2017

A crise da razão

por Oswaldo Giacoia Junior

Resumo

Se remontarmos a Hipócrates, a palavra crise corresponde ao ponto culminante de uma enfermidade sucedida ou não pela cura do paciente. Se no campo da historiografia tradicional, crises políticas, econômicas e sociais foram associadas a eventos de certa magnitude e dependentes de uma convergência de condições, no terreno do pensamento, lembra Nietzsche, a razão está numa crise perpétua, “pois a racionalidade é inseparável da autocrítica.” Mas assumir por verdade tal premissa não significa equiparar toda e qualquer crise. A notória e longa tradição que prevaleceu pelo menos até Newton identificava a ciência com a explicação da natureza, mas na medida em que o homem passou a dominar aspectos mais aparentes dos ambientes naturais que o cercavam, a ciência voltou-se rapidamente para a ideia de utilidade, o que justificou a certo ponto denominá-la ciência instrumental. Nos últimos tempos, o mundo passou pela Revolução Industrial e pelos marcos traumáticos da Primeira e Segunda Guerras Mundiais e bem sabemos o quanto ambas impactaram sobre o desenvolvimento da ciência instrumental. Hoje vivemos sob a égide da Revolução técnico-científica. Ela se faz sentir cotidianamente, interligando “todas as formas de organização da vida e da cultura”. Estamos, na verdade, diante ou a caminho da transumância, de um ponto sem retorno que Heidegger já prenunciava em 1955 ao afirmar que dispositivos tecnológicos “nos acorrentariam”. Enquanto gerador desses dispositivos, podemos afirmar, em sentido pragmático, que hoje “o ser humano não tem nenhum adversário significativo além de si mesmo”. Ao entronizar a ciência, ele criou a ilusão de que poderia, através dela, chegar ao âmago das coisas. Nietzsche acusou esse falso determinismo. O avanço galopante da ciência e da técnica não é acompanhado, nem mesmo de longe, por um debate adequado em torno dos princípios éticos que poderiam ajudar a orientar suas aplicações. Mas, apesar disso, as tentativas de delimitar tais limites fizeram história, seja no diálogo de Heidegger com o cientista Heisenberg, ou com Sloterdik, ou, por exemplo, pelo estabelecimento de premissas da “moral racional” e os “direitos humanos” como “uma base comum para uma existência digna, para além das diferenças de cosmovisões.” (HABERMAS). Esse movimento continua através de pensadores de nossos tempos que tornaram a antropogênese seu objeto principal de investigação, gerando novos significantes ao tentarem estabelecer diálogos filosóficos entre ciência e técnica.


Imenso é o desafio – e quase paralisante – de ousar refletir, mais uma vez, no enquadramento temático e filosófico do ciclo Mutações, a crise da razão. O que mais poderia ser acrescentado ao livro prodigioso que Adauto Novaes editou, com esse mesmo título, em 1996? E, no entanto, o sintagma crise da razão continua a nos desafiar, a mobilizar energias para novas tentativas de interpretação de seu significado. Afinal, no horizonte de Mutações, estamos autorizados e, mais que isso, concitados a um atrevimento e risco maiores. Portanto, ao invés de principiar por uma resenha ou retomada do livro de 1996, penso que a melhor estratégia seria dirigir nossa atenção para o que ainda não foi suficientemente meditado tanto antes quanto depois da publicação daquele livro memorável.

Sabemos que uma das acepções mais antigas da palavra crise é originária do léxico da medicina hipocrática, no qual indica um ponto culminante, uma manifestação aguda e também um momento de transformação decisiva no curso de uma enfermidade, servindo, portanto semiologicamente, como signo de orientação para um diagnóstico, que pode ou não ser favorável à cura. A partir dessa acepção originária, e aplicando esse significado à sociedade e à história, a palavra crise assume a significação ampliada de transformação decisiva em qualquer aspecto relevante da vida humana.

Uma crise da razão, no sentido acima mencionado, anuncia-se, em nossos dias, sobretudo sob a égide das ciências e das tecnologias, pois o vértice principal pelo qual olhamos o mundo é determinado por elas. Na modernidade, as ciências estão interligadas, de modo decisivo, com todas as formas de organização da vida e da cultura: na economia, na indústria, na educação, no direito, na política, na administração, no mercado financeiro, em todos os meios de comunicação, nas artes, na filosofia e também nas guerras. Podemos dizer que nossa cosmovisão atual delineia-se a partir das perspectivas da física, da química, da biologia, da genética, das neurociências, dos estudos de inteligência artificial, da robótica, da cibernética e da nanotecnologia.

Essa constelação produz uma figura que sugere a efetiva realização da supremacia humana sobre as demais criaturas do universo ainda que o humano tenha hoje que dividir o espaço com seus próprios produtos, por exemplo, com máquinas inteligentes, que ameaçam destroná-lo. Uma perturbação que afeta essa constelação anuncia-se então inevitavelmente como dolorosa ferida narcísica, pois nela haurimos nossa autocompreensão enquanto homens modernos.

É por isso que o progresso das ciências sempre esteve tão imbricado com as perspectivas de realização do ser humano. Uma crise instalada no âmbito da racionalidade científica afeta, portanto, não apenas a realização atual da humanidade, mas também a esfera inteira de seus ideais. É o que podemos constatar pelo testemunho de um cientista como Werner Heisenberg, para quem a dominação técnico-científica da natureza só se confronta com algum limite quando as explicações científicas da realidade não recobrem mais aquelas do mundo religioso e cultural. Nessas condições, o mais provável é que as concepções religiosas e culturais do mundo tenham de se acomodar às teorias científicas do que o contrário. Tendo isso em vista, o filósofo Martin Heidegger, em sua correspondência com o físico Heisenberg, pergunta-se pela essência da moderna ciência, em sua relação com o homem e seus poderes, pois é sobre essa relação que precisamos hoje em dia, antes de tudo, alcançar alguma clareza:

Meditando o sentido desse processo, percebe-se que no mundo ocidental e nas épocas de sua história a ciência desenvolveu um poder que não se pode encontrar em nenhum outro lugar da Terra, e que está em via de estender-se por todo o globo terrestre. É a ciência apenas algo feito pelo homem, que se alçou a tal dominação, de modo que se poderia pensar que a vontade humana ou a decisão de alguma comissão poderia um dia também novamente desmontá-la? Ou será que impera aqui um destino maior? Será que algo mais do que um simples querer conhecer, de parte do homem, domina a ciência? Assim é, de fato. Outra coisa impera. Mas esta outra coisa se esconde de nós, enquanto ficamos dependentes das representações habituais da ciência[1].

Em tais circunstâncias, a pergunta pelo futuro do humano não pode prescindir hoje de uma reflexão aprofundada tanto sobre a ciência quanto sobre as consequências éticas, sociais, políticas e culturais de seu desenvolvimento, uma vez que por meio dele produziu-se não apenas uma alteração substancial de nossa cosmovisão, mas também uma mudança radical na autocompreensão ética da espécie humana. Desse modo, refletir filosoficamente sobre a ciência e a técnica em nossos dias, de modo a manter aberto o horizonte do pensamento para os desdobramentos éticos que podem resultar desse tipo de reflexão, implica também a necessidade de considerar limites éticos ao progresso tecnológico, como forma de evitar consequências potencialmente catastróficas desse desenvolvimento – por exemplo, o desastre ecológico, a desertificação do planeta, o apocalipse nucelar, a clonagem humana pela engenharia genética e o hibridismo transumanista do homo roboticus.

Desde Isaac Newton sabemos que a física não tem mais como finalidade a explicação da natureza; em vez de explicação dos fenômenos, a física teria como meta encontrar um formalismo matemático capaz de produzir resultados experimentais significativos, com base nos quais os cientistas poderiam ordenar e prever metodicamente aquilo que seria observado (ou não) na experiência. O caráter sistemático dos procedimentos científicos permitiria dominar processos de conhecimento, construir aparelhos técnicos com modos de funcionamento rigorosamente previstos e dirigidos para fins essencialmente utilitários. Nessas condições, não pode mais ser sustentado o ideal teórico de plena objetividade – a saber, o conhecimento científico entendido como descrição neutra e objetiva de processos que ocorrem na natureza. Se a física clássica já operava com essa autocompreensão, esta se tornou muito mais aguda com a física atômica contemporânea.

Werner Heisenberg descreveu, nos termos seguintes, o dilema cada vez mais atual de uma realidade física que se dissolve numa simbologia matemática:

Portanto, a pergunta sobre se essas partículas existem “em si” não pode mais ser colocada desta forma, pois nós, sempre, só podemos falar sobre processos [Vorgänge] que ocorrem quando o comportamento dessas partículas elementares pode ser inferido por meio da ação recíproca das mesmas com alguns outros sistemas físicos, por exemplo, aparelhos de medida. A representação da realidade objetiva das partículas elementares volatilizou-se, portanto, de uma maneira digna de nota, não na névoa de alguma nova, obscura e ainda incompreendida representação da realidade, mas na clareza transparente de uma matemática que não exibe mais o comportamento das partículas elementares, mas nosso conhecimento desse comportamento. O físico atômico tem de se conformar com que sua ciência seja apenas um elo na infinita cadeia das confrontações do homem com a natureza, que ela, porém, simplesmente não pode falar da natureza “em si”[2].

A intervenção humana, sob a forma de procedimentos teóricos e metodológicos, com seus modelos matemáticos de objetivação e processos físicos de experimentação, tornou-se um elemento constitutivo essencial de todo e qualquer conhecimento da realidade. Os próprios físicos de há muito têm desenvolvido uma consistente reflexão a esse respeito. Para um cientista como Heisenberg, talvez não seja exagero dizermos que, pela primeira vez, o ser humano não tem nenhum adversário significativo além de si mesmo, de modo que, partindo das transformações no campo da física, as mudanças básicas na ciência moderna têm de ser consideradas como expressões de transformações no próprio modo de existência das sociedades humanas, que afetam, portanto, todo e qualquer domínio de vida.

Quando, partindo da situação da moderna ciência da natureza, tentamos avançar tateando para os fundamentos que foram postos em movimento, temos a impressão de que não simplificamos demasiado grosseiramente as relações quando dizemos que, pela primeira vez no curso da história, o homem está postado sobre esta Terra unicamente diante de si mesmo, que ele não encontra mais nenhum outro parceiro ou adversário. Isso vale, primeiramente, de uma maneira totalmente banal, na luta do homem contra os perigos externos. Antes, o homem era ameaçado por animais selvagens, doenças, fome, frio e outras potências da natureza, e nesse combate todo alargamento da técnica significava um fortalecimento da posição do homem, portanto, um progresso. Em nosso tempo, no qual a Terra se torna sempre mais densamente povoada, a limitação das possibilidades de vida, e com isso a ameaça, vem em primeira linha da parte dos outros homens, que também fazem valer seu direito aos bens da Terra. Nessa disputa, porém, o alargamento da técnica não precisa mais ser nenhum progresso. A sentença de acordo com a qual o homem é confrontado unicamente consigo mesmo vale, porém, particularmente na era da técnica, num sentido ainda muito mais amplo[3].

