2005

A política dos costumes

por Renato Janine Ribeiro

Resumo

A televisão é, no Brasil, o principal veículo de socialização das experiências, aquele que dá a linguagem pela qual as pessoas das mais variadas classes e grupos – com exceção, talvez, dos mais intensamente letrados – conseguem formular sentimentos e mesmo ideias. Num país em que a cultura das letras é pouco valorizada, há raros contrapesos a esse poder avassalador da telinha. Contudo, na análise deste poder, o modelo dos anos de 1950 e 60 – que consistia em entender a então nova mídia a partir dos estudos sobre o totalitarismo nazista – já não é suficiente. Ele desempenhou uma importante tarefa crítica, mas não explica matizes importantes, em especial o modo como a televisão precisa levar em conta as reações dos espectadores, ou seja, a sua recepção.

Há dois pontos na TV que merecem ser discutidos. O primeiro é o contraste entre noticiários e novelas, que chega ao ponto de se tornarem, os primeiros, obras de ficção, enquanto as segundas exercem papel crítico que tem, eventualmente, forte dose de realismo. Enquanto o jornalismo televisivo é fraco, a dramaturgia é talvez o produto mais significativo, tendo mesmo alguns resultados de alta qualidade. É evidente que o esvaziamento dos jornais da TV, porém, faz com que não contribuam para a cidadania, para a crítica aos poderes, para o fortalecimento das convicções democráticas.

O segundo é que no Brasil é fundamental distinguir a política institucional e partidária, mesmo no sentido mais amplo, daquilo que podemos chamar os costumes. Há sociedades, como a francesa e a argentina, em que as duas caminham paralelas e eventualmente juntas. Tanto assim que a ditadura militar, na Argentina, deflagrou uma repressão tanto contra os dissidentes políticos quanto contra as minissaias. No Brasil, contudo, a repressão foi bastante leve – ou mesmo tolerante – no que dizia respeito a sexo, a costumes, a sentimentos. Isso pode significar que nossos ditadores fossem mais inteligentes, ou, o que é mais provável, que a sociedade brasileira separe, mais que as duas outras, a política em sentido mais próprio e os costumes – e talvez que a vitalidade se concentre mais nestes últimos. O Brasil conseguiu assim liberar costumes no momento mesmo em que a ditadura reprimia a política. Por isso mesmo, estudar a política no Brasil exige que entendamos este dado básico: que a liberdade, aqui, tem a ver mais com os costumes do que com as instituições políticas.

A TV certamente desempenha papel decisivo neste recorte. Ela não contribui para uma política melhor. No entanto, ela se tem empenhado em enfrentar preconceitos contra a mulher, o negro, o índio, o meio ambiente. E para isso ela tem usado o seu melhor recurso, a dramatização nas novelas. O espetáculo, portanto, acaba servindo a certa democratização dos costumes. E, se a nossa política tem muito a ver com os costumes, este ponto tem que ser valorizado em qualquer estudo do país, ou da telinha.


A televisão é, no Brasil, o principal veículo de socialização das experiências, aquele que dá a linguagem pela qual as pessoas das mais variadas classes e grupos — com exceção, talvez, dos mais letrados — conseguem formular sentimentos e mesmo ideias. Num país em que a cultura das letras é pouco valorizada, há raros contrapesos ao poder avassalador desse meio de comunicação. Na análise desse poder, contudo, o modelo dos anos 1950 e 1960 — que consistia em entender a então nova mídia a partir dos estudos sobre o totalitarismo nazista — já não é suficiente.[1]

Com efeito, a televisão nasce às vésperas da Segunda Guerra Mundial e triunfa após a vitória aliada sobre o Eixo. Hitler utilizou intensa e extensamente o rádio, por intermédio de seu ministro da Propaganda, Goebbels. Foi, aliás, com o nazismo que a palavra propaganda — que inicialmente se referia à propagação da fé, ao modo pelo qual a Igreja Católica e em especial sua vertente educadora, os jesuítas, difundiam a fé e que ainda dá nome a um importante órgão do Vaticano — passou da religião para a política.

No pós-guerra, a televisão difundiu-se e popularizou-se. Chegou ao Brasil cinco anos depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, mas a alto preço, de modo que ao longo da década de 1950 apenas uma pequena minoria a possuía. Ao final dos anos 1960, contudo, ela se tornara realmente popular. Hoje, quase todos os lares brasileiros têm uma. E a televisão é o meio de comunicação que melhor simboliza, no último meio século, o controle americano das mentes e corações — aquele processo que, para Contardo Calligaris, caracteriza-se pela adolescência, poderíamos dizer, quase perpétua de nosso tempo, pois esta começa mais cedo e quase não termina.[2] Mais que o rádio e apesar da inegável liderança desse durante o dia, a televisão representa nossa época. É a mídia por excelência, aquela que melhor desempenha o papel que a própria palavra já indica, o de efetuar as mediações, o de construir os meios pelos quais as pessoas se comunicam.

