2017

O que fazer nas mutações?

por Luiz Alberto Oliveira

Resumo

A partir da sugestão de Paul Crutzen, prêmio Nobel de Química, tem crescido na comunidade dos cientistas a convicção de que a Terra – e com ela, é claro, a civilização humana – está entrando em uma nova era geológica: o Antropoceno. Esse novo período, que começou com a Revolução Industrial e alcança a atualidade, trouxe consequências duradouras. As modificações impostas por essas ações abrangem o metabolismo energético e vital do planeta. E elas são permanentes. Doravante, o homem é o ser da era dos Humanos.

Jane Bennett observa que o Antropoceno requer novas geopolíticas, já que excede as vicissitudes da história de territórios e povos – ou de geos e politeia… , para estabelecer um novo modelo segundo o qual a Terra passa a ser agente político, e a política passa a ser agente geológico. É nesse contexto que se situa a teoria Kevin Kelly e outros sobre a tecnociência em sua mais sofisticada feição. Para Kelly, o avanço fundamental do século 20 foi a miniaturização dos objetos e componentes, já que isso possibilitou não só a disseminação exponencial deles, como também o aperfeiçoamento de suas capacidades de atuação e interação. A partir disso, surgiram duas tendência: a da ambientação dos tecnobjetos, que assim se tornaram deslocalizados e invisíveis, e a da humanização deles. Neste caso, os tecnobjetos adquirem habilidades cada vez humanas, de modo a fundirem-se física e funcionalmente entre si.

Ambos os modelos resultam em dicotomias como natural e artificial, orgânico e inorgânico, interior e exterior, cognitivo e automático, sujeito e objeto.

O resultado disso é a coalescência, em múltiplas dimensões, do humano e do inumano.


Tudo o que sabemos, isto é, tudo o que podemos, passou hoje a se opor a tudo o que somos.

PAUL VALÉRY

Esta é uma celebração dos trinta anos de atividades da Artepensamento, capitaneada pela extraordinária pessoa de Adauto Novaes. Em particular, trata-se de reencontrar o primeiro momento do ciclo Mutações, que daria lugar ao volume denominado Novas configurações de mundo. É evidentemente uma tarefa impossível abordar em profundidade uma obra com tantas e tão densas contribuições de tantos articulistas notáveis; ao invés de uma resenha demasiado superficial, procuraremos mapear as transformações experimentadas ao longo dos dez anos já transcorridos desde a realização do evento por um conteúdo específico, referente ao texto “Sobre caos e novos paradigmas”.

Foi no âmbito das discussões preparatórias para este ciclo, levadas a cabo em reunião prévia dos palestrantes na histórica e aprazível Tiradentes, em Minas Gerais, que pela primeira vez se esboçou um diagnóstico do estado de coisas da civilização contemporânea que iria, mais à frente, balizar toda a série de palestras sobre as Mutações. Esse diagnóstico partia da constatação da obsolescência, da caducidade, do par complementar de conceitos crise/revolução, e apontava para a consequente proposição de um outro par de conceitos, mutação/refundação, que poderia vir a substituí-lo como elemento efetivo para dar conta da complexidade atual.

Ou seja, de maneira muito esquemática: ao examinar a dinâmica histórica das sociedades em termos de períodos de estabilidade e de turbulência, costumamos identificar reiteradas situações de crispação a que chamamos crises. Um fundamento, social, econômico, ou cultural, se instabiliza e sofre uma fissura, que eventualmente se amplia até alcançar um certo limiar, muitas vezes difícil de discernir com precisão, a partir do qual a dinâmica coletiva como um todo principia a se tornar irregular. O estado de crise assinalaria exatamente essa fratura, essa conjuntura de desbalanço global do dinamismo social. A sociedade, ou um dado setor seu, precisa reconstituir-se, recompor seu fundamento, para de algum modo recuperar a estabilidade indispensável para perseguir seu percurso histórico. Trata-se então de sanar essa fratura, de reconstituir o fundamento cindido para que se retome a boa dinâmica, reequilibrada, do corpo social. Em princípio, o empreendimento de sanar a fratura pode ser realizado através de reformas, de maior ou menor alcance, ou então, quando a tensão no sistema atinge um paroxismo, pode ser necessário produzir uma revolução para que o desarranjo demasiadamente agudo dos fundamentos seja superado e se reconstitua o tecido social anteriormente rompido, novamente viabilizando na sociedade um estado de coisas funcional.

É interessante recordar, neste ponto, que o termo revolução sofreu uma curiosa inversão em seu sentido a partir do século XVI. O entendimento que hoje compartilhamos, de que revolução designa uma des- continuidade, um processo abrupto que vem dar conta do desequilíbrio intenso de um sistema social cujo fundamento se estilhaçou, adveio de fato das tremendas consequências que teve a publicação de uma obra seminal: Sobre a revolução das órbitas celestes, de Nicolau Copérnico. O título dizia respeito ao movimento regular, uniforme, e assim bem pouco “revolucionário”, que as esferas (as órbitas) em que se achavam engastados os planetas ou astros errantes desempenhavam em torno da Terra, no cosmos geocêntrico de Ptolomeu que vigorou por toda a Idade Média. Para descrever certos aspectos desses movimentos, porém, cálculos muito complicados, exigindo a inserção de esferas em esferas (os chamados epiciclos), tinham de ser realizados. Copérnico concluiu que esses cálculos poderiam ser muito simplificados se supuséssemos que o Sol, e não a Terra, estivesse no centro comum dos movimentos celestes. Foi esse tratamento de caráter eminentemente técnico que apresentou em seu trabalho; contudo, ciente, ao que tudo indica, das implicações teológicas que a retirada da Terra do centro da ordem cósmica global iria acarretar, evitou publicá-lo em vida, e foi apenas pela intervenção de Andreas Osiander que finalmente a obra veio à luz, em 1543.

Esse foi o modesto início de um dos maiores e mais profundos deslocamentos culturais de toda a história do pensamento: ao influenciar decisivamente os propositores seguintes da concepção heliocêntrica, como Galileu Galilei e Giordano Bruno, o livro de Copérnico motivou a deposição do sistema de mundo ptolomaico, que tinha raízes na antiga associação entre elementos da cosmologia helênica e da astronomia babilônia, e a consequente instalação do moderno universo heliocêntrico. Ao resultar, no dizer de Alexandre Koyré, da transição de um mundo fechado a um universo infinito, a cosmovisão moderna implicou a mencionada inversão do significado de revolução: de movimento regular, periódico, monótono, para processo disruptivo, turbulento, espasmódico. Assim, os movimentos sociais que no século XVIII sacudiram as velhas estruturas feudais vieram a adquirir a denominação de revoluções – o que certamente surpreenderia o próprio Copérnico.

