2007

A desmemória e o recalque do crime na política brasileira

por Luiz Felipe de Alencastro

Resumo

Como lidar com a memória e o esquecimento na política?

Desde a Antiguidade, tal tema foi discutido entre filósofos e historiadores. É fato que grandes tragédias, quando atingem comunidade ou países, podem provocar um bloqueio traumático da memória coletiva.

Na história colonial e nacional brasileira, três dramas geraram processos de esquecimentos e lembranças: o Sebastianismo, a escravidão e a ditadura militar.

A derrota portuguesa na batalha de Alcacér-Quibir gerou nos lusitanos um esquecimento provisório e um posterior trabalho duplo de memória. De um lado, a reconstrução histórica feita por Jerônimo de Mendonça, ex-combatente em Alcácer-Quibir, no livro Jornada de África. Por outro lado, um movimento messiânico, o Sebastianismo, segundo o qual d. Sebastião não teria morrido na batalha e voltaria para inaugurar uma nova era da cristandade.

Outra drama que gerou um profundo trauma no Brasil foi a escravidão. Convém sublinhar a especificidade do escravismo brasileiro. É certo que todos os países americanos tiveram em seu solo escravos africanos. Mas nenhuma parte do Novo Mundo praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Na circunstância, o Império do Brasil se apresentava como a única nação independente que praticava o tráfico negreiro. Alvo da pressão diplomática e naval britânica, o comércio oceânico de africanos passou a ser paulatinamente proscrito por uma rede de tratados internacionais que o governo de Londres tecia no Atlântico. Apesar de tais tratados, o tráfico de escravos continuou por muito tempo, encoberto pela sociedade e pelas autoridades brasileiras.

Moralmente ilegítima, a escravidão do Império banhava-se na ilegalidade. A ocultação desse crime, a desmemória de que ele é objeto no ensino da história brasileira, o desconhecimento em que ele ainda permanece, mesmo nas fileiras do Movimento Negro, merecem reflexão.

E na história recente brasileira, há o drama da ditadura militar (1964-1985) sobre o qual ainda perduram muitas ambiguidades e esquecimentos.


Desde a antiguidade, o tema da memória e do esquecimento da política tem sido objeto de reflexão entre filósofos e historiadores. Na célebre introdução de A Guerra do Peloponeso, texto fundador da história política, Tucídides (ca 460 a. C. – ca 395 a. C.) ensina que a seletividade e as falhas da memória impõem a crítica rigorosa das fontes como método essencial do historiador.[1]

Muitos autores conferiram aos historiadores uma missão desmistificadora na reconstituição do passado e no registro do presente. Num ataque frontal ao imperador Bonaparte, Chateaubriand formula, em 1807, uma interpretação heroica do papel do historiador: “Quando, no silêncio da abjeção, só se ouve o som da corrente do escravo e da voz do delator; quando tudo treme diante do tirano e expor-se a seus favores é tão perigoso quanto incorrer em sua desgraça, aparece o historiador, exercendo a vingança dos povos.”[2] Na sequência, ele menciona o exemplo de Tácito (55 – 120), que “desmascara” nos seus Anais a tirania do imperador Nero. Para Chateaubriand, ao agir como guardião objetivo da memória o historiador afiança a perenidade da consciência humana.

Mais próximo de nós, o filósofo Paul Ricoeur (1913 – 2005) – autor de uma obra capital pouco traduzida em português – reflete sobre as formas de alheamento e de memória que envolvem os indivíduos, as sociedades e o trabalho do historiador no contexto das democracias contemporâneas.[3]

Como é sabido, as grandes tragédias que atingem e dividem os países e as comunidades provocam por vezes um bloqueio traumático, um recalque, da memória coletiva. Na longa história dos povos do espaço colonial e nacional brasileiro, perfilam-se três dramas de diferentes épocas que geraram processos emblemáticos de esquecimento e de lembrança: o Sebastianismo, a escravidão e a ditadura militar.

