2017

Utopia e regeneração: a fênix, a aranha e a salamandra

por Catherine Malabou

Resumo

O ponto de partida desse ensaio é a célebre frase de Hegel: “as feridas do espírito se curam sem deixar cicatrizes” (Fenomenologia do espírito, 1807). Três são as interpretações da frase aqui propostas, às quais fazemos corresponder, respectivamente e por analogia, a formas de regeneração ou processos de reconstrução de três animais. Primeiro, tomamos o processo de reconciliação dialética encontrado na intepretação do próprio Hegel. Ele é comparável à fênix. Esse é o modelo da ressureição, já que implica a destruição completa do pássaro mítico por autocombustão e seu perpétuo renascimento, de caráter miraculoso, a partir das próprias cinzas. Aqui, a recuperação gera um ser idêntico ao original; trata-se, pois, da cura ideal. O segundo modelo interpretativo é o desconstrutivismo adotado por Derrida. Nesse caso, o texto é comparável a uma teia de aranha. Trata-se do texto reformado, num processo infinito. Ao contrário do renascimento miraculoso da fênix, ocorre, nesse caso, uma reconstrução ou sobreposição permanente em que não há nada hors-texte (fora do texto), pois como afirma Derrida, “as cicatrizes não podem desaparecer”. O terceiro e último modelo de interpretação textual é o da autoregeneração por meio da substituição do órgão danificado ou amputado, mas sem deixar marcas ou cicatriz. Para esse modelo, pós-desconstrutivista, apelamos para a salamandra. À diferença da fênix, que morre e renasce tal como era, a salamandra recupera uma pata amputada ou partes de órgãos vitais, sem cicatriz, porém, a nova parte nunca será idêntica em formato e tamanho à que foi perdida ou danificada. Para tanto, as células do animal passam por uma transdiferenciação e mobilizam-se para adequar-se às características requeridas para recuperar o dano da parte do corpo em questão. Não é mais um renascimento completo, tampouco é uma costura sobreposta, como é o caso da teia da aranha. Em resumo, segundo a figura da fênix, o real é um sistema. Segundo a da aranha, o real é um texto. Segundo a da salamandra, o real é uma rede. A última nos lembra que a regeneração é uma desprogramação, uma desescrita. Com relação a esse último modelo, faremos uma alusão ao cérebro e à sua grande plasticidade. Terapias medicinais recentes propõem-se, literalmente, a apagar as marcas do trauma, sem cicatriz, sem traço. Cabe, pois, o debate sobre esse tipo de “cura” e suas consequências sobre a memória.


[1]

Gostaria de apresentar aqui o problema da utopia a partir da questão precisa da cura. Hoje, a medicina regenerativa anuncia a possibilidade de curar o ser humano sem contribuição exterior, sem medicamentos nem enxerto, utilizando simplesmente seu potencial regenerador, isto é, suas células-tronco. Deveríamos assim, nós mesmos, poder nos regenerar inteiramente. Embora as técnicas da medicina regenerativa tenham se tornado em grande parte realidade, não dissimulam elas, apesar de tudo, uma utopia, um ideal inacessível? O que esconde essa promessa de regeneração? Quais são suas consequências éticas?

Antes de mais nada, o que significa curar, restabelecer-se, voltar a um estado normal, recuperar-se? Na maioria das vezes, o processo de cura é concebido como uma cicatrização. Cicatrizar é apagar a ferida conservando seu traço ou vestígio. Ora, a questão que eu gostaria de colocar aqui é esta: será o paradigma do traço, da inscrição, da cicatrização, sempre pertinente para pensar a reparação e a cura, ou assistimos à emergência de um novo paradigma, o da regeneração, que supõe que a parte do corpo ferida de certo modo “rebrota” por suas próprias forças, sem deixar vestígio?

Essas questões evidentemente não concernem apenas ao domínio da medicina, mas envolvem também a interrogação filosófica, assim como o devir da arte contemporânea. As três figuras, da fênix, da aranha e da salamandra, me permitirão dar uma tradução sensível desses novos desafios.

Às figuras da fênix, da aranha e da salamandra correspondem três momentos essenciais da história da filosofia, dos quais partirei antes de ilustrá-los por três épocas da arte.

