1991

A desordem do mundo e a ordem do jornal

por Ricardo Arnt

Resumo

Os meios de comunicação produzem socialização expansiva e integração planetária a mercados  e são uma potência produtiva onde linguagem, discursos e comunicação são forças da economia política. A mídia estabelece vínculos e ligações necessárias entre práticas sociais diversas, circunscreve campos simbólicos, desenha uma nova territorialidade, propaga ideologias, torna pública a vida pública e enquadra a vida cotidiana. Ajuda a conjurar o aleatório e a ordem caótica, desordenada e desordeira das sociedades pré-capitalistas.

A mídia deposita também, em cada indivíduo, o respeito à norma, assegurando a introjeção da moral pública. A ordem da mídia repousa em um “dispositivo de encenação”. Há um arsenal de operações semânticas, técnicas e truques de encenação para produzir os acontecimentos, como enquadramento, atualização, contextualização, totalização, titulação, paginação, descrição, conotação, sonorização etc. A essas operações somam-se, ou não, as distorções propositais, as interdições editoriais, as estratégias de marketing e de censura. A mídia, como todos sabem, produz um mundo de acontecimentos maquiados.

No capitalismo liberal, a mídia vincula liberdade de imprensa à empresa privada permitindo que grupos mais ou menos associados aos centros de dominação econômica e política administrem a comunicação de forma a obter rentabilidade nas suas inversões, reforçando ou corroendo as ideologias que lhes convêm, escorando a hegemonia conquistada e induzindo os grupos sociais a consumos proporcionais à demanda inoculada no mercado. É um poder invasor e insinuante que circula e funciona em cadeia.

O poder da mídia, atravessado por fora e por dentro por contra-poderes, não está imune ao contra-ataque. A “massa passiva” dispõe de mecanismos de demarcação que o poder das mídias não pode conjurar. O consenso de grupo aos quais os indivíduos pertencem propicia-lhes referências para julgamento. O público delimita seleções e recortes nas mensagens a partir dos seus interesses, demarcando sentido sobre a matéria dos enunciados fornecidos.

Resulta dizer o poder da mídia não é absoluto e não é totalizante.  Mas é preciso fazer uma distinção clara entre a economia política das mídias e a economia política das mídias no Brasil. No Brasil, efetivamente, a hegemonia da imprensa, e em especial da televisão, tem uma potência especial pois a precariedade das instituições políticas e a desarticulação da sociedade civil conferem às mídias uma influência desproposital.


Eu tinha preparado duas coisas diferentes para dizer a vocês. A primeira, com alguns pressupostos sobre a economia política das mídias, como elas funcionam, e outra sobre a minha experiência prática na televisão. Tinha decidido falar da segunda parte logo. Mas tenho a impressão de que é necessário voltar um pouquinho a essa parte teórica, pelo menos para colocar certos pressupostos que põem a questão da mídia dentro de um marco específico, o das disciplinas modernas.

Vou dizer, de imediato, que penso em outra direção, divergente dessa visão concentracionista, segundo a qual algumas pessoas, em cima, controlam determinados mecanismos que fazem com que, embaixo, todos obedeçam e ninguém tenha condição de se defender. Acho interessante explorar um pouco a mecânica, a engenharia da recepção da mídia, como ela urde e como produz, ou não, os efeitos que intenta.

Os meios de comunicação são uma potência produtiva. Produzem socialização expansiva e integração planetária a mercados. Linguagem, discursos e comunicação são forças da economia política.

Penso que, com as funções que desempenha nas sociedades atuais, a mídia é uma instituição recente. Só no século XIX é que o dispositivo se consolidou como sistema disciplinar de efeitos e rendimentos. Trata-se de um instrumento de ordem capaz de ajudar a gerir e regular a vida social e econômica, um instrumento vital para a governabilidade.

A mídia surge e se consolida com a urbanização e a alfabetização, junto às ferrovias, ao telégrafo e à melhoria dos serviços de correio e transporte. A linotipia surge em 1814, na Inglaterra.