Retomando os elementos do diagnóstico: o par conceitual crise/revolução, ou instabilização/reestabilização de um fundamento, estaria em nossos dias oferecendo sinais abundantes de superação, isto é, de obsolescência. A razão para tal esgotamento tem muitas dimensões possíveis de análise e exploração, mas quiçá podem todas elas ser convergidas rumo a um fato essencial: em nossa contemporaneidade ultraglobalizada, mega-acelerada, hiperconectada, a crise – a fissura, a fenda pela qual se infiltra a alteridade – expandiu-se a ponto de recobrir o próprio fundamento sobre o qual ela mesma se instalaria. Ora, se a fratura superpõe-se, assimila-se, identifica-se ao próprio território que cinde, nada resta que não a hiância, o puro abismo. Se a lacuna não tem borda, ou melhor, se suas bordas coincidem com as do território que a abriga, não há exterioridade rema- nescente ao sistema em crise, o entorno que o envolve é o vazio mesmo de sua medula. Se somente o estado de crise não está em crise, ainda fará sentido pensar na recomposição ou reconstituição desse fundamento tão pulverizado? Será esta uma diretriz que ainda caberia considerar, em meio às fortes tensões infundidas no mundo de hoje?

Examinemos por um momento um dos principais fatores que levaram a esse estado crítico universalizado: o advento, a partir da Revolução Industrial do século XVIII, de uma nova força de moldagem da realidade, de grande abrangência, constituída pelo conjunto integrado de conceitos, protocolos e operações, baseados nos avanços contínuos do conhecimento científico, que passaram a ser usados para coordenar as ações técnicas e que hoje chamamos de tecnociência. Em grau crescente, especialmente a partir da segunda metade do século XX, as práticas tecnocientíficas generalizaram-se a ponto de se distribuírem por todo o globo e tomarem como objeto de intervenção todo tipo de sistema material, inclusive os organismos, inclusive os indivíduos humanos. Esse elemento motriz de todos os tipos de atividade produtiva englobou por inteiro o seu domínio de suporte, ou seja, todo o território geográfico, toda a constelação de ecossistemas, todos os espaços de comunicação e cognição. Perante o novo alcance e a nova intensidade que as forças produtivas vieram a lograr, Paul Valéry já advertia: a velocidade atual das transformações é tamanha que o olho do espírito não pode mais seguir as leis e concentrar-se em algo que se conserve; no seio do turbilhão incrivelmente diverso dos fatos, o pensamento não consegue mais fixar-se em um fundamento sólido, que proporcione o sentido de permanência e estabilidade pelo qual ansiava.

A amplitude dos movimentos tecnocientíficos que marcam nossa época, assim, retira do espírito sua mais rara habilidade, a de isolar, no fluxo de tudo, um diagrama, um princípio de repouso e composição que lhe institui uma base estável a partir da qual o próprio espírito, e a socie- dade que ele anima, poderão compreender a si mesmos. Como observou Valéry, a humanidade se acha em risco de perder suas duas maiores invenções, o passado e o futuro. Se, de fato, a atualidade se vê embebida na abundância dessa lacuna, se o estado de crise se acha assimilado ao próprio fundamento sobre o qual se instalara, talvez não seja mais o caso de buscar-se entender esta atualidade – e seus potenciais desdobramentos futuros – a partir do manejo de noções e práticas pertinentes ao plexo crise/revolução, mas sim empreender a exploração dos caminhos conceituais que se podem vislumbrar sob uma perspectiva renovada: a da díade mutação/refundação. Para além do momento crítico, a declinação imprevista, rumo a outras possibilidades; para além do já constituído, o processo de (re)constituição.

O elemento mais decisivo que deve ser trazido à análise para principiarmos o exame dessa proposta é o entendimento inovador acerca da ação de uma casualidade produtiva, instituinte, ou seja, de uma indeter- minação que assinala não somente ruptura, mas também articulação, e que por conveniência podemos denominar errância. De fato, se invocamos da biologia evolucionária o conceito de mutação, é precisamente para reconhecer a potência instauradora de uma deriva essencial, de um repetido desviar-se cuja efetividade faz da vida um campo de extraordinárias invenções. Todavia, é necessário antes de tudo aclarar o sentido do termo: para nós, errar costuma significar iludir-se, tomar o enganoso em lugar do verossímil. A noção clássica de erro aponta sem dúvida para um aspecto de uma ilusão elevada ao infinito. Pode-se seguramente argumentar que a invenção crucial para o estabelecimento do sistema de pensamento chamado Ocidente foi exatamente o erro, isto é, a capacidade de se conceber um dizer que não recobrisse parcela alguma do mundo e que, portanto, tivesse a potência vertiginosa de veicular o nada. Outros sistemas culturais, outras vias de civilização, não incorporaram esse operador de falseamento supremo; neles, não vigora a oposição entre a plenitude do verídico e seu recíproco, a ilimitação do erro.

Mas, para os navegadores, o termo errar tem um sentido bem diferente, que nada tem a ver com vazio, ou ilusão, ou engano, e sim com uma incerteza inerente ao ato de navegar. Num veleiro, o piloto verifica na biruta de onde sopra o vento, afere na bússola o rumo que pretende seguir e ajusta a disposição das velas de acordo com essa composição de direções. Durante a rota, porém, ocorrem correntes marinhas que impe- lem o barco a derivar, a afastar-se do percurso pretendido. O piloto logo trata de recompor a disposição das velas e o ângulo do timão de modo a levar em conta a nova forçante e, assim, redirecionar a embarcação em novo trajeto rumo ao porto desejado. Para o navegador, portanto, o errar é um componente inerente ao próprio afazer de navegar. Isto é, a rigor não se pode navegar sem errar. E essa deriva inevitável tem decerto uma positividade, pois é ocasião de encontrar o inesperado e, ao mesmo tempo, meio de renovar a rota.