O primeiro momento é o momento hegeliano. Na Fenomenologia do espírito, em 1807, Hegel escreve esta célebre frase: “As feridas do espírito se curam sem deixar cicatrizes”[2]. Hegel já exprimia aí a utopia de uma cura que não deixa vestígio, de uma reparação na qual a cicatriz se apaga e desaparece. Há uma relação entre a concepção hegeliana da cura e o atual ideal da medicina regenerativa?

A frase de Hegel exprime precisamente a tradução espiritual da reconstituição da pele após a ferida, daquilo que chamo de plasticidade dos tecidos vivos. É a plasticidade, tal como Hegel a concebe, a mesma que se verifica nas células-tronco, que são ditas, também, plásticas?

Para responder a essas perguntas, vou mostrar que três interpretações da frase de Hegel são possíveis. Uma interpretação dialética – a do próprio Hegel; uma interpretação desconstrutiva – a de Jacques Derrida lendo Hegel em La Dissémination; e uma terceira que chamarei provisoriamente pós-desconstrutiva. Cada uma dessas três leituras, que coincidem com três momentos da história recente da filosofia – dialética, desconstrução e pós-desconstrução –, se baseia numa compreensão determinada da cura, da reconstituição, do retorno ou da regeneração. Essas leituras mobilizam precisamente as três figuras do restabelecimento que são a fênix, a aranha e a salamandra.

Primeiro momento. O próprio Hegel, em vários lugares de sua obra, utiliza a metáfora da fênix para caracterizar o processo de cura. A fênix é a ave fabulosa à qual Hegel compara o espírito. Tendo o poder de renascer, ela ilustra ou encarna uma capacidade – a do espírito – que se reconstitui constantemente a partir de suas feridas e não morre jamais. Aqui regeneração e cura tomam a forma da reconciliação dialética (Auf hebung). A ferida constitui uma primeira negação – a da lesão e do sofrimento. A cicatrização é a negação dessa primeira negação. Por fim, a negação da negação apaga a cicatriz. Desse modo, o espírito é pensado como uma perpétua reconstituição de si. Ele se repara dialeticamente a partir daquilo que o feriu e não guarda nenhum vestígio. O espiritual, diz Hegel, prepara eternamente, como a fênix, “sua própria fogueira e nela se consome para que de suas cinzas surja eternamente a vida nova, fresca e rejuvenescida”[3]. Segundo o paradigma da fênix, a regeneração verdadeira é a ressurreição. A fênix, ave fabulosa, dotada do poder de renascer de suas cinzas e de ser imortal, simboliza o trabalho do espírito que retorna a si mesmo a partir da extrema cisão. Segundo esse primeiro paradigma, curar significa renascer das cinzas. A cura dialética implica assim uma reconstituição da primeira ferida, uma anulação da falta, da lesão. Eis aí uma primeira utopia: a da cura ideal, da imortalidade, da fonte de juventude que perpetuamente regenera a si mesma.

Segundo essa utopia, as feridas são apenas as preliminares de uma reconstituição ao idêntico do órgão atingido ou destruído. A separação, o sofrimento e a cisão não marcam senão efêmeros tempos de abertura. O negativo prepara perpetuamente sua própria regeneração. A negatividade é o ato de “reerguer-se ela mesma eternamente”[4]. A plasticidade dialética é a constante reconstituição da presença que a cada vez encontra, numa forma de vida superior, os recursos de sua juventude ou de sua saúde. Assim, o espiritual, que não morre, é o que vem em auxílio do corpo, o qual é necessariamente finito e vulnerável.

Essa utopia por muito tempo reinou em nossas representações da ferida, mas também da morte.

A segunda leitura da frase de Hegel apresenta-se como uma desconstrução da primeira. As cicatrizes não podem desaparecer, afirma Derrida. Não há senão cicatrizes, a finitude é insuperável. O pensamento derridiano da escrita e do texto coincide com um novo pensamento da finitude. O que é um texto? Em que somos comparáveis a textos? A figura da aranha, mobilizada por Derrida, permite responder. Um texto é uma teia. Viver equivale a tecer uma teia. Nesse sentido, escrevemos sempre, ao existirmos, nosso próprio texto. Mas essa tecedura é sempre cheia de acidentes, de feridas, de rupturas. Quando a teia da aranha é lesada, a aranha a reconstitui, mas essa reconstituição, contrariamente ao que diz Hegel, deixa um traço, uma cicatriz. A ruptura pode apagar-se, mas ao apagar-se ela deixa outro traço.