Na decolagem econômica do Ocidente capitalista, a imprensa impõe à desordem do mundo a ordem do jornal. A forma com que o jornal apresenta o mundo é a forma de torná-lo consumível. A liberdade de expressão desenvolve-se junto à liberdade de comércio. De tal forma que o processo de produção da notícia é indissociável da transformação em notícia do processo de produção.

A expansão demográfica do século XVII, com uma nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola, e a mudança em escala quantitativa dos grupos que importa administrar tornaram necessários controles sociais de um novo tipo. Com a expansão da indústria, a população concentra-se nas cidades. Assenta-se o sentimento de nacionalidade. Fixam-se os idiomas.

A mídia surge para estabelecer vínculos e ligações necessárias entre práticas sociais diversas. Ela circunscreve campos simbólicos, desenha uma nova territorialidade, propaga ideologias, torna pública a vida pública e enquadra a vida cotidiana. Ajuda a conjurar o aleatório e a ordem caótica, desordenada e desordeira das sociedades pré-capitalistas. Ela cimenta a ordem do mercado.

Se a imprensa não existisse, seria preciso inventá-la. Porque é preciso assegurar para todos os cidadãos, ou para o maior número possível, as informações necessárias à vida social. Não só as leis, mas as normas de trânsito, de higiene e de conduta, o funcionamento dos serviços públicos, os costumes e as virtudes, a civilidade, a moral, os fatos da política, as prerrogativas do poder e seus limites, a temporalidade e o território social.

A observação do marquês Cesare Beccaria, que Michel Foucault usou para assinalar a evolução da legislação penal, pode ser usada para definir a transição ordenada pela imprensa: “Só a imprensa pode tornar todo o público, e não alguns particulares, depositários do código sagrado das leis”.[1]

A mídia é esse elemento geral de certeza que reforça a eficácia do sistema em diferentes domínios. A sociedade é seu assunto. Que as leis e os costumes sejam claros a fim de que cada membro da sociedade possa distinguir o certo do errado, o vício e o crime. Que essas leis gerais da vida social, recolhidas, comentadas e disseminadas, norteiem a cidadania. Que se imprimam as informações para o conhecimento de todos. A mídia deposita em cada indivíduo o respeito à norma, assegurando a introjeção da moral pública.

A mídia, então, constitui, produz positividade. Ajuda a organizar o que era disperso. Ao contrário dos sistemas puramente repressivos e censuradores da sociedade pré-capitalista, o poder disciplinar que se consolida no século XIX ordena a multiplicidade. Sua função não é excluir os indivíduos, mas enquadrá-los, fixá-los ao processo de produção. A mídia fabrica. O indivíduo é alvo e resultado. Ela revela o mundo, amplia horizontes, agencia uma multiplicidade de eventos atomizados, costura e adensa um conhecimento da realidade, distribuindo poder e contrapoderes, norteando a governabilidade e a cidadania. Ela aumenta a docilidade e a utilidade dos elementos. Não obstante, “informar” — “impor formas”, no sentido aristotélico — é uma prática fabril cujo código é uma prerrogativa de poder. A mídia tem a sua economia política própria.

Há muita literatura a respeito. Muita coisa deve ser dita e examinada neste seminário. Eu diria, apenas, que penso que a ordem da mídia repousa em um “dispositivo de encenação”.[2] Processos de seleção, elaboração, formulação e distribuição multiplicam ao infinito os acontecimentos, ao mesmo tempo em que os enquadram, codificam e exorcizam. Há um arsenal de operações semânticas, técnicas e truques de encenação para produzir os acontecimentos, como enquadramento, atualização, contextualização, totalização, titulação, paginação, descrição, conotação, sonorização etc.

A essas operações somam-se, ou não, as distorções propositais, as interdições editoriais, as estratégias de marketing e de censura. A mídia, como todos percebem, produz um mundo de acontecimentos maquiados. Mas torná-los consumíveis não significa necessariamente falsificá-los.

O consumo é uma relação. A mediação da imprensa não é apenas um conjunto de técnicas de difusão. É uma sugestão de modelos de significação: modelo de família, de cidadania, de aspiração social, hábitos e costumes. A ordem do consumo é unidimensional, vem de cima para baixo, de uns poucos para todos. Ela se oferece para ser tomada e usada. O consumo implica adesão, ou rejeição, mas não admite troca, contraproposta. Eis por que certos autores consideram a TV o controle social em casa: a TV despeja paradigmas em nossa casa, e os repete diariamente.