Do errar como falta absoluta, como obstáculo último para a atividade do pensamento, como queria Platão, passamos para o errar como declinação intrínseca, como variância indeterminante que é, no entanto, sempre incubadora de novas possibilidades. Ora, à diferença do conceito de crise, o conceito de mutação, tal como o recolhemos da biologia, engloba precisamente esse caráter de uma errância positiva, produtiva. Ao assimilar de maneira inescapável a imprevisibilidade dos acasos microscópicos, o ajuste implicado pelo próprio desvio faz com que a mutação possa ser a fonte de atributos originais, imprevistos, que vêm então a se inserir em uma série autenticamente criativa de reiterações diferenciais: a evolução.

Procuremos esclarecer exatamente o que significa esse traslado de campos de aplicação do conceito de mutação, da biologia para a investigação sobre os estados de coisa da civilização. A vida corresponde a certo tipo de sistema material que tem uma característica muito clara: a vida, sobretudo, repete. Vamos iniciar nosso exame a partir da unidade básica de qualquer organismo, a célula. Um organismo unicelular, por exemplo, tem tipicamente a escala de um mícron, equivalente a tomar-se um fio de cabelo e dividir em cem partes. Essa minúscula estrutura pos- sui, na verdade, mais componentes do que um Boeing 747, densamente compactados e submetidos a incessante agitação. Nela ocorrem, de fato, descargas elétricas proporcionalmente mais fortes que os relâmpagos das mais poderosas tempestades atlânticas, ondas de choque supersônicas, turbilhões várias vezes mais intensos que os tufões e furacões que vemos na atmosfera. E, no entanto, mesmo contendo em si esse caos, essa célula é capaz não só de manter-se funcional, realizando atividades essenciais como nutrir-se e preservar-se, como tem também o poder de replicar-se. Ou seja, trata-se de uma fábrica, de dimensões microscópicas, em que não apenas há equipamentos capazes de produzir componentes para a própria fábrica, de modo a mantê-la operando, mas também um organograma, um plano de produção, que visa dar lugar à construção de uma nova fábrica. Podemos representar esse plano de produção imaginando um manual de instruções para regular a produção do papel, da tinta e da prensa necessários para a instalação de um parque gráfico com o objetivo de… reimprimir o próprio manual. A célula viva, assim, fabrica de modo ordenado componentes para os equipamentos que tomarão parte no funcionamento da própria fábrica; eventualmente, porém, esses equipa- mentos fabricados irão recombinar-se, destacar-se e passar a fazer parte de uma outra fábrica. Onde havia uma célula, eis duas.

Esse “manual de instruções”, escrito em “desoxirribonuclês”, uma linguagem bioquímica que hoje sabemos ler (e escrever), é o genoma de tal organismo. Contém a prescrição de como essa fábrica celular irá produzir seus próprios componentes, como serão seus modos de operação, isto é, seus intercâmbios com o meio, e também a sequência de passos necessária para que a célula se rearranje globalmente de modo a repetir-se, a dar lugar a um duplo ou cópia dela mesma. Aqui ocorre algo extraordinário: o genoma gerencia o funcionamento da usina celular, mas seu objetivo, em última instância, é reescrever-se. Ora, os caracteres bioquímicos da escritura genômica, essencialmente cadeias de DNA e RNA, são frágeis, ou seja, são combinados e dissociados com facilidade. Pouca energia é requerida tanto para fazer quanto para desfazer as ligações químicas pelas quais o conteúdo informativo do genoma se estrutura.

Vejamos um exemplo ilustrativo da questão em tela, mas por contraste: o caso da lama. Temos um fluido, a água, em que se encontram dispersos grânulos sólidos de diferentes tamanhos, em geral compostos por argila dissolvida, ou areia. Examinemos uma dada poça de lama seca, admitindo, por simplicidade, apenas três classes de grânulos, definidas pelo tamanho médio dos componentes. Nesse caso, observamos sem dificuldade a presença de uma hierarquia arquitetônica bem pronunciada: as partículas maiores se distribuem com certa regularidade, sendo os interstícios entre elas ocupados por partículas intermediárias, e entre estas se acham dispostas as partículas menores. A razão para essa disposição remete simplesmente ao fato de que, quando a poça se sedimentou, os grânulos médios circularam nos intervalos entre os grânulos maiores e, da mesma maneira, os menores se infiltraram entre os médios. Súbito, temos uma enxurrada, a chuva forte rapidamente desfaz a poça, dissolvendo seus elementos e lançando-os na torrente. A chuva passa, as poças d’água começam a secar sobre o solo, e o que acontece? A mesma arquitetura de sedimentação irá se repetir nas poças de lama agora em formação, porque o mesmo mecanismo de distribuição dos grânulos irá mais uma vez selecioná-los de acordo com o tamanho de cada um. Ou seja: a lama repete, a lama replica sua organização arquitetônica geração após geração, mas seguramente a lama não é viva, porque carece exatamente de variação entre as gerações, isto é, carece de mutação.

A unidade informativa da lama, correspondente ao DNA que forma o genoma biológico, são os diminutos cristais de silicatos que se distinguem tão somente pelo tamanho. Ora, sendo cristais, esses grânulos são internamente rígidos, suas estruturas permanecem essencialmente inalteradas ao longo da sucessão de gerações – no máximo, podem se desbastar aos poucos, progressivamente mudando de classe, de maiores para médios para menores. Para Cairns-Smith, há indícios de associação entre a repetição físico-química de arquiteturas das lamas e a replicação bioquímica dos organismos: para ele, a vida imitou a capacidade da lama de refazer continuamente o plano global de organização de seus elementos informativos, mas incorporando a propriedade original, e crucial, de que essas unidades informativas, agora, podem exibir variância interna, porque são formadas por cadeias frágeis. A potência evolutiva da vida, por conseguin- te, advém diretamente dessa fragilidade fundamental.

