A sexualidade como utopia
por Pascal Dibie
Resumo
Para o Natal de 2014 foi erigida na praça Vendôme, em Paris, uma instalação inflável de 24 metros, de autoria do artista norte-americano Paul McCarthy. Ela foi intitulada “Árvore”. A imprensa de direita viu nela um “plug anal”, ou seja, um brinquedo sexual. O artista foi atacado e agredido por um comando em nome da decência. Mas, nesse meio tempo, descobriu-se o “plug”, que começou a circular por toda parte, feito de chocolate ou plástico, para o maior deleite dos gourmands e aficionados pela arte. Em junho deste ano (2015), inaugurou-se no castelo de Versalhes a obra monumental de Anish Kapoor intitulada “A vagina da rainha”. Clamor geral contra a desfiguração dos lugares e a enormidade sexual da coisa, mesmo para a realeza. Ainda este ano e em Paris, três exposições chocaram os puritanos. Tratava-se de Sade a atacar o sol, no Museu d’Orsay, O Nascimento do íntimo, no museu Marmottant, e O bas-fond do barroco, no Petit Palais. O público precipitou-se para vê-las. Na verdade, desde que a Igreja se opôs ao sexo para tomar o poder, através da conjugalidade e da figura da mulher madura, amor e sexo se reafirmam entre si. E isso desde Bizâncio.
A Idade Média inventou o amor cortês; o século 16, rabelaisiano, com suas barriguilhas e seus decotes abertos, expôs o vocabulário do sexo; o 17 codificou- o para que se fizesse sem se falar dele; o Iluminismo criou a literatura utópica, de que ainda depende a atualidade; o 19 encerrou-o em prostíbulos; o 20 conferiu a ele aspectos surrealistas; o 21 difundiu a pornografia no mundo todo, em suas diversas formas, para milhões de cibersexuados.
Desde a definiçåo do homem (contra a animalidade), tem-se o sexo como algo exótico, a se banir, exceto nas utopias. Ele certamente estimulou o colonialismo, os revolucionários russos, os estudos de Wilhelm Reich, com sua máquina orgônica…
Ainda hoje, com a escalada incontrolável da pornografia, não se sabe se a cibersexualidade integra uma espécie de utopia ou uma nova maneira de abordar nossa incômoda genitalidade.
Eu me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho a dez passos do horizonte e o horizonte escapa dez passos mais longe.
Enquanto eu caminhar, jamais a atingirei.
Para que serve a utopia? Serve para isto: caminhar.
EDUARDO GALEANO
Sei que ainda hoje, ao falar de sexo, podem-se desencadear furores; sei que as conveniências não[1] gostam muito que nossas alegres verdades individuais se exponham, e que o sexo no Ocidente, assim como em muitos outros lugares, foi e continua sendo às vezes muito impopular, embora cada vez mais presente em nossos imaginários midiáticos e agora globais. Estamos no cruzamento dos caminhos em que o material prevalece sobre o espiritual, o mecânico sobre o sensual, o racional sobre o sexual. E algo reage. Nossa época, nosso século em plena adolescência produz artistas que exprimem e expõem que é preciso não abandonar a utopia da libido, que é preciso combater para que a obscenidade do silêncio, imposto a tudo que denuncia, critica e questiona, não seja definitivamente triunfante. Como de hábito, pontuarei minha exposição com exemplos concretos, com coisas que acontecem a todos nós, mas cuja significação e consequências talvez não percebamos suficientemente.
Em Paris, em outubro de 2014, um artista americano erigiu na Place Vendôme uma obra intitulada Green Tree, uma árvore gigante de material inflável sem muita graça, devo dizer. Na França, o ambiente ainda estava aquecido pelas manifestações virulentas de integristas que se opunham ao projeto de lei Casamento para Todos que o parlamento acabara de votar. Estávamos, portanto, em plena comoção sexual, gerada pela discussão sobre quem tem o direito de deitar com quem e, mais do que isso, de desposá-lo. Eu disse que os espíritos estavam aquecidos e vigilantes. Assim, os integristas reconheceram na tal árvore um plug anal. Atacaram-no, desinflaram-no, e o plug gigante desmanchou-se no chão. Surgiu então uma polêmica sobre o sentido da arte, sobre a sexualidade e principalmente sobre a utilização do suposto plug. Paul McCarthy, é o nome do artista, defendeu-se e reiterou a provocação com outra exposição. Dessa vez foi no La Monnaie de Paris, onde, não muito tempo atrás, cunhava-se ainda moeda. Ele intitulou a exposição de Chocolat Factory, produzindo em série plugs e Papais Noéis de chocolate. “Fábrica louca, desregrada, em superprodução”, como diz o programa da exposição, acumulando diariamente sua produção de plugs e de chocolate, fazendo surgir ali mesmo o problema logístico de sua capacidade de estoque. Sem que o dissesse, Chocolat Factory colocava a questão da sexualidade e a da superprodução de excrementos de nossa sociedade. Os reacionários se opuseram a tamanha obscenidade, mas, para o grande público, atraído pelo chocolate, foi a descoberta do plug e da analidade[2]. Paul McCarthy trabalha há quarenta anos com equivalentes visuais dos diferentes humores corporais: sangue, esperma, urina, excremento.
