A depressão e o desejo saciado
por Maria Rita Kehl
Resumo
Uma recente pesquisa feita pelo King’s College chegou à conclusão de que crianças com “agenda cheia” de atividades extraclasse são mais propensas à depressão. Um resultado que não deve, é claro, ser considerado isoladamente, mas se somarmos a ele a superexposição atual das crianças a aparelhos e jogos eletrônicos, enfrentamos uma grave consequência no seu desenvolvimento psíquico e emocional: a escassez de tempo para ela “fantasiar o intangível”. De fato, é preciso que a criança possa brincar e que tenha espaço para ficar “à toa”, porque esse tempo ocioso, supostamente perdido, é, na verdade, um tempo produtivo para a imaginação e, além disso, necessário para a saúde do desenvolvimento emocional do sujeito. Para se compreender o que está em jogo, retornemos ao recém-nascido e à vida uterina, que é marcada pela completude. Ao nascer, o bebê pouco a pouco percebe que está num ambiente que lhe parece hostil, e experimenta faltas e desconfortos inéditos, como a fome e o frio. Para ser saciado, ele faz uso de uma arma efetiva: o reflexo do choro. O processo de separação da mãe, em condições saudáveis, inicia-se pouco a pouco, até que a criança se dê conta de que não será jamais possível retornar à unidade uterina. É um choque tanto quanto é um crescimento, em que a criança deixa de ser objeto exclusivo e atenção da mãe e começa a florescer enquanto sujeito. Em poucas palavras, “o bebê deseja ser aquilo que deixou de ser”. Tal desejo inconsciente (cujo objeto é indeterminado para Freud) jamais será plenamente satisfeito até a morte, mas o seu recalque passa a ser, por assim dizer, o motor da humanidade em todo o seu engenho. Um outro “abafamento” da imaginação é experimentado também pelos adultos, que são expostos constantemente a objetos de consumo. Esses bens, por mais que sejam adquiridos e consumidos, não correspondem, absolutamente, a um “objeto de desejo”, porque não participam da imaginação e do intangível. Somos massacrados pela velocidade do trabalho e pelas engrenagens das sociedades de consumo e da imagem e, portanto, raramente conseguimos agir como sujeitos, porque somos privados de uma pausa mínima necessária para dialogarmos com nossos desejos mais fundamentais.
Não é difícil entender que o depressivo sofre de uma espécie de abulia psíquica. Uma rápida e superficial observação é capaz de revelar que o depressivo não sofre por não conseguir obter aquilo que deseja, mas, sim, o que é pior, por não desejar nada.
É fácil reconhecer a apatia do depressivo: aquele que não se anima diante de nenhuma dádiva. Lembram-se dos antigos contos de fada? Existe uma sabedoria naquelas velhas histórias em que o personagem depressivo nunca era o pobre pai de família com dificuldades para alimentar seus filhos. Nos contos infantis o personagem depressivo é sempre um rei: aquele que tem tudo, a quem todos os súditos querem servir, a quem os outros reis querem presentear com tesouros e objetos exóticos. Esse rei vive triste: os melhores manjares, as mulheres mais belas, os tesouros mais raros não conseguem deixá-lo feliz. O rei das histórias de fadas não é o personagem a quem tudo falta: é o personagem saciado.
Sim, a depressão se parece com o tédio; ou melhor, o tédio é um dos sintomas da depressão. É claro que não se deve confundir qualquer momento de tédio – a criança no banco de trás do carro parado em um congestionamento/o adulto em uma fila de banco que não anda/a mulher que escuta a conversa sempre igual de um marido que ela não deseja mais (ou vice-versa) – com depressão. Mas se o tédio se prolonga, se nada anima o entediado, temos aí um quadro depressivo.
Quando escrevia O tempo e o cão – a atualidade das depressões, alguém (entre as muitas pessoas que me ajudaram a pensar no tema) me apresentou o resultado de uma pesquisa do instituto inglês King’s College, segundo a qual as crianças de “agenda cheia” sofriam com mais frequência de episódios depressivos do que aquelas a quem os pais, talvez por falta de recursos, não podiam oferecer tantas atividades extraescolares. As depressões infantis estavam mais associadas ao excesso do que à falta. Crianças que, além da escola obrigatória, eram levadas a estudar outra língua, fazer natação, balé, futebol – crianças de agenda cheia, sem tempo para brincar ou mesmo ficar à toa, sem nada para fazer – estavam mais sujeitas a se deprimir.
