2017

Viver sem esperança é viver sem medo ou contra a utopia

por Vladimir Safatle

Resumo

Muitos foram, ao longo da história, os paralelos traçados entre vida e política. Nesse sentido, a expressão “biopolítica”, cunhada por Rudolph Kjellén em 1920, foi um marco. Tratava-se, então, de ver algo de orgânico na política, em seu corpo, como se costuma dizer, não por acaso.

Tal paralelo serviu aos totaltarismos estabelecidos no século 20.

Por isso, quando Foucault retomou a expressão “biopolítica”, deu-lhe um novo sentido: o do uso político do que havia, até Aristóteles, de imutável no ser humano, isto é, seu caráter vivente. “Administração dos corpos e gestão calculista da vida”, escreve, com efeito, Foucault.

Nessa perspectiva, a “episteme” histórica vigorava sobre a vida, cuja ligação com a política deveria ser rompida; afinal, a vida, em seu vazio ontológico, é o que há de contrário à normatividade.

Mas por que não dar um sentido positivo a ela?

Foi o que fez Georges Cangilhem, professor de Foucault.

Para Cangilhem, não há sentido na conceitualização fria da vida, já que ela é a própria condição para a conceitualização. Mais: ela é potência produtiva, que se expressa na condição do vivente. Daí – ainda segundo Cangilhem – que a política a imita, mas não como se esperaria; isto é: não como cópia, mas em seu sentido produtivo. Com isso, retira-se a ênfase na filosofia da história e seus ideais, como Deus e o progresso. Esse foi todo o movimento de boa parte da filosofia francesa do século 20, manifesta em Henri Bergson, Georges Bataille e Gilles Deleuze.


É comum ouvirmos a afirmação de que vivemos em um tempo desprovido de utopias. Alguns veem nisso sua maior
fraqueza, outros, sua força mais sábia. Quando se diz que nosso tempo é desprovido de utopias, diz-se que, para o bem
ou para o mal, o tempo reconciliou-se com suas formas atuais. O que pode significar duas coisas distintas. Primeiro,
que nosso tempo é marcado pela melancolia de quem sabe que suas promessas de superação foram perdidas. Nesse
caso, a reconciliação do tempo consigo seria uma reconciliação melancólica, resultado da diminuição de nossas
expectativas em relação ao porvir. Teríamos nostalgia de uma época marcada pelas utopias e nada pareceria ter a força
de reinstaurá-la.
Mas dizer que nossa época é desprovida de utopias pode querer dizer também que, de certa forma, o establishment seria
uma certa "utopia realizada". Não são poucos os que procuram transformar os modos de vida liberais e as formas
políticas que são próprias ao nosso tempo em horizonte utópico final do processo de modernização social. Um pouco
como vemos na temática do "fim da história e o último homem". Inde­ pendentemente das crises, há sempre liberais
dispostos a serem um Leibniz das finanças e falarem que este é o melhor mundo possível. Se Deus não criou outro é
porque fora do mundo liberal só haveria catástrofes.
De toda forma, tanto em um caso como em outro, há a defesa de que nossa época seria uma época reconciliada com
suas próprias formas ou, ao menos, reconciliada com as dinâmicas próprias a animar a atualidade de suas formas.
Como se não houvesse mais acontecimentos fundadores a esperar. No máximo, acontecimentos catastróficos a evitar ou
confirmadores de nossas formas de vida.
Assim, uma questão relevante seria: precisamos mesmo da utopia para defender a força de transformação da política? A
fim de responder a essa questão, gostaria de abordar o problema da utopia a partir das arti­ culações entre tempo,
política e afeto. Há uma temporalidade própria à utopia, assim como há um circuito de afetos que é próprio ao seu
regime de temporalidade. Lembrar desses pontos se justifica se aceitarmos que pensar a política é, principalmente,
pensar o circuito de afetos produzidos pela vida social e que sustentam a constituição de vínculos. Afetos que nos
constituem de certa forma, que nos fazem sentir certos acontecimentos e não sentir outros, que nos fazem perceber
certas situações e não perceber outra 1 . Neste sentido, nossa questão sobre utopia deve ser: que tipo de afeto o tempo das
utopias produz e o que tais afetos nos levam a fazer?
HISTÓRIA E ACELERAÇÃO
Gostaria de começar a discutir esse ponto lembrando como não foram poucos aqueles que insistiram em que, a partir
da Revolução Francesa, o tempo entrou em um impressionante processo de aceleração. Não se trata aqui simplesmente
da aceleração resultante de desenvolvimentos tecnológicos exponenciais capazes de mudar nossa experiência da
proximidade, da distância, do deslocamento e da velocidade. Desde a Revolução Francesa o tempo entrou em
aceleração porque se modifica nossa compreensão sobre o que deveríamos entender por história. Isto a ponto de
história ser, a partir de certo momento, o nome que daremos a um processo de aceleração do tempo e de convergência
da multiplicidade das formas de temporalidade em direção ao que ainda não fora visto. Tal aceleração, se em certa
dimensão foi influenciada pelo progresso das técnicas, em outra é resultado de uma inquietude profunda do tempo
consigo mesmo. Inquietude resultante do que poderíamos chamar de dessacralização das formas sociais.
De Heródoto e Tucídides aos iluministas, a história significou, em larga medida, a "investigação através da
interrogação de testemunhas" 2 . Investigação cujo objetivo maior será permitir aos sujeitos servirem-se do passado como
quem se serve de uma coleção de exemplos 3 . Daí uma expressão paradigmática de Cícero: Historia magistra vitae
(história como mestre da vida). Narra-se a história como quem procura feitos notáveis que nos indiquem como
proceder diante de situações análogas no presente. Mas essa concepção de história com sua força pedagógica exigia a
crença em um tempo contínuo, no qual passado e presente se desdo­ brariam no interior de uma mesma duração.
Condição necessária para que o interesse pelo passado reduza-se, basicamente, à procura de relatos
exemplares a serem repetidos no presente. Como disse o historiador Reinhart Koselleck: "Seu uso [tal uso do passado]
remete a uma possibilidade ininterrupta de compreensão prévia das possibilidade humanas em um continuum histórico
de validade geral" 4 .
Mas, a partir do Iluminismo e, principalmente, da Revolução Francesa, tal continuum explode. A experiência de um