O que me interessa particularmente nessa aventura artístico-política é a dimensão utópica; como é que uma árvore, Papais Noéis com pinheiros de chocolate podem interpelar, chocar uma moral? Como isso causa uma indigestão? É preciso voltar às interdições e tabus que buscam conter e encerrar nossas sociedades, ao moralismo preocupado com a irrupção do que se considera como baixo, à famosa mediocridade do justo meio-termo que diferencia o alto do baixo no corpo, suas partes nobres de suas partes vergonhosas inomináveis, irreveláveis[3], e que, de repente reveladas, expressas, provocam revolução ou revulsão. Não estamos aí, com essa história leve (e esse é todo o seu peso!), diante de algo que tem a ver com a Utopia no sentido em que Thomas Morus (1478-1535) a imaginou? Algo relacionado a um lugar que não está em lugar nenhum, a uma presença ausente, a uma realidade irreal, a um alhures nostálgico, a uma alteridade sem identificação? Em outras palavras, uma “prestidigitação filológica cujo propósito confesso é anunciar a plausibilidade de um mundo às avessas e cujo propósito latente é denunciar a legitimidade de um mundo supostamente correto”[4]? Parece-me importante notar que, desde Morus, a literatura utópica juntou-se a uma literatura de reflexão ligada à sociologia do conhecimento retrospectivo e, ao mesmo tempo, à ação prospectiva. Ou seja, a utopia não tem antes nem depois, mas nos promete um presente iminente.
No que concerne à etnologia, disciplina que me convém, e à questão da minha conferência, “A sexualidade como utopia?”, tomarei do estudo de minha colega Françoise Héritier sobre o pensamento da diferença uma reflexão cuja evidência se impõe e que devo absolutamente repetir: “A reflexão dos homens, na emergência do pensamento, só pôde se ocupar do que lhe era dado observar de mais próximo: o corpo e o meio no qual ele está mergulhado”, e mais o seguinte, com que concordo plenamente: “Ocorreu-me que havia aí um para-choque último do pensamento, no qual está fundada uma oposição conceitua! essencial: a que opõe o idêntico ao diferente, um dos temas arcaicos que encontramos em todo pensamento científico, tanto antigo quanto moderno, e em todos os sistemas de representação”. E ela acrescenta: “É menos o sexo que a fecundidade que está no centro dos problemas”[5].
Depois da “árvore-plug”, se posso dizer, vai surgir na França outro caso, o da “vagina da rainha”. Em 9 de junho de 2015 foi inaugurada nos jardins do palácio de Versalhes uma obra monumental de Anish Kapoor intitulada A vagina da rainha que toma o poder. Indignação geral da imprensa de direita, seguida de um ataque contra a trompa de aço que é manchada de tinta amarela. Sabiam os agressores que o amarelo é a cor da recusa, dos réprobos? O fato é que esse gracioso túnel de aço de sessenta metros de comprimento, colocado sobre um tapete verde e cercado de enormes blocos de pedra artisticamente salpicados de vermelho, que se abre em direção ao palácio do Rei Sol, é qualificado por seu autor de “muito sexual” e de “dirty comer” [literalmente, “canto sujo”] pela crítica horrorizada. Le Figaro escreve que ele é uma ficção para a qual “todo ato criativo põe em perigo um passado sacralizado ao extremo”. Especialmente aqui, além da vagina, lugar de fecundidade,julgou-se que “o direito moral de Le Notre e Mansart não era respeitado”[6]. Ao falar de sua obra, o artista anglo-in diano disse: “Tive a ideia de perturbar o equilíbrio e de convidar o caos”. E parece que ele conseguiu. Com a Vagina da rainha, o que Anish Kapoor questiona é exatamente o lugar do poder, com esta questão precisa: não é o sexo o agente do poder? E, mais particularmente, não são as mulheres convidadas a essa representação do poder?