É esse papel forte na comunicação, somado à percepção do que tinha sido o poder da propaganda sob o nazismo, que faz, quando a tevê tem uns dez anos de existência consolidada, por volta de 1960, as ciências sociais e humanas passarem a comentá-la sob um viés que, hoje, pode até soar chocante. Pois se acusa de totalitário esse instrumento de comunicação difundido a partir da democracia mais altiva do mundo, os Estados Unidos.

Essa análise, que é séria, aplica à televisão — e aos Estados Unidos — estudos que tratavam inicialmente do nazismo e do fascismo. Constata-se que a sociedade norte-americana vive enorme, excessivo consenso. Enquanto a Europa ocidental, no pós-guerra, está dividida entre direita e esquerda, nos Estados Unidos da mesma época há poucas divergências sobre as grandes opções políticas do país. Os valores também são, em larga medida, compartilhados. O macarthismo, com uma perseguição aos dissidentes que hoje espanta (porque estava em vigor a mesma Constituição de antes e de depois, só que não era aplicada boa parte da sua Declaração de Direitos: assim, quem fosse chamado a depor na poderosa Comissão Parlamentar de Atividades Não-Americanas [sic] e invocasse a Quinta Emenda, hoje tão conhecida de quem lê romances policiais ou judiciais norte-americanos e que permite ao acusado não depor contra si próprio, era prontamente preso e condenado por desacato ao Congresso), excluía da cultura dos Estados Unidos o dissidente. Não estranha, então, que alguns estudiosos finos vissem repontar, naquele país, o que Mussolini definira na célebre e assustadora frase: “Nada contra o Estado, nada acima do Estado, nada fora do Estado”. Evidentemente, no caso americano, o que o totalitarismo chamara de “Estado” seria mais complexo, porque abrangeria um complexo somando o poder político e o econômico — mas o próprio presidente Eisenhower deu nome a esse conjunto, ao falar no poder de um “complexo industrial-militar”; o que poderia estar mais perto do totalitarismo?

Lembremos a distinção canônica entre totalitarismo, por um lado, e ditadura ou autoritarismo, por outro. Estes controlam a vida social de fora para dentro, reprimindo, tutelando. Admitem a vida social, apenas cortam seus excessos. É certo que podam, como excessos, muito do que é simplesmente liberdade. Com frequência, procuram submeter a vida inteira a algum moralismo. Mas o princípio totalitário é, explicitamente, o de mudar a vida social por inteiro, por dentro, não deixando nada fora do alcance do Estado. Na ditadura, há uma pluralidade de fatores na vida social; já o totalitarismo é monista: quer que um único princípio reja tudo, seja ele o da nacionalidade (o “sangue e solo” do nazismo), seja o da classe social (o da “ditadura do proletariado” marxista-leninista).

Daí que parecesse estranho, ou mesmo contraditório, a sociedade mais individualista do mundo, a norte-americana, ser chamada de totalitária. Mas, se o individualismo é imposto como doutrina, se ele, além disso, obriga a uma série de condutas, não é impossível ele se tornar totalitário.[3] Vê-se isso nos estilos de vida padronizados que a tevê difundiu e dos quais era difícil fugir. Rememoremos o começo do filme O casamento do meu melhor amigo, com Julia Roberts: numa cena que arremeda um show dos anos 1950, mulheres dizem que se casar é o maior objetivo de suas vidas. Embora sem arregimentação num partido único, nem militarização da sociedade, os Estados Unidos daquele tempo mal toleravam divergências. Daí, por estarem marcados os corações de todo um povo com os mesmos desejos e repulsas, a acusação de totalitarismo.

Levando-se a coisa mais longe, hoje mesmo, se assistimos a uma série de tevê das que se difundem pela tevê a cabo, são tantos os detalhes da vida norte-americana a que alude, que quase precisamos de notas explicativas. Ora, um resultado disso é uma espécie de lavagem cerebral, como, por exemplo, quando os mais jovens entre nós substituem o gesto obsceno brasileiro, de dois dedos formando um círculo, por seu equivalente do Atlântico Norte, o dedo médio estendido.