Dada essa alteração radical no modo de produção do conhecimento científico, a operatividade tornou-se palavra de ordem, de modo que a importância quase metafísica da mobilização é o espetáculo a que assistimos desde o início do século passado, no qual a natureza se anuncia de alguma maneira calculável como um sistema de informações que funcionam como variáveis de cálculo. O sujeito, enquanto operador dos experimentos e dos sistemas, insere-se numa objetividade que, de maneira cada vez mais indisfarçada, é estruturada através da mediação da aparelhagem experimental, de forma que tanto a subjetividade passa então a pertencer agora expressamente à objetividade, quanto, inversamente, a objetividade passa a incluir elementos de subjetividade, sendo dotada, por exemplo, de uma linguagem própria e até mesmo de intencionalidade. A cadeia produtiva sustentada pela tecnociência insere em suas engrenagens inclusive aquele que, até hoje, fora considerado o sujeito ativo desse processo. Produz-se, com isso, uma profunda desestabilização de tudo o que é natural, já que agora, sob o nome de natureza, é preciso contar também todos os constituintes do próprio sujeito humano, seu sistema nervoso, seu código genético, a estrutura e o funcionamento de seu órgão cerebral, seus órgãos sensitivos visuais e auditivos, seus sistemas de comunicação, suas linguagens e sistemas de signos, suas organizações de vida em grupo etc.

Como Heidegger já antevia, com a sobreposição ou acavalamento do sujeito e do objeto, não é possível manter o clássico ideal de autarquia e controle humano dos processos de conhecimento. Uma vez que a antiga crença na autonomia cai em desuso, mesmo na representação que os próprios experts, os cientistas, fazem a respeito de seu métier, então seria o caso de considerar se o prognóstico de Jean-François Lyotard não seria, de fato, instrutivo sobre nossa condição atual: de acordo com Lyotard, o homem talvez não seja mais do que um nó mais sofisticado na interação geral das radiações que constituem o universo. Não seria, então, esse mesmo diagnóstico uma injunção imperiosa para refletir filosoficamente sobre o que caracteriza a ciência e a técnica em nossos dias, de modo a manter aberto o horizonte do pensamento para os desdobramentos éticos que delas podem resultar?

Penso que sim – e um exemplo ilustrativo talvez possa ser mencionado, nesse contexto, com a possibilidade bastante concreta da instrumentalização da base somática da personalidade humana. Uma perspectiva como esta, que, de resto, é bastante realista, chocou a consciência moral de um filósofo como Jürgen Habermas. Refletindo sobre a necessidade de impor limites éticos à eugenia positiva, franqueada por experimentos biogenéticos de ponta, Habermas considera, com razão, que as pesquisas com embriões e genoma poderiam abrir caminho para uma produção tecnológico-industrial da vida, que ultrapassa todos os limites restritivos determinados pelo interesse terapêutico em identificar, prevenir e/ou tratar eficazmente patologias geneticamente causadas.

Um dos riscos maiores da virtual “fabricação” do design humano seria a possibilidade de submeter o patrimônio genético de seres humanos à lógica e à dinâmica de preferências narcisistas individuais, ao arbítrio de consumidores habilitados para atuar como agentes num mercado florescente e virtualmente ilimitado. O que poderia resultar desse tipo de mobilização, dá efetivamente muito a pensar:

Quando, depois da transição para o pluralismo tolerado das cosmovisões, as imagens de mundo religiosas e metafísicas perderam sua cogência universal, nós (ou a maioria de nós) não nos tornamos nem cínicos frios, nem relativistas indiferentes, porque nos mantivemos apegados ao código binário de juízos morais corretos e falsos – e quisemos fazê-lo. Restabelecemos as práticas do mundo da vida e da comunidade política sobre premissas da moral racional e dos direitos humanos, porque elas oferecem uma base comum para uma existência humanamente digna, para além das diferenças de cosmovisões. Talvez a resistência afetiva contra uma temida modificação na identidade da espécie se deixe hoje esclarecer – e justificar – a partir de semelhantes motivos[4].

À sombra dessa erosão das imagens religiosas e metafísicas, que até hoje embasaram a autocompreensão ética da humanidade, medram as perspectivas pós e transumanas de superação do ser humano. Uma nova singularidade não apenas bate à nossa porta – ela já ingressou em nossa morada.

A singularidade nos permitirá transcender as limitações de nossos corpos biológicos e cérebros. Conquistaremos poderes sobre nossos destinos. Nossa mortalidade estará em nossas mãos. Seremos capazes de viver tanto quanto quisermos (uma afirmação sutilmente diferente de dizer que viveremos para sempre). Compreenderemos inteiramente o pensamento humano, e estenderemos e expandiremos seu alcance. No final deste século, a porção não biológica de nossa inteligência será trilhões e trilhões de vezes mais poderosa do que a desamparada inteligência humana […]. A singularidade representará a fusão de nosso pensamento e existência biológica com nossa tecnologia, resultando num mundo que é ainda humano, mas que transcende nossas raízes biológicas[5].

O cenário traçado por esse transumanismo comporta inequivocamente um componente biopolítico de prodigiosa envergadura, pois ele nos instala num limiar epocal em que teríamos que tomar decisões de longo alcance, tanto no espaço quanto no tempo, decisões concernentes ao futuro da humanidade, colocado, nessas circunstâncias, em situação de risco e perigo extremos. Este já era, aliás, o sentido principal da resposta que o filósofo Peter Sloterdijk endereçava à carta de Martin Heidegger sobre o humanismo:

É a marca da era técnica e antropotécnica que os homens mais e mais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleção, ainda que não precisem ter se dirigido voluntariamente para o papel de selecionador. Pode-se ademais constatar: há um desconforto no poder de escolha, e em breve será uma opção pela inocência recusar-se explicitamente a exercer o poder de seleção que de fato se obteve. Mas tão logo poderes de conhecimento se desenvolvam positivamente em um campo, as pessoas farão uma má figura se – como na época de uma anterior incapacidade – quiserem deixar agir em seu lugar um poder mais elevado, seja ele Deus, o acaso, ou os outros. Já que as meras recusas ou abdicações costumam falhar devido a sua esterilidade, será provavelmente importante, no futuro, assumir de forma ativa o jogo e formular um código das antropotécnicas. Tal código também alteraria retroativamente o significado do humanismo clássico – pois com ele ficaria explícito e assentado que a humanitas não inclui só a amizade do ser humano pelo ser humano; ela implica também – e de maneira crescentemente explícita – que homem representa o mais alto poder para o homem[6].

Gostaria de retomar esse repto à luz da filosofia de Friedrich Nietzsche para, com auxílio dela, aprofundar a reflexão sobre a crise da razão, que nele se faz presente; até mesmo porque Nietzsche foi um refinado especialista em diagnosticar crises da razão. Ao fazê-lo, tomo como ponto de partida um fragmento inédito – datado da primavera-verão de 1883 – no qual Nietzsche dava expressão reflexiva ao impulso que o teria levado, com intensa admiração e cuidado, ao exame crítico das obras de Kant e Schopenhauer: o que o motivou a esse exame foi ter compreendido que, na obra desses pensadores, estaria em curso uma profunda crise da racionalidade, que Nietzsche entendia como uma “autoaniquilação [Selbstvernichtung] do conhecimento científico[7]”. O paradoxo presente nessa figura de autodestruição por excesso de realização consiste em que, nesse movimento, a ciência, em virtude de uma coerção interna, seria inexoravelmente conduzida, pela lógica de seus próprios valores e exigências, até a extração de suas mais extremas consequências, vindo, então, a ultrapassar seus próprios limites. Nietzsche interpreta esse movimento como um processo necessário de autoexame e autocrítica da racionalidade lógica, que culmina na denúncia do delírio de onipotência que a anima. Segundo a análise de Nietzsche, este delírio teria vindo à luz, pela primeira vez na história do Ocidente, com Sócrates.

Nietzsche tem em vista a pretensão racional, que em Sócrates assumiria uma dimensão desmesurada, de tornar conceitualmente compreensível a inteira existência do mundo e do homem – e, com isso, fazer com que estas pudessem aparecer como teoricamente justificadas. O que Nietzsche denuncia é uma ilusão de onipotência que se enraíza na história da metafísica, implantada numa “profunda representação delirante, que pela primeira vez veio ao mundo na pessoa de Sócrates – aquela crença inabalável de que, seguindo o fio condutor da causalidade, o pensar alcança até os abismos mais profundos do ser, e que o pensar é capaz não somente de conhecer o ser, mas até de corrigi-lo[8]”.

Nietzsche detecta nesse processo uma imbricação reversível entre lucidez e delírio, emancipação e compulsão. Para ele, a força que, do interior, anima o progresso da razão esclarecida é haurida numa Wahnvorstellung, ou seja, numa obscura potência, que afinal acaba forçada a revelar sua verdadeira natureza: “Mas agora a ciência, aguilhoada por sua vigorosa ilusão, corre pressurosa e irrefreável até aqueles limites, nos quais fracassa seu otimismo, oculto na essência da lógica”. Como resultado desse processo, vê-se “como a lógica, chegando a esses limites, enrosca-se sobre si mesma e finalmente morde a própria cauda[9]”.

Nietzsche reconstitui arqueogenealogicamente um movimento de oposição interna, atuante na racionalidade científica, em cujo desdobramento esta se encaminha, motu proprio, em direção à perempção de sua hegemonia e absoluto domínio – pois, confrontada com suas consequências extremas, a cultura assentada no princípio da cientificidade passa a recuar diante de suas próprias virtualidades. Nesse recuo, ela não pode deixar de sucumbir, tão logo comece a se tornar ilógica, isto é, a recusar as próprias inevitáveis conclusões, na tentativa de eludir a lógica de seus próprios valores.

Enquanto o infortúnio que dormita no seio da cultura teórica começa, pouco a pouco, a angustiar o homem moderno, e este, inquieto, recorre a certos meios para conjurar o perigo, retirando-os do tesouro de sua experiência, sem acreditar, mesmo, realmente em tais meios; enquanto o homem moderno começa, portanto, a pressentir suas próprias consequências, algumas naturezas grandes, voltadas para o universal, souberam utilizar com incrível sensatez o arsenal da própria ciência, para mostrar os limites e o caráter condicionado do conhecimento em geral, e, com isso, negar decididamente a pretensão da ciência de possuir validade e finalidade universal; e no curso dessa demonstração foi reconhecida pela primeira vez, enquanto tal, aquela representação delirante que, guiada pela mão pela causalidade, arroga-se a pretensão de poder perscrutar a essência mais íntima das coisas[10].