É tempo de retomar a própria noção de sexo ou do sexo e de ver nele, para o que nos ocupa aqui, antes de tudo um sexo social, ou seja, um meio, como disse Françoise Héritier, de trabalhar com os limites, no sentido de fronteiras, tanto de nossas sociedades quanto do pensamento humano. Freud, que evocarei em seguida e que reencontraremos mais tarde um pouco maltratado nesse debate sobre as utopias, levou muito tempo para fazer nossa sociedade reprimida pelas religiões e pela moral admitir que o objetivo da sexualidade não era só a procriação, e que a sexualidade humana, no nível individual, estava em realidade a serviço dela mesma. Os especialistas da evolução observam que a descrição do papel das mulheres, em qualquer época, sempre esteve ligada à história da sexualidade. Nosso bipedalismo, isto é, o fato de podermos ficar de pé, mudou radicalmente para melhor nossa postura, com o entusiasmo, para ambos os sexos, de perceber a beleza sob um ângulo diferente: o macho se interessou um pouco menos pela bunda da quadrúpede[7] e desenvolveu um gosto novo pelos seios e pelos ventres macios que se ofereciam à visão; quanto às mulheres, que não podiam ver de frente seu parceiro, também elas descobriram sob outra luz uma parte da anatomia que, salvo exceção, até então ficava oculta[8]. Deixo de lado a mecânica dos corpos; noto apenas que os deuses das mitologias em todas as culturas sempre tiveram uma sexualidade ampla e variada. Penso nos mitos como utopias. Entre os gregos, por exemplo, as bodas de Hermafrodite com Dioniso que engendraram Príapo…
Para me aproximar da minha cultura, aquela na qual, apesar da globalização, vivo ainda um pouco e da qual percebo os sobressaltos através dos exemplos que dou aqui, convém colocar, num primeiro momento, a questão sexual em termos de utopia invertida. No capítulo do sexo, a maior parte das religiões exigia de seus adeptos apenas uma continência temporária, mas os cristãos insistiram em que ela fosse permanente porque, como o lembra São Paulo, “nossos corpos são os membros do Cristo” (I Coríntios 6, 15-16) e porque
quando Adão e Eva cometeram o pecado, eles se expuseram a forças novas e egoístas que não podiam mais jugular. Sua desobediência ao criador se manifestou por uma atividade súbita e pertinaz de seus ór gãos genitais. Sua incapacidade de reprimir esse fenômeno novo os le vou a costurar folhas de figueira para fazer um avental que ocultasse as pudenda, as partes vergonhosas – do latim pudere, ter vergonha[9].
Santo Agostinho, que cito aqui por meio de Reay Tannahill[10], acreditava que os remorsos do pecado original herdado pelos descendentes concupiscentes de Adão e Eva subsistiam nos humanos e que isso explicava a perversidade e a independência dos órgãos genitais, a natureza ir reprimível do desejo carnal e a vergonha geralmente sentida após o coito. O instinto físico para assegurar a perpetuação da vida se transformou numa coisa infame, a luxúria. Para qualificar esses pecados, associou-se a eles o nome de Sodoma, que englobava o pecado do orgulho, o adultério e o espírito ateu, em suma, todos os vícios ditos antinaturais, a natureza querendo, sempre segundo Agostinho, “que os órgãos genitais tivessem sido destinados pelo Criador unicamente para a propagação da espécie e não pudessem ser legitimamente utilizados para outros fins”[11]. Acrescento à lista, e é a razão pela qual se atacou a árvore perversa de McCarthy, pecados geralmente enunciados em latim, a saber: coito interfemural, felação, polução manual, bestialidade e sodomia[12].