Se, contudo, esse processo de achatamento das diferenças (que em nosso país tem sido denunciado sobretudo por Ariano Suassuna, e contestado na obra de Antonio Nóbrega) é de parentesco totalitário, por outro lado, o totalitarismo propriamente dito esvaziou-se: sobrevive hoje na Coreia do Norte, em certa medida nos estados islâmicos mais puros, como até pouco tempo atrás no Afeganistão dos talibãs e ainda em nossos dias na Arábia Saudita e no Irã sujeitos a uma polícia religiosa de costumes. Juntamente com isso, quase desapareceu o discurso sobre o totalitarismo.

Hoje quem analisa a repressão, o autoritarismo, os regimes de força de qualquer ordem vale-se cada vez mais — que o saiba ou não — da estética da recepção, isto é, da teoria de Hans Jauss e de Wolfgang Iser, que mostraram que ninguém é totalmente passivo. Todos nós, ao recebermos uma comunicação, a entendemos com os instrumentos de que dispomos. Nós a recriamos. Receber uma mensagem é quase tão importante quanto produzi-la. Isso, aliás, que na teoria literária foi elaborado por eles, no romance propriamente dito está presente de maneira bastante explícita pelo menos desde O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, a obra que convidava seu leitor a lê-la na ordem que preferisse, ficando necessariamente incompleta.

Sabemos, no caso das novelas, que elas mudam seu roteiro conforme as reações do público ao desenvolvimento de seus capítulos, medidas em seu ibope. Isso torna difícil continuar acusando a tevê de totalitária. Ela é o portal de uma negociação ininterrupta entre uma parte forte, o dono e os anunciantes, e uma fraca — os espectadores. O fato de que a emissora não possa dizer (ou calar) tudo o que lhe apeteça pode ser assim exemplificado: imaginemos que, pertencendo boa parte das retransmissoras a políticos com assento no Congresso Nacional, a Rede Globo decidisse fazer uma novela exaltando os parlamentares em geral. Não teria audiência. Deixo claro que não estou, com isso, fazendo uma crítica a nossos representantes; lamento que sua imagem não seja melhor do que é; mas, sobretudo, constato que nem a televisão nem a rádio podem dizer o que quer que seja. Podem dizer muito, e omitir mais ainda, mas há limites. Os estudos mais recentes da comunicação, ao contrário dos que liam a comunicação de massas pelo paradigma do nazismo, têm estado mais atentos a esses limites.

Por sinal, o nazismo deve ser mais bem compreendido hoje. Ele caiu em solo fértil não porque o dr. Goebbels pudesse fazer seu povo crer no que bem entendesse, graças aos meios de comunicação, mas porque o esperto uso desses se deu em meio a uma série de fatores específicos: uma enorme mobilidade social, em especial do campo para a cidade, mais uma mudança de regime, com a queda do Kaiser, mais a degradação da Alemanha, com a derrota na Primeira Guerra Mundial, mais o enfraquecimento da figura do macho (vencido na guerra, privado do referencial arquipaterno que era o imperador e das referências tradicionais em geral), tudo isso gerando uma enorme demanda por significações simplistas, simplórias e agressivas. Não é muito diferente do que sucedeu na extinta Iugoslávia, ao longo dos anos 1990. Mas de todo modo esse fenômeno é atualmente mais limitado, até porque nosso mundo acostumou-se mais a viver sem referenciais tão rígidos, e a oferta desses últimos, no mercado, embora ainda bastante forte, depara com sérias oposições e limitações.

Mas, repito, a parte do povo é a mais fraca nessa negociação. Se de vez em quando ele protesta contra o que se diz e mais raramente contra o que se omite (a revolta em São Paulo contra a Rede Globo, quando ela disse que o primeiro grande comício por eleições diretas, em janeiro de 1984, fora apenas uma festa do aniversário da cidade!… e suas peruas começaram a ser hostilizadas aos brados de “o povo não é bobo”, rimando com o nome da emissora), o mais das vezes ele está na posição subordinada. Isso é o que devemos lutar por mudar. Não precisamos, para isso, porém, acreditar no caráter totalitário da mídia.

Porque a doutrina da mídia totalitária, se desempenhou uma importante tarefa crítica, ajudando enormemente a sociedade a defender-se dos monopólios de desejos, acabou de certa forma vítima de seu próprio sucesso: ela já não explica matizes importantes, em especial, o modo pelo qual a televisão precisa levar em conta as reações dos espectadores, ou seja, a sua recepção.