No capitalismo liberal, a mídia veicula liberdade de imprensa à empresa privada, permitindo que grupos mais ou menos associados aos centros de dominação econômica e política administrem a comunicação de forma a obter rentabilidade nas suas inversões, reforçando ou corroendo as ideologias que lhes convêm, escorando a hegemonia conquistada e induzindo os grupos sociais a consumos proporcionais à demanda inoculada no mercado.

É um poder invasor e insinuante. O consumo estendeu seus modelos a práticas até há pouco improdutivas, como o ócio, a angústia e o sexo, antepondo aos sujeitos e seus desejos uma mercadoria que os valoriza e quantifica. E o sistema se realimenta. Não que a mídia invente os acontecimentos (se bem que também o faça), mas os detecta, dramatiza, potencia e produz. E, como em qualquer indústria, é necessário assegurar o ritmo de produção, controlar a oferta e a demanda e manter uma boa reserva de matéria-prima.

Dito isso, exposto um pouco dessa engrenagem, queria dizer, agora, que erramos ao atribuir à mídia rendimentos e funções de que ela não dispõe (embora talvez o deseje). Acho que existe uma profunda diferença entre intenção e realização. Existem disfunções, desregulagens e limites. E, principalmente, não há por que supor que o público esteja desarmado, sem meios de fazer valer o seu poder.

Gostaria de ressaltar isso. O poder circula e funciona em cadeia. Os indivíduos estão sempre em condição de exercê-lo e sofrer sua ação. Nunca são um alvo inerte ou consentido. Também são centros de transmissão.

O poder da mídia está atravessado por fora e por dentro por contra-poderes. É possível expô-lo, miná-lo, debilitá-lo e barrá-lo, e ele não está imune ao contra-ataque.

Vamos distinguir uma coisa: o ser que se reflete no signo, não apenas nele se reflete, mas se refrata. O que determina essa refração é o confronto de interesses das comunidades semióticas. Classes, grupos e segmentos sociais criam comunidades semióticas distintas, para as quais todo signo comporta significações e leituras diferenciadas.

Mikhail Bakhtin nos mostrou que em todo signo confrontam-se índices de valor contraditórios; a ambivalência é um dado da linguagem. Como Jano, o signo tem duas faces. “Toda crítica viva pode tornar-se um elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras.”[3] Esse cruzamento de valores na recepção é o que torna o signo vivo e dinâmico. É como se estivessem atravessados por um sentido que convida a retirar deles o significado que se prefere.

Penso que a universalidade que a informação de massa procura na indústria cultural reside precisamente em impregnar o signo de maior conversibilidade, franqueando o recurso à decodificação e às possibilidades conotativas e de significação.

Para mim, o que diferencia a informação no capitalismo e nas sociedades ditas socialistas é a maior taxa de ambiguidade e de fruição, a maior variabilidade de interpretações que permite. No socialismo você tem censura, univocidade, repetição e monopólio tentando impor leitura em uma mesma direção hegemônica, que não sofre concorrência ou contestação. Mesmo assim, não funciona.

Acho que, diante do Fidel Castro, o Roberto Marinho é amador. Ele controla mal os fenômenos com que mexe. A esquerda é muito mais competente do que a direita para a dominação. A diferença entre capitalismo e socialismo é que o primeiro é mais descontrolado, para o bem e para o mal.

Penso que entre comunicação e efeito existe uma mecânica complexa. Uns produzem efeitos previsíveis e reguláveis, como em uma engenharia da recepção. Outros produzem efeitos vagos e, às vezes, uma resposta bumerangue, em direção oposta às intenções.

Acho que a “massa passiva” dispõe de mecanismos de demarcação que o poder das mídias não pode conjurar. Acho que o consenso de grupo aos quais os indivíduos pertencem propicia-lhes referências para julgamento. As pessoas decidem-se a comprar, a votar ou ver televisão de acordo com as outras pessoas em que confiam. Práticas sociais, valores compartilhados em família, com amigos, vizinhos, no sindicato, entre companheiros de trabalho, a escolaridade, as identificações políticas e ideológicas cingem a recepção. O público delimita seleções e recortes nas mensagens a partir dos seus interesses, demarcando sentido sobre a matéria dos enunciados fornecidos.