O que está precisamente no centro da visão cristã da relação sexual, sua preocupação maior, é excluir do conjunto das práticas sexuais aquelas julgadas não procriativas e que os teólogos dividem segundo dois con ceitos complementares: o da vida antinatural – que é o objeto do cânone Adulterii malum – e o da esterilização, visado pelos cânones Aliquando e Si aliquis. Em teoria, o casamento cristão é um “remédio para a concupiscência dos cônjuges”. O homem e a mulher gozam teoricamente de direitos iguais, mas essa igualdade não deve perturbar a hierarquia natural entre os sexos. “Na vida de casal cristão o amor enquanto paixão deve ser proscrito absolutamente”[13], observa Theodore Tarczylo em seu estudo sobre o sexo e a liberdade no século das Luzes. É nesse contexto que o catecismo do Concilio de Trento reafirma claramente a gravidade de toda prática anticoncepcional, notando que “essa ação só pode ser o efeito de uma conspiração de pessoas homicidas”. Quanto aos pecados, “eles não perturbam apenas a ordem da natureza, eles minam o edifício social! A fornicação põe em perigo a instituição familiar, o adultério é fonte de desordem”[14]. Até o século XIX, a ordem natural atribui a cada criatura uma posição na hierarquia dos seres. No topo, o homem, rei da criação; em baixo, a mulher; e mais embaixo ainda, as criaturas subalternas: animais, plantas etc. Ora, perturbar a hierarquia é um crime porque é opor-se à vontade do Criador. Essa hierarquização do mundo se traduz até no ato sexual: “se a posição mulier super virum é julgada ilícita, é porque, além das suspeitas de esterilização, ela infringe a regra da supremacia viril. Todo movimento do topo à base significa uma diminuição do ser, uma animalização”[15]. E é assim que, crime dos crimes, ato que aboliria a fronteira entre o homem e o animal, “o sodomita é um louco, um ser que não se pertence mais, alguém fora de si, fora da humanidade, desnaturado, exposto ao demônio”[16]. O verdadeiro crime é que com essa postura não se pode conceber. E a Igreja, misógina desde suas origens, acusará a mulher de serva tentadora, “semelhante a uma porta permanentemente aberta sobre o abismo da Queda”. Eis aí, entre outras coisas, o que os censores inventaram e acreditaram reconhecer na Place Vendôme, em Paris, na árvore inflável de 24 metros de altura que eles mesmos qualificaram de plug anal: uma utopia contrária que não os fez rir…
Quanto à Vagina da rainha, no palácio de Versalhes, imagina-se facilmente por que a moral cristã também se melindrou. Não era mais um sex toy, mas um órgão que insinuava não só o princípio do excesso, mas o receptáculo mesmo do excesso. “Como o homem, a mulher é submetida às pulsões da genitália e do útero […] é pelo útero que a mulher é fatalmente levada ao excesso, literalmente possuída pelo animal uterino, vítima obrigatória de seu afluxo de humores, de sua vontade de filhos”, observa Tarczylo[17]. Não é só a mulher, fonte da desordem universal, que está em causa, mas, com a exposição Vagina da rainha, a exposição mesma do concreto da relação sexual, daquilo que, segundo Lacan, “se faz realmente”, ao lembrar, em 1967, que “a sexualidade abre um buraco na verdade”. Não estaríamos aí na aurora de uma utopia? Algo que, como eu disse mais acima, é da ordem de uma presença ausente, de uma realidade irreal, de um alhures nostálgico que obriga a dizer, a falar? ”A sexualidade está inteiramente nas palavras”, escreveu Freud. As utopias também.
Aristófanes nos fez rir muito ao propor, em A revolução das mulheres, substituir um governo masculino por um governo de mulheres. Ovídio nos fez sonhar com a primavera eterna das Metamoifoses, Campanella com a Cidade do Sol (1623) etc. – os catálogos de utopias mencionam mais de mil até hoje, que conhecemos mais ou menos[18]. O que me interessa aqui, e repito caso não me tenham entendido, é pensar a utopia social enquanto projeto imaginário de uma sociedade outra, este outra tendo por objeto a família ou a sexualidade. Em todo caso, é uma maneira de limitar a lista das utopias, embora nesse ponto elas ainda sejam numerosas, a alteridade indo da comunidade sexual ao monaquismo ou ao paramonaquismo generalizado, que pode acabar num eugenismo sem freios ou até mesmo numa sexualidade sem reprodução, uma sexualidade apenas para o sexo em que a disjunção dos prazeres pode ser vivida plena e individualmente – o que hoje, e voltaremos a isso, não é mais uma utopia. Por ora, deve-se entender a utopia como uma profecia: “ela anuncia e evoca, seja de modo fascinante para que as coisas aconteçam, seja de modo temível para que não aconteçam”[19]. A função mais positiva da utopia é a exploração do possível, no sentido de que ela é uma intenção de transformação da ordem presente; ela intervém “como uma alternativa à ordem social existente, revela o fosso entre as reivindicações da autoridade e as crenças dos cidadãos num sistema de legitimidade”[20].
