As delícias do jardim
Resumo
No recolhimento do Jardim, local que abriga a primeira comunidade epicurista, e longe dos distúrbios da polis, busca-se a imperturbabilidade do espírito (ataraxia). A ética do Jardim aponta para o prazer sereno como bem supremo e é sustentada no conhecimento verdadeiro, na ciência da natureza. Crenças errôneas sobre a natureza do divino tornam-se fonte de tormentos e perturbações. Não se deve procurar agradar com oferendas nem temer a ira dos Deuses pois eles nada têm a ver com questões humanas. Epicuro procura libertar a alma dos temores infundados, das crendices.
A ética epicurista é basicamente um hedonismo. Mas um hedonismo onde é preciso reconhecer e satisfazer os prazeres naturais e necessários. É importante saber distinguir o verdadeiro prazer. A ética epicurista também leva à revalorização do tempo presente, passado e futuro. O desvio no tempo, na direção do passado (memória) ou do futuro (esperança) permite a alegria em meio à adversidade. Nem sempre o presente é prazeroso mas é possível desviar das sensações penosas pela memória de boas sensações passadas ou porvir.
O caminho proposto pela ética epicurista é o resgate da condição original; a volta à vida conforme a natureza das coisas e do próprio homem, colocar a verdade a serviço da felicidade humana. Precisa-se de pouco para ser feliz e alcançar a serenidade.
… uma vez, ao menos, vivi como os deuses: é quanto basta.
Hölderlin, Às Parcas.
No final do século XIX, arqueólogos franceses descobriram em Enoanda, na Capadócia (Turquia central), pedras contendo curiosa inscrição: uma mensagem filosófica mandada gravar por certo Diógenes, no século II d.C. Na verdade, a mensagem que esse cidadão de Enoanda e professor em Rodes procurou perpetuar no muro de um dos pórticos de sua cidade é constituída por teses fundamentais da ética de Epicuro, filósofo grego que vivera cerca de quinhentos anos antes (século III a.C.). Testemunho comovente da admiração de um discípulo por seu mestre, o texto inscrito nas pedras da muralha parece conter uma carta que Epicuro endereçara à mãe,[1] mas que Diógenes considera de imensa valia para qualquer pessoa, de qualquer época. Assim, movido pelo amor aos homens, procura partilhar indiscriminadamente os ensinamentos do mestre com qualquer um que passe diante da muralha de Enoanda. Justifica-se Diógenes, na parte inicial da inscrição:
Se uma pessoa, ou duas, ou três, ou quatro, ou o número que queiram, estiver em aflição, e se eu fosse chamado a ajudá-la, faria tudo que estivesse em meu poder para oferecer meu melhor conselho. Hoje, a maioria dos homens está doente, como que de uma epidemia, em função das falsas crenças a respeito do mundo, e o mal se agrava porque, por imitação, transmitem o mal uns aos outros, como carneiros. Além disso, é justo levar socorro àqueles que nos sucederão. Eles também são nossos, embora ainda não tenham nascido. O amor aos homens nos leva a ajudar os estrangeiros que venham a passar por aqui. Como a boa mensagem do livro já foi difundida, resolvi utilizar esta muralha para expor em público o remédio da humanidade.
Doente, a humanidade transformada em rebanho precisa de tratamento. A fonte do mal, que se alastra pelo contágio do mimetismo, está detectada: as falsas crenças. O que move a ação curativa é o generoso sentimento de philia que, além de sustentar intrinsecamente a filosofia, transborda — enquanto amor à sabedoria — em amor à humanidade. A ação do médico-filósofo ou do filósofo-médico — ressaltada desde Empédocles e Sócrates/Platão — não conhece, porém, na linhagem epicurista, qualquer tipo de restrição quanto à escolha do paciente-discípulo: todos têm direito à cura, sem limitações sociais, econômicas, étnicas.[2] Por isso, a mais ampla publicidade deve ser dada ao tratamento: o remédio é oferecido a qualquer um, a qualquer passante, mesmo aos estrangeiros, pois seu valor e benefício são universais, acima das contingências de espaço e tempo. E sua preservação em pedra é justamente para que os pósteros — que “também são nossos” — dele possam usufruir.
Mas, afinal, que remédio é esse, capaz de livrar a humanidade de aflições e tormentos? O remédio é o logos filosófico enquanto portador da verdade aclaradora, o discurso enquanto phármakon, enquanto curativo porque discurso-razão que espanca as trevas das crendices, expulsando os males da alma.[3] Só que na inscrição de Enoanda ele aparece sob a forma de tetraphármakon, o quádruplo remédio composto por ingredientes das Doutrinas principais de Epicuro.[4] Ei-lo:
Não há o que temer quanto aos deuses.
Não há nada a temer quanto à morte.
Pode-se alcançar a felicidade.
Pode-se suportar a dor.
Cerca de dois séculos antes de Diógenes de Enoanda ter tentado perenizar e difundir as ideias de Epicuro, utilizando as pedras de uma muralha, outro epicurista, o romano Tito Lucrécio Caro (c. 97 a.C. — c. 55 a.C.), movido por idêntica admiração ao mestre, já enaltecera sua doutrina usando as estrofes de longo e magnífico poema filosófico, muralha só de palavras: o De rerum natura [Sobre a natureza das coisas].
Nas aberturas dos vários livros que compõem o poema, Epicuro é repetidamente exaltado como glorioso libertador da humanidade, descobridor da verdade que afasta os terrores da alma, deus portador de luz salvadora. Escreve o poeta-filósofo na abertura do Livro V: “Foi um deus, um deus, aquele que primeiro descobriu a regra da existência que se chama agora sabedoria, aquele que trazendo nossa vida, por meio de sua arte, de tão grandes ondas e de tão grandes trevas, colocou-a em lugar tão tranquilo e em tão clara luz”.[5]
Na abertura do Livro III, Lucrécio reveste de luxuosas imagens sua incontida admiração:
Ó tu que primeiro pudeste, de tão grandes trevas, fazer sair tão claro esplendor, esclarecendo-nos sobre os bens da vida, a ti eu sigo, ó glória do povo grego, e ponho agora meus pés sobre os sinais deixados pelos teus, não por qualquer desejo de rivalizar contigo, mas porque por amor me lanço a imitar‑te. De fato, como poderia a andorinha bater-se com o cisne, que poderiam fazer de semelhante em carreira os cabritos de trêmulos membros e os fortes, vigorosos cavalos? Tu, ó pai, és o descobridor da verdade, tu me ofereces lições paternais, e é nos teus livros que nós, semelhantes às abelhas que nos prados floridos tudo libam, vamos de igual modo recolhendo as palavras de ouro, de ouro mesmo, as mais dignas que houve desde que o tempo é tempo. Logo que tua doutrina, obra de um gênio divino, começa a proclamar a natureza das coisas, dispersam-se os terrores do ânimo, apartam-se as muralhas do mundo, e vejo como tudo se faz pelo espaço inteiro.[6]
Percebe-se: tanto quanto o vínculo intelectual, liga fortemente os discípulos ao mestre — mesmo os distanciados no tempo, como Diógenes de Enoanda e Lucrécio — a philia, vínculo afetivo, devotado e grato amor. A relação mestre-discípulo aparece no epicurismo como modalidade do erotismo docente‑discente que já marcara a mesma relação entre pitagóricos e socráticos. Eros, o mediador, como mostra o Banquete de Platão, patrocina o magistério filosófico, pois a verdade é conquistada em dupla ascese, teorética e erótica. O mestre, por isso, é muito mais que fonte de informação e ensinamentos: enquanto um dos polos do reversível binômio erasta/erômeno, é amado exemplo de vida sábia, a ser seguido e divulgado.[7] O discípulo, mesmo não pretendendo rivalizar com ele, não desiste de imitá-lo. Quer ser o que a andorinha é para o cisne, o cabrito para o cavalo, na assimetria que sustenta a ligação entre cópia e modelo. Mais: a philia que alimenta essa relação baseia-se no amor à verdade e é a mesma que impele a transmissão da doutrina, pois, se a difusão das ideias é propagação de luz libertadora, constitui também a expansão de trama amorosa a se ampliar incessantemente ao longo do tempo, buscando envolver os homens de todas as gerações.
A dupla natureza da proposta epicurista — aliar razão iluminadora e amor à humanidade, lúcida compreensão dos fenômenos naturais e procura da felicidade terrena, ciência e ética — justifica, em parte, a aparência de seita, o caráter de confraria assumido por essa corrente filosófica. Trata-se, porém, de confraria laica, centrada na valorização do humano, não na transcendência do divino; confraria de amigos da verdade alcançada pelos sentidos e pela razão; confraria que procura a salvação, sim, mas por meio do conhecimento, não da crença, por meio da filosofia enquanto compreensão clara e comprovável, não da adesão ao mistério, ao intelectual e empiricamente insondável. O preceito “deves servir à filosofia para que possas alcançar a verdadeira liberdade”[8] é, por isso, uma de suas prescrições fundamentais.
O humanismo radical e o propósito de colocar a verdade a serviço da felicidade humana, a índole “iluminista” que induz ao combate de toda forma de obscurantismo e crendice, o projeto salvacionista alicerçado na ciência, a defesa do prazer com fundamento materialista fazem do epicurismo um modelo de pensamento capaz de sobreviver e ressurgir, mesmo parcialmente, no decorrer dos séculos. Essa vitalidade e esses ressurgimentos manifestam-se apesar do acirrado combate que, desde a Antiguidade, recebe de adversários — em particular estoicos e cristãos. Com efeito, ideias epicuristas reaparecem em Pierre Gassendi (1592-1655), crítico de Descartes e um dos fundadores do materialismo moderno. No início da Modernidade, também o materialismo mecanicista de Thomas Hobbes (1588‑1679) remonta a Epicuro. Mais tarde, Lenin alia-se ao epicurismo ao polemizar com Hegel. Porém, é sobretudo Marx — o jovem Marx — que mais profundamente mergulha na filosofia do mestre grego, reinterpretando-a na tese com que pretende obter lugar de dozent em Bonn: Diferenças entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro.[9]
Iniciada em 1839, a tese é construída com instrumental teórico que Marx herda da filosofia clássica alemã e de Hegel. Na verdade, faz parte de um projeto mais ambicioso (e não completado): descobrir, pela análise dos sistemas filosóficos pós-aristotélicos — epicurismo, estoicismo, cepticismo , a “forma subjetiva”, o “caráter” da filosofia, ela que faz a mesma “profissão de fé de Prometeu”, o patrono da rebeldia e da libertação humanas “que ocupa o primeiro lugar entre os santos e os mártires”. Afinal, essa índole prometeica, libertária, reaparece, naquele momento, na filosofia cultivada pelo Doktorklub, o Clube de Doutores idealistas e liberais que Marx, enquanto jovem hegeliano de esquerda, frequenta em Berlim e cujo programa consiste em realizar a síntese entre hegelianismo e liberalismo, criando o ideário que permita, em termos alemães, concluir a tarefa libertadora esboçada na Aufklärung e levada à prática pela Revolução Francesa. E é justamente em Epicuro — “primeiro teólogo da morte de Deus” — que Marx vai encontrar o combate desalienador à ética e à religião tradicionais, o mesmo combate que reencontra ao ler, no começo de 1842, A essência do cristianismo, de seu amigo Feuerbach. Tanto em Epicuro quanto em Feuerbach, Marx se defronta com um materialismo que sustenta uma filosofia libertária, permanecendo, todavia, nos limites da liberdade apenas interior. Ultrapassá-la e forjar armas teóricas para a ação libertadora no nível social e político exigirá a reformulação do próprio materialismo, exigirá a construção do marxismo. Mas, de qualquer modo, parece claro: é na companhia de Epicuro que Marx esgota as possibilidades de uma dimensão da liberdade e chega à fronteira além da qual prosseguir significa criar suas próprias ideias.[10]
O cisne e a andorinha
Das numerosas obras de Epicuro — Diógenes Laércio afirma que eram cerca de trezentos títulos — muito pouco se conservou. Chegaram até nós três cartas — uma a Pítocles, de autenticidade duvidosa e tratando de fenômenos celestes, outra a Heródoto, sobre física, e uma terceira a Meneceu, sobre ética —, além das chamadas Máximas principais, quarenta sentenças possivelmente extraídas de várias obras. A esse parco conjunto acrescentaram-se, em 1888, as 81 sentenças descobertas em manuscrito da Biblioteca do Vaticano, algumas porém reproduzindo textos já conhecidos. Posteriormente, foram encontrados, em escavações em Herculano, os restos de uma biblioteca epicurista, contendo inclusive partes extremamente mutiladas da obra Sobre a natureza, de Epicuro. E, completando o escasso legado, foram descobertas, no final do século xix, as inscrições da muralha de Enoanda.[11] É bem verdade que muitas citações de Epicuro aparecem nos escritos de autores antigos, como Cícero, Plutarco ou Clemente de Alexandria. Mas essas fontes devem ser utilizadas com cuidado, pois estão marcadas pela intenção polêmica e crítica de adversários da doutrina epicurista, empenhados em combatê-la em nome do estoicismo, do ecletismo ou do cristianismo.