1 Desenvolvi este ponto de forma mais sistemática em O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo
e o fim do indivíduo, Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
2 Odilo Engels et at., O conceito de história, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 41.
3 Como dirá Koselleck: ''.Assim, ao longo de cerca de 2.000 anos, a história teve o papel de uma escola,
na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em grande erro" (Reinhart Koselleck,
Futuro Passado, Rio do Janeiro: Contraponto, 2006, p. 42).
4 Ibidem, p. 43.

tempo radicalmente novo ligado à revolução pressupõe a possibilidade de a ordem política poder ser profundamente
reconfigurada. Nesse espaço aberto, orientar­se na ordem política não implica mais agir a partir do reconhecimento de
exemplos vindos do passado, mas implica o conhecimento de causas que determinam o presente como depositário da
latência do que ainda não se realizou. Haveria um processo em marcha, cada vez mais acelerado, que empurra o
tempo para a frente em direção a uma realização sem referência com o que até agora foi feito. Haveria um projeto
que parece indicar a possibilidade de encarnar na ordem política o que a filosofia iluminista tinha tematizado através da
noção de progresso. O tempo entra assim em regime de progressão, de inquietude, e é dele que, a partir de agora, irá
tratar a história. Por isso, a história não será mais o espaço de uma reprodução do passado no presente, mas de uma
construção que nos remete ao que poderíamos chamar de corpo social por vir, ou seja, corpo social que promete uma
unidade semanticamente distinta daquela que se impõe na atualidade.
A consistência de tal corpo seria dada pelo caráter vetorial de um tempo que dá a impressão de progredir e acelerar em
direção a um encontro consigo mesmo, superando assim sua inquietude. Pois esta era a forma de a consciência
reconciliar sua essência com uma destinação que parece se realizar como pulsação temporal capaz de unificar, em uma
rede causal contínua, origem e destino, passado e futuro. Mesmo quando o caráter vetorial do tempo histórico for
pensado sob o signo da revolução e sua nova ordem da temporalidade, ele nunca deixará de operar como uma certa
recuperação de dimensões esquecidas do passado, de promessas que haviam ficado à espera de outro tempo. Lênin se
via como a ressureição dos communards – a Revolução Francesa não cansou de constituir seu imaginário através da
rememoração da República romana. Ou seja, mesmo a descontinuidade será a efetivação de outra forma de
continuidade. Ninguém melhor que Benjamin explorou tal característica de certo tempo revolucionário ao afirmar:

O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção.
Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não
existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não
têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a
conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as
gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera.
Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força
messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode
ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso 5 .