O que faltava a essas crianças a quem os pais, certamente amorosos, queriam oferecer tantas coisas para preencher seu tempo e aprimorar sua formação? Em primeiro lugar: tempo livre. Tempo para imaginar e inventar. A mãe das invenções talvez seja a necessidade; mas seu pai certamente é o ócio. Em segundo lugar, e não necessariamente nessa ordem, talvez essas crianças saciadas-deprimidas sofram de falta da falta. A quem nada falta, não é dado desejar. E nada é mais triste nesta vida do que não desejar.
No aniversário de trinta anos dos grandes ciclos de conferência promovidos pelo Adauto Novaes, volto ao tema do desejo. Desta vez, articulado a um dos grandes enigmas do século XXI: o do aumento das depressões em um mundo onde que as pessoas são assoladas por objetos, ofertas, imagens, sonhos prontos. A depressão é o desejo saciado.
O SUJEITO E O DESEJO
Em psicanálise, é importante diferenciar o sujeito e o indivíduo. Indivíduo, palavra que remete a não dividido, seria o exato oposto de sujeito. Se nos apresentamos na vida social, perante os outros, como indivíduos – portadores de um nome e de alguns atributos (profissão, gênero, estado civil, idade etc.) que nos diferenciam diante dos outros – isso não significa que sejamos unos. O sujeito, para a psicanálise, é, por definição, dividido: a instância psíquica do inconsciente, que se revelou a Freud através dos lapsos, dos atos falhos, dos sintomas, das fantasias e dos sonhos de seus pacientes, está fora do domínio egoico do indivíduo. A divisão subjetiva faz parte da condição humana – ou, pelo menos, da subjetividade moderna[1].
Em termos gerais, a palavra inconsciente designa o estado de uma representação mental que está fora do alcance da consciência. Mas há uma diferença estrutural entre o que está fora da consciência por alguma circunstância banal – memórias muito antigas, assuntos atuais nos quais não estamos pensando no momento – e o que está fora da consciência por estar recalcado. O inconsciente é formado pelo conjunto das representações recalcadas; Freud denominou pré-consciente o estado das representações das quais nos esquecemos temporariamente (ninguém pensa em tudo ao mesmo tempo o tempo todo), mas que podem vir à mente com pouco esforço. Sem angústia. A angústia sinaliza a iminência do retorno do recalcado.
Acontece que, ainda nos termos da psicanálise freudiana, o desejo é, por definição, inconsciente. Aquilo a que chamamos comumente de desejo – voltado a um objeto, a uma comida de sabor delicioso, a um namorado ou namorada – não tem o mesmo estatuto do desejo na psicanálise. Podemos chamá-los de objetos das nossas fantasias conscientes, das nossas vontades, ambições, carências, gulas. O objeto do desejo é outra coisa. O objeto do desejo está ligado à condição universal da falta – pelo menos no sujeito neurótico, que para a psicanálise é o sujeito “normal” (ou outros seriam o perverso e o psicótico, dos quais não vou tratar aqui).
Ser um sujeito a quem falta completude é o melhor que se pode esperar, do ponto de vista da psicanálise. O filhote do homem e da mulher tem a experiência de completude somente no útero materno, onde de fato o feto e a mãe estão ligados, sem interrupções nem faltas, até o momento do parto. Vir ao mundo é desfazer a unidade com o corpo materno. É claro que essa perda de completude não se revela de imediato à criança. É comum escutarmos, de parentes e amigos, que o bebê recém-nascido parece “muito bonzinho” porque não chora ou chora só quando tem fome. Isso dura alguns dias; é que o bebê sadio demora um pouco para descobrir que nasceu. A experiência de unidade com o corpo da mãe prolonga-se por alguns dias, até que a fome, eventualmente o frio ou outras formas de desconforto comecem a assolar o pequeno corpo que não tem nenhum recurso para se defender ou se satisfazer a não ser – chorar. A partir de agora a criança “calminha” começa a manifestar suas insatisfações de maneira cada vez mais veemente. Pronto: acabou-se a paz dos primeiros dias. Inicia-se, para a mãe ou o cuidador responsável, a longa fase de tentar entender o que falta ao serzinho recém-chegado ao mundo.