Procurarei agora chamar a atenção para dois pontos importantes na tevê. O primeiro é o contraste entre noticiários e novelas, que chega ao ponto de se tornarem, os primeiros, obras de ficção, enquanto as segundas exercem papel crítico que tem, eventualmente, forte dose de realismo. Enquanto o jornalismo televisivo é fraco, talvez a dramaturgia seja o produto mais significativo da televisão, tendo mesmo alguns resultados de alta qualidade. É evidente, porém, que o esvaziamento dos jornais da tevê faz com que não se contribua para a cidadania, para a crítica aos poderes, para o fortalecimento das convicções democráticas.

No começo da Nova República, era interessante o contraste entre o jornal e a novela das oito. Como vários figurões da ditadura foram reciclados no regime civil, eles apareciam no noticiário como pessoas dignas, respeitadas, importantes. Curiosamente, porém, a novela logo assumiu uma posição mais crítica, o que, aliás, ela tentara, com menor sucesso, já sob a ditadura. Ela foi um gênero mais de oposição do que os noticiosos, que somente eram mais livres em algumas emissoras que não a líder de audiência. Mas quem acompanhou a televisão no final dos anos 1980, já sob a Nova República, via com frequência algum importante político do interior do país ser elogiado no noticioso, para, daí a meia hora, na novela (digamos, Roque Santeiro), alguém com traços próximos aos seus — o poder do coronel, a prepotência, a aversão à democracia — ser apontado como responsável pelas mazelas do país. Isso fazia a ficção ser mais realista que o noticiário. O gênero que deveria retratar mais de perto o que acontece dizia inverdades. Já o gênero que, por definição, inventa, era mais realista em face da sociedade brasileira. Nesse misto de fantasia e de realismo, a sociedade reconheceu-se, a tal ponto que um grande ator, como Lima Duarte, desde essa época fez várias vezes, apenas mudando o nome, o mesmo papel do coronel nordestino prepotente.

O que significa essa troca de papéis, entre a notícia e a ficção? Em 2001, estive em Bogotá, para um congresso de filosofia. No intervalo, zapeando pela tevê, vi uma mulher linda, em trajes sumários, falando em gente sem comida, sem moradia, sem nada. Com a distração inevitável do turista, que não conhece os costumes da terra, fiquei impressionado com a ideia de que, na Colômbia, as top models fizessem campanha pelos sem-teto e sem-terra. Mas minha estranheza passou tão logo revi o comercial — era o anúncio de um reality show colombiano, semelhante ao No Limite brasileiro, que se caracterizava — ao contrário da Casa dos Artistas e do Big Brother, que a ele sucederam — por juntar em condições extremamente inóspitas durante algumas semanas um grupo de pessoas, vendo como elas sobrevivem tanto física quanto psicologicamente.

É interessante como o estranhamento ajuda a entender nossa própria experiência. Ao ver, em espanhol, uma experiência que no Brasil me tinha chocado, mas sem a entender bem, foi possível compreendê-la melhor. As condições em que o reality show faz viverem, na expectativa de ascensão social, vários indivíduos são parecidas com aquelas em que vegeta, a vida toda, boa parte da população brasileira e mundial. Isso é bem diferente dos BBBs que se sucederam. O Big Brother passa-se numa casa mais bem provida, porém fechada. É uma espécie de “huis clos”, de gaiola de ratos, no qual as experiências vão se dar entre pessoas bem nutridas. Cada vez mais se erotizam as relações. Basicamente, as experiências tendem ao sexual. Isso é decorrência direta da falta de trama. Quando começaram os reality shows, apostei no rápido esgotamento do filão que se propunha a exibir gente comum, justamente porque faltava aí o enredo: a única maneira de supri-lo seria, argumentei, enfatizando o papel do sexo. É converter o show da realidade numa experiência, para o espectador, de puro voyeur. Se somos espectadores, reforcemos o lado escópico, façamos o puro e banal fato de vermos tornar-se uma perversão, convertamos o ser-espectador em ser-voyeur. Foi o que se deu. Desse ponto de vista, os reality shows em lugares inóspitos até deixam uma pequeníssima saudade: pois eles mostravam a construção da vida social, às vezes a partir do nada (numa série norte-americana os participantes eram lançados de paraquedas em uma ilhota do Pacífico, onde não havia nenhum artifício ou artefato para ajudá-los). Tinham assim o caráter de um possível e interessante experimento, literalmente, social. Mesmo assim, a experiência do ambiente naturalmente hostil e a construção de uma relação humana artificiosamente hostil mostravam — por exemplo, em No Limite — a transformação da tragédia em jogo, da miséria em competição, da iniquidade social em game.

