A sedução relativa
por Antonio Cicero
Resumo
A difusão contemporânea do relativismo universal conduz ao silêncio dos intelectuais modernos. Mas em que consiste o intelectual moderno? Ele é, antes de tudo racional, capaz expor suas teses à crítica, ao questionamento e à dúvida. Quando as condições políticas do exercício irrestrito da crítica se encontram ameaçadas espera-se que o intelectual se manifeste publicamente.
A modernidade filosófica não é nem jamais foi relativista, pelo menos no sentido vulgar. É verdade que, desde o princípio, Descartes e, mesmo antes dele, Montaigne, por exemplo, puseram em questão todos os pretensos conhecimentos dados ou positivos – o que, de certo modo, equivale a relativizá-los. Por outro lado, a razão (enquanto faculdade de criticar) é reconhecida como absoluto epistemológico.
O relativismo moderno reconhece a clivagem entre a razão negativa e absoluta, por um lado, e os conhecimentos positivos e relativos, por outro, e escapa da autocontradição performativa do relativismo universal manifestado na proposição “toda verdade é relativa” pois se a proposição for relativa, segue-se que nem toda verdade é relativa; por outro lado, se a proposição “toda verdade é relativa” não for relativa, segue-se, igualmente, que nem toda verdade é relativa.
Heidegger, fazendo uma genealogia do sujeito, pretende realizar a boa relativação dos conceitos ontológicos fundamentais. No plano das interpretações culturais, ele demarca que todas as perspectivas têm o mesmo valor.
Muitas das teses de pensadores pós-heideggerianos, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Richard Rorty e seus discípulos, podem ser consideradas relativistas, mesmo se eles próprios jamais tenham querido assim se rotular.
O relativismo universal, defende uma sociedade fechada se obrigando a dar valor às crenças vigentes em diferentes culturas, mesmo quando são intolerantes e anti-relativistas.
Daí, mesmo defendido a partir de uma atitude pluralista, o relativismo universal se mostra inviável no ponto de vista prático ou político. É que, como diz Platão sobre o relativista Protágoras: “ele é vulnerável no sentido de que às opiniões dos outros dá valor, enquanto que esses não reconhecem nenhuma verdade às palavras dele”. Enquanto o relativista aceita como relativamente verdadeiras as crenças do anti-relativista ou absolutista (seja ele, por exemplo, um terrorista jihadista), esse não reconhece absolutamente nenhuma verdade nas teses que, para ele, não passam de manifestações de fraqueza e decadência do relativista.
O relativismo moderno não incorre em etnocentrismo, não deixa de afirmar o caráter absoluto da razão crítica e não é suscetível de ser transformada no seu oposto, tal como ocorre com o relativismo cultural.
Trata-se aqui do relativismo enquanto um dos fatores que explicam o silêncio dos intelectuais.
Mas, exatamente, a que se refere “o silêncio dos intelectuais”? Em primeiro lugar, devo dizer que vou aqui usar o substantivo “intelectual” no sentido ingênuo, comum, cotidiano, tal como é usado pela imprensa e tal como se encontra no dicionário: por exemplo, no Houaiss,[1] que chama de intelectual
[…] aquele que vive predominantemente do intelecto, dedicando-se a atividades que requerem um emprego intelectual considerável (trabalhador i.) (alguns i. admitem não ter senso muito prático);
[…] aquele que demonstra gosto e interesse pronunciados pelas coisas da cultura, da literatura, das artes etc. (é filho de (pais) i. e desde cedo conviveu com livros);
[…] aquele que domina um campo de conhecimento intelectual ou que tem muita cultura geral; erudito, pensador, sábio (manifesto dos i. do país contra a tortura).
Naturalmente, há inúmeras razões pelas quais, em diferentes circunstâncias, um intelectual — ou qualquer pessoa — silencia. Por que, então, tratar especificamente do silêncio dos intelectuais? Parece-me que o silêncio dos intelectuais somente pode tornar-se um tema de discussão caso (1) haja de fato ocasiões em que se espera que os intelectuais falem pública ou politicamente, exatamente em virtude de serem intelectuais e (2) embora tais ocasiões se tenham apresentado, os intelectuais (ou a sua maior parte, ou os mais destacados deles) tenham preferido ficar em silêncio.[2]
Pois bem, creio que essas duas condições se dão, de fato, hoje em dia. Tento mostrar que há ocasiões em que se espera que um intelectual moderno fale pública ou politicamente. Para indicar a razão disso, tenho (A) que esclarecer o que é um intelectual moderno. Isso me obriga (B) a discorrer sobre a modernidade, o que inclui descrever determinado tipo de relativismo, que penso ser parte constitutiva dela. Parece-me também que, (C) nas situações em que se espera que os intelectuais modernos falem pública ou politicamente, grande parte deles tem, ultimamente, preferido manter o silêncio. (D) Relaciono essa postura com o predomínio, nos meios intelectuais contemporâneos, do relativismo, mas não do (i) tipo de relativismo que considero indissociável da modernidade, e sim de (ii) um outro tipo de relativismo, cuja especificidade busco determinar.
Minha primeira pergunta é, portanto: em que consiste um intelectual moderno? Dado que o substantivo “intelectual” é, ele mesmo, moderno e recente, o termo “intelectual moderno” poderia, apesar da amplitude da extensão da definição de “intelectual” que ab initio escolhi, ser tido, à primeira vista, por pleonástico, não tivesse Jacques Le Goff escrito seu famoso livro, Os intelectuais na Idade Média.[3] Desde então, porém, pode-se definir o intelectual moderno em oposição ao intelectual medieval. Este, segundo Le Goff, aparece com o ressurgimento das cidades, no século XII. Penso, entretanto, que Agostinho — vivendo entre os séculos IV e V — provavelmente já pode ser considerado medieval e, certamente, intelectual. De toda maneira, o que parece caracterizar a filosofia medieval como um todo é o lugar central que nela ocupa a problemática da dicotomia entre a fé e a razão (ou intelecto), por um lado, e entre teologia e filosofia, por outro. Falarei apenas — e muito esquematicamente — da primeira, que é a principal.
Agostinho, seguindo o profeta Isaías, postulava crede ut intelligas (crê para entender),[4] e, ainda no século XI, Anselmo de Canterbury dizia credo ut intelligam (creio para entender).[5] Para eles, a fé é a condição do entendimento. Em Abelardo, no século XII, o pêndulo parece pender para a razão, em oposição, por exemplo, a Bernardo de Clairvaux, seu contemporâneo. Para Alberto Magno e Tomás de Aquino, no século XIII, embora, em última análise, haja uma predominância da fé, tanto esta quanto a razão se confirmam e complementam mutuamente. A partir, pelo menos, do século XIV, com João Escoto Erígena e Guilherme de Occam, tem-se, até o século XVI, vários modelos de separação entre o domínio da fé e o da razão. Essa separação pode se dar ou na forma de exaltação da fé e desprezo à razão (por exemplo, no século XVI, tanto em Lutero como no ceticismo fideísta de Charron) ou, ao contrário, na forma de uma homenagem protocolar à fé, como passaporte para cultivar exclusivamente a razão (por exemplo, ainda no século XVI, no ceticismo pseudofideísta de Montaigne).
Na plena modernidade, essa problemática deixa de existir, pois um dos seus polos, o da fé, é simplesmente abandonado ou esquecido, em proveito do monopólio da razão. Isso ocorre necessariamente, pois, em última análise, não é possível estabelecer nenhum compromisso estável entre esses termos, que são simplesmente antitéticos. De fato, do ponto de vista epistemológico,[6] o que é ter fé senão crer firmemente em alguma coisa, sem ter razão nenhuma para isso?[7] Ou, em outras palavras, ter uma certeza sem fundamento algum?
E o que é a razão, em primeiro lugar, senão exatamente a crítica, o questionamento, a dúvida em relação a qualquer opinião que, sustentada apenas na base da autoridade ou na base da fé, seja impermeável à comprovação pública, em princípio universal? A afirmação de uma opinião que não tenha passado pela crítica não é necessariamente uma manifestação nem de racionalidade nem de irracionalidade, pois nem tudo precisa ser criticado o tempo todo; entretanto, a tentativa ativa de subtrair alguma opinião à crítica, a tentativa de proibir a crítica é anti-racional.
Logo, ser racional é
(1) ser capaz de expor qualquer tese à crítica; e
(2) aceitar como verdadeira a tese que, estando aberta, pública e irrestritamente exposta a qualquer crítica,
(A) não é absolutamente suscetível de ser negada (pois sua negação implicaria autocontradição formal ou transcendental-pragmática), ou,
(B) atendo-se a causas imanentes (no sentido de não transcendentes), sendo consistente, sistemática e dotada de abrangência e de poder explicativo tão ou mais amplo do que as teses alternativas, tem resistido às tentativas sistemáticas de refutação, embora seja, em princípio, refutável;
(3) estar disposto a rejeitar uma tese previamente sustentada, uma vez que ela tenha sido refutada e/ou superada por outra que, dotada de maior abrangência e poder explicativo, tenha resistido às tentativas sistemáticas de refutação, embora seja, em princípio, refutável;
(4) defender as condições políticas do exercício irrestrito da crítica, isto é, defender a sociedade aberta à crítica irrestrita.
Eis, portanto, a resposta à questão sobre o intelectual moderno. Ele é o intelectual racional, no sentido que acabo de descrever. O item (4) explicita também pelo menos uma das condições em que se espera que o intelectual moderno fale: quando se encontram ameaçadas as condições políticas do exercício irrestrito da crítica; quando a sociedade aberta à crítica se encontra ameaçada. É pela impossibilidade de cumprir a exigência enunciada nos itens (2B) e (3) (ad finem) que uma “teoria”, tal como a do “intelligent design”, não é racional. Exatamente porque, com base em putativas causas transcendentes, pode-se explicar tudo em geral e qualquer coisa em particular, esse tipo de explicação não explica nada. Trata-se do tipo de causalidade que é um princípio irrefutável e, por isso mesmo, imprestável. Nenhuma ciência é possível apelando-se a Deus, pois este nunca deixa de ser uma “causa” produzida ad hoc, ou melhor, ex machina.
Entretanto, tendo associado modernidade e racionalidade, cabe agora perguntar em que se baseia essa associação. Em que consiste a modernidade?
Seria possível concebê-la meramente como um determinado período de tempo. Por exemplo, poderíamos definir “moderno” como tudo o que se encontra entre um fato histórico qualquer, digamos, a descoberta da América, em 1492, e hoje. Entretanto, esse sentido convencional da palavra “modernidade” deixa de levar em conta a absoluta originalidade que se manifesta no próprio emprego da palavra “moderno” como epíteto de uma época. Outras épocas se denominavam a partir de nomes próprios de lugares, dinastias ou pessoas, ou características políticas ou religiosas. Os romanos, por exemplo, demarcavam o tempo tendo por referência a fundação (mítica ou real, pouco importa) de Roma. Distinguiam a época anterior à sua fundação da época posterior a ela. Consideravam viver na época posterior à fundação de Roma. A partir do imperador Augusto, passaram a diferenciar também, na história de Roma, a monarquia, a república e o império: diziam então viver na época do império. Os chineses e os egípcios usavam os nomes de suas dinastias para diferenciar as épocas, inclusive aquela em que viviam. Já os primeiros cristãos passaram a demarcar o tempo tendo por referência o nascimento (mítico ou real, pouco importa) de Cristo: para eles, sua época era a época cristã.
