que nos precedeu e que é narrada em um delicioso livro do Abbé Dinouart, L’art de se taire. Como nos esclarece uma nota introdutória da edição francesa, ele faz parte dos “eclesiásticos mundanos” do século XVIII que escreveram sobre temas variados. Dinouart é também autor de um livro “anônimo” intitulado Le triomphe du sexe. Esta nota é importante porque dá à sua obra um caráter mundano e político. Até certo ponto, o abade partilhou da corrente de filósofos iluministas e libertinos. Lemos na apresentação da edição de 2011 que é visível uma mudança da questão do silêncio da fé para os costumes:

A obra reflete assim à sua maneira uma ruptura entre religião e moral. […] A religião cessa então de envolver as condutas públicas e privadas, de lhe dar um sentido ao ver romper a aliança institucional entre linguagem cristã anunciando a tradição de uma verdade revelada e as práticas proporcionadas a uma ordem do mundo.

Dinouart relaciona o silêncio não ao “diálogo interior” com Deus, mas a uma teoria dos temperamentos e das paixões. Entre as dez espécies de silêncio, Dinouart elege a prudência como a privilegiada em oposição aos silêncios artificiais, entre eles o silêncio da política, o silêncio do humor e do capricho, o silêncio espiritual e o silêncio estúpido. Há ainda o silêncio complacente, o silêncio de deboche, o silêncio espiritual e o seu contrário, o silêncio de aprovação, o silêncio de desprezo e o silêncio de humor. Contra a febre de escrever e falar ele propõe o tempo do silêncio para criar o tempo da reflexão:

É no tempo do silêncio e do estudo que é preciso se preparar para escrever. […] Por que se precipitar, levado pela paixão de ser autor? Espere. Você saberá escrever quando souber calar-se e bem pensar. […] O primeiro grau da sabedoria consiste em saber calar-se; o segundo consiste em saber falar pouco e moderar-se no discurso; o terceiro consiste em saber falar muito sem falar mal e sem muito falar.

Como o mundo estava em mutação, Dinouart tende muitas vezes a uma posição conservadora semelhante ao que acontece hoje diante das novas tecnologias. O que ele aponta como um vício e um perigo – autores que escrevem mal porque escrevem muito “sem respeitar a religião e o Príncipe, com excesso de livros e com os excessos dos livros” – foi justamente o que permitiu uma das grandes virtudes políticas do século: a liberdade da escrita e da fala, a literatura libertina, a proliferação de obras, muitas delas “anônimas”, ou obras simplesmente copiadas e sem “direito de autor”. É um pouco o que vemos hoje.

2. A história do pensamento nos diz que o problema não é novo: nossas ideias sempre vieram à expressão em uma linguagem imprecisa e confusa. Pensemos nas palavras vontade, livre-arbítrio, imagem, imaginação, prosa, mundo… que utilizamos com tanta facilidade no cotidiano. Pensemos, por exemplo, no que diz Paul Valéry: Liberdade, uma destas detestáveis palavras que têm mais valor do que sentido. Mas, afinal, o que se quer dizer quando se fala em valor, sentido, razão, inteligência, sensibilidade? Estamos diante da impotência da linguagem ordinária em perceber o mundo e representá-lo de forma exata. As palavras e a fala que usamos tão naturalmente são formadas não sobre “a natureza das coisas”, mas a partir das “necessidades instantâneas de designação”. Os homens, escreve Valéry, não se dão conta do caráter fortuito e desordenado da linguagem e atribuem a esta “formação geológica acidentada as propriedades de uma arquitetura”. Valéry vai além: nossa fala tem consequências incalculáveis: “é o meio mais forte do Outro alojado em nós”. Ideia e expressão de um sentimento que pensamos dizer de maneira original são, na realidade, expressão de palavras inventadas pelos outros. É o que ele escreve:

A reação da linguagem sobre o pensamento foi menos levada em consideração do que a ação do pensamento confundido com a linguagem. Acredito e ensinei que, na maioria dos casos, a preexistência das palavras e as formas de uma linguagem determinada aprendida desde a infância, e com a qual tivemos uma intimidade tão imediata a tal ponto de não a distinguirmos do nosso pensamento organizado – porque ela está em jogo desde o momento em que (o pensamento) se organiza -, restringe, no próprio germe, nossa produção de espírito – o atrai em direção a termos que nos dão a ilusão de ser os mais claros ou os mais fortes, tece este pensamento mais que o exprime – e até mesmo o desenvolve em um sentido diferente do original.