Ao fio condutor da genealogia de Nietzsche, nosso olhar alcança, portanto, os primórdios daquela exigência incondicional de verdade e pretensão científica, aquela injunção a conhecer as coisas até o fim, de transformar integralmente os fenômenos em cadeias de conceitos, perscrutar a essência íntima das coisas, de modo a poder não somente compreender o ser, desvendar todos os seus enigmas, mas também, além disso, ser capaz de corrigi-lo[11]. A crise da racionalidade lógica não constitui, para Nietzsche, um fenômeno recente na história da razão ocidental. Ao contrário, esta é proveniente de uma hybris originária que, em Sócrates, fez-se figura do mundo, e ainda palpita e anima nossas fantasias futuristas, formando o núcleo arcaico da utopia pós-moderna.

Em momentos de crise, no limiar de grandes transformações históricas, a razão obstina-se na busca de conceitos capazes de proporcionar referenciais de sentido e orientação, e é justamente então que a crise se faz sentir de maneira mais aguda. É necessário, antes de tudo, compreender e situar-se em meio à desestabilização – o que provoca o fenômeno que o filósofo Reinhart Kosellek denominou “batalha semântica para definir, manter ou impor posições filosóficas, políticas e sociais[12]”.

É num cenário como este que a contribuição de Nietzsche demonstra-se atual e fecunda. Pois aquilo com que temos de nos defrontar é uma combinação de crise, crítica, decisão e exigência de sentido, isto é, com um fenômeno bem característico do componente sociobiopolítico-cultural da crise da razão. O espaço que separa as experiências culturalmente relevantes do conjunto de expectativa para novos projetos faz colapsar os grandes significantes que temos à mão, de modo que estes não conseguem mais dar conta dos fatos observados na realidade imediata. Rompe-se, assim, o equilíbrio entre os espaços de experiência e os horizontes de esperança, e, nesse cenário, os conceitos buscados atuam tanto como um elemento de promessa e expectativa de realização, quanto abrigam uma correspondente desconfiança e decepção em relação às formas de representação ainda subsistentes, mas já agonizantes.

Essa é a atmosfera própria para mutações de grande envergadura: na área socioeconômica, por exemplo, podemos vislumbrar a possibilidade teórica e prática da erradicação da miséria, contrastada, na área biomédica, pela instrumentalização do genoma. Politicamente, podemos cogitar planos de paz perpétua, compensados, aporeticamente, pela ameaça macabra de destruição apocalíptica do planeta, pela produção de armas capazes de escolher e destruir autonomamente seus próprios alvos. A crise da razão mostra-se não apenas na iminência do homo roboticus, mas com o extermínio possível da espécie humana, já que se tornou difícil impor limites precisos para processos de transformação em cuja dinâmica autonomizada nos encontramos imersos.

A genealogia de Nietzsche não nos auxilia apenas no vetor retrospectivo de sentido. Com ela, podemos avançar também prospectivamente. No final de sua vida lúcida, em seus Ditirambos de Dionísio, Nietzsche exprimiu, num verso enigmático, um insight filosófico fundamental: “O deserto cresce: ai daquele que abriga desertos” (“Die Wüste wächst: weh dem, der Wüsten birgt”[13]). Abrigar desertos parece-me ser uma marca da conditio humana: abrigamos em nós perigosos desertos, e nesses ermos medra nossa hybris, tanto nossa grandeza quanto nossa tragédia, ambas abissais: pois esses desertos são o território em que fazemos nossas experiências cruciais.

Para Nietzsche, o homem, dentre todos os outros, é o animal

mais doente, inseguro, inconstante, indeterminado que qualquer outro animal, não há dúvida – ele é o animal doente: de onde vem isso? É certo que ele também ousou, inovou, resistiu, desafiou o destino mais do que todos os outros animais reunidos: ele, o grande experimentador de si mesmo, o insatisfeito, insaciado, que luta pelo último domínio com o animal, a natureza, e os deuses – ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que não encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que seu futuro, uma espora, mergulha implacável na carne de todo presente: – como não seria um tão rico e corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos?[14].

Somos levados a pensar que a crise da racionalidade é também a realização integral de sua própria lógica, um resultado da hybris de Prometeu. Na modernidade, um traço marcante dessa crise consiste em que nossa forma de habitar o mundo só se produz como transgressão:

Híbris é hoje nossa atitude para com a natureza, nossa violentação da natureza com ajuda das máquinas e da tão irrefletida inventividade dos engenheiros e técnicos; híbris é nossa atitude para com Deus, quero dizer, para com uma presumível aranha de propósito e moralidade por trás da grande tela e teia da causalidade – híbris é nossa atitude para com nós mesmos, pois fazemos conosco experimentos que não nos permitiríamos fazer com nenhum animal, e alegres e curiosos, vivisseccionamos nossa alma: que nos importa ainda a “salvação” da alma[15]!

Se toda crise engendra uma instância de decisão, então a crise da razão contemporânea traz à luz um desconcertante paradoxo: a saber, que a decisão maior já foi tomada de há muito e continua a ser tomada a cada dia; ela consiste no próprio processo de hominização, no devir humano do animal homem, que “não é um fato que se deu de uma vez para sempre, mas um evento sempre em curso, que decide, a cada vez e em cada indivíduo, acerca do humano e do animal, da natureza e da história, da vida e da morte[16]”.

Portanto, como discerniu muito bem Giorgio Agamben, em perspectiva crítica, a antropogênese é uma figura permanente da história – a despeito de todos os nossos esforços fracassados de elisão e obliteração desse fato. O devir homem, a transfiguração do hominídeo pulsional em zoon politikón, no animal que possui a linguagem, é a própria crise, pois é um processo de mutação permanente, no qual decisões epocais nunca deixaram de ser tomadas.

As potências históricas tradicionais – poesia, religião, filosofia – que, tanto na perspectiva de Hegel-Kojève como na de Heidegger, mantinham desperto o destino histórico-político dos povos –, foram transformadas, há algum tempo, em espetáculos culturais e em experiências privadas, tendo perdido toda eficácia histórica. Frente a esse eclipse, a única tarefa que, no entanto, parece conservar alguma seriedade é a de tomar a cargo e realizar a “gestão integral” da vida biológica – quer dizer, da própria animalidade do homem. Genoma, economia global, ideologia humanitária são as três faces solidárias desse processo no qual a humanidade pré-histórica parece assumir sua fisiologia como último e impolítico mandato[17].

O homem é, desde sempre, o animal produtor de suas condições de existência, e estas se dão nas coordenadas permanentemente cambiantes da história e da cultura. A antropologia filosófica e cultural de Nietzsche estabelece um circuito extremamente cerrado entre a condição existencial do homem, a racionalidade científica e a vontade de poder. Esse circuito é também a instância antropogênica de produção de crises permanentes. Na modernidade, a dinâmica desse processo é determinada, em grande medida, pela ctônica potência da ciência e na tecnologia, que, como força produtiva, rivaliza com a natureza e os deuses, e vige tanto na physis quanto na polis. A crítica de Nietzsche à razão não é, de modo algum, um refúgio no irracionalismo, nem fatalismo de resignação.

Com extraordinária lucidez e penetração, a genealogia de Nietzsche instala a razão numa crise perpétua, pois que nela a racionalidade é inseparável da autocrítica, o que leva o pensamento à necessidade permanente de pensar contra si mesmo, de renunciar ao consolo de convicções últimas e definitivas, de abrir sempre novos horizontes de futuro. Crítica e crise são instâncias que se exigem e complementam: crítico é o momento do julgamento e da tomada de decisão por alternativas colocadas no horizonte da teoria e da práxis. Crise é a própria tensão entre os opostos que habita o humano. Daí a relação visceral entre a crise, a crítica e as mutações.

A esse respeito, uma ciência como a antropologia de Arnold Gehlen está muito mais próxima da filosofia de Nietzsche do que poderia parecer à primeira vista. Para Gehlen, as primitivas instituições da cultura são os meios pelos quais a humanidade leva a termo sua própria estabilização, tornando-se capaz de proteger e conservar o resultado das experiências coletivas acumuladas contra os efeitos corrosivos do decurso do tempo. Instituições são dispositivos de formação e transformação do humano na história, por meio dos quais se fixa e se estabiliza o homem durante longos períodos de tempo:

Somente por meio de instituições o homem se torna efetivo, duradouro, regulável, quase automático e previsível […]. Essa essencial função que alivia o peso (Entlastungsfunktion) das motivações subjetivas e das improvisações permanentes, função que é inerente a todas as instituições, é uma das mais prodigiosas características culturais, pois essa estabilização se enraíza no próprio coração de nossas posições culturais[18].

O animal não fixado é também, paradoxalmente, aquele que sempre empreende a própria estabilização provisória – o homem está sempre, em si mesmo, sobrecarregado com a tarefa de configuração de seu excedente pulsional, problema que nunca pode ser completamente resolvido, ou melhor, só pode ser tratado contemporaneamente com a tarefa de sua própria vida e por meio de seu próprio agir. Por causa disso, as instituições e as formas culturais de vida são componentes de atividades humanas fundamentais, que preservam o que foi consolidado na história, mas também fornecem as bases para as grandes transformações pelas quais o homem dá forma ao excedente pulsional que o constitui – que o singulariza como não circunscrito a nenhum meio ambiente, mas aberto ao universo. Por causa disso, a humanidade, desde sua pré-história, representa uma série de “experiências consigo mesmo, em graus até então inexistentes, como no Neolítico e na era atômica[19]”.

Peter Sloterdijk tem razão quando escreve:

Nietzsche – que leu com atenção Darwin e São Paulo – julga perceber, atrás do desanuviado horizonte da domesticação escolar dos homens, um segundo horizonte, este mais sombrio. Ele fareja um espaço no qual lutas inevitáveis começarão a travar-se sobre o direcionamento da criação dos seres humanos – e é nesse espaço que se mostra a outra face, a face velada da clareira. Quando Zaratustra atravessa a cidade na qual tudo ficou menor, ele se apercebe do resultado de uma política de criação até então próspera e indiscutível: os homens conseguiram – assim lhe parece –, com ajuda de uma hábil combinação de ética e genética, criar-se a si mesmos para serem menores. Eles próprios se submeteram à domesticação e puseram em prática sobre si mesmos uma seleção direcionada para produzir uma sociabilidade à maneira de animais domésticos[20].

Tendo diante de nós o panorama que pode ser divisado com auxílio da genealogia de Nietzsche, torna-se pertinente e urgente perguntar: não seria toda essa agitação prodigiosamente loquaz a propósito de crise e de transformações escatológicas também algo a ser interpretado, na chave de uma semiótica dos afetos, como sintoma, prenhe de sentidos, de um ominoso e persistente mal-estar na cultura?