São quase sempre nomes próprios, de lugares, dinastias ou monarcas, ou características políticas ou religiosas, que servem para denominar ou demarcar as diferentes épocas. Foi a redescoberta da Antiguidade clássica pelos humanistas que ocasionou um modo diferente de considerar a história. Para os cristãos, como eu disse, a grande divisão era a que separava época posterior ao nascimento do Cristo da época anterior a ele. Fora disso, um homem do século XII, por exemplo, não supunha haver qualquer solução de continuidade entre si próprio e o mundo antigo. A palavra modernus era usada pelos cristãos, pelo menos a partir de Cassiodoro, no século VI, para designar algo como “relativo a agora”, algo que poderíamos chamar de agoral. Mas ninguém pensava em falar em Época Moderna. Assim, a palavra modernus ainda não tinha sentido epocal. Os “modernos” eram simplesmente os contemporâneos. Foi em oposição à maneira de pensar e de falar, e em oposição ao gosto dos seus contemporâneos escolásticos, isto é, dos “modernos” de então, que os humanistas ambicionaram emular o modo de pensar e falar e o gosto dos antigos. Entre estes e aqueles, porém, se interpunha um período extenso, que tivera início na invasão e na destruição do Império Romano pelos bárbaros. A essa longa intermissão, que passaram a considerar uma época de barbárie entre a civilização dos antigos e a sua redescoberta dela, os humanistas deram o nome de medium tempus ou media tempestas e, depois, medium aevum, de onde o nosso medievo, cuja tradução é idade média.[8]
Com o tempo, os tais escolásticos “modernos”, desprezados pelos humanistas, passaram a ser considerados remanescentes da Idade Média, e estes passaram a ser os verdadeiros modernos. A partir disso, entre os séculos XVI e XVIII, criou-se o famoso esquema tríplice de divisão da história, que persiste até hoje. Tem-se a Antiguidade, a Idade Média (para onde foram relegados os escolásticos “modernos”) e a Época Moderna ou Modernidade.
Assim, estamos de volta à época moderna, mas de outra maneira. Agora podemos entender a originalidade dessa denominação. Pela primeira vez, a palavra com a qual uma época se autodenomina é um conceito universal. Seu significado é, como já indiquei, algo que seria expressado pela palavra agoral. Desde o início manifesta-se, portanto, um aparente paradoxo. Sendo um universal, moderno não se refere a coisa alguma que possa particularizar a época assim autodenominada. Em princípio, qualquer época poderia ter se chamado moderna ou agoral. Entretanto, justamente o fato de que, apesar disso, nenhuma outra época o tenha feito, constitui, para a época que o faz, uma diferença mais radical do que qualquer outra concebível. É como se, enquanto cada uma das demais épocas tivesse escolhido definir-se — o que é perfeitamente compreensível — por aquilo que a distinguisse das demais, a época moderna tivesse preferido não se definir; como se tivesse preferido abdicar de escolher uma particularidade que lhe conferisse distinção; como se, no fundo, ela não se considerasse uma época particular entre outras, mas uma época universal, ou, o que dá no mesmo, uma antiépoca, isto é, a própria abolição da epocalidade. É como se não se vivesse mais em uma época particular — como, por exemplo, na “era cristã” —, mas simplesmente no eterno agora.[9]
Aqui tocamos num ponto crucial. Como Aristóteles observou no seu famoso estudo sobre o tempo, no quarto livro da Física,[10] “o agora é, num sentido, o mesmo, noutro sentido, não o mesmo”.[11] Como o que não é o mesmo, ele é o agora passageiro, que cede lugar a outro agora, que, por sua vez, cede lugar a outro, interminavelmente. Pensado até as últimas e aporéticas consequências, como o fez Agostinho, o agora assim concebido não pode ter extensão alguma: do contrário, por menor que fosse essa extensão, ela se dividiria em passado e futuro, que não são agora.[12] O outro modo de conceber o agora é como sendo sempre o mesmo. Nesse sentido, sempre é agora. Jamais me encontro em um momento que não seja agora: o que muda incessantemente são as coisas que pertencem ao agora, isto é, as coisas a ele presentes.[13] Esse é o eterno agora da modernidade.
No plano intelectual, seria um erro — porém bem ao gosto das modas deste começo do século XXI — tomar a recusa moderna de se particularizar como sinal de arrogância. Mais correto seria, ao contrário, considerá-la resultado de um extremo despojamento.
Normalmente, pensamos no século XVI como — nas palavras de Alexandre Koyré — “ampliação sem igual da imagem histórica, geográfica, científica do homem e do mundo. Efervescência confusa e fecunda de ideias novas e ideias renovadas. Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo”.[14] Isso nos faz muitas vezes esquecer que ele foi também, segundo a descrição do mesmo autor,
crítica, desmoronamento e enfim dissolução e mesmo destruição e morte progressiva das antigas crenças, das antigas concepções, das antigas verdades tradicionais que davam ao homem a certeza do saber e a segurança da ação. […] Ele [o século XVI] desmoronou tudo, destruiu tudo: a unidade política, religiosa, espiritual da Europa; a certeza da ciência e a da fé; a autoridade da Bíblia e a de Aristóteles; o prestígio da Igreja e o do Estado.[15]
Tudo isso, aliado à leitura de textos antigos, como os de Cícero, Diógenes Laércio e, sobretudo, Sextus Empiricus, propicia o ceticismo, cuja mais alta expressão moderna se encontra sem dúvida em Montaigne. Ora, o ceticismo de Montaigne atinge diretamente as pretensões europeias de considerar bárbaros os costumes de outros povos, na medida em que diferem dos seus. Lembro seu famoso ensaio sobre os canibais do Brasil. “Acho”, diz ele, “[…] que não há nada de bárbaro e de selvagem nessa nação, pelo que me disseram, senão que cada qual chama de barbárie o que não é de seu costume.”[16]
Em seguida, tendo descrito como os índios brasileiros matavam e comiam seus prisioneiros de guerra, ele explica que não acha errado que censuremos o horror barbaresco que há em tal ação, “mas sim que, julgando bem os seus erros, sejamos tão cegos quanto aos nossos”. E, observando que “há mais barbárie em comer um homem vivo do que em comê-lo morto”, passa a descrever os horrores que haviam sido cometidos na Europa por ocasião das guerras religiosas, horrores testemunhados por ele próprio e cometidos “não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e concidadãos, e, o que é pior, sob o pretexto de piedade e de religião”.[17] “Podemos portanto”, conclui, “chamá-los [aos canibais] bárbaros, tendo em vista as regras da razão, mas não tendo em vista a nós mesmos, que os superamos em toda espécie de barbárie.”[18]
As regras da razão — no sentido em que essa palavra é empregada no ensaio sobre os canibais — não se confundem, portanto, com as regras da cultura cristã ou europeia. Se comparassem o comportamento dos canibais ao deles mesmos, os europeus não teriam o direito de considerá-los bárbaros. Não obstante, eles arrogantemente consideravam bárbaros todos os povos não-europeus ou não-cristãos. Ora, pelas regras da razão, os cristãos são ainda mais bárbaros que muitos desses povos; mais bárbaros que os índios brasileiros; mais bárbaros até que os canibais brasileiros. Para que Montaigne julgue dessa maneira os europeus, é preciso, evidentemente, que se tenha distanciado deles tanto quanto de qualquer outro povo. É preciso que ele se tenha desprovincianizado, tanto do ponto de vista temporal (a partir da redescoberta do pensamento antigo, que relativiza o pensamento escolástico, contemporâneo a ele), quanto do ponto de vista espacial (a partir dos resultados das descobertas geográficas, como mostra o exemplo dos índios brasileiros); é preciso que ele tenha se cosmopolizado, de modo a ter sido capaz de abandonar — pelo menos na medida em que é capaz de fazer tais juízos — a cultura particular em que foi criado. Ora, se a condição para que a razão se manifeste é que a cultura cristã europeia ocidental — como qualquer cultura particular — tenha sido preterida, é que a razão está longe de pertencer a essa ou a qualquer outra cultura. Ela não é sequer um produto dessa cultura, mas desabrocha plenamente durante a sua dissolução. Em outras palavras, não é a força, é a fraqueza, é a desintegração da cultura cristã que permite o surgimento da razão crítica de Montaigne.
Na mesma linha de raciocínio, ao criticar “uma certa imagem de probidade escolástica, escrava de preceitos e coagida pela esperança e o medo”, Montaigne diz que prefere pensar que a probidade não seja feita pelas religiões, que apenas a completariam e autorizariam; que ela consiga “se sustentar sem ajuda, nascida em nós de suas próprias raízes pela semente da razão universal impressa em todo homem não desnaturado”. E arremata: “[…] a experiência nos faz ver uma distinção enorme entre a devoção e a consciência”.[19] Ou seja, a devoção, isto é, a religião, não é o fundamento da ética, que se encontra na razão. Não são a esperança (do céu) nem o medo (do inferno) difundidos pela religião que produzem a honestidade. A razão, que constitui o verdadeiro fundamento da ética, não pertence à cultura em oposição à qual se manifesta.
O mesmo cosmopolitismo se encontra em Descartes. “É bom”, afirma ele no Discurso do método, “saber algo sobre os modos de diversos povos, a fim de julgar os nossos com mais sanidade, e para que não pensemos que tudo o que é contra nossos modos seja ridículo, e contra a razão, assim como têm costume de fazer os que nada viram.”[20] E mais:
[…] vendo várias coisas que, embora nos pareçam muito extravagantes e ridículas, não deixam de ser comumente recebidas e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não crer em nada tão firmemente daquilo que somente me havia sido persuadido pelo exemplo e pelo costume; e assim me liberei pouco a pouco de muitos erros que poderiam ofuscar nossa luz natural e nos tornar menos capazes de entender a razão.[21]
Como se vê, tanto Montaigne como Descartes estabelecem uma dicotomia entre, de um lado, a razão, a crítica e o ceticismo e, de outro lado, os modos dos povos, os costumes, as religiões, a barbárie. A razão é aquilo que se separa e se distancia de todos esses fenômenos culturais particulares.
Suponho que muitos, e talvez até a maior parte dos meus leitores, já conheçam até de cor e salteado os trechos do Discurso do método que tenho citado. Entretanto, peço-lhes paciência para suportar mais algumas citações da obra-prima de Descartes:
Tendo aprendido, desde o colégio, que não se conseguiria imaginar nada tão estranho e pouco crível que não tenha sido dito por algum dos filósofos; e desde então, viajando, tendo reconhecido que todos aqueles que têm sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que muitos usam, tanto ou mais que nós, da razão; e tendo considerado quanto um mesmo homem, com seu mesmo espírito, sendo nutrido desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria, se tivesse sempre vivido entre chineses ou canibais; e como, até os modos das nossas roupas, a mesma coisa que nos agradou dez anos atrás, e que nos agradará talvez novamente antes de dez anos, parece-nos agora extravagante e ridícula: de sorte que é antes o costume e o exemplo que nos persuadem, do que algum conhecimento certo […][22]
Descartes como Montaigne, recusa-se a tomar os costumes da sua cultura, isto é, os costumes franceses, europeus, ocidentais ou cristãos, como automaticamente melhores que os costumes de outros povos. Ao contrário: ele relativiza todos os costumes — diríamos hoje, todas as culturas —, sejam de franceses, de alemães, de chineses ou de canibais. O que parece bom a uns, parece mau a outros. O que nos parecia bom há dez anos, parece-nos mau hoje e, talvez, daqui a dez anos pareça-nos novamente bom. Alguém que tenha nascido entre alemães, pensa como os alemães; tivesse nascido entre canibais e pensaria como canibais. Nenhuma cultura particular, do presente ou do passado, pode, portanto, pretender ser essencialmente superior a nenhuma outra. Isso vale, evidentemente, também no que diz respeito às religiões, que talvez não sejam mencionadas explicitamente porque, ao escrever os Discours, Descartes se lembre da prisão, da tortura e da execução de Giordano Bruno na fogueira da Inquisição, que tivera lugar poucas décadas antes, e da prisão e da abjuração forçada de Galileu, ocorrida quatro anos antes. Evidentemente, Descartes não afirma a relatividade das culturas a partir do ponto de vista de nenhuma cultura particular — não o faz, por exemplo, como francês ou cristão —, uma vez que cada uma dessas culturas seria incapaz de tal coisa, por se considerar imensamente superior às demais. Todas elas são por ele relativizadas, a partir do ponto de vista da razão, que não pertence a este ou àquele povo, tanto que pode ser usada por não-cristãos tão bem, e, por vezes, mais bem, do que pelos cristãos. O ponto de vista da razão é exatamente o do puro distanciamento que permite a relativização das diferentes culturas. Não pertencendo a nenhuma cultura positiva, ele somente pode ser caracterizado de modo negativo: “Para todas as opiniões que havia recebido até então em minha crença, eu não podia melhor fazer do que empreender, de uma vez por todas, livrar-me delas, a fim de lá recolocar depois, ou outras melhores, ou então as mesmas, quando as tivesse ajustado ao nível da razão”.[23] Descartes explica que, dado que (1) os filósofos se contradizem, (2) nenhuma cultura se pode pretender superior às demais, (3) nossas opiniões dependem do lugar e da época em que nos criamos, e (4) a pluralidade de vozes a favor de uma opinião “não é uma prova que valha nada para as verdades um pouco difíceis de descobrir, porque é bem mais provável que um homem só as tenha encontrado do que todo um povo”, ele não conseguiu escolher ninguém cujas opiniões lhe parecessem dever ser preferidas às dos outros. Por causa disso, prossegue, “achei-me como obrigado a empreender eu mesmo a me guiar”.[24]
De fato, se ponho em dúvida todas as opiniões — mesmo as que se pretendem racionais —, tanto minhas quanto alheias, assim como todas as autoridades pequenas e grandes, individuais e coletivas, então não me resta senão guiar-me a mim mesmo. Entretanto, como terei posto em dúvida até as minhas próprias opiniões e, levando isso às últimas consequências, até as “opiniões” constitutivas da minha personalidade particular, então não sou mais eu enquanto pessoa particular que me guiarei a mim mesmo, assim como não sou eu enquanto portador de tal ou qual opinião que ponho em dúvida as minhas próprias opiniões: faço-o enquanto puro portador da dúvida, da crítica, da negação: isto é, enquanto puro e, por isso, universal, portador — ontologicamente indeterminado — da razão.