Há um vazio entre o pensamento e as coisas, e este vazio é, muitas vezes, preenchido por falas. Ou, como diz ainda Valéry, a maioria das pessoas “pensa apenas na fala”, mas “não é função dos nomes engendrar as ‘coisas’. É preciso dizer, entretanto, que, abusando da confiança dos homens que se acostumaram desde a infância a aprender os nomes dados às coisas, o espírito os seduziu e os levou a admitir que uma coisa deveria corresponder a cada nome”. Em Verdade e mentira no sentido extramoral, Nietzsche pensou a questão da fala e da linguagem no mesmo sentido: para ele, aquilo que se pensa como “verdade” foi fixado, isto é, a linguagem define como verdade a designação imposta e uniformemente válida das coisas. Podemos tirar, pelo menos, duas conclusões do que é dito acima: primeiro, a relação que estabelece entre as coisas, os nomes, o hábito ou costume e o falastrão que não conhece a origem das palavras e os limites da fala. O que leva a pensar que, para Valéry, em alguns momentos é impossível dissociar o costume da bêtise: falar muito, falar muito de si não é apenas coisa pouco inteligente, mas também muito inconveniente. Não é por acaso que Valéry começa assim o seu M. Teste, personagem que simboliza o pensador e o intelectual: La bêtise n’est pas mon fort; a segunda dedução é a de que, para o senso comum, o que não é nomeado não existe: “O que não pode ser dito, e bem dito, não existe”. Valéry, Nietzsche e um grande número de teóricos atribuem à linguagem e à fala grande parte dos erros. Mas, como nos lembra Alain, ao fixar o erro na fala e na escrita, criou-se um mundo de objetos fantásticos sobre os quais trabalham os comentadores. Para ele, a poesia modela a loucura tagarela, produzindo estranhas experiências. Eis o grande problema que se põe hoje para um mundo que escolheu a fala, não importa que fala, como seu grande e quase único meio de comunicação ao lado das imagens.

3. As paixões governam nossa fala cotidiana. Somos construídos com palavras e emoções que, de maneira geral, se voltam contra aquele que fala. Em determinados momentos – e diante de certos impasses criados pelo furor, pela cólera, pela eloquência vazia, pela burrice, pela embriaguez do elogio, pelo maldizer, pelo hábito, que é a mania de falar sem pensar -, a melhor resposta, em um primeiro momento, muitas vezes, não é propriamente a argumentação, mas o silêncio. Isso por uma simples razão: estas manifestações prosaicas e passionais, disputas sem objeto, disciplinam a imaginação e impedem que o espírito seja livre. Tudo isso trabalha contra a silenciosa construção de si, como nos recomendavam os antigos. É no silêncio que nascem os devaneios, as lembranças despertam e florescem os sentimentos. Sabemos que existem atividades do espírito enraizadas no silêncio que se tornam difíceis de vir à expressão; tomemos como exemplo o que escreve Alain sobre a sinceridade:

É uma das palavras mais obscuras. Gostaríamos de nomear sinceridade o primeiro movimento de um homem que não sabe dissimular. Mas isso não acontece porque o primeiro movimento é muitas vezes inteiramente enganador e a dissimulação, instinto, como se pode ver no tímido, que se precipita a dizer o que não pensa. […] O homem mais sincero tomará como regra nada dizer de falso, nada dizer que arrisque ser mal compreendido, enfim, calar-se sobre quase tudo o que pensa; e, com certeza, calar sobre aquilo de que não tem certeza de pensar.

4. Apesar dos riscos, ou graças a esses riscos, a fala é a grande linha que distingue o homem das formas dos seres animados e do silêncio das plantas. Da Teogonia de Hesíodo, passando por Aristóteles até chegar à fenomenologia, o homem é definido como um ser da palavra “que colhe ecos onde antes havia silêncio”. O homem fala seu gesto, e o som da fala é destinado a “designar indiretamente o que o gesto ou a ação designa naturalmente”, como define Alain. O primeiro gesto da fala foi, portanto, um gesto de liberdade: no primeiro momento da fala, o “homem libertou-se do grande silêncio da matéria. Ou, para usar a imagem de Ibsen, ao ser golpeado com o martelo, o insensível minério começou a cantar” (Steiner). Ela é signo contra o esquecimento. Mas o excesso da fala hoje nos convida a pensar o seu contrário – o silêncio – como uma forma de sobrevivência da experiência. Davi Kopenawa Yanomami, xamã e cultor da civilização da fala, tem muito a nos ensinar: “Os brancos desenham as palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento”.