Se os autênticos frutos da razão – as ciências e as tecnologias – não se deixam mais interpretar satisfatoriamente como realizações situadas no plano das “ideias”, ou como “simples meios” que podem ser empregados ou não, de acordo com parâmetros de deliberação e controle racional, impostos pela vontade humana orientada por valores, isso ocorre porque a atualização do potencial tecnocientífico tornou-se condição de possibilidade de existência e desenvolvimento de nossas sociedades. Portanto, elas tornaram-se forças produtivas determinantes dos caminhos pelos quais se decide a vida e a morte dos seres humanos no planeta Terra, e não somente de seres humanos e suas futuras gerações. Em face disso, é preciso não perder de vista que, na esfera de pensamento e ação em que se situam tais forças, entra em jogo também o imensurável espectro das paixões, desejos, interesses estratégicos e conflitos de várias ordens, o que torna muito difícil equacionar em termos de controle plenamente racional – ele mesmo técnico, ainda que seja na forma das tecnologias sociopolíticas – os rumos do desenvolvimento da tecnociência. Esse é um dos aspectos mais preocupantes do cenário em que se desenrola hoje o drama epocal da crise da razão.

Que alternativas poderiam nos auxiliar nesse impasse? Como orientar-se no pensamento, uma vez constatada a perda de confiança ingênua numa concepção simplista, meramente instrumental e antropológica da tecnociência, que, de resto, já fora diagnosticada pela filosofia da técnica de Martin Heidegger? Como Hans Jonas demonstrou, mais recentemente, a tecnociência dispõe de potencial suficiente para colonizar e colocar a serviço de sua própria dinâmica todas as formas até hoje conhecidas de organização da vida social e política. Jonas conclama à criação de um novo sentimento coletivo de responsabilidade e temor – nos termos de sua heurística do medo – evocando uma postura de prudência e cautela que talvez nos auxiliasse a conquistar uma potência de segundo grau, um poder de renúncia ao delírio de onipotência tecnológico.

Como quer que seja, a urgência da crise atual parece não permitir nem tolerar mais que a questão seja colocada em termos de autarquia das possibilidades humanas de controle racional dos progressos da tecnociência. Assim colocada, a própria questão parece hoje fora do lugar. Em 1955, Heidegger já advertia: nenhum indivíduo, nenhum grupo humano, nenhuma comissão de relevantes estadistas, pesquisadores ou técnicos, nenhuma conferência de dirigentes da economia e da indústria consegue frear ou direcionar o curso histórico da época atômica.

Quando tiver êxito o domínio da energia atômica, e esse êxito ocorrerá, então se iniciará um desenvolvimento totalmente novo do mundo técnico. Em todos os âmbitos da existência, o homem estará sempre mais estreitamente cercado pelas forças dos aparelhos técnicos e dos autômatos. As forças que por toda parte e a toda hora requisitam o homem sob uma forma qualquer de aparelhos e dispositivos técnicos, que o acorrentam, empurram-no e constrangem – essas potências, já desde longo tempo, cresceram acima da vontade humana e de sua capacidade de decisão, porque elas não foram feitas pelo homem[21].

A filosofia não tem receitas nem planos de ação; indignação retórica e ativismo político fazem parte da mobilização total pelo pensamento calcultatório. O que resta seria resgatar para o pensamento meditativo um papel determinante[22].

Embora modesta, esta é uma das possibilidades em jogo, a ser contrastada com a heurística do temor de Hans Jonas. Num texto tardio, significativamente intitulado Gelassenheit, Heidegger expressa, porém, sua confiança na potência silenciosa da meditação. Embora não tenha a mesma eficácia instrumental do cálculo logístico, a meditação preocupada não deixaria de ser determinante, nem se esgotaria em mera prostração reverente diante do império dos fatos; a palavra serenidade não é, para Heidegger, sinônimo de conformismo. Com ela, o filósofo da Floresta Negra tem em vista um pensamento e um agir amadurecidos, liberados da insânia compulsiva dominante na esfera pública contemporânea.

Podemos e devemos, no entanto, também levar em consideração o extremo oposto e colocar sob suspeita toda tendência à demonização da técnica. Ao invés de nos deixarmos paralisar, temerosos diante de uma perspectiva de desenvolvimento autônomo das tecnociências como uma fatalidade inexorável a abater-se, com a força do destino, sobre uma humanidade resignada à perempção por obra de suas próprias criações, não seria mais urgente perguntar, com o filósofo francês Gérard Lebrun, se “ainda não seria cristão, uma vez mais, este sombrio ressentimento que [nos] leva a odiar a mais perigosa, mas também a mais inventiva, a mais jovem das vontades de potência?[23]”. Não seria necessário endossar o otimismo desenfreado do transumanismo contemporâneo, mas a indagação de Lebrun permanece sempre atual e produtiva, em sua provocativa e instigante ironia, afinal, como ele afirma, não se prega moral a uma potência.

Além disso, numa perspectiva de filosofia política, poderíamos perguntar também se as utopias cibernéticas não seriam uma autêntica distopia, isto é, um projeto de transformação do pensamento em ultrassofisticado sistema de processamento de informações. E, se for assim, não estaria em curso um inusitado fetichismo pós-moderno, a ofuscar a visão para projetos de transformação cultural e refundação da solidariedade política? É o que pensa o filósofo espanhol César Rendueles, para quem uma economia do conhecimento, restrita às tecnologias de informação e comunicação, seria tanto uma modalidade nova de determinismo tecnológico quanto um sucedâneo ideológico da antiga panaceia universal para a resolução de todos os problemas da humanidade: da fome e poluição globais ao desemprego estrutural, da catástrofe ecológica aos impasses atuais da democracia. O efeito mais deletério do fetiche seria a redução de nossas expectativas sociopolíticas.

O socialismo projetava ao futuro a construção do novo vínculo social. Seria o resultado de nossa imaginação política e de imensas comoções sociais. A pós-modernidade nos assegura que esse futuro já está aqui, a única decisão que se deve tomar para desfrutá-lo é escolher entre Android e iPhone. O que a tradição revolucionária resolvera falsamente em termos utópicos, os geeks consideram falsamente transformado em termos ideológicos. A utopia do homem novo já é desnecessária, basta baixar um gerenciador de torrentes[24].

Já outro filósofo francês contemporâneo, Gilles-Gaston Granger, autor de um livro notável, sugestivamente intitulado A razão, conclui essa obra com a seguinte parábola:

Um viajante conta que, nas florestas do Equador, vivem tribos indígenas sem contato com os civilizados. Chegam um dia em seu domínio centenas de caminhões, de escavadoras, de bulldozers que, para uma companhia petrolífera, abrem estradas, perfuram poços, subvertem a floresta. Eis como os índios, estupefatos, explicam entre si o fenômeno: “Animais novos, disseram eles, surgiram. Domesticaram os homens, que lhes obedecem e os servem como escravos. E os homens brancos os alimentam e abrem-lhes caminhos através da floresta […]”[25].

Se, à vista desse panorama, recorremos a Nietzsche, é porque esse mestre da suspeita nos ajuda a perguntar se não nos defrontaríamos então com um processo em ação, que não é neutro nem inocente, mas com o qual se conduz um ensaio de rebaixamento de expectativa em termos do futuro humano, um experimento de alcance planetário, levado a efeito por uma figura anônima e coletiva da vontade de poder, com o objetivo de realizar uma gestão integral da vida humana – uma administração global de todos os seus recursos e performances?

Todas essas perguntas têm em vista processos complexos e direcionam o pensamento em sentidos marcadamente diferentes, mas brotam do mesmo solo crítico sobre o qual nos assentamos. Nietzsche chamava a nossa atenção para o fato de que as casas que construímos na modernidade cultural só podem abrigar homens pequenos. Ora, o éthos é o nome filosófico das moradas no interior nas quais habitamos em nosso existir no mundo. Ethos antropo daimon, já dizia Heráclito: o éthos é a casa do homem. Num mundo onde a utilidade, a valorização, o aproveitamento e a mobilização repetem-se compulsoriamente como o mesmo que abrigamos em nós, como um deserto, não seria urgente perguntar, com Nietzsche, por uma alternativa radical: por uma paradoxal utilidade do inútil, necessidade do que não serve para nada, pela condição humana de pobreza do riquíssimo? Do resgate daquela dimensão originária da poiesis, da criação inteiramente gratuita e autossuficiente, que a arte e a filosofia expressam de modo tão intenso, como uma das possíveis linhas de fuga em direção a uma nova grandeza também para o homem contemporâneo?

Uma degeneração pós-moderna do homem é possível, sem dúvida. Não nos esqueçamos que a grande decisão tomada na antropogênese é um evento continuado em cada momento crítico de nossa história. E ninguém mais do que Nietzsche levou até as últimas consequências essa possibilidade de degeneração global da humanidade. É precisamente tendo-a em vista que ele escreve: “Quem já refletiu nessa possibilidade até o fim, conhece um nojo a mais que os outros homens – e também talvez uma nova tarefa![26]”. Essa nova tarefa é, também ela, uma possibilidade, que surge a partir da exigência de pensar filosoficamente as mutações como signo rememorativo, diagnóstico e prognóstico na história humana.

Notas

  1. Martin Heidegger, “Wissenschaft und Besinnung”, in: Martin Heidegger, Vorträge und Aufsätze, Pfullingen: Günther Neske, 1985, pp. 41 ss. [Ed. bras.: Ensaios e conferências, Petrópolis: Vozes, 2002.]
  2. Werner Heisenberg, “Das Naturbild der heutigen Physik”, in: Bayerische Akademie der schönen Künste (Hrg.), Die Künste im technischen Zeitalter, 8. Aufl. 1956, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, pp. 31-47.
  3. Ibidem.
  4. Jürgen Habermas, Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik?, Frankfurt-

    /M: Suhrkamp Verlag, 2001, p. 125. [Ed. bras.: O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal?, São Paulo: Martins Fontes, 2004.]