Na Revolução Francesa, Saint-Just proclamou o advento da felicidade na Europa; Gracchus Babeuf e Pierre Sylvain Maréchal – de quem falei aqui longamente no ciclo “Fontes passionais da violência”, em 2014 – escreveram o Manifesto dos iguais (1796); o abade Saint-Pierre, que Voltaire cognominou “Saint-Pierre da utopia”, propôs um “Projeto para tornar a paz perpétua na Europa” (1713); em suma, o fato de o século XVIII ter visto surgir o termo utopia como substantivo em 1717, como adjetivo em 1789 e os próprios utopistas em 1792, é a prova de que “sua necessidade se fazia sentir mais que nunca”, como escreveu Anne Richardot, ao constatar que “o imaginário utópico impregna uma parte considerável da produção lite rária no século XVIII”[21]. O que me interessa é a utilização ou a necessidade de utilização da sexualidade, sua aplicação ou sua reforma nas utopias que mencionei. Lendo-as, podemos nos perguntar se a sexualidade não seria o instrumento mais visível e também o mais eloquente para um militantismo filosófico no qual está em jogo tanto a sociopolítica quanto a psicologia de uma sociedade em transformação. “Lá onde a sexualidade aparece em destaque”, observa Anne Richardot, “há ao mesmo tempo paixão e desejo de regulamentação, através, é claro, de uma proposta de desregulamentação”[22]. Seguidamente situadas numa ilha em meio a ocea nos improváveis – de preferência a Oceania – ou nas margens do Amazonas, em repúblicas de mulheres ou em “corsários fêmeas” à procura de reprodutores, há nas utopias um mundo inverso àquele que se conhece: são as mulheres que buscam se organizar democraticamente, às vezes até militarmente, reconfigurando as relações de sexo, propondo uma sociedade que se estabelece na tensão entre o desejo e o dever, e na qual as relações entre homens e mulheres têm por finalidade uma revolução genital radical. As utopias que vemos florescer a partir do século das Luzes nos passos dos libertinos[23] colocam de fato a questão da reorganização da reprodução e de sua gestão. Aliás, toda utopia é pensada para engendrar, seja de maneira genital ou espiritual. A título de exemplo, em Les Amazones [As Amazonas], de 1749, o homem tem funções apenas efêmeras: “Depois de três meses, a Senhora Amazona, como gentil pessoa, diz ao licencioso: Vamos, franguinho, caia fora”. Numa outra utopia, L’aventurier français [O aventureiro francês], de 1782, de Robert Martin, “os machos são engordados como garanhões e usam um ‘cinto singular’, do qual cada mãe de familia possui a chave. As damas de qualidade sustentam jovens rapazes, as mais ricas têm serralhos inteiros”[24].
Na verdade, o sonho profundo dessas utopias feministas – escritas em sua maior parte por homens e, nesse sentido, tanto fantasmadas quanto sob vigilância – não é tomar o poder, mas sim abolir os privilégios e as tarefas reservadas aos gêneros, até mesmo transcender ou abolir o poder. Anne Richardot se pergunta se, através dessas “utopias genitais” em que se é “possuidor de um corpo duplamente genitalizado”, a ideia utópica não seria, talvez, a de enfim “reencontrar uma dimensão etérea”[25] de nosso erotismo, isto é, apaziguada, na medida em que nosso amor nada mais teria de carnal. Isto com a simples finalidade de retomar o mito platônico do andrógino, aquele tempo esperado no qual se realizaria finalmente a impossível busca original, preenchendo o vazio criado pela metade perdida. A questão é saber se a ausência de alteridade é vivível, sobretudo ao sair da época cristã em que o sujeito do desejo sempre se identificou ao sujeito da lei. As feministas contemporâneas nos asseguram que “as relações de sexo são solúveis no gênero”[26].
Segundo Monique Wittig, existiria somente um sexo. Ou seja: “o sexo” continua colado às mulheres. Sua esperança é chegar a uma humani dade universal, a uma só humanidade na qual o sistema reprodutor não tenha mais incidência do que o sistema digestivo – necessário, fun cionando com frequência […] mas cujas características não precisam ser elucidadas constantemente, lembradas em toda correspondência oficial (macho/fêmea), em toda saudação (bom-dia, senhora/senhor) e em cada frase (todos e todas). Wittig se inspira em dados antropológicos, históricos e linguísticos para criar um mundo à parte, uma utopia que é também um plano[27].
Portanto, é pela renovação da língua que a utopia de uma mudança radical de nossas sexuações poderia se realizar, pelo desaparecimento, para começar, de uma língua sexuada que a revolução poderia trazer, como pensa uma parte de nós.