No caso dos organismos, portanto, durante o processo de replicação do indivíduo, e da correspondente “reimpressão” do “manual de instruções”, alterações desse “texto” podem ocorrer sem maior dificuldade. Essas modificações têm origem, usualmente, na ação de efeitos ambientais em escala molecular, abrangendo desde a presença de reagentes químicos até a incidência de raios cósmicos. As variações resultantes do genoma podem ser calamitosas, ou seja, inviabilizarem a continuidade do processo reprodutivo, levando à extinção da linhagem orgânica; ou podem ser irrelevantes para a continuidade da série de reimpressões, o que levará ao surgimento de uma descendência dotada de caracteres distintos daqueles do indivíduo matriz – uma “edição revista” do manual original. Os desvios na replicação do genoma – as mutações – são, por conseguinte, fatores indutores de diferença bem no seio dos mecanismos de reprodução que caracterizam, como vimos, os seres vivos. A taxa de inovações, isto é, de variação de formatos e capacidades, que o incessante jogo entre replicação orgânica e mutação genômica irá engendrar é incrivelmente acelerada com relação aos ritmos dos processos físico-químicos, climáticos geológicos etc., que servem de suporte para os sistemas biológicos.

Ou seja, a aparição da vida trouxe à cena cósmica um tipo extraordinário de sistema material: uma matéria organizada dotada do poder tanto de repetir quanto de variar sua própria organização, sua forma.

Pelo entrelaçamento de replicação e mutação, isto é, de repetição e diferença, ao longo de sua história, a vida passou a pôr em contato fenômenos em dimensões até então abismalmente remotas: as escalas e durações infinitesimais dos processos bioquímicos moleculares, tipicamente da ordem do bilionésimo de metro e do bilionésimo de segundo, tornam-se engrenadas, no jogo evolutivo, com os macrorritmos das grandes mudanças ambientais planetárias, os períodos de dezenas de milhares de anos das variações do clima atmosférico, de milhões de anos dos processos geológicos e tectônicos da Terra, de centenas de milhões de anos das transformações astrofísicas do Sol. É no âmbito dessa inusitada conexão de dimensões tão díspares, de fato, que as variantes, os diferentes formatos de espécies produzidas pelas mutações, vão ser postas à prova: será a adaptação às circunstâncias cambiantes do ambiente, que, segundo a teoria da seleção natural de Darwin e Wallace, determinará a capacidade maior ou menor de cada espécie de deixar descendência e, portanto, definirá as variedades que irão prosperar ou definhar.

O papel essencial que as mutações das espécies irão cumprir é exatamente o de oferecer um leque de configurações orgânicas, algumas muito similares, outras já bem distintas, para serem discriminadas pela instância macrocausal das transformações ambientais. Numa dada circunstância, ter um tamanho grande pode ser valioso para os membros de uma espécie, mas se o seu território se reduz – por exemplo, quando uma ilha se destaca, em virtude de processos tectônicos, do continente a que pertencia – será conveniente, em vista da redução concomitante de recursos, que o tamanho dos indivíduos se reduza. Dependendo da reconfiguração do contexto, o presente formato e as atuais capacidades de tal espécie receberão uma confirmação, uma positivação dessas formas, ou não, segundo a habilidade que seus membros exibirem, nas novas circunstâncias, de reproduzir-se. As mutações permitem conectar a indeterminação dos acidentes microscópicos sucedidos durante a replicação genômica às variações igualmente imprevisíveis, mas de ordem causal inteiramente diferente, das mudanças das características dos ambientes. A mutação diz respeito, assim, a uma potência inerente de deriva, a uma errância eficaz e criativa que, do mais profundo horizonte da vida, vem acrescentar ao universo um repertório até então desconhecido de perse- verança e de diversidade.

Podemos enfim retomar a discussão de nossa proposta de diagnóstico da atualidade, sugerida pelo círculo de Tiradentes nos já longínquos idos de 2007: em nossa civilização globalizada, isto é, em que vigora uma coordenação das atividades econômicas de abrangência planetária, em inúmeros, se não em todos, os aspectos relevantes para a descrição do estado de coisas vigente, sociais, afetivos, políticos, econômicos, demo- gráficos, biológicos, psicológicos etc., encontramos todo um arsenal largamente distribuído de errâncias e derivas. Onde quer que o olho do espírito procure algo de estável e constante para aí se concentrar, depara-se somente com deriva, fluxo e incerteza. Tal como o navegante no mar, não se pode deixar de levar em conta o desvio recorrente, a declinação inevitável. Assim, o imprevisível torna-se o referente duradouro; devemos, se desejarmos apreender os dinamismos correntes do sistema civilização, incorporar o imprevisível a nossas previsões. Perante tais capitais acumulados de incerteza, pareceria que todo esse sistema ruma a uma reestruturação de grande porte, correspondente ao estabelecimento de uma nova variedade de civilização. À mutação, enquanto conceito que exprime esse vasto reservatório de errâncias, vem associar-se a fundação, enquanto processo de instauração de uma nova substância, de um novo fundamento.

Como podemos esboçar uma análise do mundo contemporâneo segundo essas diretrizes? É bem conhecida a classificação para o grau de desenvolvimento de uma civilização qualquer, desde que dotada de um certo acervo de conhecimento tecnocientífico, conforme a magnitude dos recursos energéticos que fosse capaz de manipular, sugerida por Nikolai Kardashev nos anos 196o e mais tarde refinada por Carl Sagan (observemos de passagem que eram tempos de Guerra Fria, e o contato entre cientistas americanos e soviéticos era simplesmente proibido; o gesto de cooperação entre os dois grandes cientistas teve profundo significado ético e político). Em resumo, civilizações do tipo 1 empregariam integralmente os recursos de um planeta, do tipo II os de uma estrela, e do tipo III os de uma galáxia (a razão do aumento da capacidade de manejo de energia entre cada tipo seria da ordem de 10 bilhões). Sagan estimou, um pouco mais tarde, que à atual civilização humana na Terra corresponderia um valor em torno de 0,7 nesta escala, ou seja, que a humanidade estaria no caminho de tornar-se, em breve, uma civilização do tipo I.