5. Um dos maiores filósofos do século XX, Wittgenstein, dedicou o melhor de sua obra à linguagem e à palavra; eis as questões que atravessam sua obra: A realidade pode ser expressa pela fala? É possível estabelecer uma relação de verdade entre palavra e fato? Como Valéry, Wittgenstein desconfiava do poder das palavras que acabam por deformar as ideias. Em Linguagem e silêncio, George Steiner nos lembra que Wittgenstein inclui como inexprimível a maioria das áreas tradicionais da especulação filosófica: “A linguagem só pode lidar, de modo significativo, com um segmento especial e restrito da realidade. O resto, e é provável que seja a maior parte é silêncio”. Mas o silêncio é visto como positividade: assim como os poetas, que “penetram surdamente no reino das palavras”, Wittgenstein vê, através das palavras, não escuridão, mas luz. Quem lê o Tractatus, conclui Steiner, “perceberá sua estranha e silenciosa aura”. De que outra maneira interpretar, também, o gesto de Paul Valéry que, durante vinte anos, se fechou em silêncio? Dois fatos, aparentemente banais, o levaram a este silêncio; primeiro, a desconfiança no amor: a história nos conta que, aos vinte anos, ele se apaixonou “loucamente” por uma passante em Montpellier, a quem jamais dirigiu palavra e a quem escreveu cartas sem ousar enviá-las; o segundo fato marcante foi julgar-se incapaz de se igualar a dois gênios: Mallarmé e Rimbaud. Mas, durante esses vinte anos de silêncio intelectual e amoroso, Valéry produziu o que se pode definir como o melhor da sua obra, os famosos Cahiers. São mais de 30 mil páginas (almaço) de anotações que se tornaram fonte de sua obra filosófica, poética, matemática, sobre o amor, a política e, principalmente, sobre a linguagem. Eis o que lemos nos Cahiers, no melhor estilo de Wittgenstein:

A maioria das proposições e questões que foram escritas sobre matérias filosóficas são não propriamente falsas, mas desprovidas de sentido. […] Em qualquer questão, e antes de qualquer exame de fundo, vejo a linguagem; tenho o costume de proceder à moda dos cirurgiões que, de início, purificam as mãos e preparam seu campo operatório. É o que denomino a limpeza da situação verbal.

6. A pergunta de Blanchot no ensaio La parole vaine é a melhor expressão de um dos grandes problemas do homem contemporâneo: de que maneira tantas palavras que insistem em ser apenas palavras, “discurso que esgota seus próprios recursos contra si mesmo; de que maneira esta extensão verbal toma, de repente, o lugar de algo que não fala mais e que, no entanto, é visto: um lugar, um rosto, a espera de uma evidência, a cena ainda vazia de uma ação que não será senão um vazio manifestado”? Blanchot descrevia a narrativa de Le Bavard, de Louis René des Forêts. Não é a história de um personagem, mas de indivíduos que precisam exprimir-se e, no entanto, nada têm a dizer e, “talvez por isso mesmo, dizem mil coisas sem se cuidar do assentimento do interlocutor. […] O Bavard é um homem solitário, mais solitário do que se ele estivesse encerrado na solidão do silêncio. É um mudo que dá expressão à sua mudez, usando-a em falas e usando a fala em faz de conta. Mas seu ‘Eu’ é tão poroso que não pode reter-se em si mesmo”. Enfim, nesta fala infinita, o outro, ao lado do falante infatigável, não chega a ser verdadeiramente um outro; é um duplo, diz Blanchot, “não é uma presença, é uma sombra, vago poder de ouvir, intercambiante, anônimo, associado com quem não chega a formar sociedade”. Por isso, o Eu cede lugar para o Se abstrato e irresponsável do fala-se, e isso quer dizer que a pessoa não fala: “Isso quer dizer que vivemos em um mundo no qual há fala sem um sujeito que fala, civilização de falantes sem fala, falastrões afásicos, narradores que relatam e não se pronunciam, técnicos sem nome e sem decisão”. Na civilização de falantes sem fala não existe melhor falastrão afásico do que o político em plenário ou na televisão. Albert Cossery, um dos mais irônicos escritores do século XX, dizia que no Oriente as pessoas têm tempo para refletir e que o mais pobre dos mendigos guarda uma sabedoria silenciosa porque ele vê o mundo passar: “Nos meus livros, meus personagens descobriram a impostura do mundo. […] Será que você pode ouvir um ministro sem rir?”.