Funcionava assim como jogo de fim de domingo, para a classe média baixa que quer subir na vida, aquilo que no dia-a-dia é o modo de sobrevivência de uma quarta parte dos brasileiros. Os participantes encenavam como brincadeira as dores dos mais pobres que eles. Nos Estados Unidos, em que não há miséria comparável à nossa, as privações dos concorrentes podiam passar por curiosas ou exóticas, sendo locadas numa ilha do Pacífico. Os coqueiros e a privação faziam parte do mesmo quadro. Já no Brasil, ou na Colômbia (que tem indicadores sociais melhores que os nossos), as privações do mundo humano contrastam com o caráter abundante, luxurioso da natureza: coqueiros e exclusão social se opõem. A natureza rica contrasta com a sociedade pobre e iníqua. O show tornava-se um estranho comentário sobre nossos países e sua injustiça social, um modo de fingirmos que ela não existe, porque é difícil suportar vê-la.

Desenvolvemos, na classe média brasileira, uma série de técnicas de insensibilidade à injustiça social, à mendicância, à infelicidade alheia. Entre elas, estão frases que repetimos até se tornarem mantras que nos protejam da dor que há em ver a dor do outro: a culpa é do governo, não nossa, se damos esmolas, os mendigos as gastam em pinga, os meninos de rua são explorados por adultos safados. Um show de realidade, que por ser show é necessariamente irreal, mostra que os dramas — reais — da miséria podem virar uma estratégia de ascensão na vida, resultando em dinheiro e fotografias, se a moça for bonita, na Playboy.

A miséria assim vira gincana. O jogo da exclusão social produz ascensão social. Mas, com isso, embaralham-se os gêneros. O noticiário, dizia acima, era mentiroso, a telenovela mostrava mais verdades que ele. O reality show, por sua vez, se converte numa maneira de adotarmos como ficção a ideia de que não vivemos em meio à miséria. Não só o rico, mas mesmo a classe média baixa se protege do caldo de cultura que é a extrema pobreza.

Disse que trataria de dois pontos, o primeiro foi a troca de papéis entre noticioso e dramaturgia, no segundo, continuarei examinando os gêneros. Vejamos o humor. Enquanto a telenovela acaba constituindo uma ágora na qual alguns assuntos sérios são tratados — a discriminação sexual, racial, mas não a injustiça social —, o humor televisivo é geralmente de má qualidade. Penso que houve uma crise do humor na tevê por volta de 1990. Naquela época, eram três as formas principais de fazer rir. Chico Anysio envelhecia; seu humor de tipos e estereótipos perdia o destaque. Surgia a TV Pirata, com quadros inteligentes. E Jô Soares, humorista havia tempos (mas menos que Chico), embora se renovando, entrou em crise no final dos anos 1980. Seu programa de humor dividia-se em duas vertentes: a da crítica política à ditadura militar e a de uma comédia de costumes marcada pelo preconceito contra mulheres e gays. Com dois produtos assim distintos, ele conseguia um público enorme, tanto culto quanto vulgar — mas, no final dos anos 1980, foi-se tornando impossível a coexistência entre os dois. Parece que a crítica política levava à TV Pirata, ao passo que a censura à dissidência comportamental ficava com Chico Anysio. De todo modo, o conservadorismo moral começava a se casar mal com o espírito democrático em matéria de coisa pública.

Esses foram os anos de originalidade dos Piratas. Mas também eles acabaram no estereótipo — sim, em tom irônico, rindo do negro, mas com uma piscada de olhos, como a dizer que sabiam que isso era errado, preconceituoso. Agradavam aos dois públicos, com a piada para o vulgo, a piscadinha para o culto. Pouco sobrou, contudo, de sua inteligência. Parece que o impasse sentido por Jô Soares em tempos da Nova República, longe de se superar, apenas acentuou seu caráter implacável.

Por que será que o cômico, na tevê, é mais reacionário que a telenovela? Um dos erros entre os críticos de televisão consiste em não distinguir, não só os canais, mas mesmo as linhas de programação. Há coisas que se dizem das mulheres, nos programas de humor, que só alguém assumidamente canalha seria posto a dizer numa novela.