Alcácer-Quibir e o Sebastianismo

No século do descobrimento do Brasil, a derrota em Alcácer­Quibir (1578) desbaratou o exército português no Marrocos e levou o reino a um impasse. Deixando nas mãos dos mouros cerca de dois mil cativos, entres os quais muitos membros da nobreza lusitana, a batalha redundou ainda na morte do rei d. Sebastião e na subordinação da coroa de Portugal à Espanha, entre 1580 e 1640. A comoção em Portugal foi intensa e durável. Como assinalou Lucette Valensi, somente em 1607 – uma geração após a catástrofe – apareceu em Portugal o primeiro livro sobre o tema, Jornada de África. Escrito por Jerônimo de Mendonça, ex-combatente em Alcácer-Quibir, o livro rebatia versões da batalha propagadas por autores não-portugueses e elaborava uma primeira reflexão sobre a perda do rei e a necessidade do luto nacional.[4]

No meio-tempo, tomou corpo o movimento messiânico do “Sebastianismo”, segundo o qual d. Sebastião não teria morrido e voltaria para inaugurar uma nova era na cristandade. Como se sabe, a crença ganhou muitos adeptos entre a elite e o povo na metrópole, difundindo-se também na América portuguesa. No século XIXainda ocorrem no Brasil registros dramáticos ou irônicos do Sebastianismo, o qual reaparece mais tarde, de maneira trágica, na guerra de Canudos.[5]

Desse modo, a calamidade de Alcácer-Quibir deu lugar a um duplo trabalho de memória. De um lado, a reconstrução histórica de um letrado, Jerônimo de Mendonça, que narra os eventos do passado imediato na perspectiva da política portuguesa e europeia. De outro lado, ocorre uma apropriação do drama, sob a forma de mito messiânico, pela cultura nacional e popular portuguesa e luso-brasileira.

O escravismo e o Estado nacional

Operando no cerne da organização social durante quase quatro séculos, a escravidão originou um trauma profundo no Brasil. Na verdade, a percepção do drama histórico engendra o pelo tráfico negreiro e o escravismo é crucial, não só para os afro-descendentes – que em breve serão maioria na população brasileira -, mas também para entender as clivagens sociais e a violência do Brasil atual. Para avaliar a dimensão do fenômeno e as sequelas deixadas na sociedade, convém sublinhar a especificidade do escravismo brasileiro.

Decerto, todos os países americanos tiveram em seu solo escravos africanos. Mas nenhuma parte do Novo Mundo praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados para as Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550- 1856). O outro grande país escravista, os Estados Unidos, praticou o tráfico negreiro por pouco mais de um século (entre 1675 e 1808) e recebeu uma proporção muito menor, perto de 560 mil indivíduos deportados, ou seja, 5,5% do total. No final das contas, o Brasil aparece como o agregado político americano que captou o maior número de africanos e praticou durante mais tempo a escravidão.

Notem-se ainda as características do escravismo entranhado, não em territórios coloniais, mas em genuínos Estados nacionais, como Estados Unidos e Brasil. Efetivamente, o caráter local, nacional, das normas e das leis levava à refundação da escravidão no quadro do direito moderno e da contemporaneidade. Desde logo, a afirmação do escravismo como fundamento da soberania nacional define um campo histórico específico nos Estados Unidos e no Brasil. Não obstante, existem diferenças de monta entre os dois países. Quando o tráfico negreiro para os Estados Unidos foi abolido em 1808, a escravidão já havia sido eliminada em oito Estados americanos e só perdurava em nove. Daí em diante, o sistema só subsistiu nos Estados sulistas como uma prerrogativa regional duramente combatida pelos outros Estados da federação.

No Brasil, ao contrário, a escravidão se estendia sobre a totalidade do território, abarcando as diferentes camadas sociais e amarrando a opinião pública à defesa do sistema. Na capital do Império viviam, em 1849, 166 mil habitantes, dos quais 110 mil (41%) eram escravos, transformando o Rio de Janeiro na maior concentração urbana de cativos das Américas. Esse largo consenso nacional sobre a propriedade escrava compôs o fundamento histórico do escravismo brasileiro.

O grande complô dos sequestradores

Na circunstância, o Império do Brasil se apresentava também como a única nação independente que praticava o tráfico negreiro. Alvo da pressão diplomática e naval britânica, o comércio oceânico de africanos passou a ser paulatinamente proscrito por uma rede de tratados internacionais que o governo de Londres tecia no Atlântico.