7. Nunca se falou tanto e nunca se pensou tão pouco. Este é um dos pontos essenciais das mutações hoje. Lemos em recente crônica de Francisco Bosco no jornal O Globo que, apenas nos Estados Unidos, estima-se que houve um salto de quase sete trilhões de palavras faladas por ano na comparação feita entre 1980 (quatro trilhões e quinhentos bilhões) e 2008 (mais de onze trilhões), o que resulta num consumo diário de cerca de cem mil palavras por cidadão americano. Este salto coincide com o surgimento da internet, do e-mail, do SMS e das redes sociais. Sem falar da televisão, que não deixa espaço de um milésimo de segundo para o silêncio. Afinal, fala é dinheiro. No lugar da rivalidade entre imagem e fala, notamos uma fatal convergência. A questão da fala como linguagem dominante não é recente. Ela sempre existiu, mas sem afetar os outros sentidos de maneira tão radical como vemos hoje. Estaríamos voltando ao “grito primordial” da linguagem, como escreveu Darwin, sem o acompanhamento do gesto e da escrita que modulavam os sons e as articulações? Cedamos ao lugar-comum: no metrô, por exemplo, a grande maioria pratica quase sempre os mesmos gestos: são rostos sem expressão, afásicos perdidos em celulares. Alain é preciso em uma observação.

Há uma grande diferença entre as línguas perfeitas que são inventadas segundo a natureza dos objetos, ampere, volt, ohm, e as linguas populares, que têm muito mais relação com a natureza humana, isto é, com as dificuldades reais que encontra todo homem que se interroga. E notamos que, mesmo nas línguas técnicas, é raro que se encontrem palavras sem ancestrais, como são justamente aquelas que citamos acima. A palavra função, tomada em seu sentido matemático, não é separada por isso da série política. Equação, integral, convergência, limite são ainda palavras humanas, apesar do esforço do técnico, que gostaria aqui de nos fazer esquecer qualquer outro sentido que resulte da definição. E esta técnica, como toda técnica, tende a apagar a ideia.

O que está em causa, nesta nova realidade, não é apenas a fala, mas principalmente o silêncio. Sabemos que o silêncio é a origem de uma ética, da construção dos sentidos e do mundo e, em particular, da construção do pensamento e das linguagens: “O oculto fascina”, escreve Jean Starobinski. Podemos dizer também, inspirados nele, que o silêncio fascina porque guarda uma força estranha que leva o espírito a se voltar para o que não existe. É o silêncio entre as palavras que dá sentido à fala, e o mesmo aconteçe com o pensamento. A questão do saber e do não saber, diz Paul Valéry, “parece-me eternamente em suspensão diante do meu silêncio”. E é a partir do silêncio, que parece estabelecer um equilíbrio entre o homem e o espírito do homem, que Valéry pode dizer ainda: não sei tudo o que sei. Mas não se trata, aqui, de um “silêncio interior”, psicológico, que procura penetrar surdamente no mundo dos sentimentos; também não se trata do “silêncio das ideias” em busca de uma essência diferente do sensível; trata-se do silêncio que é parte do homem, dos “fenômenos” e do próprio fenômeno da fala. Levemos em conta o que resta, à nossa volta, de mais silencioso, invisível e não aparente, “opiniões mudas implicadas em nossa vida”, como escreve Merleau-Ponty. O filósofo pede que, no esforço do pensamento, esqueçamos a “fala falada” e busquemos a “fala falante”: se a tarefa do pensamento é o de dizer, exprimir as coisas do mundo, isto se dá exatamente através da criação permanente da fala (fala falante) que põe em palavras determinado silêncio que o filósofo escuta. Não existe uma coincidência muda entre as coisas do mundo e a linguagem; o que existe é uma relação ao mesmo tempo de antítese e de cumplicidade. Como observa Merleau-Ponty, não se trata de abandonar as coisas em favor da linguagem, nem de abandonar a linguagem em favor das coisas: “trata-se de fazer falar as próprias coisas. […] São as coisas mesmas, do fundo do seu silêncio, que (a filosofia) quer conduzir à expressão”. Em síntese, a vida perceptiva e a vida falante estão em uma mesma relação de “fundação”: “não existe experiência sem fala; o puro vivido nem mesmo está na vida falante do homem. Mas o sentido primeiro da fala está neste texto da experiência que ele tenta proferir”. Existem, pois, várias formas de silêncio, algumas ativas, outras passivas. Espinosa nos diz, por exemplo, que “as coisas humanas iriam bem melhor se estivesse igualmente em poder do homem de ora calar-se e de ora falar”. Jacques Bouveresse ilustra o que Espinosa diz com uma observação sobre Wittgenstein:

Os julgamentos extremamente severos que o autor do Tractatus fez sobre os filósofos profissionais certamente não devem ser atribuídos à condição e ao trabalho do professor de filosofia e à ideia, muito difundida, de que, em tal disciplina, é preciso ser gênio ou então nada dizer. Eles decorrem, como observa Drury, da experiência que ele fez de longos períodos de obscuridade, de confusão e esterilidade por que passa necessariamente um filósofo, qualquer que seja, e sobre os quais era preciso calar-se e esperar; o que é precisamente interditado a al guém cuja fala é o métier. Em filosofia, mais que em qualquer outra coisa, existe (ou deveria existir) um tempo para falar e um tempo para se calar; e principalmente, para Wittgenstein, existem coisas das quais se podem falar e aquelas sobre as quais seria preciso guardar silêncio. Com efeito, o essencial do esforço filosófico, que se deve consentir sobre certos temas, como por exemplo a Ética, deveria consistir precisamente em livrar-se da tentação de dizer qualquer coisa.