  5. Raymond Kurzweil, The Singularity is Near. When Humans Transcende Biology, New York: Viking/Penguin, 2005, p. 23.
  6. Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, São Paulo: Estação Liberdade, 2000, pp. 44 ss.
  7. Friedrich Nietzsche, “Nachgelassene Fragmente”, in: G. Colli und M. Montinari (Hrg.), Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe, Band 10, Berlin/New York/München: de Gruyter/dtb, 1980, pp. 237 ss.
  8. Idem, “Die Geburt der Tragödie”, in: G. Colli und M. Montinari (Hrg.), op. cit., Band I, pp. 92 ss (§ 15).
  9. Ibidem.
  10. Ibidem, pp. 109 ss (§ 18).
  11. Idem, “Nachgelassene Fragmente”, op. cit., pp. 239 ss.
  12. R. Koselleck, Future Past, New York: Columbia University Press, 2004, pp. 83 ss. [Ed. bras.: Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.]
  13. F. Nietzsche, “Dyonisos-Dithyramben”, in: G. Colli und M. Montinari (Hrg.), op.cit., Band VI, p. 381. [Ed. bras.: O anticristo/Ditirambos de Dionísio, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.] O verso retoma uma das passagens conclusivas da Parte III de Assim Falou Zaratustra.
  14. Idem, Genealogia da moral, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 110 ss (III, 13).
  15. Ibidem, pp. 102 ss (III, 9).
  16. Giorgio Agamben, Lo Abierto. El hombre y el animal, Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006, p. 145. [Ed. bras.: O aberto: o homem e o animal, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.]
  17. Ibidem, p. 141.
  18. Arnold Gehlen, Urmensch und Spätkultur, 3ª ed., Frankfurt/M: Athenaion, 1975, p. 88.
  19. Ibidem, p. 42.
  20. P. Sloterdijk, op. cit., pp. 39 ss.
  21. Martin Heidegger, Gelassenheit, Pfullingen: Günther Neske, 1992, p. 19.
  22. Ibidem, pp. 20 ss.
  23. Gérard Lebrun, “O poder da ciência”, Ensaios de Opinião, vol. 5, Rio de Janeiro: Inúbia, 1977, p. 50.
  24. César Rendueles, Sociofobia: mudança política na era da utopia digital, São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2016, p. 41.
  25. Gilles-Gaston Granger, A razão, 2ª ed., São Paulo: Difel, 1969, p. 124.
  26. F. Nietzsche, Além do bem e do mal, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 92 (aforismo 203).

Imenso é o desafio – e quase paralisante – de ousar refletir, mais uma vez, no enquadramento temático e filosófico do ciclo Mutações, a crise da razão. O que mais poderia ser acrescentado ao livro prodigioso que Adauto Novaes editou, com esse mesmo título, em 1996? E, no entanto, o sintagma crise da razão continua a nos desafiar, a mobilizar energias para novas tentativas de interpretação de seu significado. Afinal, no horizonte de Mutações, estamos autorizados e, mais que isso, concitados a um atrevimento e risco maiores. Portanto, ao invés de principiar por uma resenha ou retomada do livro de 1996, penso que a melhor estratégia seria dirigir nossa atenção para o que ainda não foi suficientemente meditado tanto antes quanto depois da publicação daquele livro memorável.

Sabemos que uma das acepções mais antigas da palavra crise é originária do léxico da medicina hipocrática, no qual indica um ponto culminante, uma manifestação aguda e também um momento de transformação decisiva no curso de uma enfermidade, servindo, portanto semiologicamente, como signo de orientação para um diagnóstico, que pode ou não ser favorável à cura. A partir dessa acepção originária, e aplicando esse significado à sociedade e à história, a palavra crise assume a significação ampliada de transformação decisiva em qualquer aspecto relevante da vida humana.

Uma crise da razão, no sentido acima mencionado, anuncia-se, em nossos dias, sobretudo sob a égide das ciências e das tecnologias, pois o vértice principal pelo qual olhamos o mundo é determinado por elas. Na modernidade, as ciências estão interligadas, de modo decisivo, com todas as formas de organização da vida e da cultura: na economia, na indústria, na educação, no direito, na política, na administração, no mercado financeiro, em todos os meios de comunicação, nas artes, na filosofia e também nas guerras. Podemos dizer que nossa cosmovisão atual delineia-se a partir das perspectivas da física, da química, da biologia, da genética, das neurociências, dos estudos de inteligência artificial, da robótica, da cibernética e da nanotecnologia.

Essa constelação produz uma figura que sugere a efetiva realização da supremacia humana sobre as demais criaturas do universo ainda que o humano tenha hoje que dividir o espaço com seus próprios produtos, por exemplo, com máquinas inteligentes, que ameaçam destroná-lo. Uma perturbação que afeta essa constelação anuncia-se então inevitavelmente como dolorosa ferida narcísica, pois nela haurimos nossa autocompreensão enquanto homens modernos.

É por isso que o progresso das ciências sempre esteve tão imbricado com as perspectivas de realização do ser humano. Uma crise instalada no âmbito da racionalidade científica afeta, portanto, não apenas a realização atual da humanidade, mas também a esfera inteira de seus ideais. É o que podemos constatar pelo testemunho de um cientista como Werner Heisenberg, para quem a dominação técnico-científica da natureza só se confronta com algum limite quando as explicações científicas da realidade não recobrem mais aquelas do mundo religioso e cultural. Nessas condições, o mais provável é que as concepções religiosas e culturais do mundo tenham de se acomodar às teorias científicas do que o contrário. Tendo isso em vista, o filósofo Martin Heidegger, em sua correspondência com o físico Heisenberg, pergunta-se pela essência da moderna ciência, em sua relação com o homem e seus poderes, pois é sobre essa relação que precisamos hoje em dia, antes de tudo, alcançar alguma clareza:

Meditando o sentido desse processo, percebe-se que no mundo ocidental e nas épocas de sua história a ciência desenvolveu um poder que não se pode encontrar em nenhum outro lugar da Terra, e que está em via de estender-se por todo o globo terrestre. É a ciência apenas algo feito pelo homem, que se alçou a tal dominação, de modo que se poderia pensar que a vontade humana ou a decisão de alguma comissão poderia um dia também novamente desmontá-la? Ou será que impera aqui um destino maior? Será que algo mais do que um simples querer conhecer, de parte do homem, domina a ciência? Assim é, de fato. Outra coisa impera. Mas esta outra coisa se esconde de nós, enquanto ficamos dependentes das representações habituais da ciência[1].

Em tais circunstâncias, a pergunta pelo futuro do humano não pode prescindir hoje de uma reflexão aprofundada tanto sobre a ciência quanto sobre as consequências éticas, sociais, políticas e culturais de seu desenvolvimento, uma vez que por meio dele produziu-se não apenas uma alteração substancial de nossa cosmovisão, mas também uma mudança radical na autocompreensão ética da espécie humana. Desse modo, refletir filosoficamente sobre a ciência e a técnica em nossos dias, de modo a manter aberto o horizonte do pensamento para os desdobramentos éticos que podem resultar desse tipo de reflexão, implica também a necessidade de considerar limites éticos ao progresso tecnológico, como forma de evitar consequências potencialmente catastróficas desse desenvolvimento – por exemplo, o desastre ecológico, a desertificação do planeta, o apocalipse nucelar, a clonagem humana pela engenharia genética e o hibridismo transumanista do homo roboticus.

Desde Isaac Newton sabemos que a física não tem mais como finalidade a explicação da natureza; em vez de explicação dos fenômenos, a física teria como meta encontrar um formalismo matemático capaz de produzir resultados experimentais significativos, com base nos quais os cientistas poderiam ordenar e prever metodicamente aquilo que seria observado (ou não) na experiência. O caráter sistemático dos procedimentos científicos permitiria dominar processos de conhecimento, construir aparelhos técnicos com modos de funcionamento rigorosamente previstos e dirigidos para fins essencialmente utilitários. Nessas condições, não pode mais ser sustentado o ideal teórico de plena objetividade – a saber, o conhecimento científico entendido como descrição neutra e objetiva de processos que ocorrem na natureza. Se a física clássica já operava com essa autocompreensão, esta se tornou muito mais aguda com a física atômica contemporânea.

Werner Heisenberg descreveu, nos termos seguintes, o dilema cada vez mais atual de uma realidade física que se dissolve numa simbologia matemática:

Portanto, a pergunta sobre se essas partículas existem “em si” não pode mais ser colocada desta forma, pois nós, sempre, só podemos falar sobre processos [Vorgänge] que ocorrem quando o comportamento dessas partículas elementares pode ser inferido por meio da ação recíproca das mesmas com alguns outros sistemas físicos, por exemplo, aparelhos de medida. A representação da realidade objetiva das partículas elementares volatilizou-se, portanto, de uma maneira digna de nota, não na névoa de alguma nova, obscura e ainda incompreendida representação da realidade, mas na clareza transparente de uma matemática que não exibe mais o comportamento das partículas elementares, mas nosso conhecimento desse comportamento. O físico atômico tem de se conformar com que sua ciência seja apenas um elo na infinita cadeia das confrontações do homem com a natureza, que ela, porém, simplesmente não pode falar da natureza “em si”[2].

A intervenção humana, sob a forma de procedimentos teóricos e metodológicos, com seus modelos matemáticos de objetivação e processos físicos de experimentação, tornou-se um elemento constitutivo essencial de todo e qualquer conhecimento da realidade. Os próprios físicos de há muito têm desenvolvido uma consistente reflexão a esse respeito. Para um cientista como Heisenberg, talvez não seja exagero dizermos que, pela primeira vez, o ser humano não tem nenhum adversário significativo além de si mesmo, de modo que, partindo das transformações no campo da física, as mudanças básicas na ciência moderna têm de ser consideradas como expressões de transformações no próprio modo de existência das sociedades humanas, que afetam, portanto, todo e qualquer domínio de vida.

Quando, partindo da situação da moderna ciência da natureza, tentamos avançar tateando para os fundamentos que foram postos em movimento, temos a impressão de que não simplificamos demasiado grosseiramente as relações quando dizemos que, pela primeira vez no curso da história, o homem está postado sobre esta Terra unicamente diante de si mesmo, que ele não encontra mais nenhum outro parceiro ou adversário. Isso vale, primeiramente, de uma maneira totalmente banal, na luta do homem contra os perigos externos. Antes, o homem era ameaçado por animais selvagens, doenças, fome, frio e outras potências da natureza, e nesse combate todo alargamento da técnica significava um fortalecimento da posição do homem, portanto, um progresso. Em nosso tempo, no qual a Terra se torna sempre mais densamente povoada, a limitação das possibilidades de vida, e com isso a ameaça, vem em primeira linha da parte dos outros homens, que também fazem valer seu direito aos bens da Terra. Nessa disputa, porém, o alargamento da técnica não precisa mais ser nenhum progresso. A sentença de acordo com a qual o homem é confrontado unicamente consigo mesmo vale, porém, particularmente na era da técnica, num sentido ainda muito mais amplo[3].

Dada essa alteração radical no modo de produção do conhecimento científico, a operatividade tornou-se palavra de ordem, de modo que a importância quase metafísica da mobilização é o espetáculo a que assistimos desde o início do século passado, no qual a natureza se anuncia de alguma maneira calculável como um sistema de informações que funcionam como variáveis de cálculo. O sujeito, enquanto operador dos experimentos e dos sistemas, insere-se numa objetividade que, de maneira cada vez mais indisfarçada, é estruturada através da mediação da aparelhagem experimental, de forma que tanto a subjetividade passa então a pertencer agora expressamente à objetividade, quanto, inversamente, a objetividade passa a incluir elementos de subjetividade, sendo dotada, por exemplo, de uma linguagem própria e até mesmo de intencionalidade. A cadeia produtiva sustentada pela tecnociência insere em suas engrenagens inclusive aquele que, até hoje, fora considerado o sujeito ativo desse processo. Produz-se, com isso, uma profunda desestabilização de tudo o que é natural, já que agora, sob o nome de natureza, é preciso contar também todos os constituintes do próprio sujeito humano, seu sistema nervoso, seu código genético, a estrutura e o funcionamento de seu órgão cerebral, seus órgãos sensitivos visuais e auditivos, seus sistemas de comunicação, suas linguagens e sistemas de signos, suas organizações de vida em grupo etc.