Beatriz G. Mamigonian, a quem deve ser creditado um dos primeiros estudos aprofundados sobre o assunto, sublinha na sua importante tese que o contencioso relativo à escravização ilegal de africanos começou em 1818. De fato, o tratado anglo-português proibindo o tráfico no norte do equador, completado naquele ano, determinava que os africanos oriundos daquelas paragens seriam considerados livres ao desembarcar no Brasi l.[6] Em seguida, com a lei de 7 de novembro de 1831, a totalidade do comércio negreiro é proibida no Brasil.

No entanto, 710 mil africanos são trazidos acorrentados para o Brasil entre 1831 e 1856, num circuito de tráfico clandestino caracterizado como crime de pirataria pela legislação do Império e pelos tratados anglo-brasileiros. Do mesmo modo que o texto legal de 1818, a lei de 1831 assegurava plena liberdade aos africanos introduzidos no país após essa data. Em consequência, o artigo 179 do Código Penal considerava os detentores desses indivíduos como sequestradores de pessoas livres mantidas em cárcere privado.

Mais tarde, entre 1850 e 1854, o governo, na prática, anistiou os proprietários culpados do crime de sequestro.[7] Acessoriamente, observe-se que a diplomacia britânica acomodou-se com essa situação, embora continuasse combatendo vigorosamente o tráfico negreiro no Atlântico.[8]

De golpe, ocultou-se o fato que os 50 mil africanos do norte do equador desembarcados entre 1818 e 1831, somados aos 710 mil vindos de várias partes da África entre 1831 e 1856 – e a totalidade de seus descendentes -, continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888.[9]

Sob o efeito da pressão britânica, dos tratados anglo-brasileiros e da extensão do direito positivo elaborado pelos legisladores e magistrados brasileiros, ocorre uma judiciarização do estatuto do escravo. Deportado da África ou nascido no solo brasileiro, o cativo incorporava­ se ao campo das leis civis, comerciais e penais do país. Tais leis eram debatidas e redigidas no Parlamento, nas assembleias provinciais e nas câmaras municipais. É também nos tribunais brasileiros que se definia a jurisprudência na matéria. Nas faculdades de direito de São Paulo e de Recife, juristas e futuros advogados, cuja vida e profissão se imiscuíam no cotidiano dos escravos, estudavam os efeitos desarmônicos da penetração do direito positivo na sociedade escravista.

Na realidade, existe uma densa imbricação entre o escravismo e o Direito. O escravo constitui uma forma de propriedade privada cuja posse e gestão requer o aval reiterativo dos poderes públicos, porquanto o poder dos senhores sobre os escravos representa um elemento constitutivo do pacto social. Desse modo, embora fundado na coerção, o escravismo depende de uma legitimidade que decorre da legalidade.

Com o adensamento da campanha abolicionista, magistrados e advogados e militantes exploram as brechas e as contradições das leis. Invocando a plena vigência da lei de 1831, eles conseguem libertar algumas centenas de africanos espuriamente escravizados. Foi, porém, em vão, que Luiz Gama, José do Patrocínio, A. J. Macedo Soares e outros verberaram o sequestro de outras centenas de milhares de africanos e de seus descendentes mantidos em cativeiro.[10]

Sabe-se que vários ilícitos serviram para dissimular os sequestros. Pesquisas em curso de Sidney Chaloub mostram que Eusébio de Queiroz orientou seus subordinados a “legalizar” a escravização desses indivíduos livres desde a época em que ocupava a Intendência Geral de Polícia da Corte, entre 1833 e 1844.[11] Mais tarde, em 1869, num artigo no jornal abolicionista Radical Paulistano, que acabara de fundar com Rui Barbosa, Luiz Gama denuncia o “crocodilismo” (a hipocrisia) de d. Pedro II e “seu imoral governo” por acobertarem os infratores das leis de 1818 e 1831. No mesmo pique, ele ataca os padres e os vigários que, a serviço dos senhores, batizavam tais africanos sob o título de “escravos”, fornecendo assim a documentação que dava foros de legalidade ao sequestro.[12]