8. É certo que o prosaico é condição de entendimento entre os homens. A fala cotidiana exige de nós esquecimento da natureza de cada palavra; sem este esquecimento corremos o risco de cair em enigmas que são constitutivos do pensamento. A fala comum permite atravessar rapidamente o espaço de uma expressão já consolidada, a rapidez e a não reflexão são, portanto, partes do prosaico. Paul Valéry, que dedicou o melhor de sua obra aos sentidos da fala, dá este exemplo:

Cada palavra parece-me como uma dessas pranchas leves postas sobre um abismo de montanha e que suportam a passagem de um homem em movimento rápido, mas que ele passe sem pesar, que ele passe sem parar e, principalmente, que ele não se divirta em dançar sobre a fina prancha para provar sua resistência! […] Logo o ponto frágil rompe-se e tudo vai às profundezas. Consulte sua experiência, e você chegará à conclusão de que nós só compreendemos os outros e a nós mesmos graças à velocidade de nossa passagem pelas palavras.

Pensemos no abismo a que seríamos jogados se dançássemos sobre a palavra liberdade. Sairíamos do sentido trivial ou relativo para cairmos no sentido ético ou absoluto. Graças à velocidade de nossa passagem pelas palavras, recorremos apenas a enunciados factuais. Lembremos, de passagem, o enunciado de Valéry: a barbárie é a era dos fatos e nenhuma sociedade se organiza, se estrutura, sem o recurso das coisas vagas que só podemos encontrar nos “abismos” do pensamento. Wittgenstein diz na sua Conferência sobre a ética:

Se alguém pudesse escrever um livro de Ética que fosse verdadeiramente um livro de Ética, ele, sem explosão, destruiria todos os livros do mundo. As palavras, empregadas da maneira como as empregamos na ciência, são vasos que só podem conter e veicular a significação e o sentido, a significação e o sentido naturais. A Ética, se é algo, é algo de sobrenatural, e nossas palavras só exprimem fatos; como uma xícara de chá que sempre conterá apenas o valor de uma xícara de líquido mesmo que derramássemos nela um galão.

Leiamos neste texto, de aparência enigmática, importantes distinções entre Ética e moral. Primeiro: “sobrenatural” aqui quer dizer “indizível”, que ele define assim no Tractatus: “Existe seguramente o indizível. Ele se mostra, é o Místico”. E, em seguida, para ele, a Ética é superior a qualquer moral – ela é mais fundamental que a relação dos homens entre si, do que a sociedade, a história e o mundo, que Wittgenstein define como uma totalidade factual, um universo de fatos. A Ética não é, pois, deste mundo, não está nele, “nem faz parte dele à maneira de um fato ou de um estado de coisas possível”, como observa o filósofo Paul Audi, autor de ensaios sobre a Ética em Wittgenstein, que pode ser enunciada em termos simples: “O mundo do homem feliz é diferente do mundo do homem infeliz”; e em outro fragmento, ele completa: “Sou feliz ou infeliz, e é tudo. Pode-se dizer: não existe bem nem mal. (…) E se agora me pergunto por que deveria ser feliz, a pergunta me parece por si mesma ser uma tautologia; parece-me que a vida feliz se justifica por si mesma, que ela é a única vida correta”. Tranquilidade interior, felicidade pessoal, extraídas da própria vida, que é construída de ações e paixões. As ações éticas podem ser assim sintetizadas: “bem fazer e nada dizer”, o que nos induz a pensar em uma ausência das noções de dever. Entendamos, pois, por Ética uma Sabedoria e não uma moral. Silêncio, reflexão, consciência de si são a condição para se construir a Ética. Cito mais uma vez Albert Cossery, este pensador egípcio que morou 45 anos no mesmo quarto de hotel em Paris e que tinha a amizade como a única virtude possível (ele era amigo dos grandes artistas e escritores da época): “Nada fazer é um trabalho interior. Trabalho o tempo todo. Quando estou sozinho em um café e o garçom traz o jornal ao pensar que estou entediado, eu lhe digo: ‘mas não, eu estou com Monsieur Cossery'”.