Em La Différance, Derrida afirma: “Não sendo uma presença, mas o simulacro de uma presença que se desconjunta, se desloca, se expulsa, o traço não tem propriamente lugar, o apagamento pertence à sua própria estrutura”[5].

Assim, é necessário distinguir duas concepções do apagamento: um apagamento do traço, um apagamento do traço como emergência de outro traço.

Se há um corte no texto, o seccionamento cria ainda texto. Por isso Derrida pode afirmar que não há hors-texte [fora do texto]. A teia volta a se tecer a partir de suas rupturas, criando uma sobreposição de véus. Mas nessa regeneração constante não é a pele que rebrota no idêntico; nenhum acréscimo de presença fecha a ferida nem corrige os defeitos. É o tecido do texto que se estende, se complexifica e se ramifica sem jamais chegar à evidência de uma forma definitiva. Um traço pode se apagar, mas o apagamento deixa, por sua vez, um traço. Em Derrida e, veremos também, mais adiante, em Freud, o verbo curar é compreendido, em todas as suas significações, a partir do texto-tecido. Ler, compreender, interpretar são atos cortantes, decisivos, que fazem incisões e cortes, que provocam em toda parte feridas na teia e na carne. O texto se reconstitui sempre, mas conserva as marcas ou os traços de todas as leituras. Aqui a regeneração do tecido vivo coincide com o processo de cicatrização e de inscrição da memória da ferida. Escrita contra ressurreição.

Mas, com o paradigma da aranha, não se trata ainda de outra utopia, a da inscrição? E quem pode nos garantir que o modelo do texto é ainda hoje pertinente? Será que o paradigma da inscrição, assim como o da dialética em seu tempo, não está também em via de desaparecer? Serão ainda a leitura e a escrita paradigmas pertinentes para pensar a finitude em geral e o trabalho da memória em particular?

A terceira leitura da frase da Fenomenologia do espírito, para além da significação dialética e da significação diferencial ou textual da cura, projeta seguir outro caminho, o da salamandra.

Meu interesse pela medicina dita regenerativa partiu de minha pesquisa sobre a plasticidade que, como anunciei no início, desenvolve uma série de técnicas de autorreparação, de autorregeneração dos órgãos ou dos tecidos. Para isso, tal medicina se vale do potencial dessas surpreendentes células que são as células-tronco. Os cientistas trabalham com as células-tronco embrionárias, ditas pluripotentes, capazes de se diferenciar para dar origem a todos os tipos de células do organismo. Num período mais recente, eles buscam também produzir em laboratório células-tronco embrionárias a partir de células-tronco adultas. Em 2006, um pesquisador japonês, Shinya Yamanaka, fez uma descoberta notável: um meio de desdiferenciar células-tronco adultas para reencontrar sua pluripotência. Essas células podem se tornar qualquer célula do corpo – são chamadas células pluripotentes induzidas (ou IPS, do inglês induced pluripotent stem cell). Somente as células-tronco embrionárias, derivadas de um embrião humano de quatro a cinco dias, são naturalmente pluripotentes. A descoberta de Yamanaka significa que todas as células do corpo, excetuados os espermatozoides e os óvulos, podem agora ser transformadas em células-tronco pluripotentes.

A maior parte das células-tronco adultas normais geram, no momento da renovação, células semelhantes às do tecido do qual elas provêm. Graças às técnicas de desdiferenciação, ou transdiferenciação, é possível agora fabricar pele, músculo, neurônios a partir de qualquer célula-tronco induzida; regenerar, sem auxílio exterior, o órgão ou a parte do corpo doente.

Essa medicina, baseada no potencial das células-tronco, é dita regenerativa em referência à capacidade que certos animais possuem de reengendrar uma ou várias de suas partes lesadas ou amputadas. A salamandra é o exemplo mais conhecido e o mais espetacular. Ela é capaz de regenerar membros (patas, cauda) e porções de órgãos, como o olho ou o coração. A medicina regenerativa, pela utilização das células-tronco, tende hoje a redescobrir essa faculdade autorreparadora inscrita na memória das espécies. Com uma frequência cada vez maior, faz-se intervir a regeneração no tratamento do infarto do miocárdio, nas queimaduras ou na doença de Parkinson.