Outro passo importante para a ocultação dos crimes ocorreu a partir de 1871, quando foi votada a Lei do Ventre Livre, determinando a “matrícula”, o registro oficial, dos escravos existentes no Império. Nessa altura, as autoridades permitiram que os senhores inscrevessem os africanos das leis de 1818 e 1831 – e seus descendentes – como se fossem escravos. O mesmo se repetiu em 1885, no novo registro geral consecutivo à Lei dos Sexagenários. No órgão abolicionista Gazeta da Tarde, José do Patrocínio denuncia as ordens explícitas emitidas em favor da fraude pelo então ministro da Agricultura, Antônio Prado (1885-1887).[13]

Em 1880, quando a campanha abolicionista se radicaliza com a fundação da Sociedade Abolicionista Brasileira, José do Patrocínio, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, põe em pauta a indenização das vítimas da violação da lei de 1831. Detalhando seu cálculo com base nas estatísticas disponíveis, ele toma o número de africanos importados entre 1831 e 1856, faz uma estimativa sobre o total de seus descendentes, contabiliza os anos e dias por eles trabalhados e os multiplica pela soma de 200 réis, valor de um salário diário.[14]

Pela primeira vez no Brasil, um ato indenizatório dos crimes da pirataria negreira é reivindicado e quantificado. Atente-se para o fato de que não se procurava aqui ressarcir ou resgatar os verdadeiros escravos ainda existentes no país.[15] Buscava-se, isso sim, a indenização líquida e certa devida a indivíduos livres, reduzidos à escravidão e sequestrados por seus alegados proprietários com a cumplicidade do governo e da justiça imperial.

O tema subjaz aos debates. Em O aboliciosmo (1882), Joaquim Nabuco escreve com todas as letras: “Durante cinquenta anos a grande maioria da propriedade escrava foi possuída ilegalmente. Nada seria mais difícil aos senhores, tomados coletivamente, do que justificar perante um tribunal escrupuloso a legalidade daquela propriedade, tomada também em massa.”[16]

Tal “tribunal escrupuloso” jamais instaurou-se nas cortes judiciárias, nem tampouco na historiografia do país. Tirante o registro biográfico consagrado às ações individuais impetradas por militantes, advogados e magistrados abolicionistas, o assunto permanece encoberto na época e será praticamente ignorado pelas gerações vindouras.

Resta que esse crime coletivo guarda um significado dramático: contra a lei, a maioria dos africanos cativados no Brasil a partir de 1818 – e todos os seus descendentes – foi mantida na escravidão até 1888. Assim, o recenseamento de 1872, o primeiro a ser feito em todo o Império, registrou uma população de 9.923.000 habitantes, entre os quais havia 1.509.000 escravos (15,2%). Parte deles constituía-se de escravos na forma da lei: a progenitura de antigos cativos, de africanos vindos do Norte do equador antes de 1818, de indivíduos deportados da África subequatorial antes de 1831 e de seus descendentes. Todos os outros, sobreviventes ou filhos e netos do contingente de 760 mil africanos ilegalmente desembarcados, permaneciam submetidos ao cativeiro em violação da lei.

Insisto: boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império banhava-se na ilegalidade. A ocultação desse crime, a desmemória de que ele é objeto no ensino da história brasileira, o desconhecimento em que ele ainda permanece, mesmo nas fileiras do Movimento Negro, merecem reflexão.

Durante o Império, o país esteve entregue a um sentimento complexo. Seria excessivo pretender que reinava um sentimento de culpa. Mas havia a certeza de que se praticava uma fraude coletiva. Pairava a insegurança gerada por um título de propriedade que podia ser questionado por um desafeto, um herdeiro insatisfeito, um concorrente, um advogado ou magistrado abolicionista agindo em nome das vítimas na ocasião de uma venda, de um empréstimo hipotecário, de uma execução testamentária. Para que não estourassem rebeliões de gente injustamente escravizada e de escravos, para que a insegurança individual de cada senhor, de cada sequestrador, não se transformasse em insegurança coletiva dos proprietários, de seus associados e credores – abalando toda a sociedade-, era preciso que vigorasse um geral conluio, um pacto implícito em favor da violação da lei. Um pacto fundado nos “interesses coletivos da sociedade”, como sentenciou, em 1854, o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo. Firmava-se, duradouramente, o princípio da impunidade e do casuísmo da lei.

No seu livro Um mestre na periferia do capitalismo, Roberto Schwarz, estudando a obra de Machado de Assis, já havia indicado o efeito deletério da “anistia” ao tráfico negreiro clandestino em 1850.[17] Seguindo sua análise, penso que boa parte da história, da cultura e da literatura brasileira do século XIX deveria ser revista sob o prisma desse “grande complô dos sequestradores”.