Todo o processo de produção da mídia está atravessado por essa recepção diferenciada, pelas práticas sociais que informam o processo de leitura-consumo. Penso que o feedback é um dado da estrutura do sistema, que o obriga à reatualização e à diferenciação. Na minha opinião, não há paranoia concentracionista que conjure a diversidade das práticas sociais.

Essas reflexões se contrapõem àquelas segundo as quais as mudanças de sentido no discurso são irrelevantes diante da permanência da sua forma autoritária, ou seja, da unidimensionalidade do consumo (como afirma Jean Baudrillard, por exemplo).

Estou querendo dizer que o poder da mídia não é absoluto e não é totalizante. Que está cheio de fissuras. Que a polissemia é um atributo dos significados e permite um consumo seletivo. É o que nos permite assistir à mídia com seriedade, com emoção, com raiva, com estranhamento, com desdém ou com tédio. É o que nos permite rir, xingar e ignorar jornalistas. É o que nos permite tirar o som e desligar.

Não acredito nessa teoria da atitude beócia diante da mídia, que pressupõe um público de aparvalhados diante de quatro sujeitos intangíveis que puxam cordões em Washington e fazem marionetes em São Paulo reagirem teleguiados, como em uma tela de radar. Mas também acho que é preciso fazer uma distinção clara entre a economia política das mídias e a economia política das mídias no Brasil.

No Brasil, efetivamente, a hegemonia da imprensa, e em especial da televisão, tem uma potência especial. Este é um país onde a audiência do Xou da Xuxa é maior do que a circulação diária total dos jornais. A precariedade das instituições políticas e a desarticulação da sociedade civil conferem às mídias uma influência desproposital. A imprensa brasileira é um mandarinato. Os grandes jornalistas são seres poderosos, arrogantes, impunes, messias ou salvadores da pátria. Fazem mais política que os políticos, mas permanecem recolhidos, protegidos da atenção pública, e dando as cartas. O mercado da imprensa no Brasil é pequeno e não comporta críticas. Por isso, existe tanta inflação de ego na imprensa brasileira. É muito poder nas mãos.

A objetividade está para o jornalismo brasileiro como a autogestão para o programa do PDS – COMO um glacê. E o círculo se fecha por outro lado: as relações de força na sociedade são tão desequilibradas, que os jornalistas são impelidos à condição de porta-vozes da sociedade civil (embora ninguém os tenha eleito).

Cada sociedade tem a TV que merece.

Fui editor de notícias internacionais do Jornal nacional, da TV Globo, de 1981 a 1986. Cabia a mim organizar a desordem do mundo na ordem do jornal. O Jornal nacional tem vinte a 25 minutos de duração e está dividido em quatro ou cinco blocos, de cinco minutos cada, separados por intervalos comerciais. Desses quatro blocos, um era dedicado às notícias internacionais.

Eu tinha cinco minutos para mostrar o mundo. O que se pode fazer em cinco minutos? Um bloco comporta quatro, cinco notícias: três filmes de 1min20 e duas notas de cinquenta segundos, ilustradas com slides, mapas ou radiofotos. Escreve-se por segundo. Fiz dezoito anos da era Brejnev em 1min13.

As notícias são escritas para serem “ouvidas” e não “lidas”, porque não há releitura. As palavras devem ser as mais simples e as frases as mais curtas. Escrevemos como se fôssemos à janela e gritássemos ao vizinho: “Morreu o presidente. Sofreu um ataque cardíaco. O vice vai assumir. O povo foi para as ruas em Brasília. Os militares baixaram toque de recolher. Ninguém sai de casa depois das dez da noite”.

