Ainda sob a tempestade
por Adauto Novaes
Durante quatro meses, dezenove pesquisadores trabalharam neste primeiro processo de reflexão sobre a cultura da década de 70 no Brasil. De início surgiram algumas contradições que, longe de serem resolvidas no plano teórico, estão refletidas nos ensaios. A primeira delas, a mais evidente, consiste em realizar um trabalho sob a influência dos limites políticos de uma tempestade que continua a inundar consciências e práticas. Seria ilusório pensar que, nestas circunstâncias, o mais combativo dos críticos — isolado no seu trabalho individual — guarda uma aguda clareza política. A lógica do sistema consiste em tirar dele a matéria-prima — filmes, peças, músicas, exposições, livros etc. — e sem ela muitas vezes a crítica é condenada a repetir o discurso sobre a censura, tarefa importante de denúncia mas insuficiente, porque esteriliza o campo de reflexão teórica. Alguns dos ensaios aqui publicados tentam superar esta contradição invertendo o caminho: analisam, por exemplo, a obra não apenas através da sua relação externa com a censura, mas procuram dissecar principalmente as contradições internas às próprias concepções estéticas engendradas pela censura, e definir até onde a representação formal de peças de teatro, filmes, músicas etc. foi permeável às ordens, contra-ordens e decretos. É o método que permite mostrar o caráter específico e contraditório de determinadas manifestações culturais.
O conhecimento da realidade cultural discutida nessa coleção e o desenvolvimento teórico pretendido levaram os autores a um confronto com a nova contradição: a verdade tem caráter de classe. O pensamento brasileiro — apesar dos avanços em sentido contrário — guarda ainda elementos de uma pesada herança e a influência de uma concepção cultural que foi hegemônica entre os intelectuais, durante um razoável período da nossa história recente: o populismo-reformista. Esta tendência, ao abrir mão do conceito e da prática da luta de classes, cria enormes barreiras para se chegar até mesmo perto da verdade. Daí os cultores dessa linha de pensamento sempre lidarem com meias-verdades que impedem a verificação, o conhecimento da unidade orgânica e contraditória de todos os aspectos da cultura. Quando, por decreto, se define que duas concepções culturais se fundem em uma só, isto é, quando se define arbitrariamente que os interesses da “burguesia nacional” e sua cultura nacional popular são os mesmos da grande massa de trabalhadores, instaura-se o imobilismo, torna-se impossível o avanço teórico, porque jamais a burguesia vai criar novas concepções de cultura que neguem seus interesses fundamentais enquanto classe. A não ser que por uma contorção mental (e histórica) se pense que ela pretenda um dia se negar enquanto classe. O combate a tais concepções foi a preocupação de alguns textos da pesquisa do Anos 70. Daí a intenção de resgatar as importantes tentativas de resistência cultural da década. Em alguns ensaios fica demonstrado que a resistência foi muito limitada em função de dois outros problemas: 1) se o sistema dominante sempre propõe representações culturais sistematizadas — e essa é uma das forças de sua ideologia —, ao longo dos anos 70 a revolta cultural se apresentou de forma espontânea e desorganizada; 2) onde houve tentativa de sistematização da revolta, ela se deu, ainda aqui, sob a essência da conciliação de classe, fruto das velhas concepções do populismo cultural da década de 60, que ignoram não a existência de contradição entre duas linhas de pensamento — a do dominante e a do dominado — mas o caráter antagônico dessa contradição.
Enfim, o leitor está diante de um primeiro balanço e análise das principais manifestações culturais da década na música popular, literatura, teatro, cinema, televisão, música clássica e artes plásticas. Mais do que o balanço, o que importa neste trabalho é a disposição de abrir novas formas de análise e crítica.