2013

Às costas da consciência: sobre uma forma de recuperacao da filosofia da hisóoria

por Vladimir Safatle

Resumo

A filosofia da história é, atualmente, um dos setores mais desqualificados da especulação filosófica. Durante décadas aprendemos que aquelas filosofias que orientam sua perspectiva crítica através do recurso sistemático à filosofia da história (Hegel, Marx) seriam tributárias de grandes metanarrativas teleológicas e unívocas. Desta forma, elas precisariam acreditar em uma história desprovida de acontecimentos, história cujo horizonte de reconciliação já estaria decidido e assegurado de antemão. Para tais filosofias, não haveria realmente futuro, já que ele seria antecipado pelo movimento de rememoração reflexiva do passado.

No entanto, podemos fornecer uma outra leitura possível do problema. Tal leitura alternativa nos leva a responder, de outra forma, a pergunta central: o que significa pensar a história? Significaria simplesmente procurar construir redes causais de acontecimentos que se desdobram no tempo, um pouco como vemos no conceito de “causalidade histórica”? Ou teríamos a compreensão de que pensar a história implica em nos livrarmos das amarras da ilusão da individualidade, ilusão de que nossas ações são ações de um indivíduo dotado de sistemas particulares de interesse?

Se aceitarmos a segunda hipótese, então poderemos dizer que a função da filosofia da história é pensar em que condições atores transindividuais entram em cena, em que condições multiplicidades agem. Assim, a função de uma filosofia da história não consistirá em fornecer metanarrativas sobre acontecimentos, mas fornecer modelos de ações transindividuais, ações estas que são portadoras dos verdadeiros acontecimentos.

Conhecemos um modelo pouco explorado de ações transindividuais: a fantasia. Trata-se de discutir as relações profundas entre fantasia e acontecimento, fazendo apelo tanto a uma recuperação de temáticas maiores da filosofia hegeliana da história quanto aspectos importantes da teoria da fantasia em Freud, Lacan e Jean Lapalanche. Tal articulação visa mostrar como a reflexão sobre a estrutura psíquica do sujeito contemporâneo nos abre dimensões importantes para entendermos a anatomia do sujeito histórico.

Se a filosofia contemporânea (Lyotard e Foucault, por exemplo) desconfiaram da história pelas melhores razões, talvez tenha chegado o momento de recuperarmos a história em outro patamar. Não mais a história como grande processo de síntese e de organização da experiência social do tempo a partir de perspectivas universalizantes, mas a história como reflexão sobre o acontecimento e a contingência.


nUm coup de ton doigt sur le tambour décharge tous les sons et commence la nouvelle harmonie. Un pas de toi et c’est la levée des nouveaux hommes et leur en marche.

ARTHUR RIMBAUD

Um dos temas mais recorrentes da filosofia contemporânea foi a desconfiança em relação à história. Durante o século XIX a história aparecia para pensadores do porte de Hegel e Marx como a destinação necessária da consciência, não apenas por ela ser o campo no qual se dá a compreensão do sentido das ações dos indivíduos, mas sobretudo por ela impedir o isolamento da consciência na figura do indivíduo atomizado, isso ao mostrar como a essência da consciência encontra-se na reconciliação de seu ser com um tempo social rememorado. Através da história, ser e tempo se reconciliariam no interior da memória que deveria ser assumida reflexivamente por todo sujeito em suas ações. Desse momento em diante, a consciência não podia mais ser, como ela era para Descartes, simplesmente o nome do ato de reflexão através do qual posso apreender as operações de meu próprio pensamento. Ato através do qual poderia encontrar as operações de meu pensar quando me volto para mim mesmo no interior de um tempo sem história, tempo instantâneo que dura o momento de uma enunciação, como vemos na segunda meditação cartesiana[1].

A partir de então, a consciência será fundamentalmente o nome de um modo de apropriação do tempo. O nome de tal apropriação será, exatamente, “história”. O que pode nos explicar por que a verdadeira consciência só poderia ser uma consciência histórica. Daí se segue a razão pela qual, a partir do século XIX, a memória será elevada à condição de função intencional definidora da consciência.

De fato: “A memória, que já era considerada como o critério da identidade pessoal, transformou-se então na chave de compreensão do espírito para as ciências”[2]. Ao menos três tipos de ciências da memória se destacarão a partir desse momento: 1) os estudos neurológicos sobre a localização dos diferentes tipos de memória; 2) os estudos experimentais sobre os fenômenos ligados à lembrança; 3) um gênero de reflexão sobre a psicodinâmica da memória e seu lugar na constituição de modalidades de sofrimento psíquico. Dos três tipos, foi a reflexão sobre a psicodinâmica da memória que influenciou de maneira decisiva a cultura ocidental e sua noção de autoidentidade.