Eis por que o poema Sobre a natureza das coisas (De rerum natura), de Lucrécio, adquire tanta importância para o resgate das doutrinas epicuristas. Realmente, seria muito difícil reconstituir as ideias de Epicuro — o cisne — se não dispuséssemos da mediação que seu discípulo latino — a andorinha — realiza, sem pretender equiparar-se ao mestre grego, antes seguir, com apaixonada fidelidade, as pegadas que delineiam o percurso de seu pensamento.[12]
Ao contrário do que se poderia supor, o hedonismo epicurista — que nos cantos filosóficos do cisne e nos voos poéticos da andorinha proclama o prazer como finalidade da vida humana — é uma doutrina defendida por homens que têm todos os motivos para desistir da felicidade e que, no entanto, afirmam: “Chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz”.[13] Epicuro e Lucrécio vivem vidas difíceis em tempos difíceis.
Epicuro nasce em 341 a.C., em Samos ou em Atenas, mas seguramente de família ateniense. Seu pai é modesto mestre-escola, a mãe uma espécie de rezadeira, que o menino às vezes acompanha quando ela exerce sua função. Assim, desde cedo, Epicuro pode verificar como as pessoas estão geralmente dominadas por temores e crendices. Aos catorze anos é mandado para Téos, onde passa a acompanhar as lições de Nausífanes, discípulo do atomista Demócrito de Abdera. O cosmos com todos os seres lhe é então apresentado como resultando de átomos que se movem desde sempre no vazio infinito e que se aglutinam segundo leis estritamente mecânicas, sem intervenção de qualquer finalismo. Pobre, migrante e com saúde extremamente frágil, Epicuro vive, a partir de 322 a.C., em diversas cidades da Ásia Menor, enquanto elabora sua filosofia: “menos um sistema de pensamento do que um sistema de vida”.[14] Finalmente, em 306 a.C., vai para Atenas, onde funda sua escola filosófica, o Jardim, na verdade uma confraria ou comunidade que admite entre seus membros também mulheres e escravos.
Mostram os historiadores: Epicuro compra primeiro uma casa, em seguida adquire, a certa distância, um jardim. Da Casa passam a sair, abundantemente, livros, panfletos e cartas, enquanto no Jardim (Kepos) acomodam-se os discípulos que depois vão difundir a doutrina por toda parte, permanentemente alimentados, do ponto de vista doutrinário, por novos textos e pela frequente correspondência. Cícero, inimigo do epicurismo, distorce intencionalmente os fatos ao dizer que se trata de “um jardim de prazer onde os discípulos enlanguesciam em gozos refinados”. Na verdade, o Kepos não é propriamente um parque (paradeisos), mas uma horta, útil para a alimentação frugal dos que ali se recolhem, em convivência amigável junto ao mestre e inteiramente apartados das questões e distúrbios da pólis.[15]
Após uma vida marcada por ascetismo, serenidade e doçura, apesar da dolorosa doença — cálculo — que nunca lhe dá trégua, Epicuro morre em 271 a.C. Diógenes Laércio descreve assim sua morte: “Sentindo-se morrer, ele se fez colocar numa banheira de bronze cheia de água quente e pediu um copo de vinho puro, que bebeu. Tendo exortado seus discípulos para que se lembrassem de suas lições, expirou”.[16]
Pouco tempo antes, Epicuro escrevera a alguns discípulos, anunciando estar prestes a morrer. É o que se lê neste fragmento da Carta a Idomeneu:
Eu te escrevo neste dia feliz da minha vida em que me sinto próximo da morte. O mal prossegue seu curso na bexiga e no estômago e não perde nada de seu rigor. Mas, contra tudo isso, tenho alegria em meu coração, ao recordar minhas conversas contigo. Cuida dos filhos de Metrodoro: creio que posso contar com isso pela antiga devoção à minha pessoa e à filosofia.[17]
A cena descrita por Diógenes Laércio traz inevitavelmente à lembrança outra cena de morte, a morte de outro cisne: Sócrates, segundo o relato do Fédon de Platão.[18] Ambos, Epicuro e Sócrates, morrem serenamente, como exemplos de mortes sábias ou de sabedoria até a morte. Ambos bebem antes de morrer: Sócrates a cicuta que o envenena, Epicuro o vinho puro que lhe oferece a última sensação de prazer. Sócrates permanece tranquilo porque, enquanto espera o momento final, tece argumentos que ampliam os horizontes da espera e a transformam em racionalização da esperança na sobrevivência da alma.[19] Epicuro permanece imperturbável até o fim justamente pela certeza de que a morte não lhe diz respeito, pois, ao chegar, não o encontra: seu corpo e sua alma feitos de átomos retornaram ao jogo dos corpúsculos que se movem no vazio, eternamente. Sócrates, ao se despedir desta vida, parece saudar o deus da saúde (Asclépio), patrono da vitória da vida (da alma) sobre a morte (do corpo). Epicuro saúda com vinho não a vida futura, apenas provável, mas esta vida terrena que se finda, valiosa pelas alegrias e prazeres nela saboreados.
O texto de Diógenes Laércio contém outra informação importante: as últimas palavras de Epicuro foram de exortação aos discípulos, para que “se lembrassem de suas lições”. A memória desempenha, de fato, papel decisivo na ética epicurista, como está sugerido na última carta do filósofo, em que declara manter a alegria no coração, apesar das torturas impostas pela doença. E essa alegria, explica, lhe vem “ao recordar as conversas” com Idomeneu.
Noutro sentido a memória é também fundamental no epicurismo: enquanto manutenção da sabedoria conquistada e da liberdade interior obtida. Essa manutenção depende do constante processo de reavivamento de lembranças: lembranças de lições, recordação de conversas, ou seja, manutenção de um fluxo permanente de palavras portadoras da verdade sobre a “natureza das coisas” e sustentadoras da vida sábia, imperturbável. Não é justamente por isso que o Jardim se apresenta como uma espécie de “empresa editorial”,[20] a produzir continuamente livros e cartas? Não é pelo mesmo motivo que Diógenes de Enoanda procura perenizar em pedra as doutrinas básicas de Epicuro: para que suas lições permaneçam lembradas e à disposição dos homens de todas as raças e gerações?
A aquisição e a difusão da sabedoria epicurista sustentam-se, com efeito, na philia que liga os discípulos numa sociedade de amigos, que os vincula fortemente ao mestre e une todos à mesma doutrina. Mas essa rede de amizade exige uma rede de palavras permanentemente recordadas e comunicadas: o amor à humanidade e o processo de libertação e conquista da serenidade sábia são construídos em tramas de linguagem que incessantemente tecem o luminoso discurso da verdade. Obra inteiramente humana, sem interferência de nada que transcenda o humano, esse discurso da razão apoiada na experiência sensível é tecido no tear do tempo: resgatando o passado — rememorando lições e falas — e urdindo o futuro. Não é por isso que, antes de morrer, em sua carta derradeira, Epicuro junta as prazerosas recordações de conversas passadas à preocupação com o futuro dos filhos de Metrodoro? E que Diógenes de Enoanda preserva as palavras do mestre, legado do passado, para os pósteros — “que também são nossos”?
Se a vida de Epicuro é marcada pela busca da serenidade a partir de condições pessoais adversas, seu tempo não é menos atribulado. Sua Grécia não é mais a Grécia do período helênico, que se desenvolvera como conjunto de póleis (Cidades-Estados) independentes, unidas pelo sentimento comum de helenidade frente aos “bárbaros”, mas ciosas de sua autonomia e de suas peculiaridades, a cultuar os respectivos deuses protetores, a experimentar regimes políticos e organizações sociais diferenciadas, compondo um mosaico caracterizado por permanente tensão entre os impulsos de junção e de separação, que alguns de seus pensadores chegam a atribuir à própria dinâmica do cosmos.[21] A Grécia de Epicuro é outra: pertence ao período helenístico, inserida, desde a derrota de Queroneia, no Império macedônio. Primeiro Filipe, depois seu filho Alexandre (mais tarde os romanos) encerram a experiência política e cultural da Grécia Clássica, marcada pelo senso de liberdade manifestado de múltiplas formas, mas evidenciado sobretudo pela invenção da democracia. A dominação macedônia impõe um quadro totalmente diferente: as póleis não decidem mais de seus destinos, passando a integrar vasto império onde o poder está centralizado e no qual convivem, subjugados, outros povos, com outras tradições, outras formas de vida, pensamento, religião. Fatalmente afrouxam‑se as fronteiras culturais: dominados pela Macedônia, gregos e “bárbaros”, helenos e orientais são forçados a mais estreito contato e se interinfluenciam mais intensamente. Surge, assim, uma nova civilização — a helenística —, que durará cerca de três séculos, da morte de Alexandre à conquista romana. Nesse período, num império que vai do Irã a Cartago, do Egito à Itália, a herança helênica se difunde. Alexandre não é apenas “o criador do Estado territorial de grandes dimensões”, é também “o grande responsável pela helenização do mundo antigo”.[22] Em contrapartida, “à era das cidades livres sucede a das monarquias”.[23] Ao morrer, em 323 a.C. — ano em que Epicuro vai para Atenas —, Alexandre deixa completamente modificado o cenário político e cultural das adjacências do Mediterrâneo e de parte da Ásia. Cerca de meio século é necessário para a constituição da nova organização política. Mas, em 321 a.C., já estão estabelecidos os três grandes reinos helenísticos que perdurarão até a conquista romana: Macedônia-Grécia (sob os Antigônidas), Ásia (sob os Selêucidas), Egito (sob os Ptolomeus).