Ditadura de sempre?

No período mais imediato de nossa história, há o drama da ditadura (1964-1985), sobre o qual perduram muitas ambiguidades até os dias de hoje. Em 2004, foram organizados vários seminários sobre os 40 anos do golpe de 1964. Em particular, no mês de novembro desse mesmo ano, teve lugar um seminário intitulado “1954-1964-2004: O golpe, memória e atualidade”, organizado pela USP e pela Unicamp, no qual se buscou fazer um balanço dos estudos a respeito do tema.[18]

Em primeiro lugar, é preciso sublinhar, como afirmou um dos participantes, que comemorar não é apenas celebrar fatos pregressos. Comemorar – memorar em comum, coletivamente – é também evocar um passado envolvido no esquecimento por obra do tempo ou trauma da memória. Nesse sentido, comemorar os 40 anos do golpe de 1964 significa pensar o passado para liberar o futuro dos fantasmas que ainda pairam no presente.

As discussões do seminário, como também os comentários trazidos de congressos análogos realizados ao longo de 2004 em outras cidades do país, demonstraram que os estudos sobre a ditadura brasileira existem, doravante, como uma especialidade acadêmica de corpo inteiro. Além de muitas dezenas de artigos, foi publicada mais de uma centena de livros dedicados em parte ou inteiramente ao tema. Em alguns momentos, os debates do seminário foram atravessados por movimentos contraditórios.

Por um lado, a presença de pesquisadores de gerações diferentes, incluindo intelectuais e militantes que viveram a tentativa de golpe de 1954, os eventos de 1964, e outros ainda adolescentes no final da ditadura, imprimiu um distanciamento crítico ao rumo das discussões. Por outro lado, a participação ativa na atual política nacional de alguns responsáveis diretos pela instauração do regime autoritário e, mais concretamente, pelo Ato Institucional nº 5, de 1968, reintroduzia o tema do esquecimento na política brasileira.

Num livro importante sobre o tema geral que nos ocupa, Enzo Traverso cita logo no início a frase de Antonio Gramsci: “A história é sempre contemporânea, ou seja, ela é sempre política.”[19] De fato, as contradições mencionadas acima se tornaram mais agudas em julho e agosto de 2006, em plena campanha eleitoral, quando eu redigia estas linhas para serem lidas nas conferências do ciclo Esquecimento e Memória, agora publicadas neste livro.

Na sequência, as ideias trocadas com pessoas presentes nas palestras no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Curitiba e em Belo Horizonte e a atualidade política ligada à formação do novo governo Lula levaram-me a escrever o artigo abaixo, publicado na Folha de S. Paulo, em 29/12/2006:

“Memórias do século passado

No noticiário sobre o novo governo, um nome aparece frequentemente: Delfim Netto. Ungido por uma consagradora reeleição e por índices de aprovação jamais igualados, Lula deve pensar que pode nomear quem quiser em qualquer lugar. Assim, com a admiração unânime dos povos e aplauso geral da nação, Delfim Netto poderá ser novamente alçado a um ministério. Desta vez num governo presidido pelo PT.

A eventualidade desta nomeação suscitou alguns sarcasmos e perplexidades. Fernando Henrique, após classificar Delfim Netto de ‘algoz da ditadura’, ironizou a nova amizade entre o ex-ministro e Lula. Mas suas palavras fariam mais sentido se ele próprio não tivesse nomeado Pratini de Moraes, – também integrante do governo do sinistro ditador Médici – no seu segundo mandato na presidência, e não tivesse introduzido Jarbas Passarinho, também estadista do AI-5, no conselho político de sua campanha de reeleição, em 1998.

Quanto às perplexidades externadas por uns poucos incautos, a resposta veio do senador Eduardo Suplicy. Declarando que a presença de Delfim Netto no próximo governo é plausível e até ‘positíva’, Suplicy completou, num discurso recente no Senado: ‘Certamente’, Antônio Delfim Netto tem uma visão crítica de tudo aquilo que se passou ao longo dos anos da ditadura militar. O senador Suplicy é sabidamente um homem de boa-fé. Aliás, o advérbio ‘certamente’ introduz a noção de probabilidade, mas não de certeza, condicionando sua frase.