Neste sentido, a tarefa política moderna será definida a partir de certa politização da temporalidade que obedecerá a
duas estratégias: a aceleração do tempo em direção a seu destino teleológico e a repetição das lutas que ficaram para
trás à espera de uma recuperação liberadora. Aceleração e repetição como dois vetores indissociáveis de uma mesma
estratégia que visa ao advento de um corpo social por vir.
Tal tempo que visa à construção de um corpo social por vir foi muitas vezes compreendido como um tempo marcado
pela utopia, ou como disse um dia Jean-François Lyotard, tempo ordenado por uma metanarrativa 6 , já que a utopia
garantiria que a noção de progresso não seria apenas a realização do que já se encontra em marcha no presente, mas a
realização do que ainda não tem figura no campo dos possíveis a ordenar a vida social. Digamos que a utopia como
metanarrativa é algo como um princípio transcendental de organização da história 7 .Transcendental no sentido kantiano
do termo, ou seja, um conjunto de categorias que determina a condição de possibilidade de toda e qualquer experiência.
Conjunto que, por sua vez, não depende da experiência para ter legitimidade, não se modifica a partir do contato com a
experiência.

5 Walter Benjamin, "Sobre o conceito de história", em: Obras completas, v. 1: Magia e técnica, arte e política,
São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 223.
6 Jean François Lyotard, La condition post-moderne, Paris: Seuil, 1982.
7 Da mesma forma que certo uso do conceito de revolução terá uma função transcendental. Lembre­
mos de Koselleck e de sua afirmação segundo a qual, no interior da experiência moderna, a revolução
adquiriu "um sentido transcendental, tornando-se um princípio regulador tanto para o conhecimento
quanto para a ação de todos os homens envolvidos na revolução" (Reinhart Koselleck, op. cit., p. 69).
Isto quer dizer que ela se transformou em condição de possibilidade para a produção de sentido do
tempo histórico em geral, sendo apenas isto, a saber, uma condição categorial de possibilidade para a
produção de sentido e, consequentemente, da experiência histórica, por descrever a forma geral do
tempo em movimento de aceleração e repetição. Mas, por ser forma geral, ela não poderá em momento
algum ser encarnação de um tempo concreto. É esta impossibilidade de encarnação que lhe dá o caráter
de uma espécie de transcendência negativa.