Mostram os historiadores: para tentar introduzir algum princípio unificador na diversidade extrema que caracteriza seus súditos, essas monarquias tornam-se pessoais, patriarcais e paternalistas. No nível da realeza, faz-se a coalescência entre o político e o pessoal; os colaboradores do rei são, ao mesmo tempo, servidores do Estado e servidores domésticos, ligados à Casa real. Sintomaticamente, a legislação perde o caráter das antigas leis das cidades gregas — os nomoi, que no regime democrático eram estabelecidos pelos cidadãos em decisões conjuntas — e passa a ser composta por decisões pessoais (do soberano), enquanto atos isolados que são comunicados, por meio de cartas ou instruções pontuais, para orientar a ação das administrações locais, de tipo satrápico.[24] Não sustentadas pela racionalização inerente aos argumentos em confronto numa Assembleia de cidadãos livres, mas emanando do alto, como decisão transcendente e impermeável à crítica e à apreciação de alternativas, as leis surgem como fatalidade ou como expressão de uma Razão superior, universal, insondável e irretorquível. Não fundamentadas no princípio de isegoria — direito ao uso político da palavra (na ágora) —, típico da experiência democrática, as leis assumem caráter monológico e, ao mesmo tempo, pessoal, autoritário e casuístico.
Por outro lado, a perda da liberdade política ocasiona o refreamento do processo libertário que se expressa em certas correntes de ideias e contesta subterraneamente as instituições da Cidade, mesmo durante a vigência do regime democrático. É que, na verdade, a liberdade propiciada pela democracia era privilégio de poucos: os “cidadãos”, homens adultos, livres, nascidos na pólis. Mulheres, estrangeiros e escravos estavam destituídos do direito de cidadania, alicerçado nos princípios de isegoria e de isonomia (igualdade perante a lei). Com isso, de fato, a maioria da população, na Atenas de Péricles, estava impedida de participar das discussões e decisões da Assembleia. Na verdade, alguns tinham liberdade para interferir nos assuntos políticos e também para se dedicar às investigações científicas e filosóficas graças à escravidão de muitos. Se tal situação é legitimada metafisicamente por Aristóteles — que a considera de acordo com a hierarquia dos seres e, portanto, natural e indispensável —, outros pensadores a criticam, nela reconhecendo o sinal de uma inversão ou de uma Queda, a exigir correção. Já Hesíodo descrevera seu tempo como resultante da decadência: tempo de injustiça, quando irmão rouba irmão com a conivência de juízes venais, dura idade de ferro, muito diferente da perdida idade de ouro.[25] Mas é sobretudo no seio da corrente pitagórica, a partir do século VI a.C., que se afirma claramente ter o homem decaído, anímica e cosmologicamente, da condição originária. Transformando premissas religiosas do orfismo em doutrina científico-filosófica de índole matemática, o pitagorismo, com efeito, explica a situação atual do homem — e da sociedade — como resultado da perda de altitude original: a alma-estrela, cadente, aprisiona-se na dimensão terrestre e passa a existir como dissonância em relação à harmonia do cosmos. Recuperar a situação estelar da origem e reintegrar‑se na harmonia do Todo — tornar-se kósmios, dotado de ordem e beleza — consiste, para o homem, em seguir a via de purificação e retorno que atravessa várias encarnações. Por isso mesmo, nenhuma situação é definitiva para a alma em processo ascensional de volta. “Outrora fui menino, menina, arbusto, passarinho e, do mar saltando, mudo peixe”, revela Empédocles,[26] o filósofo-médico-poeta, líder democrático de Agrigento. Que poderia acrescentar à lista de suas experiências ao longo das múltiplas metensomatoses: fui escravo e homem livre. Pois também as instituições são passageiras, como é mutável a situação do homem no cosmos. Tudo que existe de fato, na dimensão terrena, está imerso no movimento direcionado à recuperação da situação de direito, originária: no futuro, a Origem. A própria isonomia que deve reger a pólis, tornando-a democrática, constitui, na verdade, a introdução, no plano social e político, do princípio que preside o comportamento das raízes do cosmos: a Água, o Ar, a Terra e o Fogo, movidos eternamente por Philia e Neikos (Amor e Ódio, Amizade e Discórdia).[27]
Nessa linhagem de pensamento libertário, que contesta a fixidez das instituições políticas e dos lugares dos homens na sociedade, situa-se o socratismo dos cínicos e do próprio Platão. O retorno às alturas, à pátria celeste, depende da retomada das asas pela alma que se faz alante ao construir linguagens ascensionais (matemática, música e, principalmente, esta metamatemática e “mais alta música”: a filosofia), mostra Platão não apenas em mitos, mas também em sua dialética teorético-erótica, de cunho verticalizante.[28] E não é em nome da transcendência das essências modelares e sobretudo do Justo-em-si (justeza e justiça) que o plano empírico é julgado e a pólis, mesmo a democrática, rejeitada por Platão: pela distância que a separa da pólis ideal? Com efeito, o Platão crítico da democracia de seu tempo, desiludido com todos os regimes políticos experimentados pela Grécia, defende novo tipo de aristocracia — a do espírito —, que contesta tanto a igualdade quanto a desigualdade instituídas no interior da pólis democrática: nem todos os homens são iguais, a partir da diferenciação originária manifestada por suas almas, nem a desigualdade vigente é legítima, já que um escravo, como o de Ménon, pode revelar-se intelectualmente — animicamente — superior a seu amo.[29] De fato, na escalada de Retorno, impulsionada pela maiêutica socrática ou pela dialética platônica, a relação senhor/escravo pode se inverter, na medida em que a configuração do factual, que é mutável e histórico, vai sendo substituída pela (re)ordenação que expressa a ordem essencial; na medida em que as estruturas — da alma e da Cidade —, frutos da Queda, vão cedendo lugar à (re)organização fundamentada na perfeita proporção e na Justa Medida, ao mesmo tempo Sol e Bem.[30]
A tentativa de implantação da isonomia cósmica na pólis leva Empédocles à ação política, à luta pela democratização de Agrigento, tanto quanto ao empenho pela democratização interior, a partir da introdução do princípio de isonomia no processo de conhecimento. Na mesma linha pitagorizante, Platão concebe a filosofia como ascese da alma rumo às essências — paradigmas eternos e incorpóreos do que existe no plano empírico —, mas também enquanto busca dos fundamentos para a ação política justa, o que faz de Siracusa o complemento indispensável das investigações da Academia de Atenas. Em ambos, filosofar é via de salvação da alma e da pólis. Sábio é aquele que se liberta das ilusões, mas que se torna, em decorrência — na condição de filósofo-pedagogo, médico de almas —, libertador dos que permanecem prisioneiros na caverna dos enganos e simulacros; mas é também, paralelamente, o que interfere nos rumos da Cidade, enquanto filósofo-político. Salvação pessoal e salvação da pólis são duas faces do mesmo caminho de Retorno, da mesma missão libertária: Ética e Política se entrelaçam e se completam.
O tempo de Epicuro desfaz esse liame.
Se as decisões políticas e as leis emanam, prontas e indiscutíveis, de Filipe ou Alexandre para todo o império, na vida pública cabe somente obedecer: nem a Cidade é mais dona de seu destino, nem o cidadão pode decidir sobre os rumos dela. E, como as decisões são determinadas pelo arbítrio do imperador ou de seu representante local, surge, como expressão do sentimento de fatalidade que se abate sobre todos, o culto ao Acaso: preces são dirigidas a Tyché, a Fortuna.[31] Também não se pode mais aspirar a mudanças libertárias. No dia seguinte à batalha de Queroneia, Filipe impõe aos gregos a Confederação dos Helenos, da qual se torna chefe, estabelecendo: fica proibida, para sempre, a libertação dos escravos.[32]
Paul Nizan faz um resumo dramático do panorama político-social:
A acumulação das riquezas em um polo da sociedade não impede o empobrecimento geral. Nenhum tempo mais trágico que o tempo de Epicuro […] A infelicidade se estabelece entre os gregos, a desordem e a angústia aumentam todos os dias […] Sangue, incêndios, assassínios, pilhagens: mundo de Epicuro.[33]
Miséria econômica, miséria política. E a generalizada insegurança e o medo: medo da delação, do exílio, da pobreza, da morte. Surpreendentemente, é dentro de tanta adversidade que Epicuro constrói e difunde sua filosofia centrada no prazer, na serenidade e na alegria. Escreve um historiador:
O que faz a originalidade e a grandeza de sua doutrina é que numa época de misérias e lutas em que os diádocos disputam a herança de Alexandre, e proveniente de um homem pobre e só, sofredor desde a juventude de dolorosa doença da bexiga que não lhe dá sossego, ela afirma tranquilamente que o homem é feito para ser feliz, que carrega essa felicidade nele próprio e que a filosofia não é preparação para a morte, mas procura da alegria.[34]
Se as condições históricas, objetivas, impossibilitam que a liberdade seja conquistada no plano social e político, resta, todavia, todo o mundo interior, subjetivo, a ser libertado das ilusões e crendices que atormentam e escravizam a alma. E, se a felicidade não pode mais advir da participação num projeto coletivo de procura do bem e da justiça, isso não impede que se busque a felicidade pessoal, íntima. Sábio é agora não mais aquele que, como no tempo de Platão, deve comandar o leme da nau da Cidade, mas o que se desliga completamente dos tumultos e das agruras da vida política, para construir a serenidade espiritual e dirigir livremente sua nau interior. “Vive ignorado”, aconselha Epicuro.[35] Ou felicidade ou política, eis a escolha. Imperturbabilidade de espírito — delícia suprema — apenas no recolhimento do Jardim, no meio de amigos que são também amigos da sabedoria, distante dos tormentos da pólis e da multidão. Alcançar o bem é empreendimento exclusivamente ético, não político. Não adianta pretender a salvação coletiva, da sociedade, como sonharam pitagóricos e Platão: a salvação é pessoal e interior, exigindo, como condição primeira, afastar-se das turbulências da Cidade. É necessário, portanto, contrapor-se a longa tradição e mostrar, como indica Epicuro e desenvolve Lucrécio, que a vida social não constitui condição natural, intrínseca ao homem: é mera convenção. Pode, assim, ser substituída pela vida de acordo com a verdadeira natureza humana, cuja vocação é o prazer e a alegria.
Pouco se sabe sobre Lucrécio, a andorinha romana disposta a seguir os passos e a reproduzir o canto do cisne grego. Teria nascido cerca de 97 e morrido cerca de 55 a.C. Segundo uma tradição — suspeita, por ter sido amplamente difundida por adversários do epicurismo —, acaba louco e se suicida. Sabe-se, porém, com segurança, que o poema De rerum natura só foi editado depois de sua morte, por editor ilustre: Cícero.