Mas qual seria o cabedal tecnocientífico que uma dada civilização necessitaria ter desenvolvido para poder aspirar a essa, digamos, graduação? O aspecto decisivo dessa caminhada rumo à autonomia energética em escala planetária, como assinalam os autores, seria dispor do controle técnico, cientificamente embasado, dos muitos tipos de fluxos energéticos em princípio disponíveis (iluminação solar, fontes geotérmicas, marés, biocombustíveis, fissão e fusão nucleares, combustíveis fósseis etc.). Ora, os fatores físicos, biológicos e culturais implicados no estabelecimento e florescimento de tal civilização, até que lograsse alcançar o estágio de desenvolvimento técnico em que um controle tão amplo, profundo e variado se tornasse possível, envolveriam fenômenos de duração muito distinta – no caso da Terra, como vimos, a evolução da vida e a emergência do pensamento exigiram centenas de milhões de anos para os processos astrofísicos, dezenas de milhões para os tectônicos e geológicos, milhões para os bioecológicos, dezenas de milhares para os climáticos, milhares para os culturais. Já no substrato material em que se apoiariam todas essas amplas transformações – ou seja, os processos físicos, químicos, biológicos e termodinâmicos em escalas nucleares, atômicas, moleculares e mecânicas – vigorariam grandezas que são, comparativamente, extremamente tênues e diminutas. Assim, nossa suposta civilização deveria tanto reconhecer a vigência de transformações amplas e lentas – como a tectônica de placas ou a evolução darwiniana – quanto mostrar-se apta a explorar o domínio intenso e frenético dos constituintes microscópicos das estruturas materiais.

Em consequência, parece inevitável que o conhecimento e o domínio

técnico sobre tão variados aspectos do mundo natural, numa dimensão tão ampla, irá implicar que os participantes dessa civilização planetarizada se tornem, coletiva e cumulativamente, agentes globais de modificação ambiental, bem como tenham adquirido, em paralelo, a habilidade de produzir novos tipos de materiais, inexistentes até então, e mesmo de intervir em sua própria constituição orgânica. Ou seja, seus membros teriam adquirido a capacidade de atuar – e, portanto, de modificar – tanto na composição e estrutura deles mesmos, quanto nas circunstâncias do ambiente natural de que a própria civilização até então dependia.

Parece assim razoável conjecturar que, num estágio de crescente iminência de passagem à titularidade do tipo I, a entrada em cena desses dois tipos de autoafecção – o dobramento interno da ação técnica sobre seu próprio produtor e operador; o dobramento externo da ação técnica sobre os fluxos constituintes do próprio contexto ambiental – acarretaria uma vasta, profunda e acelerada reformatação dos fundamentos mesmos sobre os quais tal sistema civilização até então se lastreava. Transformações simultâneas de tal calibre e em tal variedade exigiriam que todos os recursos cognitivos à disposição fossem empregados para encarar-se o sem-número de indeterminações que pareceriam eclodir por todos os lados, em todos os níveis, do bacteriano ao atmosférico. Pesquisadores e pensadores precisariam reconhecer a necessidade de novos conceitos e posturas que estivessem à altura da intensidade do processo global de mudanças. Pois estaria em curso, em vista da disseminação de tantas errâncias, um processo mutagênico imbricado em uma reconfiguração de mundo de tão grande porte que, para todos os fins práticos, seria talvez impossível distingui-lo de uma refundação.

Desdobremos ainda uma vez esse exercício especulativo. Uma dada espécie dificilmente logrará constituir uma civilização do tipo I se permanecer restrita a apenas uma ou outra fonte de energia; é importante que domine todo o espectro possível de fontes energéticas. Esse domínio permitirá, ou mais certamente, demandará, que suas atividades de produção espraiem-se e abranjam o planeta como um todo. Mas o uso de tantas fontes de energia, em uma escala planetária, implicará uma transformação também de alcance global: doravante, as ações produtivas dessa civilização, tomadas em seu conjunto, serão elas mesmas uma força de moldagem do estado de coisas do planeta mesmo. Essa civilização, ao ultrapassar esse limiar, necessariamente não viverá como seus ancestrais viveram. Não se tratará mais de uma espécie atuando de maneira pontual sobre seu hábitat local para sobreviver, em um planeta pronto e dado, essencialmente indiferente a ela. As ações que decidir empreender, na escala que agora lhe é própria, a planetária, incidirão sobre seu ambiente de origem e sobre tudo que até então lhe fora exterioridade natural. Ao moldar seu mundo, essa espécie obrigatoriamente remodelará a si mesma.

Por outro lado, o domínio da estrutura e composição microscópicas dos sistemas materiais, necessário para que se faça uso, por exemplo, de fontes químicas de energia – isto é, de reações moleculares, da fotossín- tese à ignição –, parece inseparável de um crescente poder de intervir e manipular os componentes básicos dessas substâncias (o mesmo argumento valerá, é claro, para as escalas atômica e nuclear). Com efeito, o conhecimento requerido para operar com eficiência sobre os modos de organização básicos das substâncias materiais é decerto suficiente para ensejar a produção de artefatos dotados de arquiteturas e propriedades de caráter inteiramente artificial, quem sabe inspirados em sistemas naturais de formação análoga, mas podendo exibir uma sofisticação funcional cada vez maior. Um tal poder de gerar objetos técnicos de complexidade crescente tenderá a infundir-lhes capacidades complementares, e portanto similares às da espécie portadora – afinal, utensílios servem para ser usados, e útil é não somente o que estende meus movimentos, mas também o que responde às minhas percepção e cognição. Artefatos que incrementam e substituem a força corporal, bem como projetam e ampliam os sentidos e suplementam e intensificam a atividade cognitiva, devem ser correlatos diretos do surgimento de novas formações materiais. Diminuirá assim, e provavelmente numa taxa cada vez mais acelerada, a distinção entre seres naturais e artificiais, entre naturatos e artefatos.

Essa perspectiva não foi explicitada claramente por Kardashev e Sagan, mas não é impossível que tivessem já intuído que os sucessivos avanços no desenvolvimento de sistemas artificiais tenderiam a aproximá-los, gradual mas inexoravelmente, dos modos de funcionamento dos seres vivos. As sondas robóticas que hoje percorrem as planícies de Marte incorporam padrões de comportamento autônomo que lhes conferem uma capacidade de enfrentar problemas – um nível de “inteligência”, vamos chamar assim – comparável à de um camundongo. Qualquer um que tenha tentado pegar um camundongo compreenderá de imediato a alta sofisticação desses artefatos. Mas se os objetos técnicos vão adquirindo habilidades motoras, perceptivas e cognitivas em ritmo crescente, aproximando-se progressivamente do estatuto funcional dos organismos, essa diretriz de transformação implica que, cedo ou tarde, a própria espécie se tornará suscetível de intervenção técnica. Restará cabalmente diluída a fronteira, antes tão nítida, que existia entre o operador das tecnologias e os artefatos que ele produzia e manipulava. Ao remodelar a si mesma, essa espécie moldará obrigatoriamente seu mundo.