Descartes é, com justiça, considerado o fundador da filosofia moderna. Tentarei, em seguida, reconstruir esquematicamente o cogito, tendo em vista não uma fidelidade histórica às intenções pessoais de Descartes, nem à interpretação tradicional (não o tomo, por exemplo, como uma tentativa de provar a existência de quem o enuncia): interessa-me exclusivamente a construção do conceito de modernidade.
Submeto todas as minhas opiniões à dúvida: duvido de tudo o que me parece certo, de tudo o que aprendi, da existência do mundo, da existência do meu corpo, do meu passado, do meu presente, da minha personalidade, de Deus. É concebível que quaisquer coisas que se apresentam a mim como reais sejam irreais; que quaisquer coisas que se apresentam a mim como existentes não existam e jamais tenham existido. Sou capaz de negar cada uma das coisas que concebo. Entretanto, justamente ao duvidar de cada uma dessas coisas, justamente ao negar qualquer coisa que a mim se apresente, não posso, seja quem eu for, não ser.
O cogito é originariamente um dubito. Com isso não quero dizer simplesmente que o dubito é cronológica e logicamente anterior ao cogito, mas outra coisa. Em primeiro lugar, quero dizer que o cogito consiste na certeza do ser do dubitante. Mas, em segundo lugar, que a certeza do ser do dubitante é exatamente a certeza do ser daquilo que não consiste em nenhum dos entes suscetíveis de ser apresentados e submetidos à dúvida. Digamos que os objetos da dúvida sejam A, B e C. Dizer que são objetos da dúvida é dizer que possivelmente não existam. Enquanto objetos, A, B e C não passam dos dados A, B e C. A possibilidade de que não existam, porém, não se encontra dada por eles mesmos, mas pelo dubitante. Enquanto duvido de tudo, sou a consciência da possibilidade do não ser do que é apresentável a mim, isto é, sou justamente algo que não pode ser apresentado a mim. É por isso que aquilo que, de mim, pode a mim ser apresentado — e ser objeto da minha dúvida —, não sou eu enquanto duvido. Meu corpo, como eu disse, pode ser a mim apresentado, e dele posso duvidar. O mesmo se dá com a minha personalidade e o meu caráter. Enquanto duvido, sou diferente do meu corpo, da minha personalidade e do meu caráter, como sou diferente de todas as coisas de que posso duvidar. Nesse sentido, enquanto duvido, separome do que é suscetível de ser duvidado por mim. Se a dúvida é indubitável, então também é indubitável a diferença entre mim que, enquanto duvido, nem posso deixar de ser nem posso me apresentar a mim, e aquilo de que duvido, que pode ser ou não ser e que, na medida em que é, me é em princípio apresentável, quer dizer, é, ao contrário de mim, em princípio capaz de se tornar presente.
Por outro lado, embora eu seja capaz de negar o ser de tudo o que se apresenta ao meu pensamento, não sou capaz, sem ser, de negar o ser de coisa alguma. Não posso, sem ser, conceber que eu mesmo possa não ser. Enquanto instância à qual é apresentável tudo o que pode ser negado, eu mesmo não posso ser negado. Justamente ao fazer de conta que nada existe, não posso eu mesmo deixar de ser. Ao conceber a nulidade de tudo isso, furto-me — nego-me — a tudo isso. Essencialmente não sou nada disso, mas também — e mais decisivamente — sou o não de tudo isso.
Aquilo que pode consistentemente ser submetido à dúvida e negado são as coisas que podem ser ou não ser. Assim são todas as coisas concebíveis, exceto eu mesmo, enquanto as concebo. Dizem-se contingentes as coisas que podem ser ou não ser. Isso significa que todas as coisas concebíveis (exceto eu mesmo, enquanto as concebo) são contingentes. Por outro lado, aquilo que não pode ser submetido à dúvida ou negado é aquilo que não pode deixar de ser. Tal sou eu mesmo, enquanto duvido ou nego: enquanto dubitante ou negante. Ora, conceber, duvidar e negar são espécies de pensamento; logo, sou eu, enquanto penso, que não posso deixar de ser. Diz-se necessário aquilo que não pode deixar de ser.
Evidentemente, quando falo de mim como necessário, não me refiro a mim enquanto parte do mundo. Durante o dubito que leva ao cogito, duvidei da existência do meu corpo, do meu passado, do meu presente, da minha personalidade. Na verdade, pus em dúvida tudo o que, em mim, era propriedade, qualidade ou predicado positivo, empírico, particular, concreto. Tudo isso podia ser sonho, ilusão, delírio. Quando, portanto, depois de pôr tudo isso em dúvida, cheguei à conclusão de que, enquanto pensante, não posso consistentemente pôr-me em dúvida, isto é, de que não posso estar enganado ao pensar que existo enquanto pensante, é evidente que não é senão enquanto tal que não posso pôr a mim mesmo em dúvida. Quando digo “penso, logo sou”, não estou dizendo: “eu, este homem, penso, logo sou”. Também a minha humanidade foi, como as minhas demais qualidades, negada de mim. Mesmo que ela seja um engano, porém, e eu não seja um ser humano, ainda assim é verdade que penso, logo sou. Tampouco estou dizendo: “eu, Antonio, penso, logo sou”. Antonio — como todas as minhas demais qualificações ou descrições positivas — foi por mim negado de mim. Mesmo que eu não seja Antonio, porém, ainda assim é verdade que penso, logo sou. Consequentemente, não sou eu, enquanto pessoa, que sou necessário, mas somente enquanto pensamento impessoal. Enquanto necessário, nada tenho de pessoal, positivo, empírico, particular, concreto, finito, relativo. Enquanto tal, sou, portanto, além de impessoal, negativo, puro, universal, abstrato, infinito e absoluto. Observe-se que estou usando a palavra “negativo” aqui em um sentido muito radical, que significa destituído de toda positividade, isto é, absolutamente negativo. É nesse sentido que, enquanto necessário, sou negativo. Doravante, toda vez que me qualificar de “negativo”, devo ser entendido nesse sentido.
Poder-se-ia objetar que tudo o que existe é exatamente o oposto disso. Com efeito, tudo o que existe é positivo, empírico, particular, concreto, finito, relativo etc. O que não é todas essas coisas simplesmente não existe. A palavra existir, porém, nos dá, ela mesma, uma pista para entender esse paradoxo. Como é que, enquanto necessário, eu, que não posso deixar de ser, sou incapaz de existir? A razão disso é que “existir” quer dizer exatamente estar ou ser fora. Fora de quê? Fora de mim, enquanto sou necessário. O que existe é o que está ou é fora de mim, isto é, o que não sou eu, enquanto necessário. A palavra ser tem uma extensão maior do que a palavra existir e inclui não somente todas as coisas que são e existem, como também me inclui, enquanto sou necessário, isto é, enquanto sou, mas não existo. Não é possível determinar o estatuto ontológico ou categorial daquilo que é, mas não existe.
Em contrapartida, ao contrário de mim, enquanto necessário, as coisas contingentes existem, são positivas, empíricas, particulares, finitas, concretas e relativas. (Naturalmente, acabo de me referir às coisas que efetivamente existem, mas que poderiam não existir. Entretanto, é possível também chamar de contingentes as coisas que, embora não existam atualmente, poderiam existir: e qualquer coisa que concebamos, desde que sua noção não seja autocontraditória, é, em princípio, capaz de existir, de modo que pode ser considerada contingente. Essas, porém, como, por exemplo, os centauros ou as quimeras, não são normalmente chamadas positivas ou empíricas, exceto potencialmente.)
Desse modo, o cogito aparece, em primeiro lugar, como uma clivagem do ser. Chamo essa clivagem de apócrise, palavra que, colhida em Anaxágoras,[25] contém a palavra crise, crisis, que significa separar, distinguir, selecionar. O prefixo “apó” reforça esse significado, pois também se refere ao movimento de separação. Estabeleço, portanto, dois polos, aos quais pertence tudo o que é: por um lado, o polo de tudo o que é contingente, particular, empírico, finito, relativo, concreto, positivo etc. — que chamo de polo positivo —, e, por outro, o polo do necessário, universal, puro, infinito, absoluto, negativo etc., que sou eu, enquanto vazio de determinações, que chamo de polo negativo. Posso, portanto, afirmar que todas as determinidades do polo negativo (ser necessário, absoluto, universal, puro, infinito, abstrato etc.) se aplicam a mim, enquanto necessário, e nenhuma das determinidades do polo positivo se aplica a mim, enquanto necessário.
Logo, através da apócrise, (1) separo-me — nego-me — do polo positivo, que compreende a totalidade do que é suscetível de ser por mim negado de mim, que é tudo o que é contingente, particular, empírico, finito, relativo etc., e (2) ponho-me como essa mesma negação do polo positivo, isto é, como polo negativo, enquanto necessário, universal, puro, infinito, absoluto etc. Dado que sou negação, chamarei o que foi negado por mim de negação negada; mas se a chamo de negação negada, chamo-me a mim, enquanto a nego, de negação negante. A negação negada é a positividade. Através da apócrise, descubro-me como negação negante. Ora, a apócrise não passa, ela mesma, de negação negante. Trata-se, portanto, da negação negante que se descobre como tal. Descartes atribui à dúvida hiperbólica as funções de “livrar-nos de todos os preconceitos (de omnibus praejudiciis), preparar um caminho facílimo para afastar dos sentidos a mente e fazer com que, das coisas que adiante descubramos serem verdadeiras, não possamos mais duvidar”.[26] Podemos nesse enunciado identificar os dois momentos, acima mencionados, da apócrise: o momento, inscrito em seu nome, da crítica, através do qual me livro de tudo o que não é absolutamente certo, isto é, pelo qual me livro de todos os preconceitos e de toda positividade, e o momento da certeza absoluta da verdade da razão. Ora, esses dois momentos da apócrise correspondem a dois sentidos complementares da palavra razão: por um lado, ao sentido crítico-analítico, privilegiado por exemplo pelo Iluminismo, que a concebia em contraposição ao preconceito, e, por outro lado, ao sentido afirmativo, em que ela se dá como a “capacidade de alcançar conhecimento do universal e necessário […]”.[27]A própria palavra ratio, de ratus, particípio perfeito do verbo reor, corresponde aos sentidos da apócrise, pois o significado mais primitivo de reor parece ter sido o de separar, dividir, distinguir.
Distinguir porém também implica, por uma evolução semântica comum, reunir as coisas que, tendo sido separadas das demais, são semelhantes entre si.[28]
Excurso 1
Neste ponto, creio que será interessante, fazendo um pequeno excurso, tocar nas famosas objeções ao cogito. Na verdade, ao responder às objeções que foram levantadas subsequentemente à publicação das suas Meditações metafísicas, o próprio Descartes, antecipando-se à maior parte das que, ainda hoje, lhe são feitas, rechaçou-as.[29] Entretanto, dada a hostilidade de grande parte dos filósofos contemporâneos à modernidade e, consequentemente, ao cogito, os mesmos argumentos são constantemente requentados e reapresentados. Como os de Nietzsche, em particular, encontram-se na moda, são repetidos ad nauseam e citados como irrespondíveis, proponho aqui examiná-los. O autor de Além do bem e do mal afirma o seguinte:
Se decomponho o processo que está expresso na proposição “eu penso”, obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível — por exemplo, que sou eu quem pensa, que tem haver necessariamente um algo que pensa, que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que existe um “eu”, e finalmente que já está estabelecido o que designar como pensar — que eu sei o que é pensar. Pois se eu já não tivesse me decidido a respeito, por que medida julgaria que o que está acontecendo não é talvez “sentir”, ou “querer”?[30]
Nenhuma dessas objeções é pertinente. Assim, (1) Nietzsche duvida que eu possa provar que sou eu quem pensa. Se ele quer dizer que não posso provar que sou eu, esta pessoa particular, Antonio, quem pensa, tem toda a razão. Antonio é esta pessoa, que tem este corpo, que tem um passado etc. Ora, durante o dubito, neguei tudo isso de mim.