A prudência, de fato, se impõe. Na circunstância, não se conhece declaração pública de Antônio Delfim Netto que sustente semelhante ‘visão crítica’. Não há registro de alguma divulgação em que o ex-ministro tenha emitido juízo negativo sobre os dois monstrengos que ajudou convictamente a parir: o Ato Institucional nº 5 e a Oban. Muito pelo contrário. Em várias ocasiões, o ex-ministro tem reiterado sua defesa do arbítrio da ditadura. Num depoimento incluído nos volumes sobre o golpe de 1964 editados em 2003 pela Biblioteca do Exército, o ex-ministro exprime sua interpretação autoritária sobre nossa história recente, tratando com menoscabo a oposição à ditadura.

Na sua recente campanha fracassada a deputado federal pelo PMDB – o partido de Ulysses Guimarães -, Delfim Netto fez passear, pelo bairro paulistano dos Jardins, ciclistas arvorando seu indefectível slogan: ‘Delfim, eu era feliz e não sabia!’ Na altura em que a direita brasileira punha a mão no peito e bradava compungida que o fim não justifica os meios, Delfim Neto difundia seu slogan anti-republicano, anticonstitucional, fazendo apologia da ditadura e do AI-5. Mais uma vez se verifica o adágio de Oscar Wilde: ‘quem fala a verdade é sempre é descoberto!’

Qual o motivo para alardear agora um slogan grotesco e meio anacrônico? A fidelidade ao passado e às campanhas eleitorais conduzidas desde 1986 sob o mesmíssimo lema, que pareceu nunca incomodar ninguém? Talvez. Nesta hipótese, o slogan teria o mesmo fundamento intelectual que o tom frio e irônico usado pelo ex-ministro para narrar episódios escabrosos da ditadura, como vem publicado no livro A ditadura escancarada, de Elio Gaspari.

Tais juízos sobre a ditadura, que hoje se nos afiguram cínicos, poderão, com a benevolência que o tempo reserva aos homens públicos, compor a imagem de um personagem cético sobre seus contemporâneos. Haverá então quem se habilite a escrever uma biografia menos severa sobre sr. Delfim Netto. Resta lidar com presente. Para o interessado, fato de não participar do próximo governo não será de grande incômodo. Delfim Netto continuará desfrutando seu prestígio de comensal do Alvorada, de intérprete da economia brasileira e de colunista prolífico e muitas vezes pertinente que discorre sobre os destinos do capitalismo e do mundo.

Para nós – certamente uma pequena minoria-, o eventual ascenso do sr. Delfim Netto ao governo de Lula configuraria uma flagrante traição política. Seria um acinte para uma parte dos que combateram a ditadura e ajudaram PT a nascer e a crescer. Seria um desrespeito aos pais, aos irmãos e aos filhos daqueles que tiveram suas vidas e seus cadáveres roubados pela tirania do AI-5 e da Oban. Desta falta política e moral, nenhuma reeleição, nenhum índice de aprovação poderá jamais salvar governo Lula.”

No dia seguinte, no Painel dos Leitores do mesmo jornal, foi publicado o seguinte comentário:

Século passado

“O título do artigo de ontem do professor Luiz Felipe de Alencastro já diz tudo: ‘Memórias do século passado’.

Século passado, em história, é pouca coisa; em política, soa como era geológica. A crítica à possibilidade de Delfim Netto participar do novo governo Lula transpõe para presente um cenário do passado. As condições concretas postas hoje são muito diferentes daquelas, e Delfim Netto tem dado mostras cabais em seus textos de que tem acompanhado as mudanças globais, que não parece ser o caso do professor, ainda preso na discussão do lamentável AI-5. Como o próprio articulista reconhece, ele faz parte de uma minoria. Ainda bem! A grande maioria está atenta aos indicadores sociais e econômicos, que, ainda colocando o Brasil em situação desagradável no tocante aos sociais, têm mostrado a melhoria do nível de vida da população de forma progressiva e sustentável. Todo homem público deve ser avaliado pelo conjunto de sua obra, e não apenas por recortes parciais. Dessa forma, se Delfim Netto for para algum ministério do governo Lula, o será em outra época daquela mencionada, de outra forma. Terá toda a imprensa e a opinião pública a avaliá-lo, e não apenas uma minoria. Penso que seria uma boa oporstunidade para todos.” Assinado: Enilson Simões de Moura – Alemão -, presidente da Social Democracia Sindical – SDS (São Paulo, SP).