9. Lemos em A política do espírito, de Paul Valéry, a análise dos grandes problemas que levam à morte da civilização ocidental. O principal sinal desta grande mutação consiste em reconhecer que nossos espíritos estão hoje carregados de tendências e de pensamentos que se ignoram: imaginariamente, o homem moderno é “atravessado pelo infinito” de maneira permanente. Como na cena política, comenta Édouard Gaede em seu ensaio clássico Nietzsche e Valéry, reina também na sua vida interior triste anarquia, onde as “reminiscências e as esperanças mais contraditórias são entregues a uma desconcertante promiscuidade”. Gaede lembra a visão do homem moderno em Nietzsche: “Todos nós, sem saber, sem querer, temos no corpo valores, palavras, fórmulas, morais de origens opostas, somos, fisiologicamente falando, falsos”. Em síntese, a alma moderna perdeu sua identidade. Sobre o papel do silêncio e a prosa de um mundo promíscuo, Valéry nos diz:

Em democracia – regime da fala ou dos efeitos da fala – tudo se torna política. E “política” em democracia significa mais ou menos “dramática”. Tudo é relativo às impressões de um público. As leis do teatro são aplicadas. Simplificação, ilusão perpétua. Tudo no momento. Papéis definidos. O que é difícil de entender é proscrito. O que é difícil de se exprimir não existe. O que pede longos preparativos, uma atenção prolongada, uma memória exata, a indiferença no tempo e no esclarecimento torna-se impossível.

Em síntese, o tempo da palavra lenta e reflexiva é abolido e com ele a ideia de duração. Ora, os antigos nos ensinavam que, entre os valores humanos, a duração é o que sustenta todos os outros. Hoje, ela está em declínio. Rebaixamento das virtudes intelectuais, da atenção, da paciência e perda da sensibilidade formal. Valéry escreve:

Está aberta a era do provisório, não se pode mais amadurecer estes objetos de contemplação que a alma encontra inesgotáveis e da qual ela pode cuidar indefinidamente. O tempo de uma surpresa é nossa presente unidade de tempo. […] Somos instantâneos.

Valéry se contrapõe à fala apressada e objetiva em um dos mais belos textos já escritos – Le Yalou -, onde lemos a sabedoria e a justa delicadeza da fala de um chinês a um hóspede em seu discurso sobre coisas humanas e divinas:

Aqui, cada homem se sente filho e pai, entre mil e dez mil, e se vê tocado pelo povo em torno dele, e pelo povo morto acima dele, e pelo povo a vir, como o tijolo no muro de tijolos. Ele está aí. Cada homem daqui sabe que é nada sem esta terra plena e sem a maravilhosa construção de ancestrais. Quando os mais velhos fenecem, surgem as multidões dos deuses. Aquele que medita pode medir no seu pensamento a bela forma e a solidez de nossa torre eterna.

Valéry nos remete aqui a uma das questões centrais sobre o silêncio e a prosa do mundo: a experiência do pensamento e dos sentidos. Por experiência, entendemos o simples fato de estarmos no mundo e que todo conhecimento real é experiência. Cito Alain, que define a experiência como a “percepção de um objeto real, presente aos olhos e aos outros sentidos”. Ora, o que acontece com nossa fala hoje é a perda da experiência. Lembremos, como ponto de partida, o tão citado texto de Walter Benjamin em O narrador:

É como se nós tivéssemos sido privados de uma faculdade que nos parecia inalienável, a mais segura entre todas: a faculdade de trocar experiências. Uma das razões deste fenômeno salta aos olhos, o valor da experiência caiu de cotação. E parece que a queda continua indefinidamente. Basta abrir o jornal para constatar que, desde a véspera, uma nova queda foi registrada, que não apenas a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo moral, sofreu transformações que jamais pensamos serem possíveis. Com a guerra mundial, vimos o inicio de uma evolução que, desde então, nunca mais parou.

10. Enfim, a prosa como trabalho de criação de obra de arte e de obra de pensamento. A prosa escrita, a fala, as palavras e o silêncio compõem o universo do entendimento. Mas eles podem ir além, como observa Alain: as palavras ordinárias e as construções comuns são matéria para o artista, e o objetivo é sempre o de formar, pela sucessão de palavras articuladas, aquilo que se denomina pensamentos, relações abstratas. Alain nos alerta, neste ensaio sobre a prosa, sobre o enorme preconceito em relação à vida interior para a construção do pensamento: “Muitos homens cultivados acreditam, segundo uma filosofia mal dirigida, que a vida interior – pensamentos, lembranças, sentimentos – desenvolve-se sem que os sentidos se exerçam”. Em um mundo que tende a abolir a experiência e a observação das coisas, quando os sentidos são dominados por um, isto é, pela fala desordenada, “deixa-se viver sem nada perceber, os sentimentos e os pensamentos escapam, da mesma maneira que os objetos”. Nosso pensamento só se sustenta pela ordem e pela desordem do mundo. Fora disso, diz Alain,

somos reduzidos a palavras; o pensamento é comum e pobre. Sem pensamento, o sentimento reduz-se ao conhecimento confuso do estado do corpo […] A vida interior que seria melhor designada como pensamento individual, supõe, pois, um ponto de vista sobre o mundo com as janelas abertas. Com esta contemplação, as lembranças são despertadas e os sentimentos florescem.