Dizem que chorar é bom para fortalecer os pulmões; pode ser. Acrescento que é bom também para fortalecer o embrião de sujeito presente no infans. Embrião de sujeito, sim, uma vez que, para a psicanálise, o sujeito é sempre dividido – grosso modo, entre a consciência e o inconsciente – através de um processo que se dá aos poucos, durante a primeira infância, e se completa depois do atravessamento do complexo de Édipo. É quando a criança perde de vez a ilusão de que um dia voltará a se unir de forma indissolúvel ao corpo materno do qual se separou ao nascer. É uma forma esquemática de se resumir a travessia edípica, mas preserva o essencial: se iniciamos a existência embrionária, e por um longo tempo, em estado de perfeita completude (fase em que os parentes e amigos elogiam o bebê “bonzinho”), há um momento em que a insuficiência se manifesta. As tais cólicas dos três meses podem até acontecer; mas a criança, com ou sem cólicas, há de chorar porque se angustia com sua incompletude. Ela não reconhece, por exemplo, o alarme do aparelho digestivo diante da falta de alimento: apenas grita de desconforto, até que a mãe, ou alguma substituta, venha a lhe oferecer alimento. Em um pequeno ensaio luminoso chamado “Os dois princípios do funcionamento mental” (1911), Freud nos oferece um modelo da formação do aparelho psíquico a partir justamente do intervalo de tempo entre o alarme corporal disparado pela fome (que nos primeiros dias a criança não tem como entender) e a chegada salvadora do seio materno ou da mamadeira.
O esquema freudiano não é difícil de entender. Depois de algumas horas, ou dias, em que o recém-nascido ainda está alimentado pelo líquido amniótico, seu pequeno corpo é assolado por um desconforto desconhecido: a fome. A criança grita, por reflexo; a mãe comparece e alimenta o bebê. Aos poucos, a experiência da fome-choro-leite se inscreve no psiquismo como uma forma rudimentar de linguagem; o grito da criança é sua primeira forma de potência. Faz comparecer a mãe! Traz o leite que anula o terrível desconforto da fome! O reflexo do choro se transforma em linguagem. O bebê já não é tão desamparado como no início: ele dispõe de um recurso que convoca a mãe. Seu choro é também o exercício da pequena potência que traz a mãe de volta.
Mas a fome, ou a falta do leite, não é idêntica ao desejo. As necessidades corporais, assim como os recursos vitais para satisfazê-las, participam do circuito da pulsão. O desejo não se instaura a partir das necessidades corporais, e sim através daquilo que denominamos falta-a-ser. A incompletude do ser. O infans, filhote de homem, não se dá conta de que nasceu logo após ser expulso do corpo materno. O tal “bebê bonzinho” ainda não sabe que “nasceu”. Ele ainda se sente completo, formando uma unidade com o corpo materno. Aos poucos, a ausência da mãe, ou as pequenas demoras da mãe, consolidam no infans a experiência de separação iniciada no parto. Não é apenas de fome que se trata: o que a criança perde, e precisa perder para evoluir como sujeito, é seu lugar de objeto absoluto do desejo materno.
Não é tão difícil quanto parece. Uma mãe “suficientemente boa” (a expressão é de Bruno Bettelheim) é aquela para quem o filho, ao contrário do que rezam as crenças populares, não é o centro do mundo. Ou melhor: se nos primeiros dias ou semanas depois do parto o universo afetivo da mãe gira em torno do bebê, aos poucos outros interesses, ou seus antigos interesses (a começar pelo pai da criança, se ele existir), voltam a ocupar uma parte de seus investimentos libidinais. Às vezes a mãe deixa a criança de lado por alguns minutos por necessidade; mas às vezes deixa porque quer. Porque o amor não é, nem deve ser, absoluto. A mãe quer conversar por um tempinho com um ser humano adulto; quer fazer amor com seu marido, se ele estiver por perto; quer sair na rua; quer ir, pela primeira vez depois de meses, ao cinema… A mulher que se tornou mãe descobre, não sem espanto, que a maternidade não recobriu todos os outros aspectos de sua existência. Sorte do filho: essa é a mãe que vai deixá-lo um pouco em falta. A mãe que vai introduzir em seu incipiente cenário mental a experiência da falta. Falta de quê? Falta-a-ser, diz Lacan. Não é a falta do leite, ou do acalanto, do conforto, do carinho; outros cuidadores carinhosos podem proporcionar isso ao bebê. O que a criança perde – e é necessário que perca – à medida que a mãe se volta aos poucos para outros interesses (excluo aqui o mais dramático dos casos, responsável pela psicose melancólica, o da mãe que não se interessa pela criança), não é nem o amparo materno nem, menos ainda, seu amor. O que a criança perde é seu estatuto de objeto absoluto desse amor. Ou, antes ainda: a condição fusional com o corpo e a psique materna.
Vocês já devem ter adivinhado o quanto essa perda é fundamental para que o infans se transforme em um sujeito.