Pensemos na outra parte, ou melhor, no partido que se viu confron tado à difícil instalação na prática de sua utopia comunista. Desta vez tocamos concretamente a utopia,já que foram nossos contemporâneos que tentaram vivê-la in situ; temos testemunhos dos que praticaram e viveram essa utopia até que ela se invertesse e se transformasse em pesadelo. Convém lembrar os poucos meses que se seguiram à queda da monarquia na Rússia e que foram sentidos como uma libertação sem precedentes em todos os planos. Foi um frenesi de gente tomando a palavra, de comícios cotidianos, de petições para tudo e para todos, e a rejeição de todas as formas de autoridade permitiu a Lênin dizer que os russos viviam no país mais livre do mundo. De fato, o historiador Marc Ferro lembra que em Moscou trabalhadores obrigavam seus patrões a aprender os fundamentos do futuro direito operário; em Odessa, estudantes ditavam o novo programa de história das civilizações a seus professores; em Petrogrado, os atores substituíam o diretor do teatro e escolhiam o próximo espetáculo; até mesmo crianças reivindicavam, para os menores de 14 anos, o direito de aprender a lutar boxe para se defender dos mais velhos. Era o mundo às avessas. Os sovietes pregavam a paz imediata, terra aos camponeses, jornada de oito horas de trabalho e uma república democrática. E as mulheres? Queriam a igualdade. Em suma, todos se emancipavam, mas a utopia demorava a se instalar. Sabemos hoje o que veio a seguir. Quanto à moral sexual leninista, ela colocou o amor sob vigilância. Freud era considerado um espírito perturbado cujas teorias tinham por finalidade oficializar os mais baixos instintos humanos. Lênin declarou que
a moral burguesa me repugna tanto quanto essa paixão pelas questões sexuais[…] para esse tipo de ocupação não há lugar no Partido, no pro letariado em luta e consciente de seu espírito de classe[…] as questões sexuais e matrimoniais não fazem parte da principal questão social[…] isso prejudica a clareza da questão, obscurece o pensamento em geral e a consciência de classe dos operários[28].
É verdade que a revelação de Freud foi, em seu tempo, entendida não como uma proposição utópica, mas como uma diabrura medievalesca, e isso tanto pela burguesia quanto pelo proletariado. O problema não era só revelar coisas em matéria de sexualidade, mas confirmar práticas. No entanto, Freud tirou a sexualidade humana de sua representação atrasada quando disse que o sexo devia ser, para seus contemporâneos do século XX, não uma descoberta, mas simplesmente uma redescoberta. Wilhem Reich, discípulo de Freud, foi mais longe. Mesmo reconhecendo em Freud sua exploração do inconsciente mediante as associações e as imagens verbais, ele achava que a psicanálise acabava sendo um discurso sobre um discurso, com tudo o que isso implica de impregnação ideológica, de limitações e de coerções culturais. Reich queria prolongar a obra de Freud e remontar aquém da linguagem falada. Ele abriu o imenso campo inexplorado das expressões emocionais que, a seu ver, se apresentavam sempre encarnadas, inscritas num corpo: o corpo inteiro, não o “corpo de órgãos”[29]. É assim que suas pesquisas o levaram à genitalidade e à teoria do orgasmo. Em vez da genitalidade posta por Freud a serviço da procriação, Reich afirmou o primado da sexualidade enquanto estrutura biossocial fundamental, propondo a revolução sexual. “Não se trata apenas de beijar, de abraçar, de ter relações. Trata-se da realidade da experiência emocional da perda do ego[…]. A libido é a energia que é modelada pela sociedade[…]. O mundo se apodera dela e a modela”[30]. Com isso ele se interessou pela energia da sexualidade, a orgone, e insistiu na questão do orgasmo, “capacidade de descarregar completamente toda a excitação sexual contida, por meio de contrações involuntárias agradáveis ao corpo”. Em 1930, publicou A revolução sexual, onde analisa, entre outras coisas, as causas da miséria sexual e afetiva das massas, propondo o direito à sexualidade das crianças e a liberdade sexual dos casais[31]. Em 1931 fundou, em Berlim, a Associação para uma Política Sexual Proletária (Sexpol), na qual dava consultas gratuitas. Em 1933 apareceu seu livro Psicologia de massas do fascismo, em que insiste sobre as estruturas de caráter do homem e a peste emocional que explicam o fascismo. Diante do fiasco da moral sexual- título da primeira parte de A revolução sexual -, Reich propõe a luta pela “nova vida” na União Soviética – título da segunda parte. Essa luta permitiria construir uma nova sociedade com métodos de educação radicalmente diferentes dos existentes, baseados no prazer e na realização dos desejos e não nas coerções sociais e na frustração permanente. O capítulo XIV é um verdadeiro manifesto, quando não uma utopia na qual “os problemas sexuais não podem ser abandonados como se fossem diversões em relação à luta de classes; ao contrário, essas discussões devem se integrar ao esforço total de construção de uma sociedade livre”[32].
Embora hoje pouco conhecido fora da geração de 1968, Reich semeou, como ele mesmo escreve, “o cuidado da reestruturação sexual do homem, tendo em vista uma aptidão plena ao prazer”, e isso “não pode ser deixado à iniciativa privada, é um problema cardeal da vida social inteira[33]. De certa maneira, estamos de volta ao ponto de partida desta exposição, quando eu falava dos anticasamentos para todos, dos anti-homossexuais, antissocialistas, antissacanagem etc., desses “dirigentes políticos de mentalidade ascética que representam um sério obstáculo[…] inexperientes e muitas vezes sexualmente doentes […] que nesse ponto têm muito a aprender”[34].