Em conclusão, tanto pelo viés do alcance global do conjunto de suas atividades, quanto pelo viés da manipulação microscópica dos elementos e estruturas básicas de todo tipo de formação material, em particular dos organismos, ainda mais em particular de si mesma, nossa conjectural espécie aspirante a graduar-se como civilização do tipo I, seja ela composta por lagostins roxos de Cassiopeia ou por Homo sapiens terrenos, no curso de sua ascensão se deparará com duas variedades distintas, mas inseparáveis de errâncias: a da transformação de seu ambiente, na dimensão da abrangência; e a da intervenção sobre si mesma, na dimensão da imanência. Se seguimos as indicações de Kardashev e Sagan, esse é o entendimento indispensável para que o patamar civilizacional do tipo I seja eventualmente alcançado, e será na forma de lidar com essa indeterminação duplamente autoefetuada que essa espécie encontrará o crivo de seu sucesso.

A perspectiva de que a civilização humana possa estar se aproximando desse estágio de refundação, a partir das mutações que se manisfestariam na atualidade em toda a gama de aspectos de nossa existência, permite vislumbrar desafios e potencialidades extraordinários. Por exemplo, recentemente a equipe do geneticista Craig Venter, que foi um dos pioneiros da decodificação do genoma humano, construiu um genoma bacteriano efetivo, a partir do manejo de blocos de elementos moleculares. Um genoma simplificado, decerto, mas que, quando inserido em uma célula cujo núcleo original havia sido extraído, foi capaz de dirigir o metabolismo celular e, em seguida, fazer a nova bactéria reproduzir-se. Ainda mais notável, porém, é o fato de Venter e sua equipe terem acrescentado ao genoma artificial um trecho não funcional que correspondia, numa tradução para o “desoxirribonuclês”, a um verso de Tennyson. Há, doravante, um fragmento de Tennyson repercutindo pelo universo afora, multiplicado a cada vez que a bactéria artificializada se replica. Borges comentou, em uma de suas páginas inesquecíveis, que as palavras são mais duradouras que os mármores; seria curioso saber sua opinião sobre esse pergaminho bacteriano, escrito com DNA, reimpresso infinitamente.

Por outro lado, principia a se difundir cada vez mais amplamente a compreensão sobre a amplitude e intensidade dos fatores de transformação ambiental associados à atividade humana na atualidade. Todo organismo, para manter-se, precisa obter insumos de seu entorno, convertê-los em nutrientes, empregar esses nutrientes em seu metabolismo e, finalmente, eliminar os resíduos desse processo. Uma sociedade tecnicamente sofisticada, de modo análogo, irá explorar recursos de seu meio, converter esses recursos em bens e serviços pela ação do trabalho, distribuir – com maior ou menor equanimidade – esses bens e utilidades pelo corpo social e, então, descartar os resíduos acumulados em cada etapa do processo. No caso da civilização global contemporânea, porém, o modo de funcionamento do sistema produtivo como um todo não é ecologicamente viável. Se desdobramos as variedades de fluxos e dinamismos incorporados em um ecossistema complexo, isso significa, na verdade, que a atividade do sistema econômico globalizado de hoje não é física, química, biológica ou termodinamicamente viável. O volume de recursos consumidos, a quantidade de rejeitos produzidos e a brutal e iníqua disparidade no usufruto dos bens produzidos fazem a configuração dinâmica desse sistema parecer perigosamente próxima do limiar de uma desestabilização em cadeia.

Consideremos um único exemplo: as mudanças climáticas. Não há mais dúvidas hoje, na comunidade científica, de que alterações dos padrões do clima planetário estão em curso e que a atividade humana tomada em conjunto é a principal forçante dessa mudança. Se há vinte anos ainda podia haver dúvidas, hoje não há mais. A evidência mais clara dessa transformação são os cada vez mais frequentes eventos meteorológicos extremos, ocorrendo precisamente como os modelos descritivos das mudanças climáticas preveem. Ou seja, em uma dada região verificamos, por exemplo, um lento acréscimo da quantidade anual de chuva com relação ao perfil histórico de precipitação registrado, mas agora essa quantidade se distribui segundo padrões extremados: estiagens longas e intensas sucedidas por enchentes torrenciais. O deslocamento com respeito às médias históricas de precipitação é pequeno, mas a conjuntura de se viver sob a alternância de secas inclementes e inundações devastadoras é muito diferente. É plausível imaginar uma situação na qual três anos consecutivos de fortes monções em Bangladesh acabem por desabrigar algumas dezenas de milhões (sim, esta seria a escala) de pessoas. Serão obrigadas a abandonar seus lares à beira-mar, perante o constante e reiterado flagelo de tufões, tempestades e enchentes. For- çadas a migrar, se espalharão pelo interior muito pobre do país e eventualmente chegarão às fronteiras dos países vizinhos. Essas multidões de flagelados climáticos serão admitidas, por exemplo, na Índia – que já possui 1,4 bilhão de habitantes, e armas nucleares?

Os problemas que hoje começam a se apresentar, em função dessa capacidade adquirida pelo sistema econômico de operar em um âmbito autenticamente planetário, terão de ser abordados segundo uma perspectiva radicalmente inovadora. Os efeitos decorrentes da atividade humana global têm também caráter global: mudanças climáticas, alterações da biodiversidade, modificação da composição química da atmosfera, alterações nos padrões de sedimentação das bacias hidrográficas, entre outros, não são acontecimentos meramente locais, de uma só região, ou nação, ou coletividade. As causas que os determinam são históricas e têm consequências planetárias. Desde 1750, por exemplo, foi iniciado um incêndio incessante, em contínua expansão, nas câmaras de combustão dos motores a explosão. Esse incêndio inumerável faz uso de energia solar antiga, envelopada em carbono, na forma de combustíveis fósseis como carvão e petróleo. Queimamos o antigo Sol fossilizado para extrair essa energia e despejamos seu envoltório – principalmente dióxido de carbono e metano, gases de efeito estufa – na atmosfera. O efeito acumu- lado dessa queima interminável é a mudança cada vez mais significativa das condições ambientais. Despejamos fora o resíduo indesejado, mas já não há mais fora.