Enquanto duvido-penso-sou, portanto, não tenho nenhuma dessas qualidades: não tenho nenhuma qualidade que me diferencie de qualquer outro que faça o mesmo. Enquanto duvido-penso-sou, não estou colado a coisa alguma ou pessoa alguma. Sou, portanto, idêntico a qualquer outro eu que faça o mesmo. Logo, enquanto tal, sou um universal. Mas não apenas o cogito nada afirma de particular, como nada pretende, nada jamais pretendeu nem pode pretender afirmar de particular.(2) Nietzsche pensa que o cogito pressupõe algo que pensa. Mas o cogito não afirma que se há pensamento, há algo que pensa para, em seguida, supor que sou eu esse algo. Ao contrário, durante a dúvida hiperbólica, duvido até que haja algo que pense. Ao fazê-lo, porém, não posso deixar de ser diferente daquilo de que duvido. (3) Nietzsche afirma que o cogito pressupõe que o pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa. Isso é simplesmente falso. Em nenhum momento se fala de causa para se chegar ao cogito. (4) Nietzsche acusa o cogito de pressupor que existe um “eu”. Deixemos essa questão para o final e enfrentemos a seguinte. (5) Nietzsche diz que o cogito pressupõe que esteja estabelecido o que é pensar em oposição a sentir ou querer. Mas Descartes, como eu disse, considera pensar como um gênero a que pertencem como espécies sentir e querer; como também se inclui duvidar. Se duvido de alguma coisa, ou de tudo, de algum modo sei — ou penso que sei — o que é duvidar. Descartes está interessado em ir até o fundo do ceticismo para revertê-lo. Por isso, ele assume o pressuposto do próprio ceticismo e mostra que quem duvida de tudo não pode duvidar de que a própria dúvida seja. Basta, por isso, saber que o pensamento é o gênero em que se inclui a dúvida para saber que não podemos duvidar de que ele seja.
Mas volto a (4), isto é, à pressuposição de que existe um eu. A própria formulação é curiosa, embora não incomum. Ela transforma o pronome “eu” em terceira pessoa: existe um eu, no lugar de existo eu. Se me ponho fora de mim, isto é, se me alieno, transformo-me em um objeto. Uma vez que os objetos são todos contingentes, posso assim duvidar que semelhante eu exista. Ora, o cogito não pressupõe que exista um eu, mas prova que eu sou, seja lá quem eu for, ou melhor, seja lá o que eu for, pois o cogito não me permite determinar o meu estatuto ontológico.
Uma objeção posterior às de Nietzsche, porém igualmente inconsistente, seria a de que o cogito não se livra de todos os pressupostos, pois, enunciando-se verbalmente, pressupõe que a linguagem possa servir como um instrumento para o pensamento. Embora Descartes não a tenha mencionado, é claro que essa suposição pode, sim, ser posta em dúvida: “duvido que a língua que uso seja um instrumento adequado do meu pensamento”. Entretanto, essa dúvida supõe a própria língua e supõe que ela seja, sim, um instrumento adequado para exprimir o meu pensamento, que, consequentemente, também é por ela suposto: ela supõe, portanto, o cogito. Em outras palavras, longe de desqualificar o cogito, essa dúvida é uma forma alternativa dele. A própria objeção a que ela corresponde supõe que a língua seja um instrumento adequado do pensamento, do contrário não poderia ser formulada. Se é possível formulá-la, é que a linguagem pode funcionar como instrumento para o pensamento, de modo que a objeção se desmente.
Fim do excurso 1
De certa maneira, a apócrise significa um relativismo radical, pois parte do princípio, explicitado pelo dubito, de que não há, no polo positivo, onde se encontram todos os mundos e todas as coisas dadas, empíricas, particulares etc., nada de absoluto. Entretanto, esse relativismo somente pode ser afirmado por uma proposição universal e absolutamente verdadeira (“tudo o que pertence ao polo positivo é relativo”) a partir do polo negativo, que é absoluto e universal. Se essa proposição pertencesse, ela mesma, ao polo positivo, ela se autoanularia, pois seria, ela própria, relativa. Observe-se que seria um erro grave pensar que o que se está aqui afirmando seja algo como “tudo é relativo, exceto o polo negativo”. Dado que o polo negativo não pertence ao polo positivo, não pode constituir uma exceção dentro dele, de modo que a proposição citada é tão sem sentido quanto, por exemplo, “todo gato mia, exceto os cachorros”; ou, mais pertinentemente ainda, “toda luz é movimento, exceto a escuridão”. O polo negativo tampouco participa de um gênero comum ao outro. Ele é, ao contrário, a negação, ou melhor, como o nome o indica, o negativo do polo positivo.
O relativismo apocrítico, sendo o avesso da afirmação do absoluto, escapa das aporias do relativismo vulgar, que afirma simplesmente que “tudo é relativo”. Tal afirmação incorre no velho Paradoxo do Mentiroso. Este se dá quando alguém diz, por exemplo, “minto”. Se essa pessoa estiver dizendo a verdade, estará mentindo, e se estiver mentindo, estará dizendo a verdade. Do mesmo modo, quando afirmo que tudo é relativo, então, posso, por um lado, entender que também a proposição “tudo é relativo” seja relativa, e, nesse caso, nem tudo é relativo; por outro lado, posso entender que essa proposição não seja relativa, e, também nesse caso, nem tudo é relativo. De qualquer modo, a afirmação da relatividade universal não consegue escapar de uma espécie de reviravolta (peritropé, dizia, em contexto semelhante, Sextus Empiricus, citando Demócrito e Platão)[31] que a neutraliza.
Mas por que considerar a apócrise a concepção moderna do mundo? Lembro, em primeiro lugar, que, acima, observei que o próprio fato de nossa época se autodenominar “moderna” já constituía uma diferença sintomática em relação a todas as demais épocas. Indiquei que “moderno” significa algo como “agoral”, palavra que quer dizer “referente a agora”. Pois bem, “agora” é uma palavra dêictica. Ela sempre indica o instante em que me encontro. Se falo de mim enquanto fulano de tal, isto é, enquanto sou contingente, então também o agora a que me refiro é contingente. Agora é, por exemplo, esta noite em que me encontro a escrever; mais tarde, será a madrugada, depois a manhã etc. Esses são os agoras passageiros, contingentes. Se, entretanto, falo de mim, enquanto necessário, impessoal, puro, universal, infinito, absoluto, negativo, então também o agora a que me refiro é necessário, impessoal, puro, universal, infinito, absoluto, negativo. Esse é o eterno agora pelo qual a modernidade se define. Ora, isso significa que a modernidade já é, desde o instante em que se reconhece como tal, o exercício e o reconhecimento, evidentemente avant la lettre, da apócrise, manifesta na própria dicotomia do agora.
De todo modo, a apócrise implica exatamente as características associadas à modernidade, tanto pelos seus entusiastas quanto pelos seus inimigos. Deus, por exemplo, se pertencer ao polo negativo — e talvez tenha de sê-lo, uma vez que, pelo menos enquanto Dieu des philosophes, lhe são atribuídas inúmeras propriedades pertencentes a esse polo, como ser absoluto, necessário, universal, infinito etc. —, não existe. Ele pode, no entanto, ser; mas, nesse caso, não pertencerá à categoria de substância, pois se confundirá comigo, enquanto sou negativo. Por outro lado, se lhe for atribuída substancialidade e personalidade, como ao Dieu d’Abraham, ele pertencerá ao polo positivo, e será relativo, contingente, particular, finito etc., propriedades incompatíveis com a divindade da teologia monoteísta. Com isso, a noção de Deus é relegada ao domínio do irracional ou da fé cega, cujos adeptos, por isso mesmo, a cada dia que passa, confiam mais na faca amolada para impô-lo…
Aplicada ao direito, a apócrise significa que não há lei positiva alguma que seja absoluta e necessária. Isso mesmo, porém, representa uma lei negativa absoluta. Ela decreta que não sou obrigado a limitar a minha liberdade — e pouco importa o que se entenda por liberdade — por imposição de lei positiva alguma. Digo isso, porém, seja quem eu for. Consequentemente, qualquer um que o diga ou pense, ou que apenas seja capaz de dizê-lo ou pensá-lo, tem o mesmo direito que eu.
Nisso se fundamenta a lei racional, necessária e absoluta, expressa, por exemplo, por Kant, para quem o direito “consiste no conjunto de condições pelas quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de outro segundo uma lei universal da liberdade”. Desse modo, ainda segundo Kant, “é justa toda ação de acordo com cuja máxima a liberdade do arbítrio de qualquer um pode coexistir segundo uma lei universal com a liberdade de qualquer pessoa”. Trata-se daquilo que Norberto Bobbio chama de “direito enquanto liberdade”. Segundo ele, “é necessário, para que brilhe a justiça com toda a sua luz, que os membros da associação usufruam da mais ampla liberdade compatível com a existência da própria associação, motivo pelo qual somente seria justo aquele ordenamento em que fosse estabelecida uma ordem na liberdade”.[32]
Do mesmo modo, agir de maneira injusta é “interferir na esfera da liberdade dos outros, ou seja, colocar obstáculos para que os outros, com os quais eu devo conviver, possam exercer sua liberdade na própria esfera de liceidade”. Essa é a base para os direitos humanos, que, por se basearem na pura razão, são absolutos, logo, anteriores e superiores a qualquer convicção positiva e, por conseguinte, relativa, seja religiosa ou política. A lei positiva só é legítima enquanto compatível com a lei racional, e é sempre sujeita a ser questionada a partir desta.
Excurso 2
O século XX quis jogar na lata de lixo — precipitadamente — as noções de selvageria, barbárie e civilização. Entendem-se, entre outras coisas, as atrocidades cometidas, no Ocidente pretensamente civilizado, pelas ditaduras fascistas e socialistas (e mesmo pelas democracias colonialistas e imperialistas), assim como as catástrofes de duas guerras mundiais pareciam haver para sempre conspurcado a noção de civilização. Dado esse fato, qualificar uma cultura de selvagem ou bárbara, principalmente considerando que essas palavras, além de já etimologicamente possuírem uma conotação pejorativa, pretendiam descrever (por exemplo, na obra de Morgan e, por influência dela, na de Engels)[33] as etapas inferiores da evolução da humanidade, parecia um imperdoável ato de arrogância etnocêntrica por parte dos soi-disant civilizados.
Pois bem, apesar de tudo isso, penso que será útil recuperar essas três noções, ainda que não à maneira de Morgan, mas à de Schiller. Com efeito, na quarta das suas Cartas sobre a educação estética do homem, o poeta alemão afirma que
O ser humano pode ser contraditório de dois modos: ou como selvagem, quando seus sentimentos se sobrepõem a seus princípios; ou como bárbaro, quando seus princípios destroem seus sentimentos. O selvagem despreza a arte e reconhece a natureza como seu soberano ilimitado; o bárbaro escarnece e desonra a natureza. […] O homem educado torna a natureza sua amiga, apenas freando a arbitrariedade dela.[34]
As oposições em jogo são o selvagem, os sentimentos e a natureza versus o bárbaro, os princípios e (implicitamente) a cultura. A selvageria seria, então, o estado de coisas em que dominariam os sentimentos, os impulsos, a natureza, os desejos, a vontade do ser humano individual, contra os princípios, as leis, as regras, os deveres, as obrigações, as convenções, as tradições culturais da coletividade. Tratar-se-ia do estado da natureza no sentido de Hobbes, isto é, do homo lupus homini, do homem lobo do homem, que resulta na guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Não é necessário tomar a selvageria como o estado primitivo da espécie humana. Ela é capaz de ocorrer também em períodos de anomia, de colapso das instituições, de guerra civil etc. Na verdade, focos ou irrupções de selvageria são capazes de ocorrer em qualquer coletividade, sendo normalmente qualificados de criminosos.