Portanto, ao mesmo tempo em que alguns resistem a toda mudança, chegamos, muitos de nós, à ideia de que as categorias homem e mulher não são naturais, nem sempre correspondem ao sexo biológico e são reguladas mais pelas leis do significante do que pela biologia, embora a sexualidade tenha se tornado algo muito mais público e, para retomar Jacques Lacan, “a palavra sexo implique a ideia de ‘um’ ou de não-relação, ao contrário de divisão”. Aliás, Lacan dizia que “não há relação sexual no ser falante”, a fim de mostrar que a expressão corresponde ao imaginário, e afirmou – acrescento isso de passagem à nossa reflexão – que “o homem é casado com o seu falo. Ele não tem outra mulher como essa”. Quanto ao que chamam de gozo sexual, Lacan explica que “ele é definido em re lação com o falo” e, em razão dessa definição, “é marcado, dominado pela impossibilidade de estabelecer como tal, em parte alguma no enunciável, aquele único Um que nos interessa, o Um da ligação-relação sexual”.
No entanto, o mundo muda a toda a velocidade, e o que era utopia tornou-se realidade. Ouvimos aqui Frédéric Gros falar da utopia do corpo na visão pós-humana e suas realizações atuais. Então falemos disto: a vertigem sexual – que, segundo Georges Bataille, não se pode afastar do debate – deve ser entendida como “a transgressão momentânea do descontínuo que são o organismo (individual) e o trabalho (social), em direção ao contínuo da espécie e da procriação, ao magma vida-morte
vida que faz o fundo da realidade”[35]. Herbert Marcuse, na esteira de Reich, apresentou o sexual liberado como o polo oposto do rendimento repressivo. Não há dúvida alguma de que o Ocidente atual compensou até agora, pela revalorização da sexualidade, alguns inconvenientes da sociedade industrial. Desde que a sociedade de consumo se instalou profundamente, o sexo, assim como a Coca-Cola e as férias, se tornaram produtos a consumir, pelo simples prazer de seu consumo. Será porque “o coito é o último lugar da natureza pura (bruta) num mundo artificializado e urbanizado”, como observou um psicanalista? Um pouco, talvez, para os mais velhos. Mas parece que, para os mais jovens, o sexo entrou nas práticas de comunicação na globosfera, alternando entre virtual e realização. A menos que os modelos de rendimento da informática tenham chegado a tal ponto de contradição que a utilidade, ou mesmo o utilitarismo, conquistou as expressões de todas as formas de vida e o ritmo prazer-prazer seja agora o fundamento mesmo de nossas existências. Então a presença, nossa presença, se tornaria secundária em tudo que fazemos e estamos entrando numa utopia desenfreada – a utopia, repito, sendo a possibilidade da existência de um lugar que ainda não está em lugar nenhum.
O princípio de prazer – entenda-se: o esforço de repetição do que, por natureza, escapa à sua intenção – seria então a verdadeira cultura, uma cultura corrigível a cada instante e que se edifica em torno desse vazio que é o único verdadeiro gozo reconhecido como total, o gozo sexual que só se instaura com sua perda, como sabemos. Desta vez chegamos lá: basta dar uma voltinha no smartphone pelo Tinder, OKCupid, Happn ou Icebreaker, um aplicativo de encontros por geolocalização, para ver que homens e que mulheres estão ao alcance, com a mesma vontade de realização imediata. Joga-se com este, com aquela, com seu tipo, seu fantasma. Marca-se um drinque num lugar público, para abrir o apetite, vai-se à casa de um, do outro ou a um motel, uma hora de diversão, sem troca de telefones, sem preocupações. Apenas divertimento e prazer. Fast sex. Fala-se também de hook up entre os gays para um encontro de uma noite[36]. Em todo caso, crescem os usuários de sites de encontros na França. Alguns ou algumas anotam num caderninho: “nenhum ressentimento, apenas momentos legais”. Não há dúvida, porém, de que estamos a caminho de uma nova libertinagem. “As pessoas dizem agora que não há mal em fazer o bem”[37], diz o sociólogo Jean-Claude Kaufmann. De fato, esses “aplicativos de tentação”[38] parecem ser formidáveis restauradores de egos machucados. Chegamos à revolução sexual pregada por Reich nos sovietes? Melhor: hoje não há mais necessidade de tocar para gozar.