Penso que meu texto e o comentário que o acompanha ilustram perfeitamente pontos de vista diferentes sobre a maneira de lidar com a memória e o esquecimento na atual política brasileira.

Notas

  1. Thucydide, La Guerre du Péloponnese. trad. e notas Denis Roussel, prefácio Pierre Vidal­ Naquet, Paris, Gallimard, 2000, Livro I, 20, 21, 22, pp. 47-48. 
  2. François-René de Chateaubriand, Mélanges littéraires. Paris, Garnier, 1861, reprodução eletrônica Bibliothèque Nationale de France – Gallica, 1999. 
  3. Paul Ricoeur, “Entre la mémoire et l’histoire”, Transit – Europäische Revue, nº 22, 2002; ver sobretudo seus importantes livros Temps et récit, tomo I; L’intrigue et le récit historique, tomo II ; La configuration du temps dans le récit de fiction, tomo III; Le temps raconté. Paris, Seuil, 1983-1985; e ainda La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris, Le Seuil, 2000. 
  4. Jerónimo de Mendonça, Jornada de África (1607), Lisboa, 1904, 2 vols.; Lucette Valensi, Fables de la mémoire. La glorieuse bataille des trois rois. Paris, Le Seuil, 1992. Mendonça refuta, em particular, o livro de Girolamo Franchi Conestaggio, Dell’Unione dei Portogallo alla Carona di Castiglia. Genova, 1585, narrando a batalha de Alcácer-Quibir e traduzido em várias línguas na época. 
  5. Sobre o Sebastianismo em Portugal e no Brasil, Maria Isaura Pereira de Queiroz, “D. Sebastião no Brasil: o imaginário em movimentos messiânicos nacionais”, Revista da USP, São Paulo, nº 20, pp. 28-41, 1994; Jacqueline Hermann, No reino do desejado: a construção do Sebastianismo em Portugal, séculos XVI e XVII. São Paulo, Companhia das Letras, 1998; André Scoville, “O desejado e o rejeitado: o Sebastianismo que Charles Expilly encontrou por aqui”, Revista Letras, Curitiba, vol. 68, pp. 115-128, 2006. 
  6. Beatriz Gallotti Mamigonian, To be a Liberated African in Brazil: Labour and Citizenship in the Nineteenth Century; tese de doutorado em História, University of Waterloo, Waterloo, Ontario, Canadá, 2002, pp. 23-24, 56-65, 234-235, 258-269, passim; id., “O Direito de ser africano livre: os escravos e as interpretações da Lei de 1831”, in Silvia H. Lara; Joseli Mendonça. (org.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social, Campinas, Editora da Unicamp, 2006, pp. 129-160; Robert E. Conrad, Os últimos anos da escravatura no Brasil. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978, pp. 54-62; Richard Graham, Britain and the Onset of Modernization in Brazil, 1850-1914. Cambridge, U.K., Cambridge University Press, 1976. 
  7. Discurso do conselheiro Eusébio de Queiroz Coutinho em 16/7/1852, A. Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil – Ensaio histórico, jurídico, social (1867). Petrópolis, RJ, Vozes, 1976, 2 vols., v. 1, pp. 201-222. Numa mensagem confidencial ao presidente da província de São Paulo, em 1854, Nabuco de Araújo, ministro da Justiça, invoca “os interesses coletivos da sociedade”, para não aplicar a lei de 1831, que previa a liberdade dos africanos introduzidos após essa data, Joaquim Nabuco, Um estadista do Império (1897-1899). Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, 2 vols., v. 1, p. 229, nº 6. 
  8. O assunto ficou em pauta nos anos 1850, mais focado nos “africanos livres”, e voltou à tona durante a Questão Christie, que levou à ruptura das relações anglo-brasileiras entre 1863 e 1865. Contudo, o motivo principal do conflito foi a pilhagem de um naufrágio britânico e a prisão de oficiais ingleses no Brasil. Resolvidas tais pendengas, o governo de Londres não insistiu mais sobre o estatuto dos africanos desembarcados após 1831; Richard Graham, “Os fundamentos da ruptura de relações diplomáticas entre o Brasil e a Grã-Bretanha em 1863: “A Questão Christie”. Revista de História, vol. 49, pp. 117-38, 1962; e vol. 50, pp. 379-402, 1962. Robert Conrad, “Neither slave nor free: the emancipados of Brazil 1816-1668, TheHUpanic American Hutorica/ Review, v. 53 (1), pp. 50-70, 1973. 