Em primeiro lugar: sujeito é o oposto de objeto. O bebê deixa de ser o objeto que completa sua mãe (mesmo que continue a ser um objeto amado, por vezes o mais amado de todos) para se transformar, aos poucos, em um ser separado da fusão primordial.
Nós, humanos, somos seres vivos desadaptados da natureza. Já perceberam isso? Um bezerro recém-nascido em poucas horas se ergue nas perninhas bambas e busca as tetas da vaca; o mesmo para todos os outros mamíferos. E a vaca estará lá para isso. É instintivo – ainda que, do ponto de vista de nossa cultura, observemos o instinto do mamífero pela lente do amor.
Mas há uma segunda passagem a ser feita para que o bebê humano se transforme em um sujeito. Não basta que a mãe possibilite à criança a experiência da fome, que aos poucos há de ajudá-lo a descobrir a potência do grito, embrião da linguagem. É importante que a mãe tenha outros objetos de interesse além de seu bebê; e que depois dos primeiros dias, ou semanas, de enamoramento absoluto, ela se volte também para esses outros objetos. Para efeitos de simplificação, chamemos o primeiro desses outros objetos de pai. Pois é: o modelo mais frequente de família pressupõe o casamento por amor entre um homem e uma mulher. Mais dia, menos dia, o pai haverá de rivalizar com “sua majestade, o bebê” pelo amor de sua mulher; ou talvez o encantamento da maternidade aos poucos se frature um pouco (nem tudo são alegrias nesse campo, como muitas leitoras devem saber), e a mãe, recuperada das agruras do parto, volte a sentir desejo por seu homem – esse mesmo desejo, aliás, que fez acontecer a gravidez.
O importante é que, no horizonte da criança, surja um rival. Um objeto que já existia ali, mas que para ela não tinha nenhuma importância até que se apresentou como rival. Alguém capaz de dividir o interesse da mãe; alguém capaz de revelar ao bebê que ele não é “tudo” para ela (perda sofrida essa – tanto que voltamos a buscar esse estatuto, de ser “tudo” para alguém, na paixão amorosa; que dura um tempo limitado e depois, no melhor dos casos, se transforma em amor normal). O pai é o primeiro objeto de ciúme do bebê – nem precisamos evocar a intrusão terrível do novo irmãozinho. É claro que o bebê compete com o pai pelas atenções da mãe. Só que é provável que esse rival assustador, de voz grossa e grandão, ame seu filho também; por que os textos psicanalíticos sobre os ciúmes infantis contemplam tão pouco essa possibilidade? A entrada do pai no universo pulsional e afetivo do bebê não vem apenas lhe roubar o amor da mãe: vem lhe trazer um amor novo, outra forma de amor, outro corpo, outro cheiro, outras demandas pulsionais. O pai brinca, o pai fala com seu rebento, o pai pega a criança quando a mãe já está cansada e não consegue fazê-la dormir (meu pai dançava samba comigo quando eu estava insone; pena que eu não me lembre disso). Assim, o mesmo ser que rouba um pouco as atenções que a mãe dedica ao bebê vem lhe trazer uma nova experiência de conforto, de carinho, de amor. Refiro-me ao que acontece em famílias “suficientemente boas”. Não precisam ser perfeitas. Melhor que não sejam.
Bem, com pai ou sem pai – há mães solteiras, há jovens mães viúvas, há mães divorciadas desde cedo – o fato é que a criança precisa perder um pouco da plenitude inicial para se tornar – o quê? Desejante. Ou, dito de outra maneira: a criança precisa cair de seu lugar de objeto absoluto do desejo do outro (materno) para se tornar – o quê? Sujeito. Sujeito de um desejo. Desejo de quê? Desejo de ser aquilo que deixou de ser.
Não é paradoxal nossa condição humana? Precisamos ter sido o objeto privilegiado do desejo do outro, mas só para cair desse lugar e conservar a marca nostálgica dessa falta-a-ser; aí se inaugura a fonte de nossa potência subjetiva, que é o desejo de voltar a ser o que perdemos. Só que nunca mais seremos completos: a perfeição só retorna na morte (a um morto não falta mais nada). Seremos, isto sim, desejantes de completude. E quanta coisa os humanos fizeram movidos por esse desejo. Potes de barro, campos floridos, catedrais, sinfonias, sambas, alta-costura, tricô, invenções tecnológicas, desenhos, ciência, guerras, cidades inteiras. O desejo é nosso motor; mas desejo de quê? Ainda que nas sociedades industriais contemporâneas se fale muito em objeto do desejo (na verdade, se trata apenas de objetos de consumo), freudianamente, o objeto do desejo não existe. Ele perdeu-se – para sempre! – quando o bebê deixou de ser o objeto mais importante do desejo de sua mãe. Ainda bem. É melhor ser alegre que ser triste e é melhor ser sujeito do que objeto.