A barbárie, por outro lado, seria o estado de coisas em que, ao contrário do que ocorre na selvageria, os princípios, as leis, as regras, os deveres, as obrigações, as convenções, as tradições culturais da coletividade massacrariam os sentimentos, os impulsos, a natureza, os desejos, a vontade do ser humano individual. Tendemos a associá-la ao despotismo, à tirania, à ditadura. Entretanto, ela pode ocorrer “democraticamente”, como escolha coletiva. Na verdade, ela seria tanto mais completa quanto mais os indivíduos tomassem as convenções culturais herdadas como se fossem naturais, de modo que, por um lado, eles cumprissem os papéis sociais que lhes houvessem sido designados e, por outro, esperassem que os demais indivíduos fizessem o mesmo quanto aos respectivos papéis, como se tal fosse a única atitude concebível e como se tais papéis sociais fossem os únicos concebíveis, de modo que jamais os questionassem, excluindo do universo de suas possibilidades vitais qualquer comportamento alternativo.
Em suma, se a selvageria é o estado de coisas em que o arbítrio individual tende a dilacerar a cultura, a barbárie é o estado de coisas em que a cultura tende a esmagar a liberdade individual.
Em contraste com a selvageria e a barbárie, a civilização seria o estado de coisas em que a lei tem a função de permitir a compatibilização da maximização da liberdade de cada indivíduo. Trata-se da universalização efetiva do direito enquanto liberdade, direito que já é, de iure, universal. Não é, portanto, pela sua particularidade, mas pela sua universalidade que a civilização se distingue. Não há várias civilizações, como há várias culturas, mas somente uma civilização, da qual as diferentes sociedades, de qualquer parte do mundo, se aproximam em maior ou menor grau. Com efeito, Amartya Sen mostra, por exemplo, que a legislação do imperador Ashoka, na Índia do século III a.C., bem como a de Akbar, imperador mongol do século XVI, representaram um grau relativamente alto de civilização, no sentido em que entendo essa palavra, em suas respectivas épocas.[35]
Com esses conceitos, alguns equívocos comuns podem ser desfeitos. Muito comum, por exemplo, é afirmar que há hoje um conflito entre a cultura ocidental e a cultura islâmica; ou, na linguagem de Samuel Huntington, entre a civilização ocidental e a islâmica. No primeiro caso, o problema é que não se sabe o que vem a ser a “cultura ocidental”. Quanto à cultura islâmica, supõe-se que seja a religião muçulmana, em primeiro lugar. Deveríamos então, simetricamente, supor que a cultura ocidental fosse a cristã? O conflito seria então entre o cristianismo e o islamismo. Ora, esse conflito se deu na Idade Média, não hoje, ou não significativamente hoje. Além disso, o “Ocidente” não possui — excetuadas algumas áreas atrasadas dos Estados Unidos — grandes focos de fanatismo religioso. Na verdade, os muçulmanos parecem muito mais incomodados com o hedonismo e o ateísmo que vêem no Ocidente do que com o cristianismo. É que intuem que o hedonismo e o ateísmo são possibilidades civilizacionais que não constituem apenas ameaças externas, mas internas à sua religião. Quanto a Huntington, o problema é classificar a civilização de ocidental ou de islâmica, quando a civilização é universal. Ele o faz porque não passa de um relativista cultural, que trata de “civilização” cada uma das culturas que considera serem as maiores do mundo. Mas o verdadeiro conflito está entre a civilização tout court e a ponta extremista de um determinado fenômeno cultural, que é a religião islâmica. Os fanáticos religiosos, que são bárbaros, se opõem a toda civilização, quer a encontrem no Ocidente, quer no Oriente, quer no Sul, que no Norte. Os fanáticos cristãos são perfeitamente capazes de fazer o mesmo, embora, momentaneamente, se encontrem menos em evidência. O conflito é, portanto, entre a barbárie — e hoje, principalmente, a barbárie religiosa — e a civilização.
Fim do excurso 2
Tendo esclarecido o que entendo por intelectual, o que entendo por “modernidade”, o que entendo por “intelectual” moderno, e qual o tipo de relativismo compatível com o intelectual moderno, cabe agora esclarecer quais as ocasiões em que se espera que os intelectuais modernos falem publicamente, exatamente em virtude de serem intelectuais modernos. Pois bem, os intelectuais modernos têm, enquanto tais, interesse em defender pública e politicamente pelo menos as condições de possibilidade do exercício da racionalidade. Elas são: a liberdade irrestrita da crítica; a apócrise; a sociedade aberta; o direito enquanto liberdade; o estabelecimento e a defesa, no mundo inteiro, das condições — econômicas, sociais, políticas — do exercício real da sociedade aberta e do direito enquanto liberdade. Assim, espera-se, por exemplo, que o intelectual moderno proteste publicamente contra qualquer atentado ao direito enquanto liberdade, ainda que este se pretenda justificar através de tradição, costume, ou qualquer determinação de natureza cultural ou religiosa.
* * *
Entretanto, é hoje extremamente difundido, não só na filosofia como nas ciências sociais, nos estudos culturais, nos estudos literários etc., um tipo de relativismo completamente diferente do relativismo apocrítico que descrevi acima. Contudo, isso não quer dizer que aqueles que, substancialmente, o defendem, aceitem pacificamente o rótulo de “relativismo” para as suas ideias. Assim, embora o historicismo, o perspectivismo, o pragmatismo, o desconstrutivismo possam ser considerados diferentes manifestações de relativismo cultural, seus expoentes raramente aceitam esta designação. O mesmo ocorre com praticamente todos os assim chamados pós-estruturalistas, tais quais, para citar apenas os mais ilustres, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida. Na verdade, essa recusa não é de estranhar, uma vez que, do ponto de vista de cada um deles, aceitar o rótulo de relativista seria, em primeiro lugar, reduzir o seu pensamento, sob muitos aspectos extremamente complexo e sutil, a uma generalidade; e, em segundo lugar, seria abrir o flanco desse pensamento aos problemas já conhecidos — às aporias, aos paradoxos, às contradições, ao peritropismo — que afligem todo relativismo não-apocrítico. Assim, é mais comum um filósofo relativizar, de algum modo, a verdade, do que confessar-se relativista. Foucault, por exemplo, jamais, que eu saiba, se disse relativista; no entanto, ele afirma, entre outras coisas, que
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral da verdade: quer dizer os tipos de discurso que acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira com que sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto dos que têm a incumbência de dizer o que funciona como verdadeiro.[36]
A hipótese que ele propõe é, “por verdade, entender um conjunto de procedimentos regrados para a produção, a lei, a repartição, a entrada em circulação, e o funcionamento dos enunciados”.[37]
Evidentemente, a própria sociedade a partir da qual Foucault declara isso tem o seu regime e a sua política geral da verdade. O interesse de Foucault é exatamente relativizar o regime, a política geral da verdade da sociedade à qual ele pertence, isto é, da sociedade moderna, que é também a nossa. Entretanto, ex hypothese, a verdade da tese de Foucault também está submetida a esse regime e a essa política geral da verdade, de modo que é, ela mesma, relativizada por eles.
Outro exemplo: Deleuze, que tampouco se declara relativista, considera a verdade “somente o que o pensamento cria, levando em conta o plano de imanência que se dá por pressuposto, e todos os traços desse plano, negativos tanto quanto positivos tornados indiscerníveis: pensamento é criação, não vontade de verdade”.[38]
O que a filosofia cria são conceitos, segundo ele. Ora, os conceitos são, em suas palavras, “exatamente como sons, cores ou imagens, são intensidades que convêm ou não, que passam ou não passam. Pop filosofia. Não há nada a compreender, nada a interpretar”.[39] É sem dúvida por isso que Deleuze considera que “as noções de importância, de necessidade, de interesse são mil vezes mais determinantes que a noção de verdade”.[40]
Quanto a Derrida, pode-se dizer que o próprio conceito de desconstrução tem precisamente a função de desmascarar, nos mais diversos empreendimentos discursivos, o funcionamento daquilo que chama de metafísica da presença, que basicamente corresponde ao que é, para Heidegger, a metafísica ocidental. Ora, esse desmascaramento só tem sentido a partir — e como radicalização — da relativização genealógica a que Heidegger já havia submetido as categorias principais do que chamava de metafísica ocidental, como a subjetividade, a transcendentalidade, a liberdade, a origem, a presença e a verdade.
Entretanto, numa entrevista dada a Evando Nascimento, o autor da Gramatologia declara — e creio que, nesse ponto, tanto Foucault quanto Deleuze subscreveriam às suas palavras —:
Não sou relativista e aos que acreditam poder tirar uma lição relativista das leituras de meus textos diria simplesmente que se enganam. O relativismo é uma filosofia que consiste em dizer que todas as perspectivas se equivalem, que todos os pontos de vista têm o mesmo valor e que tudo depende do lugar onde o indivíduo se encontra, do tempo, do assunto etc. Nunca pensei desse modo. Creio que a origem dos mal-entendidos no caso se deve a que sou muito enfático a respeito da singularidade e das diferenças: a singularidade das culturas, das nações, das línguas.[41]
Talvez o mais cândido dos relativistas qui n’osent pas dire leur noms seja o filósofo norte-americano Richard Rorty, afiliado ao pragmatismo e, em particular, a John Dewey, um dos fundadores dessa tendência. Ele diz: “[Dewey] foi muitas vezes tachado de relativista, e o mesmo ocorre comigo, mas é claro que nós, pragmatistas, jamais nos consideraríamos relativistas. Geralmente nos definimos em termos negativos: somos antiplatônicos ou antimetafísicos ou, ainda, antifundacionistas”.[42] E prossegue:
Nós, ditos relativistas, sustentamos que muitas das coisas que o senso comum julga terem sido encontradas ou descobertas são, na verdade, fabricadas ou inventadas. Nossos oponentes nos chamam de subjetivistas ou construcionistas sociais. Segundo eles, afirmamos ter descoberto que algo que supostamente vem do exterior surge, na verdade, de dentro de nós — que aquilo que antes se pensava ser objetivo mostrou-se meramente subjetivo.
Mas nós, antiplatônicos, não devemos aceitar essa maneira de formular a questão, sob o risco de sofrermos sérios problemas. Se aceitarmos sem restrição essa distinção entre fabricar e encontrar, nossos oponentes poderão, por exemplo, nos fazer uma pergunta embaraçosa: teremos nós descoberto ou inventado o surpreendente fato de que o que se pensava ser objetivo é, na verdade, subjetivo? Se pretendemos tê-lo descoberto, se dissermos que se trata de um fato objetivo que a verdade é subjetiva, corremos o perigo de nos contradizermos. Se dissermos que o inventamos, por que alguém deveria levar a sério nossa invenção? Se definirmos a verdade como apenas uma ficção conveniente, o que acontece com a verdade dessa definição? Trata-se também de uma ficção conveniente? Conveniente para quê? Para quem? Acho importante que nós, que somos acusados de relativismo, deixemos de lado essas distinções entre encontrar e fabricar, entre a descoberta e a invenção, entre o objetivo e o subjetivo.[43]
Coerentemente com seu pragmatismo, Rorty deixa de lado uma descrição que, no entanto, ele mesmo considera aplicável, porque conhece a dificuldade, se não a impossibilidade, teórica de sustentá-la.