- A tradução do presente ensaio, incluindo as citações de obras feitas pelo autor, é de Paulo Neves ↑
- Jornal Libération, 27 out. 2014. ↑
- Pascal Dibie, La tribu sacrée. Ethnologie des prêtres, Paris: Metailié, 1999. ↑
- Henri Desroche; Joseph Gabei; Antoine Picon, “Utopie”, Encyclopaedia Universalis. Disponível em:
<http://www.universalis.fr/encyclopedie/utopie/>. Acesso em: 1 mar. 2006. ↑
- Françoise Héritier, Masculin Féminin, Paris: Odile Jacob, 1996, pp. 19-20. ↑
- Le Figaro, 9 jun. 2015. [Le Notre e Mansart foram, respectivamente, paisagista e arquiteto de Versalhes
-N.T.] ↑
- Mas isso não é verdade no Brasil – conforme minha conferência “O silêncio dos amantes”, no ciclo O
silêncio e a prosa do mundo (2013) – e nas culturas do Oriente Médio e de boa parte da África. ↑
- Reay Tannahill, Le sexe dans l’histoire, Paris: Laflont, 1982, pp. 15-7: “A posição ereta obrigou a humanidade a reconsiderar a postura de acasalamento dos primatas e, a seguir, a perceber a beleza sob um ângulo diferente. Os parceiros se veem de frente, os músculos, as extremidades das fibras nervosas, as mucosas e o ângulo de penetração contribuem para uma experiência voluptuosa recusada ao primata não hominídeo, permitindo nessa nova postura, em que o clitóris participa, o orgasmo da mulher”. ↑
- Pascal Dibie, “O silêncio dos amantes”, em Adauto Novaes (org.), O silêncio e a prosa do mundo, São Paulo: Edições Sesc, 2014, p. 355. ↑
- Reay Tannahill, op. cit., p. 160. ↑
- Ibidem, pp. 129-30. ↑
- Pascal Dibie, “Nomear as coisas”, em Adauto Novaes (org.), Libertinos libertários, São Paulo: Companhia das Letras, pp. 182-3. ↑
- Theodore Tarczylo, Sexe et liberté au siecle des Lumieres, Paris: Presses de La Renaissance, 1983. ↑
- Ibidem, pp. 39-41. ↑
- Ibidem, p. 42. ↑
- Ibidem. ↑
- Ibidem, pp. 83-4. ↑
- Jean Servier, Histoire de l’utopie, Paris: NRF, 1967. ↑
- Encyclopaedia Universalis, “Utopie”, op. cit. ↑
- Paul Ricoeur, L’Idéologie et l’utopie, p. 90. ↑
- Anne Richardot, “Cythére redécouverte: la nouvelle géographie érotique des Lumiéres”, Clio. Femmes, Genre, Histoire. Dossier Utopies sexuelles, 2005, n. 22, p. 2. Disponível em: <https:/ / clio.revues.org/ 1747>. Acesso em: 1 mar. 2016. ↑
- Ibidem. ↑
- Cf. Adauto Novaes (org.), Libertinos libertários. ↑
- Apud Anne Richardot, op. cit., p. 3. ↑
- Anne Richardot, op. cit., p. 5. ↑
- Kate Robin, “Au-delà du sexe: Le projet utopique de Monique Wittig” ,Journal des anthropologues, 2011,
n.124-125. ↑
- Ibidem, pp. 2-3. ↑
- Apud Jacquy Chemouni, “Lénine, la sexualité et la psychanalyse”. Disponível em: <http:/ / olivierdou ville.blogspot.com.br/ 2013/06/lenine-la-sexualite-et-la-psychanalyse.html>. Acesso em: 1 mar. 2016. ↑
- Roger Dadoun, “Reieh-Freud, Le débat fondamental”, Psychanalyse (témoignages) Psychanalyse (histoire) Psychanalyse (théories), n. 152, nov. 1972. ↑
- Wilhem Reich, Reich parle de Freud, Paris: Payot, p. 19. ↑
- Idem, La révolution sexuelle, Paris: Plon, 1968. Ed. bras.: A revolução sexual, Rio de Janeiro: Zahar, 1969. ↑
- Ibidem, p. 368. ↑
- Ibidem, p. 370. [Grifos do próprio Reich.] ↑
- Ibidem, p. 367. ↑
- Cf. Encyclopaedia Universalis, “Sexualité”, v. 14. ↑
- Nouvel Observateur, n. 2.646, 27 jul. 2015. ↑
- Jean-Claude Kaufmann, Sex@mour, Paris: Armand Colin, 2010. ↑
- Ibidem. ↑