Se a vida foi breve e talvez marcada por doença e trágico fim, seu tempo, como o de Epicuro, foi conturbado. Ele mesmo se refere à “época terrível para a pátria”, quando lhe é difícil realizar com serenidade seu trabalho, escrever sua obra.[36] De fato, a Roma de Lucrécio é sacudida por episódios violentos: ditadura aristocrática de Sila, ditadura de Pompeu, insurreição de Espártaco — esmagada por Crasso e Pompeu —, guerras diversas, conspiração de Catilina, subida de César ao poder, conflitos sociais a contrapor escravos e senhores, nobres e cavaleiros.[37]
Todas essas adversidades não conseguem afastar o discípulo de Epicuro da certeza de que o homem, apoiado na compreensão dos fatos da natureza, pode evitar a dor e o medo, de muito pouco precisando para ser feliz. Escreve:
Ó pobres espíritos humanos, ó cegos corações! Através de que trevas e perigos se passa o pouco tempo de vida! Não sente cada um o que a natureza a gritos proclama, que esteja sem dor o corpo e goze a mente, fora de medo e de cuidado, de um agradável sentimento?
Pouco é necessário, naturalmente, pelo que diz respeito ao corpo: tudo o que suprime a dor pode dar-lhe ao mesmo tempo numerosas delícias. E, entretanto, a própria natureza não exige nada mais agradável: se não temos na casa estátuas douradas de jovens segurando na mão direita lâmpadas ardentes, que deem luz aos banquetes noturnos, se a casa não refulge com a prata nem rebrilha com o ouro, se não ressoam as cítaras pelas salas lacadas e douradas, não exigem os corpos grandes bens desde que estejam deitados sobre a branda relva, perto de um rio de água corrente, à sombra de uma alta árvore, sobretudo quando o tempo sorri e a estação do ano adorna de flores as ervas verdejantes. E as febres ardentes não se afastam mais depressa do corpo por se estar agitado sobre tapetes bordados e sobre a rubra púrpura do que por termos de deitar num pano plebeu.[38]
No meio de circunstâncias adversas — ensinam e exemplificam Epicuro e Lucrécio — é possível conquistar serena e estável felicidade. O caminho que leva a essa meta é o cultivo da filosofia não enquanto erudição, mas enquanto medicina da alma, valorizada pelos efeitos curativos, pois: “Assim como realmente a medicina em nada beneficia, se não liberta dos males do corpo, assim também sucede com a filosofia, se não liberta das paixões da alma”.[39]
O ponto de partida dessa terapia filosófica é a substituição das crenças aterrorizantes pela correta compreensão da natureza das coisas e, em particular, da natureza do próprio homem. Assim, a ética que aponta para o prazer sereno como bem supremo sustenta-se no conhecimento verdadeiro, na ciência da natureza: “Não pode afastar o temor que importa para aquilo a que damos maior importância quem não saiba qual é a natureza do universo e tenha a preocupação das fábulas místicas. Por isso, não se podem gozar prazeres puros sem a ciência da natureza”.[40]
O conhecimento que liberta
Tomando a medicina por modelo, a filosofia, para Epicuro e seus seguidores, nada tem a ver com mera instrução: vale em função de seus efeitos, é essencialmente atividade curativa e libertadora. Que se constrói em três patamares: a lógica, a física e a ética. Lógica e física estão para a ética como a higiene e a medicina estão para a saúde: são meios para alcançar a meta desejada.[41]
Nesse sentido, o epicurismo entende por lógica algo totalmente diverso da lógica “sábia”, como a de Aristóteles. Trata-se, mais propriamente, de uma crítica do conhecimento, visando à determinação de critérios de evidência que permitam separar o verdadeiro do falso, eliminar as opiniões errôneas e encontrar fundamentos seguros para certa forma de vida: a vida serenamente feliz.
O ponto de partida dessa lógica — chamada Canônica — é a identificação das fontes de qualquer conhecimento ou ideia. Epicuro distingue duas fontes: a sensação representativa, produtora de imagens que povoam a phantasia, e a sensação afetiva, o prazer e a dor. A sensação consiste, portanto, no cânone básico, no critério fundamental de todo conhecimento: todos os juízos que a razão constrói devem ser validados — ou não — pela sensação, que os confirma ou infirma.
Um segundo cânone é utilizado para distinguir o verdadeiro do falso: a antecipação ou prenoção (prolépsis). Trata-se da ideia genérica que a mente forma, com base em sensações passadas. Assim, ao se ouvir flor, sabe-se o que é, ainda que o objeto referido não esteja presente nem seja apreendido sensorialmente no momento. A prolépsis, embora remeta sempre à sensação, permite que o conhecimento se constitua dispensando a imediatez do objeto. Garante, desse modo, um tipo de verdade que, apesar de baseada na sensação, pode constituir-se em nível puramente inteligível e abstrato, “a respeito do que nos é invisível”.[42] Essa mudança de patamar cognitivo é imprescindível à construção da física atomista, adotada e desenvolvida por Epicuro, enquanto organização de conhecimentos dotados de validade permanente e universal, enquanto episteme racionalmente estruturada, não mera coletânea de registros empíricos e episódicos. Epicuro esclarece: “A sensação deve servir-nos para proceder, raciocinando, à indução de verdades que não são acessíveis aos sentidos”.[43]
Ou seja: o critério da antecipação permite ao conhecimento legítimo transcender o imediatamente sensível e o puramente fenomênico, realizando construções racionais, desde, é claro, que não infirmadas pelas sensações. O não sensível — o átomo — pode, assim, ser afirmado como fundamento de tudo o que percebemos. Mas a prolépsis representa também a introdução do tempo e da memória na sustentação do conhecimento científico, já que seu mecanismo supõe o resgate tácito de experiências passadas. Tempo e memória subjazem à racionalidade da física, do mesmo modo que constituem ingredientes imprescindíveis à sustentação do modo de vida preconizado pelo epicurismo.
A física de Epicuro toma por base a concepção atomista de Leucipo e Demócrito. O princípio fundamental dessa física, retomando tese característica das cosmogonias helênicas, é a eternidade da matéria. “Nada provém do nada”, afirma Epicuro.[44] E Lucrécio glosa: “Realmente, se fosse possível nascer do nada, tudo poderia nascer de tudo”.[45] A criação a partir do nada, inadmissível para a investigação estritamente racional, introduz a desrazão no nascedouro do ser. Essa irracionalidade originária surge como fundo obscuro, insondável, impedindo a compreensão plenamente racional do mundo. E dá lugar ao reino do imprevisível e do incontrolável, como mostra o poeta-filósofo:
Poderiam surgir homens do mar, romper da terra a família dos peixes escamosos e as aves precipitarem-se do céu; e os rebanhos, os outros animais e toda a espécie de feras ocupariam, dado o acaso da origem, as terras cultivadas e os desertos. Por seu lado, as árvores não teriam sempre os mesmos frutos: mudariam de um tempo a outro e todas elas poderiam produzir todos. Com efeito, não havendo em coisa alguma elementos geradores, como poderia ter cada ser sua mãe determinada?[46]
A matéria eterna, matriz de tudo, é formada por inumeráveis átomos, corpúsculos resistentes, invisíveis e insecáveis (divisíveis não física, apenas matematicamente), que se movem no vazio infinito. Corpo e espaço, o corpóreo e o incorpóreo —[47]a extensão que resiste movendo-se no interior da extensão que não oferece resistência —, eis os componentes de todas as coisas. “Se não existisse o espaço, que é chamado vazio, lugar e natureza impalpável, os corpos não teriam onde estar nem onde mover-se”, justifica Epicuro.[48]
No atomismo de Demócrito os átomos variam de tamanho — embora sempre em escala inferior ao limiar da percepção sensível —, formato, posição e arranjo (quando agrupados), sendo, porém, destituídos de qualidades, que só aparecem, enquanto qualidades derivadas ou secundárias, nos corpos por eles constituídos. Epicuro concorda. Demócrito afirma que os átomos estão eternamente em movimento. Epicuro também concorda. Mas Demócrito considera que, originariamente, numa situação “primeira” (não necessariamente efetivada, mas posta racionalmente como situação lógica fundamentadora), o movimento eterno e contínuo dos átomos realiza-se em quaisquer direções — já que no vazio infinito não há direção preferencial ou predeterminada —, como a poeira que se vê numa réstia de luz. Esses movimentos multidirecionais podem eventualmente ocasionar colisões entre átomos (quando o movimento resultante passa a ter direção determinada pelo tipo de choque ocorrido) e eventualmente resultar em engates que, se não forem desfeitos por novas colisões, podem dar início à formação de um conjunto de átomos. Esse o eventual começo de um mundo, dentre os infinitos mundos possíveis que, simultânea ou sucessivamente, podem ser engendrados, mas que posteriormente — sempre por fatores estritamente físico-mecânicos — podem ser desagregados, restando os elementos fundamentais e eternos, a phy´sis plural: átomos que se movem no vazio infinito. Esse processo cosmogônico sem télos, sem finalismo, sem princípio regedor e intencional — oposto ao que deveria ser, para o Sócrates de Platão, o papel cosmogônico do Noús de Anaxágoras —,[49] é uma construção sem arquiteto, a gênese materialista e perene dos mundos, efetivada sem interferência de qualquer arbítrio ou insondável desígnio, portanto sem mistério: à dimensão da inteligibilidade humana. Epicuro a adota. Mas a altera fundamentalmente, nela introduzindo dois conceitos decisivos, que permitem fazer da física a sustentação de sua ética hedonista: os conceitos de peso e de desvio.
Além de tamanho, resistência, forma, posição, os átomos, segundo Epicuro, possuem peso. Marx percebe a importância dessa inovação: o átomo passa a constituir, na versão epicurista, uma singularidade, “um ponto de gravidade representado como existência singular”.[50] O peso torna-se fundamento da singularização, da individuação. Suscita, porém, um problema a ser resolvido no próprio plano da física. É que, dotados de peso, os átomos “caem” em linha reta no vazio, em trajetórias paralelas que não propiciam colisões e, consequentemente, não possibilitam o eventual surgimento de mundos. Apesar de racional, esse modelo cosmogônico “originário” não explica o que as sensações atestam: a existência das coisas, a efetivação do mundo em que somos. Essa efetivação demonstra a posteriori que houve choques e engates de átomos. Ou seja: aquela situação “primeira” deve ser minimamente alterada, apenas o necessário para que a possibilidade se transforme em efetividade do mundo. É preciso, portanto, admitir que, em algum ponto, algum átomo desvia-se da trajetória vertical — fatalidade mecânica — e é quanto basta para que ocorram colisões e acabem surgindo conglomerados atômicos. Esse desvio (clinamen) é assim descrito por Lucrécio:
Quando os corpos são levados em linha reta através do vazio e de cima para baixo pelo próprio peso, afastam-se um pouco de sua trajetória, em altura incerta e em incerto lugar, e tão somente o necessário para que se possa dizer que se mudou o movimento. Se não pudessem desviar-se, todos eles, como gotas de chuva, cairiam pelo profundo espaço sempre de cima para baixo e não haveria para os elementos nenhuma possibilidade de colisão ou de choque; se assim fosse, jamais a natureza teria criado coisa alguma.[51]
Todavia, criou: logo, o clinamen é condição indispensável para que o mundo, cuja existência é provada por nossos sentidos, fosse gerado. O que vale dizer: a passagem do possível ao real exige um desvio — mínimo — das leis mecânicas; deixadas só em si mesmas, elas estabelecem um cenário racional onde o mundo é apenas possibilidade abstrata; a efetivação deste mundo-aí depende da introdução nesse cenário de um mínimo de alteração, para que a possibilidade de um mundo qualquer se torne a realidade deste mundo, em particular. O epicurismo oferece, assim, sua versão da relação universal/singular, abstrato/concreto: a singularidade efetiva ocorre enquanto desvio (mínimo) do modelo racional que lhe serve de sustentação. Como em Platão, esse modelo é que permite a inteligibilidade do mundo físico; ao contrário de Platão, o modelo não é a realidade essencial e permanente: é condição “prévia” de inteligibilidade do real corpóreo organizado em mundo.