E assim se constrói a prosa, o romance e a poesia no silencioso domínio do trabalho interior na relação com as coisas do mundo. Sempre me impressionei com uma passagem do diário de Munch, de 22 de janeiro de 1892, no qual ele narra a experiência melancólica que deu origem ao famoso quadro.

Caminhava com dois amigos e, quando o sol se punha, o céu tornou-se, de repente, todo vermelho de sangue. Parei, esgotado até a morte, encostado em um muro. O fjord de um negro-azulado e a cidade estavam inundados de sangue e atingidos por línguas de fogo. Meus amigos seguiam caminho enquanto eu tremia ainda de angústia, e sentia que a natureza estava atravessada por um longo grito infinito.

Diferente de alguns intérpretes que insistem no grito da natureza, talvez fosse mais próximo do que sentiu Munch dizer que foi não apenas a natureza que gritou nele, mas também a angústia da modernidade. O crítico Yves Hersant vai além: o grito surge do vazio, não apenas da boca.

Munch explora magistralmente as propriedades do mundo sonoro, compreendendo mais que ninguém que entre as coisas e os sons a relação permanece incerta, principalmente quando o som é um grito, que não se sabe de onde sai. […] Em síntese, próximo da angústia de Kierkegaard, Munch exprime um mal moderno.

De onde vem este mal moderno? Qualquer que seja a resposta, uma coisa é certa: O grito é a expressão mais perfeita da relação interior/exterior.

11. O silêncio e a prosa do mundo remete-nos a um tema incontornável, a mentira, que merece todo um ciclo de conferências, mas que, desta vez, será tratado em apenas uma. Os filósofos costumam designá-la assim: a mentira consiste em enganar uma pessoa a quem se deve a verdade sobre aquilo que sabe ser verdadeiro, um abuso de confiança, escreve Alain. Mas as definições nem sempre são convergentes. Se pensarmos em quatro autores – Kant, Benjamin Constant, Rousseau e Schopenhauer – além de Alain, lemos algumas diferenças essenciais. Recorro a um pequeno ensaio de Oswaldo Giacoia Junior que estabelece essas diferenças. Mas, de início, deixemos claro: essas diferenças não dizem respeito ao despudor de políticos diante da corrupção, da mentira das atrocidades bárbaras das guerras e da tortura e na relação com os cidadãos. Quando, por exemplo, Benjamin Constant se opõe a Kant, ele o faz para criticar uma confiança desmesurada e sem mediações (de casos concretos) na Razão, uma excessiva abstração na formulação do que seja a mentira. Aquilo a que se pode ter direito, escreve Giacoia sobre a argumentação de Kant, “é a veracidade nas declarações a cujo proferimento alguém se encontra subjetivamente obrigado, isto é, tem-se o direito de exigir de alguém que seja veraz nas declarações a que está obrigado; não existe um direito à verdade em sentido objetivo, posto que, assim, a verdade é apenas uma propriedade lógica dos juízos”. Contra esta visão, Benjamin Constant defende “princípios intermediários” e recorre ao seu hoje clássico exemplo para criticar Kant:

O princípio moral que afirma que dizer a verdade é um dever, se fosse considerado incondicionada e isoladamente, tornaria impossível qualquer sociedade. Temos a prova disso nas consequências diretas que um filósofo alemão tirou desse princípio, chegando até mesmo a pretender que a mentira seria um crime em relação a um assassino que nos perguntasse se o nosso amigo, perseguido por ele, não está refugiado em nossa casa […]. Dizer a verdade é um dever. O conceito de dever é inseparável do conceito de direito: um dever é o que, em um ser, corresponde aos direitos de um outro. Lá, onde não há direitos, não há deveres. Dizer a verdade, portanto, só é um dever em relação àqueles que têm um direito à verdade. Ora, nenhum homem tem direito à verdade que prejudica os outros.