Não há muita sofisticação possível. Os limites são claros. Uma parte expressiva da audiência é analfabeta. Boa parte dela, talvez a maioria, desconhece códigos básicos. As notícias devem ser entendidas, no principal, por quem não dispõe de informações suplementares. A maioria não irá lê-las no dia seguinte, no jornal. Por isso, a TV no Brasil afronta as pessoas inteligentes. Por isso, é tão tedioso assistir à televisão no Brasil. Por isso, ela é tão burra, tão superficial, tão necessariamente superficial.

À exiguidade do tempo, à superficialidade enfática, a toda aquela neurose gesticulante dos repórteres que pontuam ênfase com a mão, somam-se os modelinhos de encenação (as fórmulas) e a arbitrariedade das políticas de cada veículo. Emissoras com linhas políticas estritas podem compensar o desgaste de noticiários nacionais censurados com tolerância maior na cobertura dos acontecimentos internacionais. Por isso, censuram-se greves em São Paulo e veiculam-se greves na Itália.

O cotidiano dos jornalistas dentro desses limites começa com o telex, que transmite telegramas das agências de notícias. Diariamente, chegam, por satélite, imagens das emissoras de TV da Europa e dos Estados Unidos. Durante o dia, segue-se o desdobramento das notícias por telex. No final da tarde, recebidas as imagens, escreve-se um texto ilustrado com elas, monta-se um pequeno filme. Na verdade, a ordem é inversa: o predomínio é da imagem. Se você não tem as imagens de um fato, provavelmente não o veiculará.

Uma boa imagem produz mais impacto do que páginas e mais páginas de jornalismo impresso. É fácil criticar a mediocridade da TV, mas pouco se reconhece a superioridade jornalística da imagem sobre o texto. Imagens, por mais editadas que sejam, oferecem plurissignificância, várias dimensões. No heavy metal do dia-a-dia, o jornalista da TV dá um banho no jornalista da imprensa.

Uma boa imagem diz mais do que cinquenta páginas de descrição e 250 de análise. Como a imagem do general Augusto Pinochet, ao lado do seu carro crivado de balas, depois de um atentado. Como a sequência do atentado que matou o presidente Anwar Sadat. Como a truculência do general Newton Cruz com os jornalistas em Brasília.

Nos anos 1970, a TV forneceu uma exposição em cores dos políticos brasileiros, em suas falas, trejeitos e estilos, que a imprensa escrita jamais seria capaz de revelar.

Os principais fornecedores de imagens ao Brasil (e a boa parte da América Latina e do mundo) são as redes: WTN (coligada à emissora americana ABC), Visnews (com material diário da BBC de Londres, da CBC canadense e da NBC americana), CBS e CNN (hoje a mais ativa e atuante no mundo todo).

A Globo, hoje, recebe material da CBS e da Visnews. Quando eu estava lá, recebia três satélites (Visnews, a ex-ITN, da Europa, e a NBC, dos Estados Unidos). A Visnews, hoje, fornece imagens a quase todas as emissoras brasileiras. Por isso, você encontra as cenas de um mesmo cinegrafista, no Líbano, no Iraque ou em Washington, em todos os canais. Poucas emissoras brasileiras têm condição de produzir seu próprio material.

Na Europa, o satélite Eurovision coleta diariamente material das emissoras ZDF e ARD (alemãs), da RAI-1 e da RAJ-2 (italianas), da Antenne 2 e da TEF-1 (da França), da BBC inglesa e de emissoras da Espanha e da Áustria. As televisões europeias em geral são mais atentas e curiosas em relação ao mundo do que as americanas. Cobrem, com mais frequência, assuntos que as grandes redes americanas desprezam.

É notável a ausência de imagens da América Latina. Para o Brasil receber uma imagem da Venezuela, é preciso que uma emissora americana compre imagens de uma emissora venezuelana e as coloque no seu satélite, gerado para a América Latina. Emissoras de TV no Brasil, Chile, Argentina, México, Peru etc. não formam rede e não dispõem de satélite próprio. O aluguel de canais de satélite e as operações em terra custam caro. Se a Manchete ou a Globo não mandarem equipes à Argentina, provavelmente só receberão imagens desse país via Nova York, às vezes com um ou dois dias de atraso.

Gostaria, agora, de abrir uma linha de raciocínio diferente dessa que o Argemiro Ferreira expôs com acuidade, a análise da concentração das empresas que controlam a mídia.