No entanto, poderíamos nos perguntar se precisamos realmente de um princípio transcendental como a utopia para
pensar o tempo das realizações políticas. Não seria sua transcendentalidade a condição, ao contrário, para o bloqueio de
toda política de transformação? Lembremos, inicialmente, que um conceito transcendental é expressão da determinação
categorial de predicados em geral. Ele não define previamente quais objetos lhe convém, qual a extensão de seu uso,
mas definirá quais as condições para que algo seja um objeto, que predicados algo pode portar. Nesta definição, decide-
se previamente a extensão da forma do que há a ser experimentado, pois a determinação categorial transcendental
ignorará acontecimentos que exigiriam mudanças na estrutura geral da predicação e que imporiam uma gênese de novas
categorias. Tal determinação formal acaba por se transformar, assim, na expressão da impossibilidade de todo e
qualquer processo no qual a experiência produza categorias estranhas àquelas que pareciam previamente condicioná-la.
Experiências que, do ponto de vista das condições de possibilidade temporalmente situadas no presente, produzem
necessariamente acontecimentos impredicáveis.
SPINOZA, ESPERANÇA E CONTINGÊNCIA
Percebam inicialmente que um tempo marcado pela utopia é um tempo de expectativa. A expectativa é forma de criar
uma vetorialidade do tempo em direção a um futuro já projetado pelo presente. A imagem do futuro já está
determinada, orientando o presente. O que a utopia faz é, aparentemente, potencializar as forças para que tal imagem se
aproxime. Quando ela parece se aproximar, um afeto cresce, a saber, a esperança. Quando ela parece se distanciar,
ocorre algo como a melancolia vinda do sentimento de retração do horizonte de expectativas. Por isso, podemos dizer
que o tempo da utopia é marcado pela circulação da esperança como afeto político central. Mas tentemos entender
melhor que tipo de afeto é a esperança, qual é sua configuração.
Partamos, a este respeito, da ideia da esperança ser, acima de tudo, uma forma de ser afetado pelo tempo, afeto
indissociável do que poderíamos chamar de temporalidade da expectativa 8 . Nesse sentido, ela é um modo de síntese do
tempo que partilha com outro afeto, a saber, o medo, uma relação com o que teóricos da história chamarão de horizonte
de expectativa 9 . A crítica que gostaria de fazer é baseada, pois, na seguinte ideia: toda política fundamental na elevação
da esperança a afeto central será também uma política do medo e toda política do medo é uma política da paralisia.
Lembremos do que diz Spinoza, um dos filósofos que melhor compreendeu a articulação profunda entre instauração
política e circulação de afetos. Vem de Spinoza a compreensão de medo e esperança como relações ao tempo de
valência invertida: "a esperança é uma alegria instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja
realização temos alguma dúvida. O medo é uma tristeza instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de
cuja realização temos alguma dúvida" 10 .
Pois se medo é a expectativa de um dano futuro que nos coloca em risco, esperança é expectativa da iminência de um
acontecimento que nos colocaria no tempo da imanência potencialmente desprovida de an­ tagonismos insuperáveis.
Imanência própria à expectativa da concórdia da multiplicidade no seio da comunidade. No entanto, se o medo é fonte
da servidão política por ser "o que origina, conserva e alimenta a superstição" 11 da qual se serve o poder de Estado para
impedir o exercício do desejo e da potência de cada um como direito natural, a esperança mostrará seus limites por
perpetuar um "fantasma encarnado da ima­ ginação impotente" 12 aprisionada nas cadeias da espera. Neste sentido,
ganha importância uma afirmação como:

Supõe-se que quem está apegado à esperança, e tem dúvida sobre a
realização de uma coisa, imagina algo que exclui a existência da coisa
futura e, portanto, desta maneira, entristece-se. Como consequência,
enquanto está apegado à esperança, tem medo de que a coisa não se
realize. Quem, contrariamente, tem medo, isto é, quem tem dúvida sobre
a realização de uma coisa que odeia, também imagina algo que exclui a
existência dessa coisa e, portanto, alegra-se. E, como consequência,
8 A esse respeito, ver Remo Bodei, Geometria delle passioni: paura, speranza, felicitá, Milano: Feltrinelli,
2003.
9 Reinhart Koselleck, op. cit., pp. _,06-27.
10 Bento Spinoza, Ética, Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p. 243.
11 Idem, Tratado teológico-político, Lisboa: Imprensa Nacional, 1988, p.112.
12 Remo Bodei, op. cit., p. 78.

dessa maneira, tem esperança de que essa coisa não se realize' 13 .