Notemos inicialmente como a constituição de “ciências da memória” era um fato recente. Até então, conhecíamos artes da memória, ou seja, reflexões, normalmente ligadas à retórica, que procuravam pensar técnicas capazes de ampliar nossa capacidade de lembrança. Em um importante livro sobre o assunto[3], Frances Yates insiste no fato de o artifício fundamental das técnicas antigas de recordação estar vinculado à capacidade de associar mentalmente imagens de coisas a lugares organizados em sistemas arquitetônicos rigorosos, como uma casa ou uma praça pública. Assim, o bom orador antigo seria aquele capaz de mover-se em imaginação, durante seu discurso, através de uma edificação construída mentalmente, extraindo dos lugares memorizados as imagens ali colocadas de objetos, argumentos e personagens. Tal artifício demonstra como a memória aparece então como um processo de espacialização, como constituição de um verdadeiro espaço mental no qual arquivamos imagens.

Foi necessária uma profunda modificação na função da memória (de técnica ligada à retórica a essência da consciência em sua identidade) para que algo como uma reflexão clínica fundamentada na memória pudesse aparecer. Nesse momento, a memória como estocagem será secundarizada. Pois para nós, modernos, a redução da memória à condição de arquivamento de imagens, mera lembrança de impressões das coisas que deixaram traços mentais, soa como equívoco fundamental por ignorar sua dimensão temporal. A este respeito, Paul Ricoeur lembra, por exemplo, como a constituição do sujeito moderno, ao menos desde Descartes (1596-1650), foi solidária de certo “esquecimento metódico” baseado no esvaziamento do conhecimento fornecido pela imaginação e na crítica da confiança nas imagens mentais que temos depositadas na memória[4]. Ricoeur admite que esse impulso teve sua importância na recondução da memória ao problema do acesso àquilo que não se dá como presença plena das coisas no espaço, embora essa não seja exatamente uma questão que possamos encontrar em Descartes. No entanto é esse problema que leva Ricoeur a insistir na memória como modo de acesso à realidade ontológica de um ser que é fundamentalmente “condição histórica”.

De fato, a partir desse momento, a história como discurso com aspirações científicas pode se constituir, e assim pode aparecer um “tempo especificamente histórico”[5]. Tempo no qual a história não é vista mais como uma coleção de exemplos a servirem de guia para o presente (Historia magistra vitae, como dizia Cícero), mas como um complexo de acontecimentos que se articulam a partir de uma unidade em progresso. Com a consolidação da história como discurso, com a consequente determinação da consciência histórica como uma espécie de verdadeira natureza humana, a memória deixou de ser compreendida como um processo de estocagem para ser descrita como algo próximo daquilo que poderíamos chamar de “atividade contínua de reinscrição”.

Este é um ponto importante, pois a temporalização da memória aparece como a possibilidade de construção contínua de si no interior de uma narratividade contínua. Construção que só será possível a partir do momento que for possível afirmar: “As lembranças não são imutáveis, mas são reconstituições operadas sobre o passado e em perpétuo remaneja­ mento que nos dão um sentimento de continuidade, a sensação de existir no passado, no presente e no futuro”[6]. O psicanalista Jacques Lacan havia compreendido claramente este ponto ao afirmar:

A história não é o passado – a história é o passado enquanto ele é historicizado no presente – historicizado no presente porque ele foi vivido no passado […] o fato de o sujeito reviver, rememorar, no sentido intuitivo da palavra, os acontecimentos formadores de sua existência, não é em si mesmo algo realmente importante. O que conta é que ele reconstruiu […] Eu diria que, no final das contas, o que realmente se trata é menos de se lembrar do que de reescrever a história[7].

Podemos ver em uma afirmação como esta, que demonstra como a história é dissolução contínua das ilusões do determinismo, o ponto de chegada de uma profunda reconstrução do sujeito moderno através do impacto do desenvolvimento do tempo histórico como essência da subjetividade.

A HISTÓRIA COMO PESO

No entanto, o século XX terminou voltando as costas para essa crença na força emancipadora de tal consciência histórica. Pois é certo que, ao mesmo tempo em que ciências da memória se constituíam, vimos o aparecimento de um diagnóstico de sofrimento social ligado exatamente ao excesso de história. Neste sentido, tudo se passou como se acabássemos por assumir um diagnóstico bem descrito por Friedrich Nietzsche, já no final do século XIX.

Nietzsche procura diagnosticar um sofrimento social próprio ao homem moderno que poderia ser chamado de “excesso de história”. Sofrimento de uma consciência presa à obrigação de ruminação infinita da história, como alguém que “arrasta consigo por aí uma massa descomunal de pedras indigeríveis de saber que, então, como nos contos de fadas, podem ser às vezes ouvidas rolando ordenadamente no interior do corpo”[8].