Esses indícios parecem apontar para uma situação civilizacional extraordinária e sem precedentes. Há um motor sistêmico que, desde a Revolução Industrial, impulsiona a capacidade humana global de intervenção sobre o mundo natural e sobre a sociedade mesma: o capitalismo. Não é necessário ter alguma pretensão de estabelecer uma definição perfeita e cabal do que é o capitalismo para reconhecer que, no mundo de hoje, são as relações capitalistas que regem nossas intervenções, tomadas em conjunto, sobre nosso hábitat global. E ao longo de seu percurso de sucessivas revoluções – mercantil, industrial, tecnológica, financeira, cibernética – o capitalismo foi extraordinariamente bem-sucedido em dissolver as separações entre as regiões e nações, promovendo as bases de um sistema econômico interligado. Todos os países hoje compartilham o mesmo calendário gregoriano, a mesma divisão do dia em horas, minutos e segundos, e os mesmos algarismos indo-arábicos. Um conjectural antropólogo extraterrestre que tirasse um cochilo de um século se surpreenderia, ao acordar, com a súbita passagem de um mundo culturalmente fragmentado e multifacetado para outro exibindo esses claros sinais de unificação.

Em paralelo, portanto, com a exponenciação do poder de transformação do ambiente natural pela atividade econômica, o capitalismo transmutou – o termo é propositado – o próprio elemento básico da sociedade moderna: o indivíduo cidadão. Em paralelo a uma série contínua de aperfeiçoamentos tecnológicos com vistas à produção sempre mais numerosa de bens, extraindo para isso volumes crescentes de matérias-primas, o capitalismo promoveu também uma reforma cultural pela linearização do cidadão individual, doravante convertido em consumidor. O cidadão é definido por certo estatuto político, mas o consumidor é tão somente uma unidade econômica linear, composta por boca, pança e ânus. E o capitalismo global instituiu para os 7,5 bilhões de habitantes do mundo hoje, numa inversão radical, um novo perfil de pertencimento ao coletivo: é pelo consumo que se ascende à cidadania; quem não lograr consumir não é, a rigor, um sujeito pleno. A atual exponenciação do quantum de desigualdade implícito nessa inversão foi recentemente ilustrada à perfeição por um relatório espantoso da Oxfam: os três indivíduos mais ricos detêm mais recursos que os 3 bilhões de pessoas mais pobres.

Processos de autointervenção de tal calibre, para o exterior e para o interior do sistema civilização, implicam claramente um dinamismo subjacente de caráter não linear: causas minúsculas podem levar, por reiteração, acumulação e repercussão, a grandes consequências. A tensão generalizada e multivariada que identificamos na presente configuração desse sistema indica que um novo estágio de coisas se avizinha: ao planetarizar-se, o capitalismo finitizou-se. Isto é, após séculos de expansão geográfica muito bem-sucedida, o capitalismo triunfou em recobrir todo o seu domínio de operação e em embeber-se profundamente em seus próprios realizadores. Exatamente por esse sucesso, depara-se agora com um desafio de outra ordem: seu confronto doravante não se dará com os valores do trabalho, ou da ética, ou mesmo das religiões; a todos esses oponentes o capitalismo dobrou, a todos ele assimilou. Pois o capital é o solvente supremo: tudo o que toca, converte em capital. Ao alcançar a escala do planeta e da humanidade, porém, o capitalismo depara-se com uma nova alteridade: a das leis inflexíveis da física, da química, da termodinâmica, da biologia, da ecologia. O capitalismo, que sempre buscou a expansão no espaço, terá agora que procurar perdurar no tempo. Ao imbricar-se na dinâmica do sistema Terra em suas dimensões material, vital e cognitiva, coloca-se para o capitalismo o problema de sustentar-se, ou seja, de continuar a operar sem acarretar a própria derrocada desse seu novo corpo planetário. Contudo, o problema de durar, de estender-se no tempo, é de natureza, modalidade e grau muito distintos do desafio de expandir-se, de estender-se no espaço. Ao capitalismo só interessava a velocidade, no aumento da produção, na rapidez da obsolescência, no tamanho dos mercados; mas terá agora a necessidade de incorporar valores de permanência, de resiliência, de reutilização. Ao que parece, a civilização capitalista, se almejar chegar a estabelecer-se como do tipo I, terá que mudar a sua natureza. Ou poderá se esfacelar no caminho.

Examinemos mais detalhadamente alguns aspectos do problema. Até aqui, o sistema capital tinha como diretriz a superabundância, ou seja, era conforme a seus objetivos a produção de um sem-número de artigos supérfluos, perfeitamente dispensáveis no plano das necessidades, mas absolutamente convenientes no plano dos desejos. Só que, agora, o novo limite se impõe: para produzir é necessário cuidar. Por exemplo: os oceanos deverão ser a nova fronteira para a obtenção de alimentos, especialmente proteínas; cultivaremos os oceanos como já fazemos com as várzeas e savanas. A razão é que não haverá mais terras aráveis disponíveis para garantir a alimentação dos cerca de 10 bilhões de habitantes previstos para o mundo em 2050. Mas os oceanógrafos nos advertem de que já foram identificados mais de quatrocentos desertos em alto-mar, locais em que, devido à ação humana, toda a vida desapareceu. Os plásticos de todos os tipos que têm sido há décadas despejados nos oceanos nunca desaparecem; em virtude da fragmentação mecânica causada pelas ondas, são reduzidos a partículas microscópicas que se agregam formando uma autêntica sopa flutuante, em que organismo algum pode prosperar. Parece claro, então, que há uma incompatibilidade irredutível aqui: ou bem se cultivam ou bem se poluem os oceanos.

Outro desafio – o da substituição, na escala necessária, dos combustíveis fósseis por fontes renováveis de energia – exigirá, provavelmente, uma variedade de ações coordenadas conforme um planejamento comum, uma vez que a integração dessas fontes em uma rede comum parece ser indispensável para que uma boa eficiência seja garantida ao sistema como um todo. Essa escolha é crítica: se for mantido o consumo de combustíveis fósseis nas atuais taxas, a tendência é cristalizar-se ao cabo do presente século um cenário de mudanças climáticas das mais intensas; não é impossível que suceda um aumento da temperatura global de ordem de quatro graus, ou até mais. Nesse caso, poderá instalar-se um processo de savanização irreversível da floresta tropical amazônica, ou seja, em pouco mais de três gerações, a Amazônia desaparecerá. O lucro imediato, a espoliação do trabalho, a exploração dos recursos naturais e a acumulação financista, que até agora serviram como diretrizes inquestionáveis para a “ética” capitalista, terão de ser suplementados por valores de jaez totalmente distinto. A questão então é: o capitalismo, até aqui o mais flexível e adaptável dos sistemas econômicos, poderá mudar sua natureza? Ainda mais: conseguirá ser, ele mesmo, o autopromotor dessa mudança? A grande mutação ocorrerá, e prosperará?