Se o peso dos átomos fundamenta a individuação, o clinamen justifica a efetivação das coisas percebidas. Mas também explica a possibilidade de o homem reorientar sua vida interior, desviando-se de sensações dolorosas para ir ao encontro do prazer. A liberdade — para ser feliz mesmo na adversidade — subentende o desvio, a recusa da fatalidade. A física epicurista procura, desse modo, explicar os mecanismos do mundo e também os mecanismos humanos, dar conta da existência efetiva do mundo e da liberdade humana, justificando as normas éticas. Ao corrigir os fundamentos da física de Demócrito, Epicuro torna viável o que em seu antecessor permanece como paradoxo: basear a normatividade ética, que sempre pressupõe a liberdade (para dirigir a vida nessa e não noutra direção, para viver desse e não daquele modo), numa física determinista.[52] O clinamen introduz no mecanicismo determinista o espaço para o processo de libertação interior, que a ética epicurista prescreve: a liberdade é desviante, introduz nova direção a partir da reta (in)flexível da fatalidade
Tudo que existe é feito de átomos, vazio, movimento. Também a alma humana. Constituída por átomos mais leves e sutis, ela habita a casa do corpo. A morte é simplesmente a desagregação desse conjunto atômico, nada mais. Por isso, não há por que temê-la. Na verdade, quando advém, já não somos: ela não nos concerne. Ensina Epicuro: “Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós, visto que todo mal e todo bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sensibilidade”.[53]
E completa noutra máxima: “É insensato aquele que diz temer a morte, não porque ela o aflija quando sobrevier, mas porque o aflige o prevê-la: o que não nos perturba quando está presente inutilmente nos perturba também enquanto o esperamos”.[54]
Lucrécio explicita a concepção epicurista da morte, que não nos afeta a sensibilidade como tudo o que ocorre no tempo que ultrapassa o da nossa existência. Existimos num tempo determinado, que jamais coincide com o tempo da (nossa) morte:
A morte, portanto, nada é para nós e em nada nos toca, visto ser mortal a substância do espírito. E, como não sentimos dor alguma quanto ao tempo passado, quando os cartagineses acorreram de todos os lados para o combate, quando o universo, sacudido pelo tumulto trépido da guerra, tremeu de horror sob as altas abóbadas do céu e em todos os homens havia dúvida ansiosa sobre a qual dos dois caberia o domínio da terra e do mar, assim também, quando não existirmos, quando houver a separação do corpo e do espírito, cuja união forma nossa individualidade, também a nós, que não existiremos, não nos poderá acontecer seja o que for nem impressionar-nos a sensibilidade, mesmo que a terra se misture com o mar e o mar com o céu.[55]
O medo da morte provém, portanto, de expectativa equivocada, baseada no desconhecimento do que realmente acontece no mundo, em função da natureza das coisas e dos homens. Essa natureza (phy´sis) é constituída tão somente por átomos eternamente se movendo no infinito vazio: única realidade permanente e fonte de inumeráveis e efêmeras construções atômicas — como o homem, seu corpo, sua alma. Imortais, só a phy´sis e os deuses.[56]
Mas também os deuses são feitos de átomos, átomos especiais. São antropomórficos, como afirma a tradição religiosa e comprovam todas as aparições aos mortais, tanto no sono quanto na vigília.[57] A teologia epicurista contém, inclusive, a descrição precisa da natureza física do ser divino, distinguindo deuses machos e fêmeas, de acordo com as representações populares.[58] Mas, embora corpóreos — de tênue corporeidade, afirmada por analogia à corporeidade das coisas —, esses deuses não podem ser apreendidos pelos sentidos, apenas pelo espírito. Isso se explica pela doutrina epicurista dos simulacros: de todos os corpos emanam eflúvios sutis, apesar de corpóreos, películas atômicas que se desprendem e vagam no espaço, reproduzindo os objetos de onde provêm; os simulacros atingem nossos sentidos e é assim que se efetiva o fenômeno da visão. No caso dos deuses, a natureza especial dos átomos que os constituem faz com que seus simulacros somente sejam apreensíveis pelos átomos também diferenciados que compõem nosso espírito.[59] Mas, mesmo nesse caso, trata-se de sensação. E mais: de sensação concebida à luz de estrito materialismo, que atribui existência corpórea e objetiva à imagem, coisificando-a.[60]
Apesar de corpóreos, os deuses são imortais. Essa aparente contradição entre a teologia e os fundamentos da física desfaz-se na medida em que a imortalidade divina é entendida não como estado passivo ou qualidade estática, mas resulta de processo de contínua renovação. Ou seja: a imortalidade não é atributo que os deuses possuem de uma vez por todas, mas incessante e eternamente conquistado, em contínua autocriação.[61]
Os imortais vivem nos intermundos, onde não há intempéries, onde tudo é paz e perfeito gozo. De nada têm necessidade. Sem precisar de sono, vivem em eterna e beatífica vigília. Sereníssimos, não conhecem esforço ou fadiga. E, com imenso prazer, relacionam-se uns com os outros, conversando como sábios: numa língua que deve ser o grego ou é próxima ao grego, já que é grega a sabedoria.[62] Constituem, assim, uma confraria de sábios imortais, que sustentam a beatitude pela sábia conversação: modelo de vida a ser imitado pelos homens. E o que é decisivo para a ética epicurista: os deuses permanecem eternamente imersos na fruição da sabedoria partilhada e perfeita, acompanhada pela certeza de que tamanha felicidade jamais terá fim; logo, distantes de nosso atribulado mundo, completamente alheios aos conflitos e sofrimentos da vida humana. Portanto, se não há por que temê-los, de nada vale bajulá-los, com oferendas e promessas. Deuses não providenciais, mergulhados no eterno prazer beatífico, podem e devem ser cultuados e homenageados, mas de forma totalmente desinteressada. O epicurismo incentiva a piedade, mas prescreve um culto puramente espiritual: deve-se orar aos deuses não porque estejam irados ou para obter favores, mas pelo simples fato de existirem como seres superiores, caracterizados pela excelência e pela vida perfeita, modelar.[63] Sobretudo: os deuses do epicurismo não justificam qualquer medo, qualquer angústia; a piedade epicurista é via de apaziguamento, de conquista da serenidade de espírito, é remédio tranquilizador. Por caminho diverso, Epicuro coincide neste ponto com Platão: a verdadeira sabedoria se define como imitação dos deuses. Em sua vida passageira, o mortal pode alcançar atributos típicos da imortalidade. É o que Epicuro promete na carta a Meneceu: “O que medita as máximas da filosofia epicurista viverá como um deus entre os homens e não terá nada de mortal, pois possuirá os bens dos imortais”.[64]
Ao contrário do Sócrates do Fédon, não se trata de alimentar a esperança na imortalidade da alma. Trata-se de alcançar nesta vida qualidades que só os imortais possuem perenemente: ter aqui e por enquanto os bens que a imortalidade confere aos deuses no alhures eternamente sossegado dos intermundos,[65] provar nesta vida breve as delícias que os imortais usufruem para sempre.
Consequência da concepção teológica do epicurismo é a denúncia dos malefícios causados pela religião, que justamente infunde nos homens o temor aos deuses. Porque parte de crenças errôneas sobre a natureza do divino — sobretudo as propagadas pelos mitos tradicionais —, a religião torna-se fonte de tormento e perturbação. Epicuro, ao contrário, procura libertar as almas desses terrores infundados; combate as crendices, inclusive — à semelhança de Xenófanes de Colofão (c. 570-28 a.C.) — a crença na adivinhação, que se difunde amplamente no período helenístico. A fonte de todos esses equívocos, consideram os epicuristas, é que as religiões surgem da falsa aproximação entre as aparições dos deuses aos homens e os fenômenos naturais aterrorizantes.[66] De fato, não pensam — como o fazem os estoicos — que a natureza concorre para o bem dos homens: ela não é mãe, mas madrasta da humanidade. Lucrécio descreve longamente as lutas dos homens que, usando de engenhosidade, vencem os obstáculos que a natureza lhes oferece, para tornar a vida suportável. Mas, inocentes, os deuses nada têm a ver com isso. Nem causas finais que predeterminariam a criação do cosmos, nem providência benfazeja, nem ameaça a pairar sobre a humanidade, os deuses dão o exemplo — distante — da prazerosa sabedoria sustentada por serenas conversações, sem responsabilidade por nossas agruras e misérias. Raciocina Epicuro:
Deus ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede?[67]
Responder à pergunta de Epicuro é tentar estabelecer a difícil relação entre bondade divina, infinita, e existência dos males que afligem os homens. É, por exemplo, a árdua empreitada intelectual assumida por santo Agostinho, que procura conciliar, a partir das premissas teológicas do cristianismo, bondade e providência divinas com a existência do erro, do mal, do pecado e dos sofrimentos humanos.
A vida feliz
A ética epicurista é basicamente um hedonismo. De fato, o motor e a meta da vida humana são identificados ao prazer. Eis o que afirma Epicuro: “Chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz. Com efeito, sabemos que é o primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda escolha ou recusa e chegamos a ele valorizando todo bem com critério do efeito que nos produz”.[68]
Mas o hedonismo epicurista, embora considere todo prazer como corpóreo, não legitima qualquer tipo de prazer. Faz-se necessário distinguir o verdadeiro prazer, estável, dos prazeres que resultam em pesares ou partem de carências, movendo-se entre insatisfações. O primeiro tipo é o prazer em repouso (em latim, voluptas in stabilitate), diferente do prazer em movimento (voluptas in motu), que os cirenaicos consideram o bem buscado pelos homens. Exemplo de prazer em movimento é sentir sede e saciá-la, ter qualquer carência e supri-la (até que nova carência se recoloque). O prazer em repouso, meta do epicurista, não consiste em satisfazer uma necessidade: é, antes, eliminar a necessidade, atingir a ausência de dor (indolentia). Não que esse prazer se resuma à negação da dor, a um vazio afetivo: sua positividade é que é plena, isenta de qualquer pesar, carência, necessidade. Por isso, o prazer prescrito pelo epicurismo opõe-se à busca desenfreada e ansiosa de bens. Na verdade, precisa-se de bem pouco para se ser feliz: “Nem a posse das riquezas nem a abundância das coisas nem a obtenção de cargos ou de poder produzem a felicidade e a bem-aventurança; produzem-na a ausência de dores, a moderação nos afetos e a disposição de espírito que se mantenha nos limites impostos pela natureza”.[69]
Prazer, mas prazer com medida e senso de limite. O hedonismo epicurista alia prazer e serenidade:
Quando dizemos que o prazer é o fim, não queremos referir-nos aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como creem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimento do corpo e de perturbações da alma.[70]
O ápice desse tipo de prazer é a conquista da imperturbabilidade de espírito (ataraxia). Mas a ela só se chega pelo discernimento da diversidade dos desejos, pois nem todos devem ser atendidos. De fato: “Alguns desejos são naturais e necessários; outros são naturais e não necessários; outros nem naturais nem necessários, mas nascidos apenas de uma vã opinião”.[71]
Administrar os desejos, para manter-se “nos limites impostos pela natureza” — eis o caminho que conduz à serena felicidade. Atender apenas os desejos naturais e necessários significa introduzir na raiz dos atos, na fonte das escolhas, uma sabedoria fundamentada na prudência (phrónesis) e no cálculo ou medida dos prazeres, em substituição à impulsividade instintiva.[72] Esse controle racional da afetividade coloca a existência humana em sintonia com a natureza das coisas revelada pela física e impede que se siga na direção apontada pelo desejo que não expressa uma necessidade natural, antes constitui imposição do meio social em seu aparente progresso.