Por uma questão de tempo, não seria possível discutir aqui nem sequer os pensadores relativistas — ou talvez eu deva dizer criptorrelativistas — que acabo de mencionar. Seria preciso escolher um deles, como exemplo. Entretanto, ocorreu-me outra possibilidade. Não haverá um pensamento que funcione como uma matriz para o relativismo contemporâneo? Rorty classifica os filósofos que citei de “pós-nietzsche”.[44] Não será Nietzsche — o antiplatônico por excelência — a principal fonte do relativismo dos intelectuais contemporâneos? Certamente é possível considerar Nietzsche um pensador relativista. Não dizia ele que “as verdades são ilusões de que nos esquecemos o que são”?[45] Contudo, sobre Nietzsche é mais prudente não falar. Por quê? Porque, como diz André Comte-Sponville,
qualquer que seja a tese que você quiser criticar, o primeiro nietzschiano que aparecer, e eles são legião, sempre poderá objetar-lhe que Nietzsche disse exatamente o contrário — e o pior é que o nietzschiano terá razão, quase sempre, sem dúvida não porque você tenha atribuído a Nietzsche uma tese que ele não tivesse defendido, e sim porque sempre, ou quase sempre, ele defendeu a tese inversa.[46]
Uma possível interpretação para isso é que Nietzsche foi, de fato, radicalmente relativista, de modo que, sem nenhuma preocupação de coerência ou consistência, dizia apenas o que pensava ou o que lhe interessava dizer a cada momento. Isso significa, porém, que, embora seja possível admirar Nietzsche, como se admira um artista — e creio que, embora seja um pensador e, frequentemente, um pensador profundo, ele é antes artista que filósofo —, é impossível ser verdadeiramente nietzschiano. Em outras palavras, ser nietzschiano seria ser antinietzschiano, pois significaria aprisioná-lo num só dos seus momentos. Lembremo-nos de como, ao final da primeira parte de Assim falou Zaratustra, este dispensa os seus discípulos:
Em verdade, vos aconselho: Afastai-vos de mim e defendei-vos de Zaratustra! E melhor ainda: Envergonhai-vos dele! Talvez vos haja enganado. […] Recompensa-se mal o professor, quando se permanece apenas aluno. E por que não quereis arrancar minha coroa? Vós me venerais; mas e se vossa veneração um dia desmoronar? Cuidai-vos, para que não vos esmague uma estátua! […] Agora vos ordeno me perderdes e vos encontrardes; e somente quando me houverdes todos renegado, retornarei a vós.[47]
Deixemos, portanto, Nietzsche. Mas quase todos os relativistas contemporâneos se reportam também a Heidegger. E, neste caso, parece-me que estamos em terra firme. Dos pensadores que mencionei, a única aparente exceção, no que diz respeito a Heidegger, é Deleuze. Contudo, concordo com Giorgio Agamben quando este, tendo comentado que Deleuze, ao tentar liquidar o conceito de sujeito, prossegue o gesto de Heidegger, nota que “a história das relações entre Heidegger e Deleuze — também via Blanchot, trâmite de muito heideggerianismo insciente na filosofia francesa contemporânea — ainda tem que ser feita”.[48]
Penso que a obra de Heidegger pode ser interpretada como um esforço brilhante — com as armas de uma fenomenologia hermenêutica — no sentido de relativizar o polo negativo da apócrise, reduzindo as suas determinidades a manifestações secundárias de determinidades positivas, tomadas como primordiais. Com esse fito, Heidegger põe algumas extraordinárias intuições a serviço de arrojadas revisões e reinterpretações da história da filosofia. O resultado é estimulante, pois desse modo a modernidade parece ser criticada a partir de uma posição mais autenticamente radical do que a que ela mesma representa.
Ser e tempo, que provavelmente permanece sendo o mais importante livro de Heidegger, propõe a tarefa da destruição da história da ontologia. Negando que tenha a pretensão de efetuar uma “má relativização”(schlechte Relativierung) de pontos de vista ontológicos, Heidegger explica que tenciona levar a cabo uma “comprovação da proveniência dos conceitos ontológicos fundamentais como uma exposição investigadora das respectivas ‘certidões de nascimento’”, tendo em vista “delimitar [a tradição ontológica] em suas possibilidades positivas”; e complementa: “e isso sempre quer dizer em seus limites”.[49] Em suma, ele pretende realizar uma boa relativização dos conceitos ontológicos fundamentais. Estrategicamente, o primeiro conceito ontológico a sofrer uma tal relativização é o de sujeito. Observe-se, entre parênteses, que a noção de sujeito se encontra, efetivamente, riscada do pensamento que Rorty chama de pós-nietzschiano. Nem ele, nem Foucault, nem Derrida, nem Deleuze a aceitam. Ora, segundo Heidegger, o conceito moderno do sujeito, produzido pelo cogito, constitui o núcleo de toda a metafísica moderna, inclusive da filosofia de Nietzsche, malgré lui-même.
A relativização do sujeito empreendida por Heidegger não se baseia em uma crítica imanente desse conceito, mas, num primeiro momento, em uma espécie de genealogia. É, de fato, com base no exame da “certidão de nascimento” do sujeito que ele tenta desqualificá-lo ou, por assim dizer, desmoralizá-lo. Em outro momento, ele tenta desmoralizá-lo pelo lado oposto, isto é, por uma descrição daquilo que pretende sejam as consequências da metafísica da subjetividade.
Entretanto, a desmoralização do sujeito através de semelhante manobra de pinças pressupõe a precedência de direito, embora não necessariamente de fato, de um conceito mais fundamental, mais originário que o de sujeito, um conceito do qual este seria, por assim dizer, um dos mal-entendidos, uma das distorções, degradações ou degenerações possíveis. Trata-se do conceito de Dasein. Embora essa palavra já existisse na língua alemã, significando existência não apenas humana, mas existência simpliciter, Heidegger a emprega somente para o ser humano, tendo em vista uma reativação dos seus componentes etimológicos. Palavra composta de da, que significa “aí”, advérbio dêictico, e sein, que significa “ser” ou “estar”, ela se traduziria por “ser-aí” ou, segundo a sugestão do filósofo espanhol Julián Marías, por “estar-aí”. “Estar-aí” significa também estar ou ser no mundo, estar ou ser aberto, estar ou ser uma abertura ou na abertura para o mundo. Desse modo, a noção de Dasein evita a interioridade de uma consciência que se oponha ao mundo. Ao contrário do sujeito, Dasein é o ente aberto ao ser: o ser-aí é o ser aberto ao ser. O estar-aí está, desde sempre, no meio do mundo e aberto a ele. Já a palavra sujeito vem de sub-jectum, o que está por baixo e diante, e designa o substrato das propriedades e dos estados de uma coisa, aquilo da coisa que permanece enquanto mudam as suas propriedades e os seus estados. Trata-se da tradução latina daquilo que Aristóteles chamava de hypokeímenon. Todas as coisas dadas são subjecta, antes de Descartes. É a partir do cogito que, segundo Heidegger, o “eu” humano torna-se o único subjectum, o único sujeito, para o qual todas as demais coisas são reduzidas a objetos. Assim, para Heidegger, ao nos considerarmos sujeitos, ficamos presos “a algo cujo ser guarda, explícita ou implicitamente, o sentido de ser simplesmente dado”.[50] Nessa medida, coisifica-se o Dasein. Ao mesmo tempo, sendo concebido como autoconsciência, o sujeito é interiorizado e fechado, ou oposto ao mundo, exceto na medida em que este lhe possa ser instrumental.
Antes de prosseguir, observo que, para determinar a apócrise, não empreguei a palavra sujeito. Isso não é surpreendente, pois conheço a crítica de Heidegger. Mais interessante, porém, é que o próprio Descartes jamais a utilizou no sentido tencionado por Heidegger. É Hobbes quem usa esse termo nas suas terceiras objeções às Meditações de Descartes, e, na sua resposta, Descartes critica o uso dessa palavra, dizendo preferir palavras mais simples e abstratas.[51] Entretanto, como, depois de Descartes, essa palavra realmente entrou em circulação para falar do polo negativo, de modo que Kant, por exemplo, emprega a expressão “sujeito transcendental”, não vou insistir neste ponto. Noto apenas que é evidentemente falsa a pretensão de Heidegger de que, com o cogito, fiquemos presos “a algo cujo ser guarda explícita ou implicitamente, o sentido de ser simplesmente dado”. Tudo o que expliquei acima sobre o cogito mostra o absurdo de tomá-lo como um dado, pois todo dado pertence exatamente ao polo positivo, oposto ao seu. Ademais, o “fechamento” pode aplicar-se ao sujeito empírico, mas não ao transcendental; não a mim, enquanto negativo, já que, nessa qualidade, nada possuo de privado.
Heidegger interpreta a exigência moderna do cogito como resultado de um processo de secularização. Sua tese é — grosseiramente resumida — a de que, tendo se libertado ou se perdido da verdade da revelação bíblico-cristã e da doutrina da Igreja, o homem necessita de outra verdade absoluta. Não querendo mais buscá-la em uma esfera transcendente, que lhe possa ser recusada, ele busca um fundamentum inconcussum veritatis, um fundamento inconcusso da verdade, na certeza imanente do seu próprio ser, e esse fundamento é o cogito sum.[52]
A metafísica resultante consiste, de maneira geral, em:[53]
- conceber o homem como sujeito, como fundamento eminente que jaz na base de toda representação dos entes e de suas verdades, sendo que todos os entes se tornam objetos para esse sujeito;
- conceber o ente como aquilo que é representável pelo sujeito, de modo a garantir em toda parte ao homem a possibilidade de proceder em meio ao ente, pesquisá-lo, conquistá-lo, dominá-lo, pô-lo à disposição;
- conceber como verdadeiro somente aquilo que é, por meio da representação, apresentado ao sujeito como indubitável e alcançável pelo cálculo, de modo que a verdade se reduz à certeza: de onde a importância do método, que é o nome do proceder assegurador e conquistador ante o ente, de modo a pô-lo como objeto certo para o sujeito.
- conceber o sujeito como detentor da decisão essencial sobre o que terá de se afirmar em geral como ente: o homem é quem tem essa disposição. A relação com o ente é o avassalador progresso até a conquista e o domínio do mundo.
Heidegger concebe a técnica moderna como incorporação dessa metafísica cartesiana da subjetividade, que recebe sua derradeira expressão na doutrina de Nietzsche da vontade de poder.[54] Em última análise, o mundo como um todo se transforma no que Heidegger chama de Gestell, ou dispositivo, já que a totalidade dos entes é concebida como reserva disponível e calculável.[55] Pertencem ao dispositivo o planejamento e a organização de todos os setores dos entes, a transformação do homem na primeira das matérias-primas, bem como a uniformidade resultante da abolição das hierarquias metafísicas e da equivalência da animalidade à humanidade. Esse anuviamento (Verdusterung) do mundo provocado pela metafísica da subjetividade é o mesmo, quer nas sociedades liberais, quer nas socialistas. “O egoísmo subjetivo para o qual, quase sempre inadvertidamente, o eu é previamente determinado como sujeito”, diz Heidegger em 1938, “pode ser reprimido pelo alistamento do eu no nós. Com isso, a subjetividade só faz aumentar o seu poder.”[56] Em 1935, ele havia afirmado: “Essa Europa, em uma cegueira desesperada, sempre a ponto de apunhalar a si própria, encontra-se hoje em uma grande pinça, pressionada pela Rússia, de um lado, e a América, de outro. Do ponto de vista metafísico, a Rússia e a América são o mesmo; o mesmo desolador frenesi da técnica desenfreada, a mesma organização sem fim do homem médio”.[57] Aqui, ele pensa que a Europa se encontra ameaçada pelo nivelamento do mundo produzido pelos Estados Unidos e a União Soviética (cujos nomes oficiais ele desdenhosamente omite), potências que levam às últimas consequências a metafísica da subjetividade. A salvação se encontra, a seus olhos, sem dúvida, no coração da Europa, isto é, na Alemanha nacional-socialista. Depois da Segunda Guerra Mundial, nada mais, segundo ele, escapa desse nivelamento. “Tudo foi nivelado no mesmo nível”, diz Heidegger, com sua típica redundância retórica, em 1951.[58] Mas não se pode deixar de desconfiar que realmente nivelado, ou melhor, nivelador é o seu olhar, quando põe no mesmo nível os campos nazistas de extermínio e a agricultura moderna: “A agricultura é hoje uma indústria alimentar motorizada, essencialmente a mesma coisa que a fabricação de cadáveres nas câmaras de gás, e os campos de extermínio, a mesma coisa que os bloqueios e a redução de países à fome, a mesma coisa que a fabricação de bombas de hidrogênio”.[59]
Heidegger está sem dúvida certo quando considera o cogito o núcleo inaugurador da metafísica moderna. A melhor exposição do seu modo de pensar sobre essa questão se encontra na obra Das europäische Nihilismus. Nela, a certo momento, Heidegger afirma que “a meditação histórica sobre a questão autêntica deve insistir em pensar o sentido tencionado pelo próprio Descartes para suas proposições e conceitos, mesmo quando, para isso, venha a ser necessário traduzir seus próprios enunciados para uma outra língua”.[60]
Nesse ponto, penso que ele tem toda a razão, e foi exatamente isso que tentei fazer acima, com a intenção oposta à dele. Assim como, a falar do cogito, não é o pensamento particular de Descartes que me interessa, mas a concepção moderna do mundo, que denominei apócrise, assim também o verdadeiro alvo de Heidegger, ao atacar o cogito, não é Descartes, mas a concepção moderna do mundo.