A metáfora não poderia ser mais bem-sucedida. A consciência histórica do homem moderno apareceria como algo que lhe faz voltar os olhos para sua própria digestão, como se tivéssemos engolido pedras que nunca desertam do estômago. Esta era uma forma de dizer que a consciência histórica preocupa-se apenas consigo mesma, vê apenas a si mesma. Ela é o único produtor daquilo que ela percebe. A rememoração como ruminação que nunca termina fornece a figura de um processo que nunca chega a termo, que apenas nos exila daquilo que Nietzsche chama de “vida”. Pois podemos dizer que o sofrimento que Nietzsche descreve é, na verdade, o sentimento de uma clivagem, de uma cisão em relação à vida[9]. O que nos explica uma afirmação como:

Estes homens históricos acreditam que o sentido da existência se iluminará no decorrer de um processo. Assim, apenas por isto, eles só olham para trás a fim de, em meio à consideração do processo até aqui, compreender o presente e aprender a desejar o futuro impetuosamente; eles não sabem o quão a-historicamente eles pensam e agem apesar de toda sua história, e como mesmo sua ocupação com a história não se encontra a serviço do conhecimento puro, mas a serviço da vida[10].

Esses homens históricos esperam que a história os ensine a compreender o presente e desejar o futuro. No entanto, eles não percebem, veremos isso mais à frente, como “compreender” pode ser uma forma de esquecer. Eles também não percebem como o desejo em relação ao futuro, ou seja, o desejo de permanecer indefinidamente, tem um fundamento que não se encontra na consciência histórica. Ele se encontra na reconciliação com a vida.

Pode inicialmente parecer que Nietzsche retoma para si a divisão, típica do século XIX, entre natureza e história, isto a fim de afirmar que uma das consequências de nossa constituição como consciência histórica foi o exílio em relação à natureza (uma natureza que aparece todas as vezes que Nietzsche fala de “vida”). Em seu texto, Nietzsche chega a lembrar como a felicidade animal está ligada à capacidade de viver, em larga medida, de maneira a-histórica, ou seja, exercendo a força soberana do esquecimento. O homem que lembra demais é doente: “É possível viver quase sem lembrança e viver feliz assim, como mostra o animal; mas é absolutamente impossível viver, em geral, sem esquecimento”[11]. Alguns poderiam ver nestas palavras uma profissão de fé irracionalista e uma hipóstase da irreflexão.

No entanto, Nietzsche visa outra coisa. A seu ver, a consciência histórica é aquela que submete a vida a uma narrativa. A guerra nem bem acabou, dirá Nietzsche, e já se transformou em cem mil páginas impressas. Isso é um problema, porque submeter a vida a uma narrativa é, ao mesmo tempo, tomar posse dela e perdê-la.

Tomar posse da vida por organizar a dispersão dos acontecimentos em uma rede contínua de relações causais. Rede que chamamos normalmente de “causalidade histórica”. A ideia de que a história contém relações causais necessárias entre fatos, que poderiam então ser objeto de alguma forma de previsão, não aparece apenas como garantia para que ela seja vista como uma espécie de ciência. Ela é também a base do que entendemos por “progresso”.

Perder a vida por, aparentemente, não sermos mais capazes de pensar o que se dá sob a forma da descontinuidade e da contingência. Não sabemos ouvir a radicalidade da contingência em sua força de suspender e reorientar a uniformidade da continuidade histórica. Não sabemos ouvir acontecimentos que suspendem a forma que até então foi usada para pensar o que já ocorreu. Aparece assim uma história da qual nada surge, a não ser histórias, mas nenhum acontecimento, no sentido que Nietzsche quer dar a esta palavra. Talvez seja por isso que ele deva afirmar que erra: ” […] quem quer compreender, calcular, conceber, no instante em que deveria manter em longo abalo o incompreensível como sublime”[12]. Ou seja, através de um conceito como “vida”, Nietzsche traz a imagem de um processo sem telos, já que a vida é, para o filósofo alemão, um contínuo jogo de forças sem direção. Jogo cujas configurações são marcadas pela contingência e pelo acaso. Longe da noção de natureza como sistema fechado de leis causais, Nietzsche insiste na natureza como afirmação da crueldade da imprevisibilidade e do acontecimento. É isso que, a seu ver, a submissão da vida à narrativa, operação feita pela história, perde.

Tais perspectivas talvez sirvam para explicar por que o diagnóstico de Nietzsche parece animar a crítica que alguns de seus leitores, como Foucault e Lyotard, farão da história e da centralidade da noção de consciência histórica. Eles atualizarão o desconforto de Nietzsche em relação à história, isso a fim de dar conta de certo desencanto contemporâneo com as promessas enunciadas pela modernidade. É de Foucault, por exemplo, uma afirmação que simplesmente desdobra as consequências da perspectiva nietzschiana:

A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispensará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência histórica – se apropriar, novamente, de todas estas coisas mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada[13].