A compreensão precisa de Spinoza sobre a impossibilidade de haver esperança sem medo, assim como medo sem
esperança, vem do fato de os dois afetos partilharem a mesma relação com a natureza linear do tempo submetido a
uma estrutura de expectativas, mesmo que sob valências invertidas. Neste sentido, a interversão da esperança em medo
é afecção necessária de um tempo pensado sob o paradigma da linearidade. Pois expectativa é abertura em relação a
possíveis, realização iminente de possíveis que não são necessários no momento de sua enunciação e projeção pelos
sujeitos. Há uma distância linear, uma relação descontínua de sucessão entre a localização temporal na qual o possível
torna-se efetivo e esta na qual ele é inicialmente enunciado como possibilidade. Esta temporalidade linear não pode
escapar da aporia própria à ideia de uma coisa fatura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida. Pois a ideia
de uma coisa futura ou passada é ideia de uma ausência, de uma não presença atual, ideia do que nos afeta inicialmente
pela sua distância. Por ter sido gerada na distância, por ter sido enunciada na ausência, a realização do possível nunca
poderá superar por completo a condição do que pode a qualquer momento não mais ser, voltar a sua condição inicial de
não ser. O que passou uma vez pode passar novamente: esta é regra fundamental da descontinuidade pontilhista do
tempo linear. Por isso, este tempo só poderá ser o tempo da ânsia.
Devemos falar em tempo da ânsia porque ele será assombrado pela possibilidade de dominar a contingência e, com
isso, garantir as condições de possibilidade para a realização da ideia de uma coisa futura ou passada, quando for
objeto de esperança, ou seu afastamento, quando for objeto de medo.
Spinoza contrapõe o medo e a esperança à segurança (securitas). "Se, desses afetos, excluímos a dúvida", dirá Spinoza,
"a esperança torna-se segurança" 14 . O que o leva a afirmar que o fim último do Estado deve ser "libertar o indivíduo do
medo a fim de que ele viva, tanto quanto possível, em segurança, isto é, a fim de que mantenha da melhor maneira, sem
prejuízo para si ou para outros, o seu direito natural a existir e a agir" 15 . Desparecidos o medo e a esperança, ficamos
enfim sob a jurisdição de nós mesmos, ficamos livres e seguros.
Mas notemos a estrutura temporal da segurança. Por ser a "alegria nascida de uma coisa passada ou futura da qual foi
afastada toda causa de dúvida" 16 , a segurança quebra a temporalidade da expectativa. Mas, para tanto, ela pressupõe
ausência de dúvida que só pode aparecer quando "a contingência é dobrada por nosso poder sobre as circunstâncias" 17 .
Ou seja, se a segurança é o afeto mais forte capaz de superar o medo e a esperança, ele só se afirma quando a ação que se
desdobra na temporalidade é capaz de controlar a violência da contingência. Neste sentido, a segurança não pode ser
pensada aqui como a racionalidade política que se alimenta da imagem fantasmática da dissolução iminente do vínculo
social devido à violência das relações entre indivíduos ontologicamente inscrita em seus seres, como podemos ver em
Hobbes. Em Hobbes, é mais correto dizer que o Estado não se coloca como garante da segurança, mas como gestor da
insegurança social, já que seu poder será sempre dependente da capacidade de fazer circular o medo como afeto social
imanente às relações entre indivíduos. Já na obra de Spinoza, a segurança é o resultado de duas operações centrais: a
moderação das paixões em relação aos bens incertos da fortuna, ou seja, o controle dos que "desejam sem medida"
(cupiant sino modo), e a conservação e ampliação das circunstâncias que estão sob nosso poder, o que fornece "os
instrumentos de estabilização da temporalidade, ou seja, instituições políticas que estão e permanecem em poder dos
cidadãos e da coletividade" 18 .
Segurança é, assim, indissociável da maneira com que o corpo político, pensado como multitude, desarma a sujeição
produzida pelos afetos de medo e esperança, enfrentando a contingência através da partilha entre aquilo que não pode
ser submetido ao engenho humano e aquilo que pode a ele ser submetido graças à institucionalização das condições que
permitem a essa mesma multitude a estabilização da temporalidade. Daí uma afirmação clara como: "quanto mais nos
esforçamos por viver sob a condição da razão, tanto mais nos esforçamos por depender menos da esperança e por nos
livrar do medo, por dominar, o quanto pudermos, o acaso (fortunae), e por dirigir nossas ações de acordo com o
conselho seguro da razão" 19 .
Notemos como o tempo aparece assim como a potência fundamental do que nos desampara. Ao menos neste contexto,
medo e desamparo são, em seu sentido mais profundo, afetos produzidos pela expectativa de amparo diante da
temporalidade produzida por uma contingência que nos despossui de nossa condição de legisladores de nós mesmos.

13 Bento Spinoza, Ética, pp. 243-5.
14 Ibidem, p. 187.
15 Bento Spinoza, Tratado teológico-político, p. 367.
16 Idem, Ética, p. 245.
17 Marilena Chaui, Desejo, ação e paixão na ética de Spinoza, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 191.
18 Ibidem, p. 172.
19 Ibidem, p. 321.