  9. Beatriz Gallotti Mamigonian, comunicação no seminário do Centre d’Études du Brésil et de l’Atlantique Sud, Université de Paris IV Sorbonne, 21/11/2006, id., To be a Liberated African…, p. 258; David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade, Oxford, U.K., Oxford University Press, 1989, appendix A, pp. 234-244. 
  10. Lenine Nequete, Escravos e magistrados no Segundo Reinado. Brasília, DF, Fundação Petrônio Portela, 1988. Obviamente, não se trata aqui dos chamados “africanos livres”, tomados de negreiros em alto-mar pela Royal Navy e mantidos sob custódia do governo brasileiro, que os utilizava abusivamente nas repartições públicas ou os consignava a particulares. 
  11. Comunicação verbal de Sidney Chalhoub, do departamento de História da Unicamp, Campinas, São Paulo. 
  12. No mesmo ano de 1869, Luiz Gama renova suas acusações no jornal Correio Paulistano; entre outras iniciativas, em 1880, ele publica um ensaio juridicamente fundamentado em A Província de São Paulo sobre “A questão jurídica”: a ilegalidade da escravização dos africanos introduzidos após a lei de 1831 e de seus descendentes, Lígia Fonseca Ferreira, Luiz Gama (1830-1882): Étude sur la vie et l’oeuvre d’un noir citoyen, poête et militant de la cause antiesclavagiste au Brésil, thèse de doctorat d’Études du Monde Lusophone, U.F.R. Études Ibériques, Université de Paris III Sorbonne Nouvelle, 2001, vol. III, Annexe I, pp. 735-751, 757-771. Utilizei esse doutorado e as informações dadas pela autora à banca de tese, da qual participei. 
  13. José do Patrocínio, A campanha abolicioniAta. prefácio José Murilo de Carvalho, notas Marcos Venicio T. Ribeiro, Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca Nacional, 1996, p. 92. 
  14. Ibidem, pp. 8-10. 
  15. Sobre o debate atual a respeito da indenização dos descendentes dos escravos nos Estados Unidos, Charles P. Henry, “The politics of racial reparations”, Jounal of Black Studies, (2) 34, pp. 131-152, 2003. 
  16. Um dos capítulos do livro, intitulado “A ilegalidade da escravidão”, trata desse tema, Joaquim Nabuco, O abolicionismo (1883). Petrópolis, RJ, ed. Vozes, 1977, pp. 115-120, 189. Quinze anos depois, confirmando a importância primordial do tráfico de africanos – e da reprodução desterritorializada da produção escravista -, Nabuco afirma que foi mais fácil abolir a escravidão em 1888 do que fazer cumprir a lei de 1831, id., Um estadista do Império (1897- 1899). Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, 2 vols., v. 1, p. 228. 
  17. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo, Duas Cidades, 1990, pp. 37,114-115. 
  18. Seminário organizado por Maria Aparecida de Aquino, Marcelo S. Ridenti e Sérgio Adorno. 
  19. Enzo Traverso, Le passé: mode d’emploi. Histoire, mémoire, politique. Paris, La Fabrique, 2005. O autor discute, entre outras, as obras de Paul Ricoeur e Walter Benjamin.Categorias: política, história, mutações, tempoTags: memória, esquecimento, Chateaubriand, historiador, recalque, sebastianismo, escravidão, ditadura military, Brasil, Portugal, batalha de Alcácer-Quibir, mouros, escravismo, escravidão, africanos, negros, Estados Unidos, Inglaterra, Império do Brasil, tratados, sequestro, direito, abolicionismo, abolicionistas, Lei do Ventre Livre, lei, crime, ilegalidade, ditadura military, impunidade, anistia, golpe, AI-5, Lula, Delfim Neto, PT 

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