Ou seja, a continuidade narrativa da experiência histórica é indissociável da afirmação da consciência como uma forma de certeza: a certeza de não haver nada de essencial no tempo que não possa retornar a uma unidade recomposta, que não possa ter sua distância anulada, sua diferença reinscrita no interior de uma profunda identidade da qual Eu sou o fundamento. É assim que a consciência histórica instauraria seu domínio e encontraria sua morada. Nessa leitura, a “compreensão histórica” aparece como uma forma de esquecimento, já que a história desconheceria a diferença, seria apenas a morada da identidade reconquistada do sujeito. No fundo, ela seria um discurso desprovido de acontecimentos. Dessa forma, a emancipação que a consciência histórica prometeria seria, na verdade, uma maneira de perpetuar a impossibilidade do advento do que ainda não tem história, do que só se deixa pensar lá onde as estruturas de nossas narrativas se quebram.

É esta crença na narrativa histórica como espaço de anulação da diferença que leva outro filósofo da mesma época, Jean-François Lyotard, a fazer críticas das chamadas “metanarrativas”. Tais metanarrativas seriam, na verdade, o cerne das filosofias da história que teriam animado os embates sociopolíticos do século XX. Dessa forma, despedir-se do século XX significaria, para Lyotard, reconhecer o fenômeno de “decomposição de grandes Narrativas”[14], ou seja, dos discursos marcados pela crença na progressão cumulativa de experiências que aspiram a narrar a marcha da realização da vida do Espírito ou da emancipação da humanidade. Como se a história fosse o lugar de uma espécie de “metalinguagem universal” capaz de dar unidade, estabelecer critérios gerais de validade para todos os enunciados que aspiram à legitimidade no interior da vida social.

Tal crítica se endereçava, principalmente, a duas figuras da filosofia da história, ambas às voltas com um processo aparentemente linear e progressivo de apropriação, pelo homem, de suas potencialidades e de ultrapassagem de suas limitações. Figuras que seriam marcadas pela crença na perfectibilidade humana e no futuro como espaço no qual tal perfeição potencialmente se realiza. Além disso, elas teriam em comum a ideia de que o presente, o momento a partir do qual atualmente narramos a história, já permitiria a apreensão da totalidade dos fenômenos decisivos para a experiência social. Assim, a narrativa que o presente fornece já seria a realização integral da consciência histórica.

A primeira dessas figuras é a versão positivista do progresso histórico própria a Augusto Comte. Sabemos como o positivismo de Comte nos fornece uma teoria do progresso através da imagem de três estágios da humanidade: o animista, o religioso e o científico. Para caracterizar o vínculo entre estes três estágios, Comte não teme em falar de um “curso natural da evolução social”[15], curso natural que animaria tanto a ordem política como a esfera do conhecimento. Todo desenvolvimento social possível, assim como toda maturação individual possível, deveria seguir um mesmo caminho, que consistiria na passagem de um pensamento fetichista, narcísico e afetivo a um pensamento conceituai e desencantado. Assim, dirá Comte:

O desenvolvimento individual reproduz necessariamente sob os nossos olhos, em uma sucessão mais rápida e familiar, cujo conjunto é então mais apreciável, embora menos pronunciado, as principais fases do desenvolvimento social. Tanto um quanto outro tem essencialmente como objetivo comum a subordinação, na medida do possível, da satisfação normal dos instintos pessoais ao exercício habitual dos instintos sociais, assim como o assujeitamento de nossas paixões às regras impostas por uma inteligência cada vez mais preponderante[16].

Neste sentido, a chamada “lei biogenética fundamental”, que defendia o paralelismo entre filogênese e ontogênese é, na verdade, a expressão de um princípio de articulação entre história e psicologia que nunca saiu do horizonte de nossos saberes. Enunciada no final do século XIX por Ernst Haeckel, tal lei era a forma final de uma ideia que havia atravessado a história das ideias desde o Iluminismo. No caso de Comte, tal articulação entre filogênese e ontogênese é, segundo Canguilhem, “a peça indispensável de uma concepção biológica de história [já que as leis do organismo social e do organismo biológico do indivíduo seriam as mesmas – ou seja, como se a história do homem fosse uma ‘história natural’] elaborada exatamente na época que a história começava a penetrar a biologia”[17]. Assim, a continuidade histórica pode aparecer como correlato da apropriação científica do mundo e de seu desencantamento emancipador.

No entanto, tal paralelismo não fornecerá apenas o horizonte regulador do desenvolvimento psicológico. Ou seja, ele não fundará apenas os delineamentos da noção de normalidade. Ele será também responsável por aquilo que poderíamos chamar de “forma geral” do conceito de doença mental, a saber, a doença como regressão e degenerescência. Neste sentido, a doença seria necessariamente retorno e dissolução de funções complexas que teriam sido sintetizadas em fases mais avançadas do desenvolvimento. Assim. a relação entre história e psicologia habita o cerne da racionalidade do campo psicológico, isso através da definição dos conceitos de normalidade e patologia.