Pois há de se tirar as consequências de não ser a partir da contingência que se cria, mas contra ela, já que a contingência
só poderia aparecer inicialmente, como bem compreendeu Hegel, como uma necessidade exterior. Transpondo para o
campo político, isto significaria que a política em Spinoza desconhece a necessidade de integrar o reconhecimento do
caráter impredicável da contingência como motor contínuo da transformação política, já que a contingência não poderia
produzir outra coisa que as paixões que mobilizam a imaginação a criar suas fantasias de amparo. Dessa forma, a
política só pode aparecer como a tentativa humana de esvaziar o tempo. Podemos falar nesta função da política como
esvaziamento do tempo porque, para haver tempo, faz-se necessário que as mudanças sejam impredicáveis, que as
transformações não sejam o efeito imanente de uma causa eternamente presente. Para haver tempo em um sentido
estrito não basta que fatos ocorram, que corpos entrem em movimento permitindo-me perceber um estado anterior e
outro posterior, que devires se desdobrem de uma causa imanente retroativamente apreensível. Faz-se necessário que o
modo estrutural de compreensão das relações também obedeça a mudanças e rupturas, tendo uma gênese e um
perecimento advindo do impacto da contingência como acontecimento. A ideia, tão bem sintetizada por Kant, de que
as coisas passam dentro do tempo, enquanto o tempo, como forma, não passa, esconde a crença equivocada de que
a forma do tempo não estaria submetida a mudanças, que ela não teria gênese nem esgotamento. Isto significa pensar
o tempo como totalidade imóvel devido à estabilidade formal do que permite a intelecção genérica do devir. Se o tempo
é uma totalidade imóvel, então tudo o que ocorre em seu interior, todos os seus devires, todos os ritmos de suas
sucessões, só podem ser, em seu nível formal, expressão de tal imobilidade. Por mais que coisas singulares se
transformem, elas apenas desdobrarão os possíveis de uma totalidade formalmente já assegurada em sua eternidade.
De certa forma, uma crítica da esperança, do medo e da segurança como afetos políticos é uma defesa de uma política
capaz de criar a partir da contingência, e não contra ela. Mas isso nos colocaria fora dos limites impostos pela utopia e
por seu corpo social por vir.
A POLÍTICA DO PRESENTE ABSOLUTO
Se nem medo, nem esperança, nem segurança são afetos que podem nos levar a uma criação política transformadora é
porque todos eles estão caracterizados por tentar colocar a política em um tempo marcado pela luta contra a
contingência. O que é contingente nos despossui de nosso controle, não se submete a nossas previsões, não aparece
como um simples possível previamente definido, mas como impredicável. Nada afetado pela esperança com seu sistema
de projeções pode operar com o desamparo produzido por acontecimentos impredicáveis. Pois a impredicação é o que
mostra a inanidade de toda expectativa, não no sentido de mostrar seu equívoco de previsão, mas seu erro categorial. A
temporalidade concreta dos acontecimentos é impredicável, pois sem referência com o horizonte de expectativas da
consciência histórica. Por isso ela é expressão de um tempo desamparado, desprovido de horizonte utópico, marcado
exatamente pela contingência.
Neste sentido, gostaria de defender que o afeto político central hoje é o desamparo. Não aquele desamparo que
aparece à cena política como procura por amparo de figuras de autoridade, como transformação da política em cuidado
(care). Quem pede por cuidado, pede para ser amparado por figuras de autoridade que lhe aparecem como constituídas,
figuras que seriam dotadas de capacidade de controle e decisão. Mas demandas políticas não são demandas de cuidado.
Elas são demandas de mudança na partilha do poder.
Por isso, a primeira condição para tal mudança é a afirmação do desamparo, ou seja, a afirmação de que o campo do
político é atravessado por acontecimentos que nos descontrolam, que não obedecem a nossas previsões, que não são
produzidos por nós, mas que nós, no entanto, devemos reconhecer. Notemos, neste sentido, que "estar desamparado"
significa estar sem ajuda, não saber mais como esperar, ver sua capacidade de previsão e projeção desabar. Devemos, no
entanto, estar preparados para tais desabamentos, ao invés de lutarmos com todas as forças para evitá-los. Todo
verdadeiro acontecimento é um desabamento. Quando a Revolução Francesa ocorreu, por exemplo, a frase que mais
se ouvia era: "Não estamos entendendo nada", ou seja, não há nada no nosso quadro de expectativas que possa dar
conta das possibilidades abertas pelo acontecimento. Porque, a partir de então, o que era impossível pode se tornar
possível.
Note-se que o desamparo como afeto político não deve ser confundido, ao menos neste contexto, com a aceitação
resignada de certo desencantamento ligado ao desinflacionamento de nossas expectativas de reconciliação social. Muito
menos deve ser visto como o saldo necessário da aceitação "madura" da inexistência de alguma espécie de providência a
nos guiar. Como se fosse o caso de confundir maturidade política com alguma forma de afirmação do caráter
necessariamente deceptivo da experiência comum. Em todos esses casos, afirmar o desamparo equivaleria a formas de
melancolia social, o que o transformaria no afeto de uma vida democrática pensada como esfriamento geral das paixões
de ruptura e como fruto da acomodação à finitude da potência limitada de nossas ações.
Na verdade, trata-se aqui de seguir outra via e compreender o desamparo como condição para o desenvolvimento de
certa forma de coragem afirmativa diante da violência provocada pela natureza despossessiva das relações
intersubjetivas e pela irredutibilidade da contingência como forma fundamental do acontecimento. Pois se estar