A biologia celular prova a possibilidade de uma dissociação entre regeneração e imortalidade. A hidra, quando cortada em duas, revela-se capaz de regenerar um animal inteiro a partir de cada uma das duas partes seccionadas. Se certos vermes são cortados, cada pedaço engendra um novo organismo idêntico ao original. A regeneração é, na realidade, uma clonagem. O animal é capaz de encontrar nele mesmo, à margem dos processos de reprodução, a possibilidade de, replicando-se, reparar-se.

Essas possibilidades terapêuticas inteiramente novas – surgidas apenas no final dos anos 1990 – solicitam o pensamento filosófico de múltiplas maneiras. Em particular, elas levam a compreender a frase de Hegel de outro modo. Quando a cauda de uma salamandra ou de um lagarto volta a brotar, temos aí de fato uma cura sem cicatriz.

No entanto, não se trata mais do primeiro caso examinado, o da fênix.

O órgão se reconstitui sem cicatriz, mas ao mesmo tempo o órgão que rebrota é diferente do anterior – em tamanho, em volume, em forma. A pata regenerada da salamandra é, em geral, menor que a precedente. Essa diferença não é nem uma forma de vida superior, nem um desvio monstruoso. Trata-se de uma reconstituição finita, de uma ressurreição sem milagre. Não há cicatriz, não há inscrição, mas há formação de uma diferença. Eis aí, certamente, o que separa a salamandra da fênix. A fênix renasce de suas cinzas, permanecendo eternamente idêntica a si mesma. A salamandra é mortal e se reconstitui, mas de maneira diferente do que era no início.

No homem, como em todos os mamíferos, a regeneração está praticamente extinta. Das capacidades regeneradoras da salamandra ou da hidra, somente algumas raras características subsistem. É o caso da epiderme e dos vasos sanguíneos que tendem a se reconstituir quando lesados. O fígado pode, em certos casos, regenerar-se. A última falange é suscetível de rebrotar nas crianças ou nos adolescentes. Mas essas possibilidades são extremamente limitadas e aparecem como vestígios de um passado imemorial.

Por que a regeneração se extinguiu? Esse ponto é particularmente interessante: parece que a cicatrização a substituiu ao longo da evolução. Nos animais superiores, é menos vantajoso conservar por muito tempo uma ferida aberta do que cicatrizar. A evolução teria descartado a regeneração nos animais complexos porque esta exige mais tempo do que a cicatrização e representa um fator de adaptação menos vantajoso, mais custoso. A cicatrização, portanto, é um modo de cura tardio na história das espécies.

É preciso ver que a cicatriz é um obstáculo físico à regeneração; ela forma uma crosta ou uma casca fibrosa que impede precisamente a reconstituição do membro ou do órgão lesados.

O que se passa se seccionamos a pata de uma salamandra? As células epidérmicas migram rapidamente para a superfície do coto e o recobrem inteiramente com uma espécie de invólucro. Quando a superfície amputada está totalmente coberta, começa uma segunda fase, a chamada desdiferenciação. Sob esse invólucro, as células-tronco que haviam se diferenciado em células nervosas, musculares ou vasculares perdem sua especialização. Elas se desdiferenciam e formam uma espécie de broto, o blastema de regeneração, a partir do qual vão regenerar toda a superfície amputada. Nenhuma cicatriz se forma. A ferida cura e não deixa cicatriz. Nos mamíferos, ao contrário, esse blastema não se constitui; em seu lugar aparece a cicatriz.

Atualmente, a medicina regenerativa baseia-se essencialmente na possibilidade de reativar essas funções perdidas, o que implica a inibição do processo de cicatrização, o apagamento da cicatriz. Essa inibição ou esse apagamento são possíveis de duas maneiras: pela ativação da desdiferenciação e da transdiferenciação das células-tronco – é a clonagem terapêutica – ou pela neutralização dos genes cicatrizantes – o que é uma função da terapia gênica.