A outra figura das metanarrativas é a filosofia da história de Hegel, base para o desenvolvimento da filosofia da história que anima a filosofia de Marx. Todos conhecem a afirmação hegeliana de que “o real é racional”. Muitos compreenderam tal afirmação como a expressão de uma filosofia tão fascinada pela perspectiva do progresso do espírito do mundo que seria capaz de justificar as piores catástrofes históricas (como o jacobinismo). Uma filosofia que não saberia como pensar regressões, tarefa premente depois de experiências históricas como o holocausto nazista. A este respeito, Adorno dirá: “No conceito de espírito do mundo, o princípio de onipotência divina foi secularizado e transformado em princípio unificador, o plano do mundo em inexorabilidade daquilo que aconteceu”[18]. Ou seja, a filosofia hegeliana da história seria, no fundo, a secularização da crença teológica da providência divina. Uma providência disposta mesmo a transfigurar catástrofes em momentos necessários da realização do espírito. Para esta filosofia, o futuro seria algo que não poderemos perder em hipótese alguma, mesmo que tenhamos de nos cegar para a irracionalidade do real. A narrativa histórica fornecida por Hegel seria a figura mais bem-acabada da certeza descrita por Foucault como “a certeza de que o tempo nada dispensará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta”.

No entanto, gostaria de propor uma leitura alternativa. Ela visa mostrar como não devemos continuar a tendência contemporânea de desqualificação da história. Principalmente, ela visa quebrar o medo de que a história seja o nome de uma forma insidiosa de esquecimento do acontecimento, de crença em um futuro que não seria outra coisa que o mero decalque das expectativas depositadas no presente. Podemos fazer isso relendo, de forma diferente, o que estava em jogo na filosofia hegeliana da história[19].

UM ESTRANHO PROGRESSO

“A história universal é o progresso na consciência da liberdade.” Esta afirmação de Hegel em suas Lições sobre a filosofia da história traz uma série de pressupostos importantes. Primeiro, existe algo como uma “história universal”. Isto implica aceitar que a multiplicidade de experiências históricas deve ser reduzida a um só motor, a uma só orientação. Como dirá Koselleck, trata-se da consequência necessária da definição da história como “coletivo singular”. Isso permitiu que “se atribuísse à história aquela força que reside no interior de cada acontecimento que afeta a humanidade, aquele poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um plano, oculto ou manifesto, um poder frente ao qual o homem pôde acreditar-se responsável ou mesmo em cujo nome pôde acreditar estar agindo”[20]. É algo parecido que Hegel tem em mente ao falar do espírito do mundo como “alma interior de todos os indivíduos”.

Segundo, tal orientação unitária da história move-se de maneira progressiva. Por fim, nesse movimento se lê a tomada paulatina de consciência da liberdade. Uma tomada de consciência que não é individual, mas social. Neste sentido, a história deve ser a narrativa do progresso em direção à consciência da liberdade. Mas devemos entender aqui o que significa, nesse contexto, dois termos fundamentais, a saber, “progresso” e “consciência da liberdade”.

“Os persas são o primeiro povo histórico, porque a Pérsia é o primeiro império que desapareceu (Persienist das erste Reich, das vergangen ist)”[21] deixando atrás de si ruínas. Esta frase de Hegel diz muito a respeito daquilo que ele realmente entende por “progresso”. O progresso é a consciência de um tempo que não está mais submetido à simples repetição, mas que está submetido ao desaparecimento. “Progresso” não diz respeito, inicialmente, à destinação, mas a certa forma de pensar a origem. Pois, sob o progresso, a origem é o que, desde o início, aparece marcada pela impossibilidade de permanecer. “Origem” é, na verdade, o nome que damos à consciência da impossibilidade de permanecer em uma estaticidade silenciosa. Por isso que a verdadeira origem, esta que aparece na Pérsia, é caracterizada por um espaço pleno de ruínas.

O ato de desaparecer é assim compreendido como a consequência inicial da história. Colocação importante por nos lembrar que as ruínas deixadas pelo movimento histórico são, na verdade, modos de manifestação do Espírito em sua potência de irrealização. Se os persas são o primeiro povo histórico é porque eles se deixam animar pela inquietude e negatividade de um universal que arruína as determinações particulares. Notemos como esse desaparecimento não é a afirmação sem falhas da necessidade de superação em direção à perfectibilidade. Na verdade, há uma pulsação contínua de desaparecimento no interior da história. Essa pulsação contínua é, de certa forma, o próprio telos da história. Assim, ela realiza sua finalidade quando esse movimento ganha perenidade, quando ele não é mais vivenciado como perda irreparável, mas quando a desaparição, paradoxalmente, nos abre para uma nova forma de presença, liberada do paradigma da presença das coisas no espaço. O que explica por que Hegel dirá: “Deve-se inicialmente descartar o preconceito segundo o qual a duração seria mais valiosa do que a desaparição”. Somente as coisas que têm a força de desaparecer permitem que se manifeste um Espírito que somente constrói destruindo continuamente.