Vimos que o Dasein, o estar-aí ou o ser-aí, já deveria ser, segundo o próprio nome, aberto ao ser. Mas em que consiste essa “abertura”? Exatamente na confusão entre o polo negativo e o polo positivo da apócrise. Com o Dasein, desaparece a distinção entre esses dois polos. É isso que permite a Heidegger, no sexto parágrafo, crucial, de Ser e tempo, afirmar
que o Dasein “é” o seu passado no modo do seu ser, que, grosso modo, sempre acontece a partir do seu futuro. O Dasein, em cada um dos seus modos de ser, e, assim, também na compreensão do ser que lhe pertence, foi sempre criado numa interpretação tradicional de si mesmo. Ele se compreende em primeiro lugar e, de certo modo, permanentemente, a partir dela.
Essa compreensão abre as possibilidades do seu ser e as regula. Seu próprio passado — e isso quer sempre dizer o da sua “geração” — não segue o Dasein, mas o sempre o precede.[61]
E adiante: “Somente apropriando-se positivamente do seu passado é que o Dasein pode entrar na posse integral das possibilidades mais própriasde seu questionamento”.[62] Isso é o que ele chama historicidade do Dasein. Em última análise, através da destruição da metafísica — que é, essencialmente, como já foi dito, a metafísica cartesiana — o Dasein, libertando-se do cogito, isto é, das ilusões de uma tradição universalista e anti-historicista esclerosada, ficaria livre para recuperar a sua particularidade histórica e nela mergulhar. De novo, no também crucial parágrafo 74, Heidegger afirma que o Dasein tem de fato sempre a sua “história” e pode ter algo assim porque é um ente cujo ser é constituído pela historicidade.[63] Ele sempre existe com outros e, com eles, retoma uma herança, em vista do futuro.[64]
Do ponto de vista da apócrise, a “abertura” do Dasein não passa de um aprisionamento na particularidade. Se o cogito torna possível relativizar o dado, o positivo, o particular, a partir do reconhecimento da sua contingência, de modo a valorizar a dimensão da possibilidade, frente à da facticidade, uma vez que toma esta como apenas uma das possibilidades daquela, a noção de Dasein tem, ao contrário, a função de valoriza a facticidade frente à possibilidade, pois esta é por ela tomada como uma função daquela. Do mesmo modo, o cogito valoriza o infinito frente ao finito, enquanto a noção de Dasein tem a função de valorizar o finito. No mesmo parágrafo 74, lê-se:
Se o Dasein fatídico existe como estar-no-mundo, essencialmente, no convívio com os outros, o seu acontecer é um acontecer em conjunto, e é determinado como destino. Com este termo, designamos o acontecer da comunidade, do povo (Volk). O destino não se compõe de destinos singulares, assim como a convivência não pode ser concebida como a ocorrência conjunta de vários sujeitos. Na convivência em um mesmo mundo e na decisão por determinadas possibilidades, os destinos já estão antecipadamente orientados. É somente na participação e na luta que se libera o poder do destino. O destino fatídico do Dasein em e com a sua “geração” constitui o acontecimento pleno e autêntico do Dasein.[65]
É aqui que se revela plenamente o sentido da noção de Dasein: posto brutalmente, ela representa a desvalorização do indivíduo e da sociedade (Gesellschaft) e a revalorização da comunidade (Gemeinschaft). Por esse caminho, Heidegger se liga diretamente a uma tradição antiiluminista e anti-humanista alemã, iniciada no século XVIII, com Hamann e Herder (se não antes, com Lutero), e fortalecida após a Revolução Francesa e as invasões napoleônicas.
É nesse contexto que Heidegger diz que
somente a antecipação da morte é capaz de expulsar toda possibilidade casual e “provisória”. Somente o ser livre para a morte propicia ao Dasei a meta incondicional, e lança a existência em sua finitude. Ao ser assumida, a finitude da existência arranca o Dasein de volta da multiplicidade infinda das possibilidades de prazer, leviandade e tergiversação que de imediato se oferecem, e o traz para a simplicidade de seu destino.[66]
É a aceitação pelo indivíduo da sua própria morte que lhe permite compreender claramente o caráter acidental da sua vida, em relação à da comunidade, essencial. Essa ideia é expressa ainda mais claramente na obra sobre o hino “Germanien”, de Hölderlin:
A capacidade de escutar não é o que cria a relação de um com o outro, isto é, a comunidade, mas a pressupõe. Essa comunidade original não surge inicialmente pelo estabelecimento de uma relação recíproca — desse modo só surge a sociedade —, mas a comunidade é através da ligação prévia de cada indivíduo com aquilo que, superando cada indivíduo, liga-os e os determina. Tal coisa deve evidentemente ser o que nem o indivíduo para si, nem a comunidade enquanto tal é. A camaradaria (Kameradschaft) dos soldados do front não se fundamenta nem no fato de que foi preciso estar com os demais porque faltavam outras pessoas, que se encontravam longe, nem no fato de que eles se convenceram mutuamente a um entusiasmo comum, mas, profunda e unicamente, no fato de que a proximidade da morte como de um sacrifício pôs cada qual previamente na mesma nulidade, de modo que esta se tornou a fonte do pertencimento mútuo incondicional. Precisamente a morte, que cada homem tem que morrer para si, e que individualiza ao mais extremo cada indivíduo, precisamente a morte e a disposição ao seu sacrifício cria, antes de qualquer outra coisa, o espaço da comunidade, a partir da qual surge a camaradaria.[67]
O pensamento de Heidegger aqui se liga diretamente àquilo que Domenico Losurdo, a partir de Thomas Mann, chama de “ideologia da guerra”.[68]
Assim, Heidegger relativiza o cogito através da noção de Dasein, e o Dasein autêntico é aquele que, antecipando a própria morte, está disposto a se sacrificar pela comunidade a que pertence. A comunidade é a verdade do Dasein. A palavra verdade, aqui, deve ser levada a sério. Como se sabe, Heidegger relativiza também o conceito de “verdade” moderno, propondo como mais originário o sentido etimológico da palavra grega para verdade — alétheia —, isto é, desvelamento ou desocultamento. Ora, a relação de Dasein com o mundo pode ser inautêntica, quando o seu modo de ser peculiar, que é o estar no mundo, é velado, ou autêntica, quando ele lhe é revelado, e, neste caso, a comunidade se apresenta como a verdade do Dasein.[69] Desse modo, o Estado pode ser considerado a verdade do povo:
Que ocorre então no tornar-se Estado do povo (des Volkes)? Aqueles poderes, a natureza, a história, a arte, a técnica, o Estado mesmo tornam-se capturados através da lei do estabelecimento dos seus limites. E assim torna-se manifesto o que torna um povo seguro, brilhante e forte. Ora, a manifestação desses poderes é a essência da verdade. No estabelecimento desses poderes, o Estado em formação repõe o povo em sua verdade efetiva.[70]
Nessa perspectiva, é evidente que perde qualquer sentido o conceito de direitos humanos ou de direito puramente racional. Acima deles encontra-se o direito da comunidade, cuja verdade — cujo ser, diz, às vezes, Heidegger[71] — é o Estado.
Diante disso, será surpreendente que, quando Lévinas descreve o interesse filosófico do nazismo, ele poderia estar a descrever o pensamento de seu antigo mestre, Heidegger? Para a filosofia nazista, afirma ele,
a essência do homem não está mais na liberdade, mas numa espécie de encadeamento. Ser verdadeiramente a si mesmo não é retomar o seu voo acima das contingências, sempre estranhas à liberdade do seu eu; é, ao contrário, tomar consciência do encadeamento original inelutável, único ao nosso corpo; é sobretudo aceitar esse encadeamento. […] O homem não se encontra mais ante um mundo de ideias em que pode escolher por uma decisão soberana da sua livre razão a sua própria verdade — ele está desde sempre ligado a algumas delas, como está ligado pelo seu nascimento com todos os que são do seu sangue. Ele não pode mais brincar com a ideia, pois, originada do seu ser concreto, ancorada na sua carne e no seu sangue, ela conserva a seriedade deles.[72]
Dado tudo o que sabemos hoje, como é possível a influência gigantesca e crescente de semelhante pensamento no mundo contemporâneo? Não consegui deixar de enunciar essa questão, mas, na verdade, ela foge do nosso assunto principal, de modo que nem poderei tentar responder-lhe aqui. Sugerirei apenas que, como foi através de pensadores franceses que Heidegger readquiriu, e até superou, sua prévia estatura intelectual, talvez isso tenha a ver — de modo paradoxal, mas compreensível — justamente com o feroz anticartesianismo do seu pensamento. Ou talvez tenha a ver com o fato de que, dadas as revelações sobre os regimes terroristas de Stalin, Mao Tsé-tung, Pol Pot etc., e dado o colapso da União Soviética, tenha sido preferível, para muitos intelectuais, sair do marxismo de cabeça erguida, trocando-o por uma filosofia pretensamente mais radical do que ele, uma filosofia não menos capaz de, por um lado, diagnosticar (mas com maior Grundlichkeit) e desprezar a realidade (tida por insuportável) do mundo capitalista e liberal em que vivemos, mostrando a sua origem no esquecimento metafísico do ser (esquecimento responsável também pelos mundos terroristas do socialismo real e do nazismo…), e de, por outro lado, desdenhar (mas, igualmente com argumentos mais grundlich) não só o que, desde o marxismo, eles ,já haviam considerado embuste da democracia, dos direitos humanos etc., mas também o próprio homem, a própria subjetividade, a própria razão, tidos (mais ou menos como o humanitarianismo, a psicologia, o senso comum) como manifestações em última análise sentimentaloides do individualismo burguês.
Mas deixemos agora Heidegger e, à luz do que ele disse, voltemos aos relativistas culturais pós-heideggerianos e, em particular, à entrevista em que Derrida afirma não ser relativista:
Não sou relativista e aos que acreditam poder tirar uma lição relativista das leituras de meus textos diria simplesmente que se enganam. O relativismo é uma filosofia que consiste em dizer que todas as perspectivas se equivalem, que todos os pontos de vista têm o mesmo valor e que tudo depende do lugar onde o indivíduo se encontra, do tempo, do assunto etc. Nunca pensei desse modo. Creio que a origem dos mal-entendidos no caso se deve a que sou muito enfático a respeito da singularidade e das diferenças: a singularidade das culturas, das nações, das línguas.
Culturas, nações, línguas: Derrida é enfático a respeito da singularidade e das diferenças de entidades comunitárias, não de indivíduos. Entretanto, o que significa a ênfase na singularidade das comunidades, senão a afirmação da sua irredutibilidade? Desse modo, uma cultura é considerada irredutível: irredutível a qualquer outra cultura, irredutível a qualquer denominador comum às diferentes culturas, e irredutível aos indivíduos que as compõem. Que quer dizer isso? Que não há nenhum critério externo pelo qual se possa julgar uma cultura. Uma cultura só pode ser julgada — se tanto — por si própria, pelos seus próprios critérios. Mas como chamar tal posição, digamos, multiculturalista, senão de relativista? Ora, se compararmos esse tipo de relativismo cultural pós-heideggeriano com o relativismo apocrítico ou moderno que acima descrevemos, veremos que:
1.
- a) o relativismo moderno exige a liberdade irrestrita da crítica;
- b) o relativismo cultural restringe a crítica à crítica interna a cada cultura, quando muito;
2.
- a) o relativismo moderno defende a sociedade aberta;
- b) o relativismo cultural defende a comunidade fechada;
3.
- a) o relativismo moderno defende o direito como liberdade;
- b) o relativismo cultural defende o dever da conformidade;
4.
- a) o relativismo moderno é consistente, pois não relativiza a si próprio, já que considera falar sobre o polo positivo (e relativo) do ser a partir do seu polo negativo (e absoluto);
- b) o relativismo cultural é inconsistente, pois considera falar sobre a relatividade das culturas a partir de uma cultura ela mesma relativa, o que o sujeita ao Paradoxo do Mentiroso e à peritropia.