Assim, os biólogos trabalham hoje para reencontrar o traço do processo de apagamento do traço ou da cicatriz. Com a introdução do paradigma da salamandra pela biologia contemporânea, estamos diante de um duplo processo de desaparecimento do traço. Em primeiro lugar, o desaparecimento ligado à regeneração natural: o membro ou o tecido se reconstitui, não há cicatriz, a marca da ferida se apaga. Em segundo lugar, o desaparecimento do próprio processo de cicatrização, desaparecimento este provocado pela técnica médica.

A salamandra nos lembra que a regeneração é uma desprogramação, uma desescrita, se quiserem. As células-tronco podem mudar de diferença, mudar de inscrição. A medicina regenerativa prova o caráter caduco de algo em que acreditamos até um período ainda muito recente, a saber, a irreversibilidade da diferenciação celular e da programação genética. Ora, o conceito de plasticidade é empregado hoje pelos biólogos precisamente para designar essa capacidade das células de modificar seu programa, de mudar seu texto.

A obra terapêutica e ontológica da plasticidade desarranja, assim, tanto o trabalho dialético de autorreparação do absoluto quanto os motivos da escrita e da textualidade em geral. A plasticidade toma o lugar da escrita para designar o modo de ser do que não é inscrito.

Observando a organização interna ou a arquitetura do cérebro, tendo a pensar hoje que o que se impõe como forma da reparação, mas também como paradigma da formação em geral, não é mais o texto, mas as configurações neuronais. A capacidade que certos animais possuem de regenerar a totalidade ou parte deles mesmos encontra seu eco na maneira como funciona a codificação cerebral.

O cérebro deve sua plasticidade ao fato de poder mudar de forma sob o efeito das experiências, dos hábitos e das aprendizagens. As conexões podem variar em tamanho e volume conforme sejam mais ou menos solicitadas. Ora, é impressionante constatar que essas solicitações não deixam, propriamente falando, nenhum traço nas redes neuronais. Há mudança de forma, mas não há inscrição.

A observação do cérebro nos ensina que, aí também, nem o modelo da fênix nem o da aranha se mostra agora pertinente. Detenhamo-nos primeiro no segundo modelo. O modelo gráfico não é mais pertinente para caracterizar o traço sináptico. Esse fato provoca uma ruptura com o modelo da facilitação (Bahnung), apresentado e definido por Freud no “Projeto para uma psicologia científica”[6]. Nesse texto de 1895 e, mais tarde, em “Nota sobre o ‘bloco mágico’”[7] (1925), Freud desenvolve – como o mostra Jacques Derrida em “Freud e a cena da escritura”[8] – uma problemática da facilitação que se identifica cada vez mais nitidamente com uma problemática do traço escrito e do texto[9]. Freud descreve a operação da facilitação como abertura de um caminho, de uma estrada que se traça combatendo a resistência de um meio. O texto se imprime rompendo a resistência do material, e encontra-se aí a segunda característica do traço em Freud, pensado segundo o modelo da impressão, da ponta, do estilete na matéria.

Ora, o fato é que a facilitação não é uma categoria pertinente para pensar o traço sináptico. As conexões mudam de forma, mas não há marcas nem impressões. O traço sináptico não se inscreve no suporte neuronal como um selo na tabuinha de cera. Mais uma vez, as conexões se transformam em tamanho ou em volume, mas essa transformação não é o análogo de uma marcação num suporte. As reuniões de neurônios, aliás, podem se desfazer, não há a permanência da “tabuinha de cera”, o modo de deposição da lembrança não corresponde mais, propriamente falando, a uma inscrição.

O modelo do bloco mágico também não é mais pertinente hoje. Em “Nota sobre o ‘bloco mágico’”, Freud explica:

O bloco mágico é uma prancha feita de um pedaço de resina ou de cera castanho-escura com uma moldura de papel; consiste numa folha fina e translúcida que se acha presa na sua borda superior e livre na borda inferior. Para servir-se desse bloco mágico, escreve-se na folha de celuloide transparente. Um estilete pontiagudo risca a superfície onde a escrita se grava em baixo-relevo[10].

Ao puxar-se a folha, a escrita é apagada, mas ela é também conservada na camada de cera castanha. No inconsciente, mostra Freud, há o mesmo dispositivo de apagamento, mas trata-se de um deslocamento, não de um desaparecimento puro e simples. No psiquismo, o bloco mágico é um palimpsesto, os traços se sobrepõem.