Isto fica claro se fizermos uma leitura atenta do capítulo dedicado ao Espírito na Fenomenologia do Espírito. Lá vemos como a história do Espírito é um peculiar movimento de explicitação das rupturas e insuficiências. Não por acaso, o Espírito hegeliano se manifesta através de figuras como Antígona (com sua exposição da desagregação da substância normativa da pólis), o sobrinho de Rameau (com sua exposição da desagregação da substância normativa do Ancien Régime), o jacobinismo (com sua afirmação de uma liberdade meramente negativa) e a bela alma (com sua exposição trágica dos limites da moralidade). Se elas desempenham papéis centrais na narrativa da história do Espírito é porque tal narrativa é fascinada pelos momentos no quais o próprio ato de narrar depara-se com sua impossibilidade, depara-se com a desagregação da língua, com a violência seca e com o impasse sobre a norma. Quanto a isso, talvez valha a pena dar a palavra a um amigo de Foucault, Gérard Lebrun:

Se somos assegurados de que o progresso não é repetitivo, mas explicitador, é porque o Espírito não se produz produzindo formações finitas mas, ao contrário, recusando-as uma após outra. Não é a potência dos impérios, mas sua morte que dá razão à história[…] do ponto de vista da história do mundo, os Estados são apenas momentos evanescentes[22].

Esta é uma maneira precisa de dizer que a narrativa da história do Espírito é, na verdade, a narrativa do movimento de autoevanescimento das determinações finitas. O progresso aparece assim como o reconhecimento de um evanescimento formador. Para entender melhor a necessidade deste topos, seria importante levar em conta o que Hegel entende por “consciência da liberdade” enquanto motor do progresso da história. O primeiro passo para isso é lembrar que o conceito hegeliano de liberdade não pode se reduzir à noção liberal da liberdade positiva dos indivíduos que afirmam seus sistemas particulares de interesses. Na verdade, há para Hegel uma liberdade em relação aos limites que a noção de indivíduo impõe à experiência.

Hegel sabe que “nada se realiza sem que os indivíduos que participam da ação também se satisfaçam”[23]. No entanto, Hegel também é sensível ao fato de que, se podemos sofrer por não sermos reconhecidos socialmente como indivíduos dotados de interesses particulares e direitos positivos ligados à figura jurídica da pessoa, podemos também sofrer por sermos apenas um indivíduo, submetidos a um profundo regime de atomização social. Isso não é estranho para um autor que compreendeu a liberdade negativa, essa liberação das determinações normativas exteriores, como momento inicial e fundador da consciência da liberdade. Tal limitação própria à noção de indivíduo explica por que os “homens históricos” [geschichtlichen Menschen], ou ainda, os “indivíduos da história mundial” [welthistorischen Individuen] serão aqueles cujos fins particulares não são postos apenas como fins particulares, mas que submeteram tais fins à transfiguração, permitindo que eles contenham a “vontade do espírito do mundo” [Wille des weltgeistes].

Pode parecer que tais colocações sobre os indivíduos da história mundial nos levariam necessariamente em direção a alguma forma de justificação do curso do mundo, como temia Adorno em sua Dialética negativa. Pois sendo a vontade do espírito do mundo aquilo que se manifesta através do querer dos homens históricos, então como escapar da impressão de que, retroativamente, a filosofia hegeliana da história constrói a universalidade a partir daquelas particularidades que conseguiram vencer as batalhas da história?

Uma maneira de quebrar tal impressão é explorando melhor as colocações de Hegel, como:

Na história mundial, através das ações dos homens, é produzido em geral algo outro do que visam e alcançam, do que imediatamente sabem e querem. Eles realizam seus interesses, mas com isto é produzido algo outro que permanece no interior, algo não presente em sua consciência e em sua intenção.[24]

Ou seja, o progresso é feito por ações nas quais os homens não se enxergam, nas quais eles não se compreendem. Há uma dimensão aparentemente involuntária que constitui o campo da história. Ou, melhor dizendo, há um motor da história que, para a consciência individual, aparecerá necessariamente como algo da ordem do involuntário. É a confiança neste involuntário que constitui os “homens históricos”. Algo no mínimo estranho se continuarmos aceitando que há uma espécie de reconciliação entre consciência e tempo rememorado no interior da história. Que tipo de reconciliação é esta na qual a consciência deve se reconhecer na dimensão do involuntário, onde ela necessariamente não sabe o que faz?

É levando isso em conta que podemos afirmar não serem os indivíduos aferrados na finitude de seus sistemas particulares de interesses àqueles que fazem a história. Por isso, não são eles que podem narrá-la. Para Hegel, quem narra a história não são os homens, mas aquilo que ele chama de “Espírito” (Geist). Sem entrar no mérito do que exatamente o conceito de “Espírito” descreve (uma entidade metafísica, um conjunto de práticas de interação social apropriado reflexivamente e genealogicamente por sujeitos agentes), gostaria de salientar apenas um ponto; quando o Espírito sobe à cena e narra a história, sua prosa é radicalmente distinta da prosa dos indivíduos que testemunham fatos. Primeiro porque o Espírito não testemunha; ele totaliza processos revendo o que se passou às costas da consciência. Ele é a coruja de Minerva, que só alça voo depois do ocorrido.