SACIEDADE E DEPRESSÃO
O final do século XX e o início do xxi foram marcados por um aumento quase epidêmico das depressões. Deixo de fora de meu argumento o aspecto iatrogênico desse fato: muitos e muitos casos de diagnósticos de depressão ocorrem por efeito do empenho da indústria farmacêutica em vender antidepressivos. Nesse início do século XXI, a indústria farmacêutica vem crescendo no contrafluxo do capitalismo em crise. Quanto mais crise, desemprego, desesperança, utopias fracassadas, quanto mais figuras como Trump e Temer vêm revelar que as últimas utopias terminaram como farsas, mais poderosos se tornam os fabricantes de medicamentos; entre estes, os antidepressivos figuram na linha de frente das vendas (e dos lucros).
É estranho e também decepcionante pensar que a tal da sociedade de consumo foi a resposta cínica e bem-sucedida do “mercado” aos anseios dos jovens que se manifestaram por mais prazer e liberdade na Europa e nos Estados Unidos no final da década de 1960 (e também na América Latina, mas aqui a luta por liberdade nos impunha combater ditaduras sanguinárias). Essa decepção se apresentou a mim de forma quase anedótica. Em 1980, quando ainda lutávamos pelo fim da ditadura (por um lado) e pelo amor livre e a vida comunitária (por outro), eu me deparei com um outdoor gigante colocado, por acaso ou ironia, bem na entrada da usp. A clássica imagem do jovem com seu violão que saía de casa para descobrir o mundo de carona em um vagão de trem de carga era acompanhada do slogan da US Top: Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada. Pronto: o anseio de minha geração havia se transformado em valor agregado de uma mercadoria. De muitas mercadorias.
Hoje a “juventude liberada” é uma imagem caricata usada em propagandas de cerveja, roupas, carros, motos, chocolates, cartões de crédito e o que mais se possa imaginar. A falta-a-ser, essa falta que move o sujeito a desejar e desejar enquanto viver, nos é apresentada como atestado de nossa insuficiência: nada que um cartão de crédito não possa resolver.
Muita coisa melhorou na vida dos jovens e adolescentes. A começar pela liberdade sexual e pela menor submissão às autoridades de tradição, família e propriedade. Mas, para além da ganância da indústria farmacêutica que “vende” diagnósticos de depressão para vender remédios, me parece evidente a relação entre o aumento das depressões e o assédio permanente de imagens e de objetos que se oferecem como capazes de saciar nosso desejo.
Se eles são capazes de nos saciar? Claro que não; o desejo não é desejo de coisas, é desejo de ser. Mas a sedução dos objetos confunde o sujeito, desorienta o longo caminho humano de busca por (alguma) satisfação. Buscamos e buscamos e buscamos no “mercado” objetos que entulham nossas vidas, mas não têm poder de criar um sentido para elas. Enchemos nossos filhos e netos de objetos atraentes que eles abandonam, entediados, porque já não sabem brincar. Para brincar é necessário fantasiar, para fantasiar é necessário ansiar por alguma coisa no mínimo inatingível – quando não, impossível. Nossas crianças não sabem brincar porque os brinquedos tecnológicos brincam sozinhos; no máximo, treinam o arco reflexo de estímulo-resposta nos jogos eletrônicos que exigem cada vez mais velocidade de parte do jogador.
Ou não: confiemos na potência da infância. As crianças entediadas hão de inventar travessuras, como os personagens de Monteiro Lobato nas tardes de chuva, no Sítio do Picapau Amarelo. As crianças de agenda cheia (escola, inglês, natação, televisão) hão de buscar nas brechas algum espaço para aquela maluca que mora no sótão, chamada imaginação. O desejo nunca se sacia por muito tempo com o mesmo objeto. Em 2016, os jovens secundaristas que ocuparam as escolas públicas que o governador de São Paulo queria desativar para economizar dinheiro do Estado (por que sempre se pensa em economizar em cultura e educação para salvar o capitalismo de suas crises?), demonstraram uma potência combativa e também criativa que parecia perdida.
A depressão pode ser efeito do desejo saciado, mas o desejo nunca fica saciado o tempo todo. É possível que o mercado não dê conta da imensidão dessa demanda.
Notas
- Discuto essa questão em meu livro Sobre ética e psicanálise, São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ↑