O quarto ponto é extremamente importante. Para ser coerente, o relativista cultural se obriga a dar valor às crenças vigentes em diferentes culturas, mesmo quando são intolerantes e antirrelativistas. Com isso, como diz Platão sobre Protágoras, “ele é vulnerável no sentido de que às opiniões dos outros dá valor, enquanto esses não reconhecem nenhuma verdade às palavras dele”.[73] Assim, enquanto o relativismo apocrítico, sendo compatível com a defesa de direitos humanos universais, é, por exemplo, capaz de condenar a prática da cliteroctomia em qualquer parte do mundo, o relativismo cultural, para ser consistente, é obrigado a tomá-la como assunto interno das culturas que a praticam, de modo que, por respeito à singularidade delas, condenaria como etnocêntrica qualquer crítica externa, feita em nome dos direitos humanos.
É nesse sentido que me parece que a difusão contemporânea da ideologia do relativismo cultural conduz ao silêncio dos intelectuais, precisamente nas ocasiões em que se espera que eles, em virtude de serem intelectuais, se manifestem publicamente.
Para o intolerante, o intelectual tolerante ou relativista, que age desse modo, não passa de um fraco, a quem falta caráter, convicção ou fé. Não é difícil perceber que as consequências disso podem vir a ser catastróficas, num mundo em que os fundamentalismos religiosos têm se tornado cada vez mais comuns. O resultado é que pode parecer que nos encontramos, neste começo de milênio, ante o dilema de sermos ou intolerantes ou fracos. Aplicam-se agora mais que nunca as palavras famosas de Yeats: The best lack all conviction, while the worst/ Are full of passionate intensity.[74]
Notas
[1] Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, CD-ROM.
[2] É verdade que, hoje em dia, a mídia espera que todas as pessoas —intelectuais ou não — tomem como um privilégio a oportunidade de se pronunciar publicamente sobre qualquer assunto, em qualquer ocasião. Ora, a relação que o intelectual enquanto intelectual tem com o tempo — o tempo da reflexão — é inteiramente diferente da relação imediatista que a mídia tem com o tempo, de modo que o intelectual nem sempre se encontra disponível às solicitações dela. Quando isso ocorre, então, do ponto de vista da mídia, mas não do ponto de vista do intelectual, este silenciou.
[3] Jacques Le Goff, Os intelectuais na Idade Média, São Paulo, Brasiliense, 1993.
[4] “Si non potes intelligere, crede ut intelligas. Praecedit fides, sequitur intellectus: quoniam propheta dicit, nisi credideritis, non intelligetis”, “Sermo 118”, em Paul Tombeur (org.), Library of Latin Texts, Turnhout, Brepols Publishers, 2005.
[5] A sentença inteira diz: “Neque enim quaero intelligere, ut credam; sed credo, ut intelligam”, em Alexandre Koyré (org.), Fides quaerens intellectum id est Proslogion, 6a ed., Paris, Vrin, 1982, p. 12
[6] Esse é o ponto de vista que aqui nos interessa; não ignoro, porém, que não é o ponto de vista principal, para o homem de fé. Apenas, os significados extra-epistemológicos da fé não são relevantes para a presente questão
[7] Bertrand Russel, “We may define ‘faith’ as a firm belief in something for which there is no evidence”, em A. Seckel (org.), On God and religion, Amherst (NY), Prometheus Books, 1986, p. 283.
[8] Citado por Emmanuel Faye, “Descartes et la Renaissance: philosophie de l’homme, méthode, métaphysique”, em Descartes et la Renaissance, Paris, Honoré Champion, 1999, p. 13. Segundo M. de Gandillac, a expressão “media tempestas” parece ter sido usada pela primeira vez por um ex-secretário de Nicolas de Cues, Jean-André de Bussi, em 1469, “para designar o período intermediário entre antigos (prisci) e modernos (moderni)”.
[9] Para evitar mal-entendidos, esclareço que estou longe de pensar que as características da época moderna sejam consequências do seu nome. O que defendo é, ao contrário que o fato de que uma época se autodefina como “moderna” é consequência ou sintoma de características que se revelam também através dele. As possibilidades que o próprio nome da época moderna já contém foram, é claro, desenvolvidas independentemente de quaisquer considerações semânticas. Quais as causas de semelhante mudança de perspectiva, na história do pensamento? Fugiria do tema desta conferência entrar em considerações, já exploradas in infinitum pelos historiadores, tais como a crise e a desintegração do mundo medieval, a urbanização gradual da Europa, desde o século XII, a Reforma, o humanismo, a Renascença, as novas ciências astronômicas e físicas, a invenção e a difusão da imprensa, as descobertas geográficas, as descrições etnográficas, etc.
[10] Aristóteles, “Physica”, em I. Bekker e O. Gigon (orgs.), Opera, Berlim, Georg Reimer, 1831, vol. 1, p. 217b19; Berlim, Walter de Gruyter, 1960, reimpressão.
[11] Ibidem, p. 219b12.
[12] Agostinho, Confessions, seleção e tradução de P. de Labriolle, Paris, Les Belles Lettres, 1926, vol. 2, p. 310.
[13] A discussão mais brilhante dessas questões se encontra, é claro, no capítulo sobre a certeza sensível da Fenomenologia do espírito, de Hegel, em “Vorlesungen uber die Ästhetik”, Werke, vols. 13-15, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1970, pp. 82-92.
[14] Alexandre Koyré, Entretiens sur Descartes, Nova York, Brentano’s, 1944, p. 34.
[15] Ibidem, pp. 34-5.
[16] Michel de Montaigne, “XXXI. Des cannibales”, em Essais, Paris, Garnier, vol. I,1948, p. 234.
[17] Ibidem, p. 239.
[18] Ibidem, p. 240.
[19] Michel de Montaigne, “XII. De la physionomie”, em Essais, Paris, Garnier, vol.III, 1948, p. 307.
[20] René Descartes, Discours de la méthode, seleção e comentários de E. Gilson, Paris, Vrin, 1976, p. 6.
[21] Ibidem, p. 10.
[22] Ibidem, p. 16.
[23] Ibidem, p. 13.
[24] Ibidem, p. 16.
[25] Hermann Diels, em W. Kranz (org.), Die Fragmente der Vorsokratiker, Hildes-heim, Weidmann, 1992, vol. 1, p. 34 (fr.4).
[26] René Descartes, Meditationes de prima philosophia, Paris, Vrin, 1978, p. 14.
[27] José Ferrater Mora, “Razón”, em Diccionário de filosofia, Barcelona, Alianza, 1981, vol. 4, pp. 2774-9.
[28] Paul Regnaud, “Reor”, em Dictionnaire étymologique du latin, Lyon, A. Rey,1908, p. 281
[29] René Descartes, “Epistola ad patrem Dinet”, em Adam e Tannery (orgs.), Oeuvres de Descartes, vol. 7, Paris, Vrin, 1983.
[30] Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, tradução, notas e posfácio de P. C. de Sousa, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 22, § 16.
[31] Sextus Empiricus, “Against the logicians I (adversus mathematicos VII)”, em R. Bury (org.), Sextus Empiricus in four volumes, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1983, vol. 2, p. 206.
[32] Norberto Bobbio, Direito e Estado no pensamento de Kant, Brasília, Universidade de Brasília, 1969, p. 73.
[33] Friedrich Engels, “Der Ursprung der Familie, des Privateigentums und des Staats”, em Institut fur Marxismus-Leninismus beim ZK der SED (org.), Marx Engels Werke, Berlim, Dietz, 1956, vol. 21, pp. 30 ss.
[34] Friedrich Schiller, “Uber die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen”, em Sämtliche Werke, Munique, Carl Hanser, 1962, vol. 5, p. 579.
[35] Amartya Sen, Development as freedom, Nova York, Anchor Books, 2000, pp. 232-40.
[36] Michel Foucault, “Téhéran: la foi contre le chah”, em Dits et écrits II, 1976-1988, Paris, Gallimard, 2001, p. 158.
[37] Ibidem, p. 160.
[38] Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, Paris, Les Éditions de Minuit, 1991, p. 55.
[39] Gilles Deleuze e Claire Parnet, Diálogos, trad. José Vázquez Pérez, Valência, Pre-Textos, 1980, p. 8.
[40] Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990-2000, p. 177.
[41] Jacques Derrida, “Entrevista a Evando Nascimento”, caderno “Mais”, Folha de S.Paulo, 27/5/2001.
[42] Richard Rorty, “Relativismo: encontrar e fabricar”, em A. Cicero e W. Salomão (orgs.), O relativismo enquanto visão do mundo, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1994, p. 116.
[43] Ibidem, p. 117.
[44] Ibidem, p. 119.
[45] Friedrich Nietzsche, “Uber Wahrheit und Luge im aussermoralischen Sinn”, em K. Schlechta (org.), Werke, Munique, Carl Hanser, 1954, vol. 3, p. 314.
[46] André Comte-Sponville, “A besta-fera, o sofista e o esteta: ‘A arte a serviço da ilusão’”, em A. Boyer et al. (orgs.), Por que não somos nietzschianos, São Paulo, Ensaio,1994, p. 42.
[47] Friedrich Nietzsche, “Also sprach Zarathustra. Ein Buch fur Alle und Keinen”, em K. Schlechta (org.), Werke, Munique, Carl Hanser, 1954, vol. 2, pp. 339-40.
[48] Giorgio Agamben, “L’immanenza assoluta”, em La de potenza del pensiero. Saggi e conferenze, Vicenza, Neri Pozza, 2005, pp. 377-404.
[49] Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tubingen, Max Niemeyer, 1963, p. 22.
[50] Ibidem, p. 114.
[51] René Descartes, “Objectiones doctorum aliquot virorum in praecedentes Meditationes cum responsionibus”, em Adam e Tannery (orgs.), Oeuvres de Descartes, Paris,Vrin, 1983, vol. 7, p. 174.
[52] Martin Heidegger, “Die Zeit des Weltbildes”, em Holzwege, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1952, pp. 98-100.
[53] Martin Heidegger, “Der europäische Nihilismus”, em Nietzsche, Pfullingen, Neske, 1961, vol. 2, pp. 168-73.
[54] Observe-se que um dos mais importantes ideólogos do nacional-socialismo, Franz Böhm, publicou, em 1939, um livro intitulado Anticartesianismo. A filosofia alemã na resistência (Leipzig, 1938), em que defende, de modo mais grosseiro, teses muito semelhantes às de Heidegger.
[55] Martin Heidegger, “Die Frage nach der Technik”, em Vorträge und Aufsätze, Stuttgart, Neske, 1994, p. 23.
[56] Martin Heidegger, “Die Zeit des Weltbildes”, em Holzwege, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1952, p. 102
[57] Martin Heidegger, Einfuhrung in die Metaphysik, Tubingen, Max Niemeyer,1953, p. 28.
[58] Martin Heidegger, Was heißt denken? Tubingen: Max Niemeyer, 1954, p. 57.
[59] Citado por Nicole Parfait, Une certaine idée de l’Allemagne. Paris: Desjoquères, 1999, p. 141.
[60] Martin Heidegger, “Der europäische Nihilismus”, em Nietzsche, Pfullingen, Neske, 1961, vol. 2, p. 163.
[61] Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tubingen, Max Niemeyer, 1963, p. 20.
[62] Ibidem, p. 21.
[63] Ibidem, p. 382.
[64] Ibidem, p. 383.
[65] Ibidem, p. 384.
[66] Ibidem.
[67] Martin Heidegger, Hölderlins Hymnen “Germanien” und “Der Rhein”, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1999, p. 72.
[68] Domenico Losurdo, Heidegger et l’idéologie de la guerre, Paris, PUF, 1998.
[69] Ver Michael Friedman, A parting of the ways. Carnap, Cassirer and Heidegger, Chicago, Open Court, 2000, p. 58.
[70] Citado por Emmanuel Faye, Heidegger. L’Introduction du nazisme dans la philosophie, Paris, Albin Michel, 2005, p. 123.
[71] Ibidem, p. 217.
[72] Emmanuel Lévinas, Quelques réflexions sur la philosophie de l’hitlérisme, Paris, Payot & Rivages, 1997. Disponível no site Pages personnelles de Michel Fingerhut, <http://www.anti-rev.org/textes/Levinas34a/>. Acessado em 6/5/2006.
[73] Platão, “Theaetetus”, em J. Burnet (org.), Platonis opera, vol. 1, Oxford, Clarendon Press, 1900, p. 179b.
[74] “Os melhores não têm nenhuma convicção, enquanto os piores estão cheios de apaixonada intensidade”. William Butler Yeats, “The second coming”, em A. Jeffares (org.), Yeat’s poems, Londres, Papermac, 1989, p. 294.