Mas para que tal totalidade se realize, faz-se necessário uma profunda mutação na língua. Todo leitor da Fenomenologia do Espírito é capaz de identificá-la. A língua advém da narrativa de acontecimentos que colocam continuamente em xeque os limites da força comunicacional da linguagem, acontecimentos que só se deixam apreender através de contradições e paradoxos. Longe de ser um mero problema estilístico, esta língua do Espírito em seu esforço de totalização é o aparecimento do que não se submete às estruturas de representação próprias à consciência.

E se a língua do Espírito é a única capaz de realmente narrar a história é porque devemos compreender a história como esse espaço no qual os indivíduos se dissolvem ao transfigurarem seus interesses particulares em um movimento de valor geral. A história é o lugar no qual os indivíduos são superados e se realizam ao desaparecer.

É a possibilidade de tal transfiguração dos indivíduos que devemos chamar de “progresso”. E “progresso” não é a simples exposição da crença na perfectibilidade humana e na suspensão de seus conflitos. “Progresso” é o nome de um modo de experiência do tempo no qual nunca estou completamente limitado às determinações do presente. Por isso, por mais paradoxal que isso possa parecer, não há crítica analítica da finitude sem uma concepção, mesmo que silenciosa, de progresso. Pois, através do progresso, liberto-me das limitações das determinações do presente, liberto-me dos limites do que sou capaz de representar, isso se compreendermos “representar” como instaurar algo diante de mim, instaurar algo em um regime de presença que permite transformar minha visibilidade em modo de posse e dominação.

Assim, se voltarmos à frase inicial de Hegel, ”A história é o progresso na direção da consciência da liberdade”, poderemos agora dar uma interpretação mais adequada. A história é o discurso que expõe o movimento de afirmação do que não se esgota nos limites da capacidade representativa da consciência individual. Para Hegel, este é o sentido da história. Talvez por isso, boa parte dos acontecimentos históricos tenha sido animada pela procura em superar os limites da figura atualmente realizada do homem. Talvez por isso seja tão difícil abstrair a história do desejo de nos livrarmos de nós mesmos e de realizarmos algo a respeito do qual ainda não temos figura[25]

MUITAS VOZES

A história é o objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de “agoras”, que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo[26].

Lembremos uma famosa tese de Walter Benjamin se quisermos entender melhor o que está em jogo na liberdade produzida pela transfiguração dos indivíduos no interior da história. Benjamin alude à história como “um tempo saturado de ‘agoras’”, ou seja, um tempo parecido à metáfora que Freud utilizou para falar da estrutura do sujeito moderno: uma cidade na qual todos os estágios de seu desenvolvimento estão atualizados no mesmo lugar, criando um espaço irrepresentável[27]. Este tempo saturado de Benjamin é um tempo no qual cada gesto remete a uma série de gestos passados que nunca passaram completamente, mas que continuam a habitar os gestos presentes, dando-lhes uma densidade propriamente histórica. A história é um tempo em que tudo é repetição. Algo não muito diferente do que o próprio Hegel tem em mente quando afirma:

A vida do espírito presente é um círculo de degraus que, por um lado, permanecem simultâneos (nebeneinander) e apenas por outro lado aparecem como passados. Os momentos que o espírito parece ter atrás de si, ele também os tem em sua profundidade presente[28].

Note-se como o fenômeno que Benjamin e Hegel descrevem (embora reconheça que a diferença entre os dois autores não pode ser aqui trabalhada) parece aproximar-se do “excesso de história” próprio à descrição fornecida por Nietzsche na Segunda consideração intempestiva. No entanto, há uma diferença maior aqui. Nietzsche tinha em vista, principalmente, o esvaziamento da dimensão do acontecimento por uma narrativa capaz de impor, à história, uma continuidade na qual o presente vê sempre o passado como um “ainda não”. Presente que sempre submete o passado a uma relação causal que se realiza de maneira progressiva e previsível.

Quando Benjamin fala da sucessão de “agoras” como uma repetição, ele lembra, ao contrário, como tal concepção explode a noção da história como uma continuidade. Se não podemos falar dessa repetição como uma continuidade, é porque sua apreensão, pela consciência, produz uma profunda descontinuidade no tempo. Ao se ver como o palco de uma multiplicidade de repetições, a consciência suspende seu modo de ser no interior do tempo, ela abandona a crença na linearidade cumulativa própria a representações que compreendem a passagem do tempo como passagem de um indivíduo após o outro. Ela pode então se compreender como portadora de um tempo em que o presente é apenas a contração de múltiplas séries passadas. Tempo no qual as coisas que desaparecem nunca passam porque a desaparição não é o destino de todas as coisas, porque estamos no interior de uma cadeia de repetições em que as vozes de múltiplos sujeitos que nos antecederam nunca cessam de falar. Ao explodir o continuum da história, explode-se também a finitude que constitui os indivíduos. Esta explosão é o verdadeiro acontecimento: uma lição não muito distante do que Hegel procura desenvolver ao falar da superação da consciência em Espírito. Seria importante mostrar, em outra ocasião, como se articulam os conceitos de repetição histórica dentro da tradição dialética (Hegel, Marx, Benjamin) e fora dela (Deleuze).