Como Heidegger já antevia, com a sobreposição ou acavalamento do sujeito e do objeto, não é possível manter o clássico ideal de autarquia e controle humano dos processos de conhecimento. Uma vez que a antiga crença na autonomia cai em desuso, mesmo na representação que os próprios experts, os cientistas, fazem a respeito de seu métier, então seria o caso de considerar se o prognóstico de Jean-François Lyotard não seria, de fato, instrutivo sobre nossa condição atual: de acordo com Lyotard, o homem talvez não seja mais do que um nó mais sofisticado na interação geral das radiações que constituem o universo. Não seria, então, esse mesmo diagnóstico uma injunção imperiosa para refletir filosoficamente sobre o que caracteriza a ciência e a técnica em nossos dias, de modo a manter aberto o horizonte do pensamento para os desdobramentos éticos que delas podem resultar?

Penso que sim – e um exemplo ilustrativo talvez possa ser mencionado, nesse contexto, com a possibilidade bastante concreta da instrumentalização da base somática da personalidade humana. Uma perspectiva como esta, que, de resto, é bastante realista, chocou a consciência moral de um filósofo como Jürgen Habermas. Refletindo sobre a necessidade de impor limites éticos à eugenia positiva, franqueada por experimentos biogenéticos de ponta, Habermas considera, com razão, que as pesquisas com embriões e genoma poderiam abrir caminho para uma produção tecnológico-industrial da vida, que ultrapassa todos os limites restritivos determinados pelo interesse terapêutico em identificar, prevenir e/ou tratar eficazmente patologias geneticamente causadas.

Um dos riscos maiores da virtual “fabricação” do design humano seria a possibilidade de submeter o patrimônio genético de seres humanos à lógica e à dinâmica de preferências narcisistas individuais, ao arbítrio de consumidores habilitados para atuar como agentes num mercado florescente e virtualmente ilimitado. O que poderia resultar desse tipo de mobilização, dá efetivamente muito a pensar:

Quando, depois da transição para o pluralismo tolerado das cosmovisões, as imagens de mundo religiosas e metafísicas perderam sua cogência universal, nós (ou a maioria de nós) não nos tornamos nem cínicos frios, nem relativistas indiferentes, porque nos mantivemos apegados ao código binário de juízos morais corretos e falsos – e quisemos fazê-lo. Restabelecemos as práticas do mundo da vida e da comunidade política sobre premissas da moral racional e dos direitos humanos, porque elas oferecem uma base comum para uma existência humanamente digna, para além das diferenças de cosmovisões. Talvez a resistência afetiva contra uma temida modificação na identidade da espécie se deixe hoje esclarecer – e justificar – a partir de semelhantes motivos[4].

À sombra dessa erosão das imagens religiosas e metafísicas, que até hoje embasaram a autocompreensão ética da humanidade, medram as perspectivas pós e transumanas de superação do ser humano. Uma nova singularidade não apenas bate à nossa porta – ela já ingressou em nossa morada.

A singularidade nos permitirá transcender as limitações de nossos corpos biológicos e cérebros. Conquistaremos poderes sobre nossos destinos. Nossa mortalidade estará em nossas mãos. Seremos capazes de viver tanto quanto quisermos (uma afirmação sutilmente diferente de dizer que viveremos para sempre). Compreenderemos inteiramente o pensamento humano, e estenderemos e expandiremos seu alcance. No final deste século, a porção não biológica de nossa inteligência será trilhões e trilhões de vezes mais poderosa do que a desamparada inteligência humana […]. A singularidade representará a fusão de nosso pensamento e existência biológica com nossa tecnologia, resultando num mundo que é ainda humano, mas que transcende nossas raízes biológicas[5].

O cenário traçado por esse transumanismo comporta inequivocamente um componente biopolítico de prodigiosa envergadura, pois ele nos instala num limiar epocal em que teríamos que tomar decisões de longo alcance, tanto no espaço quanto no tempo, decisões concernentes ao futuro da humanidade, colocado, nessas circunstâncias, em situação de risco e perigo extremos. Este já era, aliás, o sentido principal da resposta que o filósofo Peter Sloterdijk endereçava à carta de Martin Heidegger sobre o humanismo:

É a marca da era técnica e antropotécnica que os homens mais e mais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleção, ainda que não precisem ter se dirigido voluntariamente para o papel de selecionador. Pode-se ademais constatar: há um desconforto no poder de escolha, e em breve será uma opção pela inocência recusar-se explicitamente a exercer o poder de seleção que de fato se obteve. Mas tão logo poderes de conhecimento se desenvolvam positivamente em um campo, as pessoas farão uma má figura se – como na época de uma anterior incapacidade – quiserem deixar agir em seu lugar um poder mais elevado, seja ele Deus, o acaso, ou os outros. Já que as meras recusas ou abdicações costumam falhar devido a sua esterilidade, será provavelmente importante, no futuro, assumir de forma ativa o jogo e formular um código das antropotécnicas. Tal código também alteraria retroativamente o significado do humanismo clássico – pois com ele ficaria explícito e assentado que a humanitas não inclui só a amizade do ser humano pelo ser humano; ela implica também – e de maneira crescentemente explícita – que homem representa o mais alto poder para o homem[6].

Gostaria de retomar esse repto à luz da filosofia de Friedrich Nietzsche para, com auxílio dela, aprofundar a reflexão sobre a crise da razão, que nele se faz presente; até mesmo porque Nietzsche foi um refinado especialista em diagnosticar crises da razão. Ao fazê-lo, tomo como ponto de partida um fragmento inédito – datado da primavera-verão de 1883 – no qual Nietzsche dava expressão reflexiva ao impulso que o teria levado, com intensa admiração e cuidado, ao exame crítico das obras de Kant e Schopenhauer: o que o motivou a esse exame foi ter compreendido que, na obra desses pensadores, estaria em curso uma profunda crise da racionalidade, que Nietzsche entendia como uma “autoaniquilação [Selbstvernichtung] do conhecimento científico[7]”. O paradoxo presente nessa figura de autodestruição por excesso de realização consiste em que, nesse movimento, a ciência, em virtude de uma coerção interna, seria inexoravelmente conduzida, pela lógica de seus próprios valores e exigências, até a extração de suas mais extremas consequências, vindo, então, a ultrapassar seus próprios limites. Nietzsche interpreta esse movimento como um processo necessário de autoexame e autocrítica da racionalidade lógica, que culmina na denúncia do delírio de onipotência que a anima. Segundo a análise de Nietzsche, este delírio teria vindo à luz, pela primeira vez na história do Ocidente, com Sócrates.

Nietzsche tem em vista a pretensão racional, que em Sócrates assumiria uma dimensão desmesurada, de tornar conceitualmente compreensível a inteira existência do mundo e do homem – e, com isso, fazer com que estas pudessem aparecer como teoricamente justificadas. O que Nietzsche denuncia é uma ilusão de onipotência que se enraíza na história da metafísica, implantada numa “profunda representação delirante, que pela primeira vez veio ao mundo na pessoa de Sócrates – aquela crença inabalável de que, seguindo o fio condutor da causalidade, o pensar alcança até os abismos mais profundos do ser, e que o pensar é capaz não somente de conhecer o ser, mas até de corrigi-lo[8]”.

Nietzsche detecta nesse processo uma imbricação reversível entre lucidez e delírio, emancipação e compulsão. Para ele, a força que, do interior, anima o progresso da razão esclarecida é haurida numa Wahnvorstellung, ou seja, numa obscura potência, que afinal acaba forçada a revelar sua verdadeira natureza: “Mas agora a ciência, aguilhoada por sua vigorosa ilusão, corre pressurosa e irrefreável até aqueles limites, nos quais fracassa seu otimismo, oculto na essência da lógica”. Como resultado desse processo, vê-se “como a lógica, chegando a esses limites, enrosca-se sobre si mesma e finalmente morde a própria cauda[9]”.

Nietzsche reconstitui arqueogenealogicamente um movimento de oposição interna, atuante na racionalidade científica, em cujo desdobramento esta se encaminha, motu proprio, em direção à perempção de sua hegemonia e absoluto domínio – pois, confrontada com suas consequências extremas, a cultura assentada no princípio da cientificidade passa a recuar diante de suas próprias virtualidades. Nesse recuo, ela não pode deixar de sucumbir, tão logo comece a se tornar ilógica, isto é, a recusar as próprias inevitáveis conclusões, na tentativa de eludir a lógica de seus próprios valores.

Enquanto o infortúnio que dormita no seio da cultura teórica começa, pouco a pouco, a angustiar o homem moderno, e este, inquieto, recorre a certos meios para conjurar o perigo, retirando-os do tesouro de sua experiência, sem acreditar, mesmo, realmente em tais meios; enquanto o homem moderno começa, portanto, a pressentir suas próprias consequências, algumas naturezas grandes, voltadas para o universal, souberam utilizar com incrível sensatez o arsenal da própria ciência, para mostrar os limites e o caráter condicionado do conhecimento em geral, e, com isso, negar decididamente a pretensão da ciência de possuir validade e finalidade universal; e no curso dessa demonstração foi reconhecida pela primeira vez, enquanto tal, aquela representação delirante que, guiada pela mão pela causalidade, arroga-se a pretensão de poder perscrutar a essência mais íntima das coisas[10].

Ao fio condutor da genealogia de Nietzsche, nosso olhar alcança, portanto, os primórdios daquela exigência incondicional de verdade e pretensão científica, aquela injunção a conhecer as coisas até o fim, de transformar integralmente os fenômenos em cadeias de conceitos, perscrutar a essência íntima das coisas, de modo a poder não somente compreender o ser, desvendar todos os seus enigmas, mas também, além disso, ser capaz de corrigi-lo[11]. A crise da racionalidade lógica não constitui, para Nietzsche, um fenômeno recente na história da razão ocidental. Ao contrário, esta é proveniente de uma hybris originária que, em Sócrates, fez-se figura do mundo, e ainda palpita e anima nossas fantasias futuristas, formando o núcleo arcaico da utopia pós-moderna.

Em momentos de crise, no limiar de grandes transformações históricas, a razão obstina-se na busca de conceitos capazes de proporcionar referenciais de sentido e orientação, e é justamente então que a crise se faz sentir de maneira mais aguda. É necessário, antes de tudo, compreender e situar-se em meio à desestabilização – o que provoca o fenômeno que o filósofo Reinhart Kosellek denominou “batalha semântica para definir, manter ou impor posições filosóficas, políticas e sociais[12]”.