Se pensarmos que o riso é descontração, isso significa que os momentos de maior leveza na recepção da mídia são também os mais marcados pelo preconceito. É evidente que isso não significa que as pessoas esposem o preconceito o tempo todo. Rimos de piadas de cuja “moral” discordamos. Não há sentido em policiar o riso. Mas parece que em nossa tevê a tragédia e o drama ensejam a crítica aos preconceitos, ao passo que a comédia não. Por quê? Essa questão, sozinha, merece um seminário. Por ora, só repito o que disse quando comecei a escrever sobre televisão, num suplemento de jornal: o riso não precisa ser idiota. Podemos ter, contudo, uma visão mais otimista, sob certos aspectos, da televisão. Aqui entra o que chamo a política dos costumes. Sim, a tevê é bastante fraca no que diz respeito à política. Ela mal a discute. Enquanto Fernando Henrique governou, por exemplo, e embora durante sua gestão o Brasil tenha aumentado seriamente a capacidade de diálogo, o fato é que a discussão na televisão manteve o caráter quase unilateral que sempre teve. Quem, por exemplo, contestasse as privatizações era visto quase como insensato. Poderia ser convidado a ir a programas de debate com pouca audiência, sempre contestado por outras pessoas, mas a voz predominante, sem crítica ou divergência, nos horários nobres, era a de quem considerava óbvio que as assim chamadas reformas eram a única saída possível e absolutamente necessária para o país.

Apesar disso tudo, porém, penso que no Brasil é fundamental distinguir a política institucional e partidária, mesmo no sentido mais amplo, de uma política mais presente nos costumes. Há sociedades, como a francesa e a argentina, em que as duas caminham paralelas e eventualmente juntas. Mais que isso, em que a política partidária, marcada pela clara distinção entre esquerda e direita, sobredetermina a outra. Fica difícil, nesse quadro, uma pessoa com consciência política e partidária de direita ter uma prática de esquerda. Mas é o que acontece com frequência no Brasil — o descompasso, se quisermos, entre a consciência conservadora e o inconsciente emancipador, entre o ego tradicionalista e o id rebelde.

Veja-se como os dois países vizinhos lidaram com a forte repressão que viveram nos anos 1970. A ditadura militar, na Argentina e também no Chile, voltou as armas tanto contra os dissidentes politicos quanto contra as minissaias. No Brasil, contudo, a repressão foi bastante leve — ou mesmo tolerante — no que dizia respeito a sexo, a costumes, a sentimentos. Isso pode significar que nossos ditadores fossem mais inteligentes, ou, o que é mais provável, que a sociedade brasileira separe, mais que as duas outras, a política em sentido mais próprio e os costumes — e talvez que a vitalidade se concentre mais nestes últimos. O Brasil conseguiu assim liberar costumes no momento mesmo em que a ditadura reprimia a política. Quem viveu aquele tempo lembra quantas vezes, ao ser preso um conhecido, a pergunta era: por razões políticas ou porque portava drogas? Evidentemente, havia repressão, mas, diante dela, uma parte razoável da juventude canalizou sua rebeldia para a música, o sexo, as drogas. Eu, muito comportado e tímido, lia. Mas é interessante que essa rebelião foi muito mais longe do que a consciência das pessoas.

Conto um episódio. No segundo semestre de 1971, estive numa grande cidade do interior paulista, para fazer parte do júri de um festival de teatro amador. Um dia, no almoço, ouvíamos na mesa ao lado jovens de uma cidade próxima tocando violão. Cantavam, com entusiasmo, “Caminhando”, a música de Geraldo Vandré que, na época, estava proibida nas rádios. Visivelmente, eles não estavam a par da proibição. Enquanto isso, tínhamos em nossa mesa o jornal O Estado de S. Paulo, que na primeira página destacava: “Lamarca morto na Bahia”. O rapaz que tocava o violão viu a notícia e perguntou quem era. Ou seja, ele podia perfeitamente cantar a música mais associada à subversão e ignorar quem, naquele momento, melhor a representava.

Nossa tendência, nesses casos, é lamentar a má formação de nossos jovens. É dizer que um bom sistema educacional permitiria maior consciência política e, portanto, tornaria as pessoas menos joguetes de uma mídia que ninguém controla. Não nego isso. Mas desejo considerar alguns pontos que minimizam, muito, esse juízo apressado. O primeiro é que estudar a política no Brasil exige que entendamos este dado básico: que a liberdade, aqui, tem a ver mais com os costumes do que com as instituições políticas. Ora, num mundo que aprendeu a desconfiar, com certa razão, dos discursos racionais sobre uma política concebida — também — com base na racionalidade, essa característica brasileira permite ir mais longe, em vez de ficar aquém, daquilo que tradicionalmente concebemos por política. Essa energia que foi barrada no campo institucional da política revelou-se muito rica em outros domínios.