Lucrécio insiste: a simplicidade da vida primitiva é superior à que resulta da civilização. Defendendo tese depois retomada pela concepção do “selvagem” de Rousseau e do “homem da natureza” de outros escritores do século XVIII mostra que o homem da primeira era da humanidade é um sábio instintivo, que se mantém nos limites exigidos pela natureza.[73] O caminho proposto pela ética epicurista é justamente o resgate dessa condição original: a volta não às estrelas, mas à vida conforme a natureza das coisas e do próprio homem. Assim, ao contrário de seguir na direção do progresso da civilização, que simplesmente procura vencer as dificuldades impostas pela natureza mas não significa progressão para uma vida mais feliz, o progresso indicado pelo epicurismo é de natureza ética: trata-se de, na contramão do progresso social, “regredir” eticamente, rumo à reconquista da simplicidade natural, originária. Regressão efetivada por meio da contenção dos desejos, como prescreve reiteradamente Epicuro em suas máximas:
Quando te angustias com tuas angústias, te esqueces da natureza: a ti mesmo te impões infinitos desejos e temores; A quem não basta pouco, nada basta; Se queres enriquecer Pítocles, não lhe acrescentes riquezas: diminui-lhe os desejos.[74]
O sábio epicurista é, portanto, um asceta que utiliza a compreensão racional do mundo e da vida para racionar os próprios desejos. Desse modo, introduz medição e posologia na vida afetiva, serenizando-a e construindo, a seu modo, uma estética da existência, pelo uso sábio e regrado dos prazeres.[75] Assim fazendo, aparta-se do rebanho humano que, ressalta Diógenes de Enoanda, segue, contaminado pela imitação, à busca insaciável de bens impostos pelo “progresso”: fonte de permanente angústia. Pois:
Quem obedece à natureza e não às vãs opiniões a si próprio se basta em todos os casos. Com efeito, para o que é suficiente por natureza, toda aquisição é riqueza, mas, por comparação com o infinito dos desejos, até a maior riqueza é pobreza.[76]
A vida ascética e frugal da confraria do Jardim e das outras comunidades epicuristas que se multiplicam pelo mundo greco‑romano procura, exatamente, longe da tempestuosa vida pública, a serenidade resultante da satisfação dos desejos naturais e necessários: a delícia está na qualidade, não na quantidade dos bens adquiridos e dos desejos saciados.
Essa ética — que é uma política estritamente interior de administração e contenção racional dos desejos — conduz, necessariamente, à revalorização do tempo: do presente, do passado, do futuro. O presente é onde se está, onde se vive, se é, se sente a sensação que se sente, onde se é feliz ou não. É necessário, portanto, defendê-lo contra as ansiedades que podem vir da expectativa do futuro. Epicuro adverte:
Não deves corromper o bem presente com o desejo daquilo que não tens: antes, deves considerar também que aquilo que agora possuis se encontrava no número dos teus desejos.
Quem menos sente a necessidade do amanhã mais alegremente se prepara para o amanhã.
A vida do insensato é ingrata, encontra-se em constante agitação e está sempre dirigida para o futuro.[77]
Insensato, pois, é estragar o bem presente pelo tormento relativo ao que ainda é porvir. Ao contrário, é grande sabedoria utilizar o futuro e o passado para obter, no presente, prazer e serenidade. De fato, nem sempre o presente é bom e prazeroso, sabem muito bem Epicuro e Lucrécio. Mas, mesmo nesse caso, o homem pode livrar-se da aparente fatalidade do sofrimento: pode evocar imagens agradáveis do passado e, desse modo, afastar as sensações penosas que lhe oferece o presente; pode também desviar-se subjetivamente em direção ao futuro, na expectativa de que venha a ter outra vez uma sensação prazerosa, à semelhança das que já experimentou. O clinamen ressurge, no plano subjetivo, como mecanismo de substituição de imagens, controlado pela vontade enérgica e disciplinada. A liberdade — toda interior, ali onde podemos ser plenamente senhores e jamais escravos — consiste, portanto, em romper o determinismo inerente a qualquer situação objetiva e, de forma desviante, abrir espaço para o exercício da autarcia. O desvio interior é inaugurado pelo trabalho de autossugestão, que constitui, na verdade, o autocontrole do acervo imagético construído a partir das sensações. Ou seja: a especificidade e a autonomia do plano subjetivo, onde está enraizada a liberdade interior, resultam do desvio em relação à determinação que rege a natureza das coisas.
Há, portanto, duas situações possíveis, enfrentadas pela ética epicurista: o corpo pode estar em bom estado, mas a alma conturbada; ou o corpo em mau estado e a alma sadia e forte. Na primeira, o phármakon que se recomenda consiste na correção das falsas opiniões e na supressão dos temores que elas ocasionam (a terapia epicurista mais analisada e difundida). Na segunda, o epicurismo receita outro tipo de remédio: a anulação da dor física pela reorientação das representações mentais, pelo jogo das imagens. Nesse caso, o refúgio no mundo interior bem administrado permite o resgate de imagens prazerosas do passado ou a antecipação de imagens positivas esperadas do futuro. As duas terapias se complementam: não sofrer no corpo, não ter a alma perturbada — eis a fórmula epicurista da felicidade.[78]
Insiste Epicuro: todo prazer é corpóreo — mesmo o prazer passado e o por vir. A sabedoria está, assim, em saber contrapor prazeres corpóreos e fazer com que, no caso de o presente ser doloroso, neutralizá-lo pela memória ou pela esperança, no pressuposto de que uma imagem — resgatada do passado ou antecipada do futuro — pode ser mais forte que uma sensação.[79]
Ser mortal, o homem constrói sua liberdade no tempo, no tempo desta vida que deve ser transformado em tempo de felicidade. Não contando senão com a temporalidade, é dela que tem de extrair os ingredientes para a poção da serena alegria: as sensações prazerosas do presente e as imagens do tempo passado ou futuro (se o presente é adverso). O epicurismo considera, com efeito, que além do mundo imediato, captado pelas sensações, há também um plano de realidade — igualmente corpórea, porém mais sutil — à disposição do homem: seu acervo de imagens, seu arquivo de lembranças — simulacros corpóreos de sensações —, que ele pode utilizar para sua felicidade. Essa duplicidade de planos sugere a distinção platônica entre sensível e inteligível, mas é completamente diversa. Em Platão, o plano inteligível é constituído por ideias ou formas incorpóreas, às quais a alma pode retornar por ascese e reminiscência (anamnesis), que nada tem a ver com resgate do passado, no eixo horizontal da história, mas retorno à atemporalidade do Aion, o eterno sempre. No epicurismo, a volta é rememoração subjetiva, no eixo da temporalidade do vivido sensível, sem jamais perder o vínculo com o corpóreo.[80]
De tudo isso resulta o valor atribuído pela ética epicurista ao tempo, ao acúmulo de experiências, ao passado, à memória e, consequentemente, à velhice.
Em primeiro lugar, é necessário inverter a valoração corriqueira: se o viver voltado para o futuro é fonte frequente de ansiedade e prejudica muitas vezes a fruição de bens conquistados e presentes, o passado não representa um não-é-mais vazio, a ausência do bem perdido, antes um tesouro de bens reais e sempre recuperáveis. É o que Epicuro mostra na carta que escreve pouco antes de morrer e resume nesta máxima admirável: “Cura as desgraças com a agradecida memória do bem perdido e com a convicção de que é impossível fazer com que não exista tudo aquilo que já aconteceu”.[81]
O bem passado é jamais perdido: a memória se incumbe de mantê-lo vivo e fazê-lo, com toda força, outra vez presente. O desvio no tempo, na direção do passado (memória) ou do futuro (esperança), permite a alegria em meio à adversidade, a serenidade na tortura, a liberdade interior que nenhum déspota é capaz de suprimir — insistem Epicuro e Lucrécio, que viveram vidas e tempos sofridos. Afinal, a destinação livre não é uma construção toda íntima, uma trajetória interior e desviante roubada ao fatalismo?
Eis por que o idoso, dotado de grande acervo de lembranças, possui, segundo Epicuro, mais condição para alcançar a serena felicidade:
Não é ao jovem que se deve considerar feliz e invejável. O jovem na flor da juventude é instável e é arrastado em todas as direções pela fortuna; pelo contrário, o velho ancorou na velhice como em um porto seguro e os bens que antes esperou cheio de ansiedade e de dúvida os possui agora cingidos com firme e agradecida lembrança.[82]
A técnica epicurista de conquista de autarcia interior e de domínio sobre imagens, sensações e desejos exige, porém, condições de vida adequadas. Nem a imersão no torvelinho da cidade e da multidão, nem o total isolamento, mas o convívio no grupo de amigos que são também amigos da sabedoria. Por isso: o Jardim e suas delícias. Sem a conotação religiosa que caracteriza as antigas confrarias pitagóricas, o Jardim pode ser visto como a primeira sociedade de amigos, comunidade lúcida ocupada numa tarefa comum: buscar a imperturbabilidade de espírito.[83] Se em Aristóteles a philia permanece ligada à aristocracia e aos homens que têm condição para se dedicarem ao ócio e à vida especulativa, no Jardim de Epicuro o direito à felicidade é aberto a todos, mesmo aos excluídos dos direitos de cidadania pela democracia ateniense: mulheres, estrangeiros, escravos. No epicurismo, a philia se universaliza e se expande no tempo, em direção aos pósteros, “que também são nossos”, como lembra Diógenes de Enoanda. Ela sustenta o humanismo epicurista e é delícia suprema: “De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade”.[84]
Por si mesma a amizade é útil. Embora não altere o sofrimento nem possa evitar a morte, ajuda a suportá-los. E mais: tão alto bem pode até incluir a dor, sem deixar de ser um bem, como revela Epicuro, numa das sentenças vaticanas, em que diz: o sábio sofre menos ao ser torturado do que quando o amigo é submetido a tortura.