É num cenário como este que a contribuição de Nietzsche demonstra-se atual e fecunda. Pois aquilo com que temos de nos defrontar é uma combinação de crise, crítica, decisão e exigência de sentido, isto é, com um fenômeno bem característico do componente sociobiopolítico-cultural da crise da razão. O espaço que separa as experiências culturalmente relevantes do conjunto de expectativa para novos projetos faz colapsar os grandes significantes que temos à mão, de modo que estes não conseguem mais dar conta dos fatos observados na realidade imediata. Rompe-se, assim, o equilíbrio entre os espaços de experiência e os horizontes de esperança, e, nesse cenário, os conceitos buscados atuam tanto como um elemento de promessa e expectativa de realização, quanto abrigam uma correspondente desconfiança e decepção em relação às formas de representação ainda subsistentes, mas já agonizantes.

Essa é a atmosfera própria para mutações de grande envergadura: na área socioeconômica, por exemplo, podemos vislumbrar a possibilidade teórica e prática da erradicação da miséria, contrastada, na área biomédica, pela instrumentalização do genoma. Politicamente, podemos cogitar planos de paz perpétua, compensados, aporeticamente, pela ameaça macabra de destruição apocalíptica do planeta, pela produção de armas capazes de escolher e destruir autonomamente seus próprios alvos. A crise da razão mostra-se não apenas na iminência do homo roboticus, mas com o extermínio possível da espécie humana, já que se tornou difícil impor limites precisos para processos de transformação em cuja dinâmica autonomizada nos encontramos imersos.

A genealogia de Nietzsche não nos auxilia apenas no vetor retrospectivo de sentido. Com ela, podemos avançar também prospectivamente. No final de sua vida lúcida, em seus Ditirambos de Dionísio, Nietzsche exprimiu, num verso enigmático, um insight filosófico fundamental: “O deserto cresce: ai daquele que abriga desertos” (“Die Wüste wächst: weh dem, der Wüsten birgt”[13]). Abrigar desertos parece-me ser uma marca da conditio humana: abrigamos em nós perigosos desertos, e nesses ermos medra nossa hybris, tanto nossa grandeza quanto nossa tragédia, ambas abissais: pois esses desertos são o território em que fazemos nossas experiências cruciais.

Para Nietzsche, o homem, dentre todos os outros, é o animal

mais doente, inseguro, inconstante, indeterminado que qualquer outro animal, não há dúvida – ele é o animal doente: de onde vem isso? É certo que ele também ousou, inovou, resistiu, desafiou o destino mais do que todos os outros animais reunidos: ele, o grande experimentador de si mesmo, o insatisfeito, insaciado, que luta pelo último domínio com o animal, a natureza, e os deuses – ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que não encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que seu futuro, uma espora, mergulha implacável na carne de todo presente: – como não seria um tão rico e corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos?[14].

Somos levados a pensar que a crise da racionalidade é também a realização integral de sua própria lógica, um resultado da hybris de Prometeu. Na modernidade, um traço marcante dessa crise consiste em que nossa forma de habitar o mundo só se produz como transgressão:

Híbris é hoje nossa atitude para com a natureza, nossa violentação da natureza com ajuda das máquinas e da tão irrefletida inventividade dos engenheiros e técnicos; híbris é nossa atitude para com Deus, quero dizer, para com uma presumível aranha de propósito e moralidade por trás da grande tela e teia da causalidade – híbris é nossa atitude para com nós mesmos, pois fazemos conosco experimentos que não nos permitiríamos fazer com nenhum animal, e alegres e curiosos, vivisseccionamos nossa alma: que nos importa ainda a “salvação” da alma[15]!

Se toda crise engendra uma instância de decisão, então a crise da razão contemporânea traz à luz um desconcertante paradoxo: a saber, que a decisão maior já foi tomada de há muito e continua a ser tomada a cada dia; ela consiste no próprio processo de hominização, no devir humano do animal homem, que “não é um fato que se deu de uma vez para sempre, mas um evento sempre em curso, que decide, a cada vez e em cada indivíduo, acerca do humano e do animal, da natureza e da história, da vida e da morte[16]”.

Portanto, como discerniu muito bem Giorgio Agamben, em perspectiva crítica, a antropogênese é uma figura permanente da história – a despeito de todos os nossos esforços fracassados de elisão e obliteração desse fato. O devir homem, a transfiguração do hominídeo pulsional em zoon politikón, no animal que possui a linguagem, é a própria crise, pois é um processo de mutação permanente, no qual decisões epocais nunca deixaram de ser tomadas.

As potências históricas tradicionais – poesia, religião, filosofia – que, tanto na perspectiva de Hegel-Kojève como na de Heidegger, mantinham desperto o destino histórico-político dos povos –, foram transformadas, há algum tempo, em espetáculos culturais e em experiências privadas, tendo perdido toda eficácia histórica. Frente a esse eclipse, a única tarefa que, no entanto, parece conservar alguma seriedade é a de tomar a cargo e realizar a “gestão integral” da vida biológica – quer dizer, da própria animalidade do homem. Genoma, economia global, ideologia humanitária são as três faces solidárias desse processo no qual a humanidade pré-histórica parece assumir sua fisiologia como último e impolítico mandato[17].

O homem é, desde sempre, o animal produtor de suas condições de existência, e estas se dão nas coordenadas permanentemente cambiantes da história e da cultura. A antropologia filosófica e cultural de Nietzsche estabelece um circuito extremamente cerrado entre a condição existencial do homem, a racionalidade científica e a vontade de poder. Esse circuito é também a instância antropogênica de produção de crises permanentes. Na modernidade, a dinâmica desse processo é determinada, em grande medida, pela ctônica potência da ciência e na tecnologia, que, como força produtiva, rivaliza com a natureza e os deuses, e vige tanto na physis quanto na polis. A crítica de Nietzsche à razão não é, de modo algum, um refúgio no irracionalismo, nem fatalismo de resignação.

Com extraordinária lucidez e penetração, a genealogia de Nietzsche instala a razão numa crise perpétua, pois que nela a racionalidade é inseparável da autocrítica, o que leva o pensamento à necessidade permanente de pensar contra si mesmo, de renunciar ao consolo de convicções últimas e definitivas, de abrir sempre novos horizontes de futuro. Crítica e crise são instâncias que se exigem e complementam: crítico é o momento do julgamento e da tomada de decisão por alternativas colocadas no horizonte da teoria e da práxis. Crise é a própria tensão entre os opostos que habita o humano. Daí a relação visceral entre a crise, a crítica e as mutações.

A esse respeito, uma ciência como a antropologia de Arnold Gehlen está muito mais próxima da filosofia de Nietzsche do que poderia parecer à primeira vista. Para Gehlen, as primitivas instituições da cultura são os meios pelos quais a humanidade leva a termo sua própria estabilização, tornando-se capaz de proteger e conservar o resultado das experiências coletivas acumuladas contra os efeitos corrosivos do decurso do tempo. Instituições são dispositivos de formação e transformação do humano na história, por meio dos quais se fixa e se estabiliza o homem durante longos períodos de tempo:

Somente por meio de instituições o homem se torna efetivo, duradouro, regulável, quase automático e previsível […]. Essa essencial função que alivia o peso (Entlastungsfunktion) das motivações subjetivas e das improvisações permanentes, função que é inerente a todas as instituições, é uma das mais prodigiosas características culturais, pois essa estabilização se enraíza no próprio coração de nossas posições culturais[18].

O animal não fixado é também, paradoxalmente, aquele que sempre empreende a própria estabilização provisória – o homem está sempre, em si mesmo, sobrecarregado com a tarefa de configuração de seu excedente pulsional, problema que nunca pode ser completamente resolvido, ou melhor, só pode ser tratado contemporaneamente com a tarefa de sua própria vida e por meio de seu próprio agir. Por causa disso, as instituições e as formas culturais de vida são componentes de atividades humanas fundamentais, que preservam o que foi consolidado na história, mas também fornecem as bases para as grandes transformações pelas quais o homem dá forma ao excedente pulsional que o constitui – que o singulariza como não circunscrito a nenhum meio ambiente, mas aberto ao universo. Por causa disso, a humanidade, desde sua pré-história, representa uma série de “experiências consigo mesmo, em graus até então inexistentes, como no Neolítico e na era atômica[19]”.

Peter Sloterdijk tem razão quando escreve:

Nietzsche – que leu com atenção Darwin e São Paulo – julga perceber, atrás do desanuviado horizonte da domesticação escolar dos homens, um segundo horizonte, este mais sombrio. Ele fareja um espaço no qual lutas inevitáveis começarão a travar-se sobre o direcionamento da criação dos seres humanos – e é nesse espaço que se mostra a outra face, a face velada da clareira. Quando Zaratustra atravessa a cidade na qual tudo ficou menor, ele se apercebe do resultado de uma política de criação até então próspera e indiscutível: os homens conseguiram – assim lhe parece –, com ajuda de uma hábil combinação de ética e genética, criar-se a si mesmos para serem menores. Eles próprios se submeteram à domesticação e puseram em prática sobre si mesmos uma seleção direcionada para produzir uma sociabilidade à maneira de animais domésticos[20].

Tendo diante de nós o panorama que pode ser divisado com auxílio da genealogia de Nietzsche, torna-se pertinente e urgente perguntar: não seria toda essa agitação prodigiosamente loquaz a propósito de crise e de transformações escatológicas também algo a ser interpretado, na chave de uma semiótica dos afetos, como sintoma, prenhe de sentidos, de um ominoso e persistente mal-estar na cultura?

Se os autênticos frutos da razão – as ciências e as tecnologias – não se deixam mais interpretar satisfatoriamente como realizações situadas no plano das “ideias”, ou como “simples meios” que podem ser empregados ou não, de acordo com parâmetros de deliberação e controle racional, impostos pela vontade humana orientada por valores, isso ocorre porque a atualização do potencial tecnocientífico tornou-se condição de possibilidade de existência e desenvolvimento de nossas sociedades. Portanto, elas tornaram-se forças produtivas determinantes dos caminhos pelos quais se decide a vida e a morte dos seres humanos no planeta Terra, e não somente de seres humanos e suas futuras gerações. Em face disso, é preciso não perder de vista que, na esfera de pensamento e ação em que se situam tais forças, entra em jogo também o imensurável espectro das paixões, desejos, interesses estratégicos e conflitos de várias ordens, o que torna muito difícil equacionar em termos de controle plenamente racional – ele mesmo técnico, ainda que seja na forma das tecnologias sociopolíticas – os rumos do desenvolvimento da tecnociência. Esse é um dos aspectos mais preocupantes do cenário em que se desenrola hoje o drama epocal da crise da razão.