A música popular, por exemplo, assumiu um papel decisivo. Tomem, por exemplo, a dimensão que atingiu o show Cálice, que Gilberto Gil fez no campus da USP em 1973 após o assassinato, pela repressão, do estudante Alexandre Vannuchi Leme. Não é que isso se desse apenas no vazio da organização tradicional da política. Não é que a canção e a emoção que ela porta suprissem, pela porta dos fundos, uma forma canônica e, essa sim, correta. Se Chico Buarque, Caetano Veloso e Gil, sem esquecer outros nomes, assim portaram a ágora num momento em que outras vias de expressão estavam barradas, não foi apenas porque essas outras saídas não se mostravam disponíveis (no dizer de Gil aos estudantes, “vocês querem que eu fale o que vocês não têm coragem ou não podem falar”). Ou talvez até tenha sido, mas o fato é que isso ou configurou, ou reforçou, uma qualidade já distintiva de nossa sociedade, embora infelizmente bastante minimizada pelos que estudam propriamente a política.

Comparemos a canção brasileira à francesa de protesto. Esta também, nos mesmos anos 1970, mobilizava os jovens em seu país. Mas se tratava quase de uma letra declamada. Se a letra era interessante e inteligente, era, porém, menos lírica, e a música que a acompanhava mostrava-se incomparavelmente mais pobre que a brasileira. O que a sociedade brasileira tem de interessante, em termos de política, é a batalha pelo afeto. Daí, certamente, a superioridade, na televisão, da novela sobre o noticiário. Talvez nossa cultura consiga expressar-se melhor, com mais riqueza e criação, ali onde não está em jogo apenas a razão, a política tal como ela se construiu ao longo dos últimos séculos, talvez, na dramaturgia popularizada, ela encontre melhor o que dizer.

Isso se nota na questão da igualdade da mulher em relação ao homem e, em menor escala, na condenação do preconceito de raça, que têm sido temas frequentes nas novelas. Obviamente, ninguém espera que a televisão seja profunda ou pioneira, mas só ela pode levar uma ideia ou mesmo um ideal, um comportamento à metade da população brasileira.

Desde pelo menos Dancing Days, que data de 1979, as novelas insistem numa agenda de costumes. Aliás, podemos recuar essa tomada de partido ao menos até Gabriela, em 1975. Uma crítica constante ao machismo, uma defesa das condutas historicamente reprimidas, como a do homossexual masculino e a da lésbica (neste caso, chocando-se algumas vezes com um público mais preconceituoso), passaram a ser comuns, em especial na novela mais refinada, a das oito. Sem dúvida, deve-se notar que é uma agenda que custa pouco em dinheiro e afronta relativamente menos os poderes econômicos. Se a tevê tematizasse a desigualdade e a injustiça sociais, possivelmente entraria em choque com os patrocinadores. E, se ela ainda tem dificuldade em desenvolver uma campanha contra o racismo com intensidade comparável à que investiu no combate ao machismo, é porque a condição subalterna do negro é um problema social efetivo, e não algo que se altera apenas “mudando-se as cabeças das pessoas”. Um conflito entre homem e mulher se dá no interior da mesma classe e pode ser resolvido no quadro de uma relação de amor. A tese é justamente que o casal será mais feliz se o homem renunciar ao machismo. É um jogo de soma positiva, em que os dois lados ganham, enquanto no racismo a soma tende mais ao zero, isto é, o que um ganha o outro deve ceder ou perder.[4] Mas, com essa ressalva, considero que em termos gerais as novelas representam o que há de mais positivo, do ponto de vista democrático, na televisão brasileira.

Justamente, contudo, porque assim reconheço suas qualidades, é significativo que elas exponham um afeto de qualidade autoritária. Veja-se o despotismo do patrão sobre os empregados, e da patroa sobre a doméstica negra. Há personagens, como o que José Mayer sustentou em Laços de família, que não respeitam o outro, mas mesmo assim são apresentados como simpáticos. A tevê ainda tolera condutas que socialmente se tornam cada vez mais inaceitáveis.

É raro, assim, um patrão agradecer a uma empregada doméstica, ou um superior tratar um subordinado com os “por favor” e “obrigado” que deveria empregar. Esse, porém, não é um problema apenas da televisão, isto é, da representação ficcional de nossa sociedade, está presente nela mesma. Se a tevê se recusou a aceitar, contudo, o status quo no tocante à mulher, poderia fazer o mesmo na questão da desigualdade social, pelo menos no que se refere à educação e aos afetos.