Mas a philia é também instrumento indispensável ao artesanato ético interior, pois a presença do amigo auxilia a procura e a manutenção da sabedoria, que ele igualmente persegue. Comenta Jean-Claude Fraisse:
A amizade ajuda o sábio, sob o olhar do sábio, a gozar de sua própria existência. Ajuda a fazer a dissociação entre os tormentos do corpo e a paz de espírito — chave da vida feliz. Finalmente, proporciona esse prazer único da discussão filosófica, prazer que, ao contrário de todos os demais, desconhece qualquer dor. Não podendo impedir o que é a marca de nossa finitude, nos ajuda a não nos entregarmos a sonhos de infinitude, que apenas fazem aumentar nossa miséria, e a encontrar, na instantaneidade do prazer e na extensão de prazeres instantâneos à totalidade da vida por meio do jogo da memória ou da antecipação racional, essa pureza da alegria que a assemelha à dos deuses.[85]
Philia epicurista: nem vínculo político, nem religioso. Mas condição para construção — se não há salvação coletiva — da subjetividade livre, desalienada, incólume ao despotismo dos desejos irracionais, das falsas opiniões e dos temores infundados, inatingível pelas tiranias do mundo. Ao contrário do eros platônico, não alimenta desejos de imortalidade e eternidade, sonhos de infinitude, antes mantém o sábio, “sob o olhar do sábio”, no humano apenas humano, na dimensão temporal, na finitude da vida: nossa moira, nosso lote, nossa província, nossa limitada destinação. Ao contrário da philia aristotélica, sua finalidade não é garantir a continuidade da atividade contemplativa para o pequeno grupo de privilegiados pelo ócio, porém permitir que se resista à natureza exterior, madrasta, sem aderir à sua ordem aparente. Seu fundamento é a ciência da natureza, mas natureza enquanto phy´sis, enquanto natureza das coisas, enquanto organização invisível porém racional.
Philia epicurista: imitação, durante a vida breve, da ligação que sustenta a bem-aventurança dos deuses. Dos deuses conversadores, dialogantes, sereníssimos sábios em confraria perpétua. E, porquanto a eternidade é preenchida pela sabedoria dos imortais, a temporalidade dos homens é sempre propícia ao filosofar, ao amor à sabedoria que imita e homenageia a sabedoria divina. Eis por que é sempre hora da filosofia, ensina Epicuro:
Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora do filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz.[86]
Notas
[1] G. Rodis-Lewis, Épicure et son école, Paris, Gallimard, 1975, pp. 32-3.
[2] A questão do critério de escolha do discípulo é um dos pontos centrais da divergência entre sofistas e socráticos. Sócrates, orientado por seu daimon interior, recusa-se a dialogar com determinadas pessoas, que não estariam em condição de realizar o trabalho de parto de si mesmas por meio da busca do significado das palavras de seu próprio discurso; mas, por outro lado, por considerar seu trabalho de “parteiro” uma missão que lhe fora outorgada pelo deus de Delfos, nada cobra ao praticar a maiêutica voltada para o conhecimento de si mesmo. Ao fazer sua defesa diante da Assembleia dos heliastas que o julga e finalmente o condena à morte — como descreve Platão na Apologia ou Defesa de Sócrates —, o filósofo-médico-parteiro mostra que aquela tarefa missionária possui alto sentido político e que é dessa forma que ele contribui para o bem da pólis (e, não, participando das discussões das assembleias). Ao efetivá-la, Sócrates não leva em conta os preconceitos vigentes na época e que se manifestam no próprio regime democrático. Assim, conforme relata Platão no Ménon, chega a mostrar que um escravo, adequadamente conduzido pela maiêutica, é capaz de resolver problemas matemáticos que pressupõem questões de ponta, na época (equivalência de áreas envolvendo os irracionais matemáticos — no caso, a raiz quadrada de 8), revelando compreensão e agilidade mental que superam as de seu amo. O resultado da ação docente de Sócrates não é apenas psíquico e pedagógico: é também político. Contém a denúncia do preconceito que, mesmo na democracia, inferioriza os escravos (do mesmo modo que as mulheres e os estrangeiros), recusando-lhes o direito de cidadania (preconceito que Aristóteles depois reforçará ao afirmar que o escravo é destituído de alma noética, justamente aquela que permite o conhecimento dos fins e dos significados últimos). O fundamento religioso da maiêutica socrática, desdobrando premissas pitagóricas (o mundo atual e a situação atual do homem como resultantes de queda e inversão que precisam ser corrigidas pelo Retorno e pela restauração da ordem de direito que não coincide com a situação de fato), justifica uma ação docente revolucionária, que aparece como subversiva das instituições políticas, pois pode inverter a própria relação senhor/escravo. Já os sofistas, embora dessacralizando a ação docente e colocando-a no nível dos trabalhos remunerados (o que tem sido muitas vezes interpretado como “avanço”), na verdade, ao cobrarem remuneração — o que parece abominável para Sócrates/Platão —, beneficiam apenas os que podem pagar por seus ensinamentos e acabam, de fato, por conferir aos já dotados de poder econômico outros poderes (decorrentes do uso persuasivo e encantador da palavra, o grande instrumento de poder político na democracia ateniense). Ao abrir o espaço do exercício e da docência filosóficos a escravos, mulheres e estrangeiros, o epicurismo amplia, em novo contexto histórico, a demolição de preconceitos e a ação libertária expressas pelo Sócrates do Ménon (e que já haviam inspirado os cínicos), mas agora sobre bases estritamente humanistas e não religiosas.
[3] A palavra enquanto phármakon — que tanto significa “veneno” quanto seu antídoto, “remédio” — aparece como um tema central dos Diálogos de Platão, frequentemente associado à discussão sobre a diferença entre a retórica sofística e a retórica filosófica (esta, como diz Sócrates no Fedro, pretendendo persuadir os próprios deuses). Enquanto a palavra seria utilizada pelos sofistas em função do prazer conferido ao auditório, bajulado num território regido pelo agradável, o phármakon filosófico é discurso terapêutico mas nem sempre imediatamente prazeroso. Desenvolve-se sob o princípio do bem, não do agradável, rege-se pelo senso de posologia e fundamenta-se numa metrética (arte da medida) que visa, em última instância, ao justo-em-si. Não procura necessariamente agradar ao auditor, interlocutor ou discípulo, mas conduzi-lo a curar-se. Nesse sentido, para Platão, a oposição filósofo/sofista reproduz a oposição remédio/veneno, médico/charlatão.
[4] P. Nizan, Les matérialistes de l’Antiquité, Paris, François Maspero, 1965, p. 47.
[5] Tito Lucrécio Caro, Da natureza, trad. Agostinho da Silva; v. Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio, São Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 97, col. Os Pensadores.
- Idem, ibidem, p. 63.
[6] Idem, ibidem, p. 63.
[7] M. Foucault, “O uso dos prazeres”, em História da sexualidade, Rio de Janeiro, Graal, 1984, v. II; J. A. Motta Pessanha, “Platão: as várias faces do amor”, em Os sentidos da paixão, vários autores, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
[8] Epicuro, Antologia de textos, trad. Agostinho da Silva; v. Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio, São Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 13, col. Os Pensadores.
[9] K. Marx, Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, trad. Edson Bini e Armandina Venâncio, São Paulo, Global, 1979.
[10] A. Cornu, Karl Marx et Friedrich Engels, Paris, puf, 1955, v. i, pp. 154 ss.; J. M. Gabaude, Le jeune Marx et le matérialisme antique, Toulouse, Éditions Privat, 1970; F. Markovits, Marx dans le Jardin d’Épicure, Paris, Les Éditions de Minuit, 1974; J. A. Motta Pessanha, “Marx e os atomistas gregos”, in Karl Marx, Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, São Paulo, Global, 1979.
[11] J. Brun, L’épicurisme, Paris, puf, 1959, pp. 6-7.
[12] Sobre Lucrécio e sua versão das ideias de Epicuro, além das obras gerais sobre o epicurismo, são particularmente importantes: P. Boyancé, Lucrèce, sa vie, son oeuvre, Paris, puf 1964; M. Conche, Lucrèce et l’expérience, Paris, Éditions Seghers, 1967; G. Cogniot, “Lucrèce, son oeuvre et sa philosophie”, introdução à edição de De la nature des choses, Paris, Éditions Sociales, 1954; A. J. Capelletti, Lucrécio: la filosofia como liberación, Caracas, Monte Avila Editores, 1987.
[13] Epicuro, op. cit., p. 17.
[14] A.-J. Festugière, Épicure et ses dieux, Paris, puf, 1946, p. 28.
[15] B. Farrington, A doutrina de Epicuro, Rio de Janeiro, Zahar, 1968, pp. 26-7.
[16] Diogenes Laércio, Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres, Livro X, 15, 16.
[17] P. Nizan, op. cit., p. 11.
[18] Platão, Fédon, 84 e-85 b, v. Platão, trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa, São Paulo, Abril Cultural, 1978, col. Os Pensadores.
[19] J. A. Motta Pessanha, “A água e o mel”, in O desejo, vários autores, São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
[20] N. W. DoWitt, Epicurus and his philosophy, University of Minnesota, 1954, apud B. Farrington, op. cit., p. 27.
[21] É, particularmente, o caso de Empédocles de Agrigento (século v a. C.), líder do movimento democrático em sua cidade, quem explica a constituição do cosmos atual pelas ações contrárias e complementares de dois princípios sobre as quatro raízes (Água, Ar, Terra e Fogo) de todas as coisas. Os princípios moventes, Philia e Neikos (Amor e Ódio), são responsáveis pela junção e separação das raízes. O duplo movimento de junção-separação estabelece uma tensão inerente ao cosmos e explica a existência dos diferentes seres, todos sujeitos aos dois impulsos simultâneos e eternos que, divergentes, tendem “heracliticamente” ao Um e ao Múltiplo. F. M. Cornford (From religion to philosophy, Nova York, Harper & Brothers Publishers, 1957) mostra que o modelo subjacente à cosmogonia e à cosmologia de Empédocles é inspirado no jogo das forças sociais e políticas, não constituindo, como às vezes se afirma, a antecipação de um modelo mecanicista.
[22] P. Petit, La civilisation hellénistique, Paris, puf, 1962, p. 5.
[23] Idem, ibidem, p. 8.
[24] Idem, ibidem, pp. 9-10.
[25] Hesíodo, Les travaux et les jours [Os trabalhos e os dias], 109-202 (mito das raças), Paris, Les Belles Lettres, 1951, pp. 90-3.
[26] Empédocles de Agrigento, “Purificações”, 117; v. Os pré-socráticos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 242, col. Os Pensadores.
[27] Para Empédocles, as quatro raízes — Água, Ar, Terra e Fogo — e os dois princípios motores — Philia e Neikos — são paritários, “todos são iguais e de mesma idade” (Empédocles de Agrigento, “Sobre a natureza”, 25, op. cit., p. 230). Nenhum antecede os demais ou é mais fundamental que os demais; a ph´ysis plural constitui uma espécie de assembleia regida pela isonomia.