Que alternativas poderiam nos auxiliar nesse impasse? Como orientar-se no pensamento, uma vez constatada a perda de confiança ingênua numa concepção simplista, meramente instrumental e antropológica da tecnociência, que, de resto, já fora diagnosticada pela filosofia da técnica de Martin Heidegger? Como Hans Jonas demonstrou, mais recentemente, a tecnociência dispõe de potencial suficiente para colonizar e colocar a serviço de sua própria dinâmica todas as formas até hoje conhecidas de organização da vida social e política. Jonas conclama à criação de um novo sentimento coletivo de responsabilidade e temor – nos termos de sua heurística do medo – evocando uma postura de prudência e cautela que talvez nos auxiliasse a conquistar uma potência de segundo grau, um poder de renúncia ao delírio de onipotência tecnológico.

Como quer que seja, a urgência da crise atual parece não permitir nem tolerar mais que a questão seja colocada em termos de autarquia das possibilidades humanas de controle racional dos progressos da tecnociência. Assim colocada, a própria questão parece hoje fora do lugar. Em 1955, Heidegger já advertia: nenhum indivíduo, nenhum grupo humano, nenhuma comissão de relevantes estadistas, pesquisadores ou técnicos, nenhuma conferência de dirigentes da economia e da indústria consegue frear ou direcionar o curso histórico da época atômica.

Quando tiver êxito o domínio da energia atômica, e esse êxito ocorrerá, então se iniciará um desenvolvimento totalmente novo do mundo técnico. Em todos os âmbitos da existência, o homem estará sempre mais estreitamente cercado pelas forças dos aparelhos técnicos e dos autômatos. As forças que por toda parte e a toda hora requisitam o homem sob uma forma qualquer de aparelhos e dispositivos técnicos, que o acorrentam, empurram-no e constrangem – essas potências, já desde longo tempo, cresceram acima da vontade humana e de sua capacidade de decisão, porque elas não foram feitas pelo homem[21].

A filosofia não tem receitas nem planos de ação; indignação retórica e ativismo político fazem parte da mobilização total pelo pensamento calcultatório. O que resta seria resgatar para o pensamento meditativo um papel determinante[22].

Embora modesta, esta é uma das possibilidades em jogo, a ser contrastada com a heurística do temor de Hans Jonas. Num texto tardio, significativamente intitulado Gelassenheit, Heidegger expressa, porém, sua confiança na potência silenciosa da meditação. Embora não tenha a mesma eficácia instrumental do cálculo logístico, a meditação preocupada não deixaria de ser determinante, nem se esgotaria em mera prostração reverente diante do império dos fatos; a palavra serenidade não é, para Heidegger, sinônimo de conformismo. Com ela, o filósofo da Floresta Negra tem em vista um pensamento e um agir amadurecidos, liberados da insânia compulsiva dominante na esfera pública contemporânea.

Podemos e devemos, no entanto, também levar em consideração o extremo oposto e colocar sob suspeita toda tendência à demonização da técnica. Ao invés de nos deixarmos paralisar, temerosos diante de uma perspectiva de desenvolvimento autônomo das tecnociências como uma fatalidade inexorável a abater-se, com a força do destino, sobre uma humanidade resignada à perempção por obra de suas próprias criações, não seria mais urgente perguntar, com o filósofo francês Gérard Lebrun, se “ainda não seria cristão, uma vez mais, este sombrio ressentimento que [nos] leva a odiar a mais perigosa, mas também a mais inventiva, a mais jovem das vontades de potência?[23]”. Não seria necessário endossar o otimismo desenfreado do transumanismo contemporâneo, mas a indagação de Lebrun permanece sempre atual e produtiva, em sua provocativa e instigante ironia, afinal, como ele afirma, não se prega moral a uma potência.

Além disso, numa perspectiva de filosofia política, poderíamos perguntar também se as utopias cibernéticas não seriam uma autêntica distopia, isto é, um projeto de transformação do pensamento em ultrassofisticado sistema de processamento de informações. E, se for assim, não estaria em curso um inusitado fetichismo pós-moderno, a ofuscar a visão para projetos de transformação cultural e refundação da solidariedade política? É o que pensa o filósofo espanhol César Rendueles, para quem uma economia do conhecimento, restrita às tecnologias de informação e comunicação, seria tanto uma modalidade nova de determinismo tecnológico quanto um sucedâneo ideológico da antiga panaceia universal para a resolução de todos os problemas da humanidade: da fome e poluição globais ao desemprego estrutural, da catástrofe ecológica aos impasses atuais da democracia. O efeito mais deletério do fetiche seria a redução de nossas expectativas sociopolíticas.

O socialismo projetava ao futuro a construção do novo vínculo social. Seria o resultado de nossa imaginação política e de imensas comoções sociais. A pós-modernidade nos assegura que esse futuro já está aqui, a única decisão que se deve tomar para desfrutá-lo é escolher entre Android e iPhone. O que a tradição revolucionária resolvera falsamente em termos utópicos, os geeks consideram falsamente transformado em termos ideológicos. A utopia do homem novo já é desnecessária, basta baixar um gerenciador de torrentes[24].

Já outro filósofo francês contemporâneo, Gilles-Gaston Granger, autor de um livro notável, sugestivamente intitulado A razão, conclui essa obra com a seguinte parábola:

Um viajante conta que, nas florestas do Equador, vivem tribos indígenas sem contato com os civilizados. Chegam um dia em seu domínio centenas de caminhões, de escavadoras, de bulldozers que, para uma companhia petrolífera, abrem estradas, perfuram poços, subvertem a floresta. Eis como os índios, estupefatos, explicam entre si o fenômeno: “Animais novos, disseram eles, surgiram. Domesticaram os homens, que lhes obedecem e os servem como escravos. E os homens brancos os alimentam e abrem-lhes caminhos através da floresta […]”[25].

Se, à vista desse panorama, recorremos a Nietzsche, é porque esse mestre da suspeita nos ajuda a perguntar se não nos defrontaríamos então com um processo em ação, que não é neutro nem inocente, mas com o qual se conduz um ensaio de rebaixamento de expectativa em termos do futuro humano, um experimento de alcance planetário, levado a efeito por uma figura anônima e coletiva da vontade de poder, com o objetivo de realizar uma gestão integral da vida humana – uma administração global de todos os seus recursos e performances?

Todas essas perguntas têm em vista processos complexos e direcionam o pensamento em sentidos marcadamente diferentes, mas brotam do mesmo solo crítico sobre o qual nos assentamos. Nietzsche chamava a nossa atenção para o fato de que as casas que construímos na modernidade cultural só podem abrigar homens pequenos. Ora, o éthos é o nome filosófico das moradas no interior nas quais habitamos em nosso existir no mundo. Ethos antropo daimon, já dizia Heráclito: o éthos é a casa do homem. Num mundo onde a utilidade, a valorização, o aproveitamento e a mobilização repetem-se compulsoriamente como o mesmo que abrigamos em nós, como um deserto, não seria urgente perguntar, com Nietzsche, por uma alternativa radical: por uma paradoxal utilidade do inútil, necessidade do que não serve para nada, pela condição humana de pobreza do riquíssimo? Do resgate daquela dimensão originária da poiesis, da criação inteiramente gratuita e autossuficiente, que a arte e a filosofia expressam de modo tão intenso, como uma das possíveis linhas de fuga em direção a uma nova grandeza também para o homem contemporâneo?

Uma degeneração pós-moderna do homem é possível, sem dúvida. Não nos esqueçamos que a grande decisão tomada na antropogênese é um evento continuado em cada momento crítico de nossa história. E ninguém mais do que Nietzsche levou até as últimas consequências essa possibilidade de degeneração global da humanidade. É precisamente tendo-a em vista que ele escreve: “Quem já refletiu nessa possibilidade até o fim, conhece um nojo a mais que os outros homens – e também talvez uma nova tarefa![26]”. Essa nova tarefa é, também ela, uma possibilidade, que surge a partir da exigência de pensar filosoficamente as mutações como signo rememorativo, diagnóstico e prognóstico na história humana.

Notas

  1. Martin Heidegger, “Wissenschaft und Besinnung”, in: Martin Heidegger, Vorträge und Aufsätze, Pfullingen: Günther Neske, 1985, pp. 41 ss. [Ed. bras.: Ensaios e conferências, Petrópolis: Vozes, 2002.]
  2. Werner Heisenberg, “Das Naturbild der heutigen Physik”, in: Bayerische Akademie der schönen Künste (Hrg.), Die Künste im technischen Zeitalter, 8. Aufl. 1956, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, pp. 31-47.
  3. Ibidem.
  4. Jürgen Habermas, Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik?, Frankfurt-

    /M: Suhrkamp Verlag, 2001, p. 125. [Ed. bras.: O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal?, São Paulo: Martins Fontes, 2004.]

  5. Raymond Kurzweil, The Singularity is Near. When Humans Transcende Biology, New York: Viking/Penguin, 2005, p. 23.
  6. Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, São Paulo: Estação Liberdade, 2000, pp. 44 ss.
  7. Friedrich Nietzsche, “Nachgelassene Fragmente”, in: G. Colli und M. Montinari (Hrg.), Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe, Band 10, Berlin/New York/München: de Gruyter/dtb, 1980, pp. 237 ss.
  8. Idem, “Die Geburt der Tragödie”, in: G. Colli und M. Montinari (Hrg.), op. cit., Band I, pp. 92 ss (§ 15).
  9. Ibidem.
  10. Ibidem, pp. 109 ss (§ 18).
  11. Idem, “Nachgelassene Fragmente”, op. cit., pp. 239 ss.
  12. R. Koselleck, Future Past, New York: Columbia University Press, 2004, pp. 83 ss. [Ed. bras.: Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.]
  13. F. Nietzsche, “Dyonisos-Dithyramben”, in: G. Colli und M. Montinari (Hrg.), op.cit., Band VI, p. 381. [Ed. bras.: O anticristo/Ditirambos de Dionísio, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.] O verso retoma uma das passagens conclusivas da Parte III de Assim Falou Zaratustra.
  14. Idem, Genealogia da moral, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 110 ss (III, 13).
  15. Ibidem, pp. 102 ss (III, 9).
  16. Giorgio Agamben, Lo Abierto. El hombre y el animal, Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006, p. 145. [Ed. bras.: O aberto: o homem e o animal, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.]
  17. Ibidem, p. 141.
  18. Arnold Gehlen, Urmensch und Spätkultur, 3ª ed., Frankfurt/M: Athenaion, 1975, p. 88.
  19. Ibidem, p. 42.
  20. P. Sloterdijk, op. cit., pp. 39 ss.
  21. Martin Heidegger, Gelassenheit, Pfullingen: Günther Neske, 1992, p. 19.
  22. Ibidem, pp. 20 ss.
  23. Gérard Lebrun, “O poder da ciência”, Ensaios de Opinião, vol. 5, Rio de Janeiro: Inúbia, 1977, p. 50.
  24. César Rendueles, Sociofobia: mudança política na era da utopia digital, São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2016, p. 41.
  25. Gilles-Gaston Granger, A razão, 2ª ed., São Paulo: Difel, 1969, p. 124.
  26. F. Nietzsche, Além do bem e do mal, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 92 (aforismo 203).

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