Gilda de Mello e Souza, crítica de arte, ensinou-me há muitos anos que uma novela precisa ter personagens de várias classes sociais. Se não tiver pobres, classe média e ricos, não atingirá a todos os públicos. A comunicação entre essas classes enseja a ascensão social. Acrescento: e dá-se, sobretudo, pelo amor. O problema — talvez justamente por isso, isto é, por ser a pobreza insuportável, por ser a ascensão social o grande tema, por ela se dar por meio da sedução sexual ou da conquista amorosa — é duplo. Primeiro, o amor está conotado pelo dinheiro e mesmo pela salvação que este (o amor, o dinheiro…) pode proporcionar. Segundo, a relação entre as classes torna-se autoritária, porque o resgate da dívida social, que seria dever político e público, passa a depender de relações privadas de amor, e esse passa a ser o cerne do modo pelo qual os personagens se relacionam. Não espanta então que a simpatia ao longo da novela, assim como o sucesso final dos personagens, dependa bem pouco de suas qualidades morais: personagens despóticos podem assim ser agradáveis, humanos, quase positivos.

Na verdade, o problema está nessa tolerância que nossa sociedade, nunca tendo liquidado seu legado autoritário ou quitado sua dívida com os índios e os negros, mostra em relação aos pequenos déspotas do cotidiano. O modo com que concebemos as relações sociais ainda deve à escravatura. Devemos ter isso em conta, até para mudá-lo.

Voltando a nosso ponto inicial: a televisão consegue determinar, não ex nihilo, mas mesmo assim com bastante força, uma agenda para a conversa brasileira. Sempre é interessante ver de onde as pessoas retiram assuntos para conversar, em especial, a prosa mole, a conversa sem maiores compromissos, mas que é fundamental, porque formata identidades: é a essa ágora que me refiro quando digo que a tevê contribui em larga medida para construí-la. Ora, que as relações autoritárias estejam no horizonte do possível é significativo.

E, no entanto, se aqui está o problema, também está aqui a via para sua solução. Não é mais possível pensarmos em uma política construída sem o afeto, contra o afeto, como em larga medida foi a da rule of law, do Estado de Direito, que é uma das enormes conquistas da modernidade ocidental. Uma conquista que eu respeito e elogio, mas cujo custo deve ser mostrado: ao se ver o afeto como a via por onde entra o capricho, o arbítrio, fica indicado que não se procurou democratizar o campo afetivo. Ele foi simplesmente reprimido, represado, descartado. O desafio de nossos tempos — um desafio mundial — consiste em democratizar as paixões. Um país no qual a política tradicional, a política dos grandes livros de referência que a constituíram em sua versão moderna, tem relativamente pouco sucesso, assim pode — paradoxalmente — fornecer perspectivas novas: a possibilidade de uma batalha pelo afeto. E o lugar por excelência onde o afeto se faz ágora é a televisão. Daí, concluo: por isso é tão importante, para quem pensa a coisa pública, refletir sobre os modos pelos quais ela se dá, hoje, na telinha.

Notas

[1] Para um desenvolvimento mais longo sobre a televisão, ver Renato J. Ribeiro, O afeto autoritário: televisão, ética, democracia (São Paulo: Ateliê, no prelo), que reúne colaborações no Telejornal de O Estado de S. Paulo, na revista Bravo e ainda um artigo mais longo que escrevi para o projeto Cultura e Democracia.

[2] Ver Contardo Calligaris, A adolescência (São Paulo: Publifolha, 2000).

[3] Poderíamos entrar no detalhe. O grande doutrinário do sujeito como proprietário, e por isso mesmo o pai fundador do que podemos chamar o pensamento liberal, é John Locke, constantemente celebrado, portanto, como defensor do individualismo. Se lemos, contudo, seu Segundo tratado do governo — a Magna Carta do pensamento político burguês —, vemos que ele divide sua ênfase entre a liberdade do indivíduo em face de seus pares e sua obrigação de obedecer à ordem que Deus outorgou ao mundo. Assim, o individualismo é relativo. Ele se refere apenas a uma relação horizontal, que é de igualdade e liberdade. Mas a relação decisiva, a vertical, que organiza o mundo, não é determinada por ele. Isso não implica que o individualismo seja totalitário — apenas, que ele não é incompatível com uma noção bastante forte da ordem.

[4] A Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul testemunhou um episódio interessante. Um negro, que tivera sua terrinha e a vaca que lhe garantia o sustento subtraídas por um fazendeiro branco, na era do apartheid, encontrou-se com este último, que lhe pediu perdão e propôs que se reconciliassem. Assim foi feito. Mas o negro, depois de se abraçarem, perguntou ao branco, que já ia embora: “E minha vaca?”. O branco, surpreso, reclamou que ele assim estragava “um momento tão belo, tão comovente”. Relatado por Lisa Magarrell, do International Center for Transitional Justice, em palestra a 19 de fevereiro de 2004, na Universidade Columbia, em Nova York.

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