12. Aprendemos com Rousseau que, voluntária ou involuntariamente e de maneira quase inevitável, inventamos coisas que são ditas como verdadeiras. A mentira pode ser também ficção. E também fonte de obra de arte? Lemos no livro II das Confissões que o remorso que acompanhou Rousseau até o fim da vida por ter contado uma mentira (a de acusar a cozinheira Marion de ter-lhe dado uma fita velha cor-de-rosa e prata quando, na verdade, ele a tinha furtado ou atribuído o furto a Marion) levou-o a escrever uma obra-prima: “Esse peso permaneceu sem alívio até o dia de hoje sobre minha consciência, e posso dizer que o desejo de libertar-me dele contribuiu muito para a resolução que tomei de escrever minhas confissões”. A questão não é simples. Rousseau escreve ainda nos Devaneios do passeante solitário (Quarto passeio, 1777):

Eu, cujo horror à falsidade não se compara a nada em meu coração, eu que resistiria a suplícios se fosse preciso mentir para evitá-los, por qual estranha inconsequência mentia assim de coração alegre, sem necessidade, sem proveito, e por qual inconcebível contradição não sentia a menor compunção, eu, que o remorso de uma mentira não cessou de afligir durante cinquenta anos?

A resposta dele é engenhosa: se, por definição, mentir é ocultar a verdade que não se está obrigado a dizer, então não há mentira; e “aquele que, em tal caso, não satisfeito em não dizer a verdade, diz o contrário, então mente ou não mente? Segundo a definição não se poderia dizer que mente, pois ele doa uma falsa moeda a um homem ao qual nada deve, engana esse homem, sem dúvida, porém não o rouba”. É claro que política e políticos – que não são passeantes solitários e não apenas vivem em sociedade, mas devem tudo à sociedade, principalmente a verdade – estão fora dessa definição. A mentira nos conduz também ao sinuoso terreno das relações e contradições entre verdade/verossimilhança, falsidade/ mentira, mas gostaria de deixar algumas perguntas que só a mentira pode suscitar: quando alguém mente, por que mente? Por que ele nos recusa a verdade? De que ele tem medo? Por que simula? Essa é a contrapartida positiva que só a mentira nos dá: querer saber, a primeira sabedoria consiste em não cair na grande mentira contemporânea que é a ilusão da evidência imediata como verdade, como nos querem fazer crer os meios de comunicação. Mas interroguemos a mentira com otimismo: pode ela ser também a arte do parecer?

13. Por fim, eis a questão primordial: o que é “dizer a verdade”? Em seu curso de 1984, no Collège de France, Michel Foucault inverte a questão: não se trata, diz ele, de analisar as formas do discurso reconhecido como verdadeiro, mas sim sob que forma, “em seu ato de dizer a verdade, o indivíduo se constitui e é constituído pelos outros como sujeito que pronuncia um discurso de verdade”. Ou seja, o discurso de verdade que o sujeito é capaz de dizer sobre si mesmo. Foucault dá como exemplos formas tradicionais da confissão e do exame de consciência. E também as formas modernas de dizer a verdade ao psiquiatra, psicanalista, psicólogo e médico. Mas Foucault vai além na prática de dizer a verdade sobre si mesmo ao relacionar sujeito e verdade à questão política, isto é, o problema das relações de poder e de seu papel no jogo entre o sujeito e a verdade. Ele problematiza a democracia jogando-a para a esfera da ética pessoal e da constituição do sujeito moral: a questão sujeito e verdade é posta, “do ponto de vista da prática, do que se pode chamar de governo de si mesmo e dos outros”. Foucault recorre à palavra parrhesia (fala franca) para dizer que ela pode ter dois valores: pejorativo, que consiste em dizer tudo, qualquer coisa que passe pela cabeça, “qualquer coisa que possa servir à paixão ou ao interesse que anima quem fala” – o tagarela impertinente incapaz de relacionar um princípio de racionalidade a um princípio de verdade. Este tipo de palavra produz a “má cidade democrática […] dispersa entre interesses diferentes, paixões diferentes, indivíduos que não se entendem”, na qual todos podem dizer qualquer coisa. Mas parrhesia traz em si também valor positivo, o dizer tudo, o dizer a verdade sem nada esconder. Mas atenção: trata-se de dizer a verdade “não como opinião pessoal daquele que fala, mas que ele a diga como sendo o que pensa” e não da boca para fora. O que ele pensa, eis o ponto de partida es sencial, a difícil e incontornável relação entre pensamento e verdade. Eis a questão: se nossos pensamentos são, inicialmente, percepções acidentais que, de imediato, ganham uma forma não acidental, como escreve Valéry, devemos nos afastar desta forma não acidental que acaba por transformer-se em verdade e nos aproximarmos dos múltiplos aspectos das verdades?