Acontece que no cérebro não há, propriamente falando, inscrição. Assim, a rede neuronal e a plasticidade que nela existe não formam palimpsesto nem texto de várias camadas. O cérebro não é uma máquina de escrever.

Como pensar a memória sem a facilitação? Esse é um dos maiores desafios colocados à neurociência hoje. Da salamandra ao cérebro, encontramos a mesma dinâmica de uma formação, de uma reparação sem sinais nem traços. Mas nem por isso reencontramos aqui o modelo da fênix, pois todo cérebro conserva em sua forma a marca das feridas passadas, mas a conserva sem inscrição.

Se a plasticidade contemporânea não coloca em questão os conceitos de cicatriz e de traço, mesmo assim ela nos obriga a pensar um novo sentido da cura. O que nos ensina essa nova figura? Ela determina a forma do real. Segundo a figura da fênix, o real é um sistema. Segundo a da aranha, o real é um texto. Segundo a da salamandra, o real é uma rede.

Sem ressurreição, mas também sem inscrição – tal é o aspecto de nosso futuro. Totalidade, cadeia significante, sinapse: entre essas três estruturas, uma nova aventura do corpo e do espírito começa.

Se essa aventura se apresenta como uma nova utopia, é porque ela anuncia que o homem pode apagar todas as cicatrizes, não no sentido de Hegel, mas graças à tecnologia. Darei um exemplo para terminar.

Recentemente a revista Cell publicou um artigo sobre uma nova forma de terapia do estado de estresse pós-traumático (PTSD, em inglês), que associa um tratamento medicamentoso e um acompanhamento psicológico. Trata-se, literalmente, de apagar as marcas do trauma no cérebro. Os pesquisadores utilizaram uma classe de medicamentos chamados histone deacetylase inhibitors (HDACI), conhecida por apagar as marcas epigenéticas presentes no DNA. Os medicamentos por si sós não funcionam e devem ser acompanhados de uma terapia; no entanto, permitem dissociar o acontecimento da emoção que o acompanhava. Isso é visto como uma espécie de cura que permite acalmar os efeitos do estresse intenso. Mas apagar o trauma não é também apagar a memória? A nova utopia de um corpo e de um espírito totalmente regenerado, sem traço, é desejável? Eis aí os enigmas que a medicina regenerativa e as técnicas de clonagem colocam. De Hegel às células-tronco, da dialética ao pós-humano, passando pela lógica do texto, o que temos, a cada vez, são visões idealizadas da ferida e da cura que deixam de lado a questão difícil da convalescença, da melancolia e do incurável.

Notas

  1. A tradução do presente ensaio, incluindo as citações de obras feitas pela autora, é de Paulo Neves.
  2. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Phénomenologie de l’esprit, v. 2, Paris: Aubier, 1941, p. 197. Ed. bras.:

    Fenomenologia do espírito, Paulo Meneses (trad.), Petrópolis: Vozes, 1992.

  3. Idem, Leçons sur la philosophie de l’histoire, Paris: Vrin, 1981, p. 62. Ed. bras.: Filosofia da história, Maria Rodrigues; Hans Harden (trad.), Brasília: Editora da UnB, 1995.
  4. Idem, Phénomenologie de l’esprit, v. 2, Paris: Aubier, 1941, p. 309.
  5. Jacques Derrida, “La différance”, em: Marges de la Philosophie, Paris: Éditions de Minuit, 1972, p. 25. Ed. bras.: Margens da filosofia, Joaquim Torres Costa; António M. Magalhães (trad.), Campinas: Papirus, 1991.
  6. Sigmund Freud, “Projeto para uma psicologia científica”, em: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 1, Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 335-454.
  7. Ibidem, v. 19.
  8. Jacques Derrida, “Freud e a cena da escritura”, em: A escritura e a diferença, São Paulo: Perspectiva, 1995, pp. 179-227.
  9. Ibidem.
  10. Sigmund Freud, “Note sur le ‘Bloc-notes’ magique”, em: Résultats, Idées, Problèmes, t. 2, Paris: PUF, 1985, p. 120.

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