desamparado é estar diante de situações que não podem ser lidas como atualizações de nossos possíveis, situações dessa
natureza podem tanto produzir o colapso da capacidade de reação e a paralisia, quanto o engajamento diante da
transfiguração dos impossíveis em possíveis através do abandono da fixação à situação anterior. A compreensão de tal
produtividade do desamparo permite que, dele, apareça um afeto de coragem vindo da aposta na possibilidade de
conversão da violência em processo de mudança de estado. Algo dessa coragem anima a experiência psicanalítica.
Neste sentido, diria que a primeira condição para uma abertura de nossos horizontes de transformação seria nos
livrarmos de um tempo da expectativa, abandonarmos nossos horizontes de expectativa, para reconciliar-nos com um
tempo do presente absoluto. Mas isso só é possível com a condição de compreendermos o presente de outra forma. Não
o presente como um instante autárquico e coeso, mas como um tempo com muito mais camadas, muito mais tensões,
muito mais contradições, sobredeterminações e movimento do que alguns querem nos fazer acreditar. Um tempo muito
bem descrito por Freud ao dizer, sobre a estrutura psíquica do eu:

Escolheremos como exemplo a história da Cidade Eterna. Os historia­
dores nos dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma
povoação sediada sobre o Palatino. Seguiu-se a fase dos Septimontium,
uma federação das povoações das diferentes colinas; depois, veio a ci­
dade limitada pelo Muro de Sérvio e, mais tarde ainda, após todas as
transformações ocorridas durante os períodos da república e dos pri­
meiros césares, a cidade que o imperador Aureliano cercou com as suas
muralhas. […] Permitam-nos agora, num voo da imaginação, supor que
Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade psíquica, com um
passado semelhantemente longo e abundante – isto é, uma entidade onde
nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores
de desenvolvimento continuam a existir, paralelamen­ te à última.[…] Se
quisermos representar a sequência histórica em termos espaciais, só
conseguiremos fazê-lo pela justaposição no espaço: o mesmo espaço não
pode ter dois conteúdos diferentes. Nossa tentativa parece ser um jogo
ocioso. Ela conta com apenas uma justificativa. Mostrar quão longe
estamos de dominar as características da vida mental através de sua
representação em termos pictóricos 20 .

É tendo em vista um tempo dessa natureza que podemos dizer: não ter nada mais a esperar pode significar também
que todas as condições para modificações profundas já estão no presente. Basta saber percebê-las. Não pre­ cisamos
reinstaurar o tempo das utopias. Precisamos, na verdade, ter uma visão mais complexa das tensões e tendências que
operam no presente e compreender as latências de transformação que nos habitam.

________________

Notas

20 Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, São Paulo: Companhia das Letras, 20n, pp. 21-2.

20. Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, São Paulo: Companhia das Letras, 20n, pp. 21-2.

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