Por enquanto, fica aqui a indicação de ao menos um ponto possível de proximidade.

Por fim, é possível dizer que, se a contemporaneidade é ainda marcada pela desconfiança em relação à história e à historicidade, talvez não seja apenas porque tememos as totalizações generalizadoras que nos fazem perder a verdadeira dimensão de ruptura dos acontecimentos. Talvez seja o caso de injetar desconfiança nessa desconfiança e se perguntar se, por trás do medo da história, não está o medo dos verdadeiros acontecimentos em sua força de descentramento.

Notas

  1. Ver, a este propósito, Jean Wahl, Du rôle de l’idée d’instant dans la philosophie de Descartes, Paris: Alcan, 1920. 
  2. Ian Hacking, L’âme réécrite: étude sur la personnalité multiple et les sciences de la mémoire, Paris: Les empechuers de la pensée en rond, 2008, p. 313. 
  3. Frances Yates, A arte da memória, Campinas: Edunicamp, 2008. 
  4. Ver Paul Ricoeur, La mémoire, l’histoire et l’oubli, Paris: Seuil, 2001. 
  5. Reinhart Koselleck, Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 54. 
  6. Israel Rosenfield, L’invention de la mémoire, Paris: Flammarion, 1994, p. 87. 
  7. Jacques Lacan, Séminaire I, Paris: Seuil, pp. 19-20. 
  8. Friedrich Nietzsche, Segunda consideração intempestiva, Rio de Janeiro: Relurne-Dumará, 2003, p. 32. 
  9. É isto que Foucault tem em vista ao afirmar que o homem histórico é: “Uma finitude que nunca termina, que está sempre atrasada em relação a si mesma, que tem sempre algo mais a pensar no instante mesmo que pensa, que tem sempre tempo para pensar novamente o que pensou”. 
  10. Friedrich Nietzsche, Segunda consideração intempestiva, op. cit., p. 15. 
  11. Idem, ibidem, p. 10. 
  12. Idem, ibidem, p. 41. 
  13. Michel Foucault, Arqueologia do saber, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 14. 
  14. Jean-François Lyotard, La condition pos-moderne, Paris: Minuit, 1988, p. 31. 
  15. Auguste Comte, Cours de philosophie positive, Paris: Flammarion, 2004, p. 38. 
  16. Idem, ibidem, p. 291. 
  17. Georges Canguilhem, Etudes d’histoire et de philosophie des sciences, Paris: Vrin, 2001, p. 98. 
  18. Theodor Adorno, Dialética negativa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 254. 
  19. Este exercício parte da possibilidade de ler um texto com um jogo tenso de tendências em conflito. Sem desconsiderar leituras hegemônicas da filosofia hegeliana da história, há de se colocar em circulação a possibilidade de ouvir outras tendências internas ao texto de Hegel que podem ser desdobradas pelo comentário. Este é apenas um primeiro ensaio neste sentido. A respeito, ver também o terceiro capítulo de Vladimir Safatle, Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento, São Paulo: Martins Fontes, 2012. 
  20. Reinhart Koselleck, Futuro passado… , op. cit., p. 52. 
  21. G. W F. Hegel, Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte, Frankfurt: Suhrkamp, 1989, p. 215. 
  22. Gérard Lebrun, L’envers de la dialectique, Paris: Gallimard, 2007, p. 33. 
  23. G. W F. Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, op. cit., p. 31. 
  24. Idem, ibidem, p. 42. 
  25. Torno a liberdade de remeter ao meu: Vladimir Safatle. A esquerda que não teme dizer seu nome, São Paulo: Três Estrelas, 2012. 
  26. Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”, Obras escolhidas, São Paulo: Brasiliense, p. 230. 
  27. “Escolheremos como exemplo a história da Cidade Eterna. Os historiadores nos dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma povoação sediada sobre o Palatino. Seguiu-se a fase dos Septimontium, uma federação das povoações das diferentes colinas; depois, veio a cidade limitada pelo Muro de Sérvio e, mais tarde ainda, após todas as transformações ocorridas durante os períodos da república e dos primeiros césares, a cidade que o imperador Aureliano cercou com as suas muralhas. […] Permitam-nos agora, num voo da imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante – isto é, uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. […] Se quisermos representar a sequência histórica em termos espaciais, só conseguiremos fazê-lo pela justaposição no espaço: o mesmo espaço não pode ter dois conteúdos diferentes. Nossa tentativa parece ser um jogo ocioso. Ela conta com apenas uma justificativa. Mostra quão longe estamos de dominar as características da vida mental através de sua representação em termos pictóricos.” Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 
  28. G. W F. Hegel. op. cit., p. 104. 

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