Diferentes cenários possíveis de futuro podem ser considerados aqui. Para o climatologista britânico James Lovelock, por exemplo, já contratamos uma mudança climática de tal intensidade que conflitos, guerras e carestias de grande porte ocorrerão por toda parte. Essa extrema turbulência levará no fim do século a uma redução brutal do contingente humano para cerca de 500 milhões de pessoas, ou seja, ¼ do que é hoje, sobrevivendo em um planeta muito castigado. Teremos retornado um milênio, pois 500 milhões de habitantes era a população do mundo no ano 1000. Já para o australiano Paul Gilding, ex-presidente do Greenpeace, uma transformação em larga escala de todo o parque produtivo contemporâneo é possível e factível num prazo curto. Há, diz ele, até mesmo um precedente histórico claro, ocorrido quando os Estados Unidos, que eram na ocasião a maior potência econômica e industrial de todo o mundo, entraram na Segunda Grande Guerra, em 1942. Em três meses todo o parque automobilístico foi convertido para produzir exclusivamente jipes e tanques. Navios de carga que demoravam três meses para serem aparelhados passaram a ser lançados ao mar no ritmo de um por dia. Assim, afirma Gilding, os efeitos mais nefastos associados a mudanças climáticas intensas poderiam ser ainda evitados, e a transição para uma economia globalmente sustentável poderia ser alcançada sem um período de grandes catástrofes.

Podemos talvez aduzir algumas pistas acerca dos possíveis caminhos que hoje começam a se desdobrar deste presente tão denso de potencialidades. Os estudiosos da cultura nos dizem que, para nos constituirmos como humanos, não basta possuirmos corpo e metabolismo de Homo sapiens; é indispensável que entre nós vigore um regime de trocas simbólicas, mediadas pela palavra, para que verdadeiramente nos tornemos membros de uma coletividade humana, de uma sociedade. Essa habilidade simbólica, esse poder de intercomunicar, de fato, permitiu que ao longo de nosso desenvolvimento cultural engendrássemos um repertório cada vez mais vasto de objetos técnicos, cada vez mais distribuídos e ca- pacitados. Hoje, todavia, dispomos de um arsenal de artefatos que atuam precisamente nessa dimensão constitutiva de nossa segunda natureza, a de seres culturais: a comunicação. Em pouco mais de uma geração, três quartos da humanidade passou a portar e empregar um aparelho móvel de telecomunicação, isto é, um celular. Há hoje em dia, de fato, mais chips de celular do que seres humanos! O fato decisivo é que nesse prazo muito curto individualizamos o uso de um veículo portátil de transmitir informação; nossos sistemas nervosos passaram a compatilhar operações cognitivas de alta complexidade com esses dispositivos; nossos hábitats comuns se converteram, efetivamente, em redes sociotécnicas compreendendo tanto pessoas quanto artefatos.

Na imensa maioria dos terrenos podemos hoje em dia nos conectar a fluxos de informação de abrangência global. Em nossas casas comuns, as cidades, nas quais mais da metade de todos nós vivemos, podemos tes- temunhar sem nenhum atraso significativo eventos que estão sucedendo em qualquer outro local. O mundo cabe em cada casa; meu parceiro de conversa fiada reside nos antípodas e é, no entanto, como um vizinho. Elementos culturais de todas as épocas e procedências se amalgamam de maneira inédita; línguas, costumes, culinárias, filosofias, artes de todas as origens fazem agora parte, em maior ou menor grau, do acervo cultural de todas as cidades, de todas as populações. Existem, pela primeira vez, as bases materiais para uma cultura humana verdadeiramente cosmopolita. Ao abolirem as distâncias, eliminando pela instantaneidade da transmissão eletrônica e pela rapidez dos transportes a demora do contato entre dife- rentes lugares, os modernos meios de comunicação permitiram uma expe- riência transfiguradora: a humanidade, esta geração da humanidade, pôde se dar conta de sua incrível diversidade. Podemos hoje todos compreender, a partir da experiência, que a humanidade é feita de muitas humanidades. Há, de fato, algo que é igual para todos nós: somos todos diferentes.

Hoje também nos damos conta de que, pela primeira vez, mais da metade da humanidade é letrada, isto é, aprendeu a ler e escrever em alguma língua, e pode usufruir não só da herança cultural de seu povo como, na verdade, do legado comum de todos os nossos ancestrais. Dessa metade, mais da metade são mulheres. Se recordarmos que no começo do século XX, pouco mais de cem anos atrás, o número de mulheres alfabetizadas em todo o mundo não passava de um traço, podemos compreender a imensa transformação psicossocial que está atualmente em curso. Essa generalização de uma capacidade cognitiva tão crucial representa uma potência verdadeiramente mutagênica para nossa civilização. Se vivemos de fato tempos de mutação, em que essa errância positiva adornará de imprevistos nosso cotidiano, nossas vidas e práticas, nossos pensamentos e afetos, tudo o que nos constiui enquanto pessoas, cidadãos, seres humanos entrará em situação de deriva, de declinação. Se esse caudal de incertezas faz deslizar os limites que anteriormente definiam o que é ser um indivíduo, e mesmo o que é ser um terreno, a proposta de diagnóstico elaborada em 2007 sobre as mutações poderá dar lugar a uma série de reflexões muito necessárias, pelas quais possamos vir a adquirir uma nova visão dos destinos que nos próximos anos nos caberá construir, para nós mesmos e para a vida na Terra. Devemos nos transmutar nos meios para conectar o passado com o futuro; nos constituirmos em pontes entre o que fomos e o que viremos a ser. Podemos quem sabe tomar como inspiração as palavras de um grande visionário, Richard Buckminster Fuller:

Hoje, a competição é obsoleta, a guerra é desnecessária. Temos os meios de fazer toda a humanidade ter um nível de qualidade de vida superior ao de qualquer outro momento da história. Tudo que é necessário fazer é deslocar o foco da tecnologia, do armamento para o vivamento (Critical Path, 1981).

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