Nós vemos diariamente essas disputas de compra, venda e transferência de impérios, as aventuras de Rupert Murdoch, Berlusconi, dos japoneses comprando indústrias cinematográficas americanas etc. Mas tenho a impressão de que, simultaneamente, há uma outra tendência, inversa.

Discordo das profecias de um futuro com informações concentradas por algumas grandes corporações. Acho que há um forte movimento de desconcentração expansiva, de multiplicação de oferta, de segmentação do mercado, fragmentação e pulverização. O sentido, para mim, é de uma verdadeira indigestão de informação. Cada vez mais teremos acesso a mais informação. Basta querer e procurar.

Nos Estados Unidos, em menos de dez anos, a rede CNN, que está sempre no ar, exclusivamente com notícias, acabou com o telejornalismo das grandes redes, a ABC, a CBS e a NBC. Subverteu sistemas, fórmulas e hábitos.

Na Europa, TVs privadas e independentes produzem seu próprio material jornalístico, como o Canal Plus, na França, a SAT-1, na Alemanha, a Thames, a Granada e a Central Television (que produzem para o Canal 4, na Inglaterra, e já apresentaram excelentes documentários sobre a Amazônia e o Brasil).

Também na Inglaterra, a Sky Television, de Murdoch, tem feito boa cobertura dos eventos no golfo Pérsico. Em Nova York, a Fox Television já está começando a virar a quarta rede americana.

Todo mês as grandes redes americanas perdem audiência. Já estão programando shows de entretenimento antes do noticiário para “segurar” o público, como a Globo faz com o Jornal nacional, entre novelas. O crescimento das TVs independentes e a fragmentação do mercado aumenta com a expansão da TV a cabo e com o sistema DBS (Domestic Broadcasting System), que exige apenas pequenas antenas-pratos na janela. Há mais de seiscentas emissoras de TV nos Estados Unidos. O poder dos superdepartamentos de telejornalismo e dos anchor-men-superstars, como Dan Rather (CBS), Tom Brokaw (NBC) e Peter Jennings (ABC), está sendo corroído. O Evening news está deixando de ser um totem.

É evidente que as grandes redes continuam e continuarão influenciando o grande público, com suas boas ou más estratégias políticas. É evidente que as pequenas terão menos influência. Mas como poderia ser diferente? Às vezes, certos críticos da indústria cultural parecem esperar que todas as pessoas leiam Kant.

Devemos discutir a tendência para a concentração da propriedade das redes de comunicação à luz da multiplicação dos outros tipos de influências sobre o público, e de outras redes.

Não acredito que o futuro esteja sitiado por um punhado de gigantescas corporações transnacionais que vai controlar tudo aquilo que lemos, vemos e ouvimos.

O melhor antídoto para a teleinvasão é a variedade e a liberdade de escolha. Isso não é uma apologia do mercado. Penso que as forças do mercado estão menos interessadas na democratização da comunicação do que a sociedade. Por isso, precisamos de um empurrão do Estado.

Estamos longe, no Brasil, de uma situação em que várias emissoras cubram os fatos jornalísticos, oferecendo informação diferenciada a públicos específicos (se bem que já temos a Globo, a Manchete, o SBT e a Bandeirantes, houve um tempo em que o Jornal nacional mandava sozinho).

Em suma, não é verdade que não saibamos desconfiar dos comerciais que oferecem o sabão em pó que realmente lava mais branco. Ou que não percebamos que o Alexandre Garcia está sempre do lado do poder. Acho que a capacidade de discernimento, socialmente produzida, atua sobre a persuasão da mídia. A mídia dependente estruturalmente de vontades do público sobre as quais não tem controle.

Para mim, a teoria concentracionista de que as mídias colonizaram o sexo, o ócio e a angústia simplesmente não é verdadeira.

NOTAS

  1. Beccaria, apud, Michel Foucault, Vigiar e punir (Petrópolis, Vozes, 1977), p. 87.
  2. Jesus Martin Barbero, Comunicación massiva: Discurso y poder (Quito, cies pal, 1978).
  3. Mikhail Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem (São Paulo, Hucitec, 1979), p. 33.178

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