[28] A dialética ascendente é uma das vertentes da dialética platônica, predominando na primeira fase da construção do platonismo. Toma como modelo o “método dos geômetras”, estabelecendo vínculos ascensionais entre condicionado e condicionante: entre hipóteses que se encadeiam e que, no limite, perseguem o não hipotético, o incondicionado. Do ponto de vista teorético, resulta na hipótese da existência das ideias, paradigmas eternos e incorpóreos copiados imperfeitamente pelas coisas sensíveis e corpóreas (hipótese por sua vez sustentada por outras hipóteses, como a da imortalidade da alma, da reminiscência etc.). Do ponto de vista erótico (O banquete), representa a busca da beleza absoluta, por meio de trajetória que parte dos belos corpos e progressivamente se dirige a objetos de beleza cada vez mais plena e estável (como os belos ofícios); essa é uma operação comandada por Eros, mediador insaciável e ardiloso que tece a sucessão de liames ascendentes. O ímpeto ascensional da dialética platônica é complementado pela vertente descendente da dialética, que se impõe principalmente na fase final do platonismo (ex. O sofista, Filebo). Então não se trata de afirmar a existência de paradigmas eternos e, acima deles, do Bem ou do Um, mas de estabelecer os vínculos essenciais entre as ideias e entre estas e as coisas, numa descese que parte dos “gêneros supremos” e retorna lógico-ontologicamente ao plano dos objetos concretos e singulares.
[29] Platão, Ménon 82 a-86 c, Paris, Les Belles Lettres, 1963. Nessa passagem, Sócrates exercita a maiêutica com o escravo de Ménon, propondo-lhe uma questão matemática referente à equivalência de áreas e que remete à consideração da irracionalidade da raiz de 8. Conduzido pelas perguntas hábeis de Sócrates, o escravo acaba encontrando a solução do problema, revelando inteligência que seu amo, Ménon, não mostrara na anterior discussão com Sócrates sobre a questão da virtude. Sócrates pretende, com esse exercício, demonstrar a doutrina da reminiscência: a alma conteria em si verdades apreendidas em existência anterior, supraterrena, quando contemplara as essências ao acompanhar o cortejo dos deuses (nem todas as almas conseguem contemplar adequadamente as ideias); essas verdades, adormecidas pela ligação da alma ao corpo, podem ser despertadas, se para isso se utiliza método adequado (a maiêutica, etapa construtiva da dialética socrática). Mas o exercício maiêutico com o escravo prova mais: demonstra a injustiça que pode se esconder sob a relação senhor/escravo. A organização sociopolítica cria uma situação apenas de fato, não de direito. E, em nome da justiça, essa situação pode e deve ser corrigida. O magistério filosófico existe, inclusive, para repor o justo no lugar usurpado pela provisória injustiça. A subversão socrática, de fundo pitagórico, possui, assim, conotação fortemente política e não apenas psicológica e religiosa. E é essa repercussão na ordem política instituída — e indiretamente denunciada como injusta — que certamente justifica a posterior condenação do filósofo à morte pela Assembleia de heliastas. Não é o que Platão sugere no Ménon, ao fazer irromper em cena, irado, após o exercício de libertação e valorização do escravo, a personagem Anitos, justamente um dos acusadores de Sócrates?
[30] Platão, La république (A república, Livro VI, última parte, Oeuvres complètes, trad. e notas Lén Robin, Paris, Gallimard, Bibliothèque de La Pléiade, 1950, pp. 1091-101).
[31] P. Nizan, op. cit., p. 14.
[32] Idem, ibidem, p. 13.
[33] Idem, ibidem, p. 12.
[34] P. Petit, op. cit., p. 101.
[35] Epicuro, op. cit., p. 19.
[36] Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro I, 39-40, p. 31.
[37] P. Nizan, op. cit., p. 40.
[38] Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro II, 15-35, p. 47.
[39] Epicuro, op. cit., p. 13.
[40] Idem, ibidem, p. 13.
[41] L. Robin, La pensée grecque et les origines de l’esprit scientifique, Paris, Éditions Albin Michel, 1948, pp. 388-90.
[42] Epicuro, op. cit., p. 14.
[43] Idem, ibidem, p. 14.
[44] Idem, ibidem, p. 15.
[45] Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro I, 16-33.
[46] Idem, ibidem, 161-1, p. 33.
[47] Como assinala J. Burnet (Early Greek philosophy, trad. franc. L’aurore de la philosophie grecque, Paris, Payot, 1952), o pensamento filosófico grego se desenvolve inicialmente criando variações sobre o tema da corporeidade. Mesmo os pitagóricos, em sua aritmogeometria, ao afirmarem que há um intervalo separando as unidades descontínuas que compõem a extensão, consideram que esse intervalo é preenchido pela corporeidade tênue do pneuma, que se introduz em todas as coisas devido à respiração do cosmos, que é vivo. Cria-se, desse modo, uma contradição que as aporias de Zenão de Eleia contra os partidários da multiplicidade e do movimento explicitam: contradição entre a afirmação da descontinuidade da extensão e essa continuidade do corpóreo reintroduzida pela natureza do intervalo. De fato, é o eleatismo que faz aflorar e, ao mesmo tempo, esgota o pressuposto, comum às diversas doutrinas físicas e cosmológicas anteriores, de que a corporeidade é a única categoria a explicar os mais variados seres e fenômenos. O princípio de unidade lógico-ontológico expresso por Parmênides — “o que é, é; o que não é, não é” — pode, assim, ser explicitado sob a forma: “o que é (corpóreo), é ou existe; o que não é (corpóreo), não é, não existe”. A grande contribuição do atomismo, já com Leucipo e Demócrito, está em tornar flexível esse princípio, pela afirmação da existência do vazio. Com os atomistas o princípio pode ser assim reformulado: “o que é (corpóreo), é ou existe (enquanto corpóreo: os átomos); o que não é (corpóreo), também é ou existe (enquanto outro, enquanto incorpóreo: o vazio)”. A solução platônica, contraposta ao mecanicismo da física atomista, segue noutra direção: também afirma a existência da alteridade como complemento lógico-ontológico indispensável à afirmação do “o que é” (o ser, o mesmo), mas coloca na incorporeidade das ideias ou essências a chave para a compreensão do corpóreo (as coisas sensíveis) e até para a sustentação ontológica desses objetos físicos (vistos como cópias imperfeitas das essências). Desse modo, em Platão o incorpóreo não é o vazio, a extensão que não oferece resistência e existe enquanto espaço onde os átomos se movimentam: é, ao contrário, o pleno, o essencialmente pleno, pois é “mundo das ideias”, conjunto hierarquizado de paradigmas puramente formais. Esse plano incorpóreo é regido pela finalidade, representada, em seu grau supremo, pelo Um que é também Belo e Bem. Há, assim, na incorporeidade das essências uma “resistência” de natureza lógico-ontológica, não física, que permite, inclusive, que nela se fundamente o justo, que deve nortear a ação ética e política. Em Epicuro, a sustentação da ética é feita sem se ultrapassar o plano da corporeidade: pela introdução, no seio do mecanicismo determinista, do clinamen.
[48] Epicuro, op. cit., p. 15.
[49] Platão, Fédon, 97 d-99 d (v. Platão, São Paulo, Abril Cultural, 1978, col. Os Pensadores).
[50] J. A. Motta Pessanha, “Marx e os atomistas gregos”, in K. Marx, Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, São Paulo, Global, 1979, pp. 7-8.
- Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro II, 216-24, p. 50.
[51] Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro II, 216-24, p. 50.
[52] . A tentativa de Demócrito parece movida pela necessidade de combater a proposta relativista de seu conterrâneo Protágoras, o grande sofista de Abdera. (Veja-se V. Brochard, “Protagoras et Démocrite”, in Études de philosophie ancienne et de philosophie moderne, Paris, J. Vrin, 1954, p. 23.)
[53] Epicuro, op. cit., p. 13.
[54] Idem, ibidem, pp. 13-4
[55] Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro III, 830-41, p. 73.
[56] O surgimento das primeiras teorias científico-filosóficas, na Grécia, a partir do século vi a.C., altera a concepção do divino, questionando o divino antropomórfico da tradição homérica e que perdura na religião oficial, de cunho político. Para os filósofos, a phy´sis é divina, o que levará, a partir sobretudo de Xenófanes de Colofão, à explícita rejeição das características atribuídas ao divino pela religião tradicional e pela mentalidade popular. (Veja-se, particularmente, W. Jaeger, La teologia de los primeros filósofos griegos, Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1952.)
[57] D. Babut, La religion des philosophes grecs, Paris, puf, 1974, pp. 149-50.
[58] Idem, ibidem, p. 159.
[59] A doutrina nos simulacros é desenvolvida por Lucrécio no Livro IV do De rerum natura. Eles são aí descritos “como películas arrancadas da superfície dos objetos e que voejam de um lado e de outro pelos ares; indo ao nosso encontro quando estamos acordados, aterram-nos o espírito, exatamente como em sonhos, quando muitas vezes contemplamos figuras espantosas e imagens daqueles que já não têm luz” (35-40, op. cit., p. 79). Veja-se, particularmente, G. Deleuze, “Lucrécio e o simulacro”, apêndice de Lógica do sentido, trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 273 ss.
[60] O coisismo é vício comum apontado por J.-P. Sartre nas mais diferentes concepções sobre a imagem, ao longo de séculos. Escreve: “Essa metafísica consiste em fazer da imagem uma cópia da coisa, existindo ela própria como uma coisa”. E acrescenta, mais adiante: “Uma bela ilustração desse coisismo ingênuo das imagens nos é fornecida pela teoria epicurista dos simulacros” (L’imagination, Paris, puf, 1956, pp. 4-5).
[61] D. Babut, op. cit., pp. 162-3. Seria interessante cotejar a concepção epicurista da perpétua renovação dos deuses com a concepção cartesiana de “criação continuada”.
[62] Idem, ibidem, p. 160.
[63] Idem, ibidem, p. 166.
[64] Idem, ibidem, p. 168.
[65] O alhures socrático-platônico é de outra natureza e está ligado à concepção de alma que, habitando sucessivas moradas corpóreas, retorna ao plano supraterrestre, como procuramos mostrar em “A água e o mel” (O desejo, São Paulo, Companhia das Letras, 1990).
[66] D. Babut, op. cit., pp. 149-50.
[67] Epicuro, op. cit., p. 20.
[68] Idem, ibidem, p. 17.
[69] Idem, ibidem, p. 17.
[70] Idem, ibidem, p. 17. O combate ao hedonismo cirenaico é central no pensamento de Epicuro, que busca insistentemente ressaltar a diferença entre seu hedonismo dirigido à conquista da ataraxia e os partidários da voluptas in motu. Veja-se, em particular, E. Bréhier, “Les cyrenaïques contre Épicure — remarques sur le Livre II du ‘De finibus bonorum’ de Cicéron” (in Études de philosophie antique, Paris, puf, 1855, pp. 179-84); G. Giannantoni, I cirenaici, Florença, Sansoni Editore, 1958.
[71] Epicuro, op. cit., p. 18.
[72] L. Robin, “Sur la conception épicurienne du progrès”, in La pensée hellénique des origines à Épicure, Paris, puf, 1967, p. 531.
[73] Idem, ibidem, p. 530.
[74] Epicuro, op. cit., p. 18.
[75] M. Foucault, op. cit.
[76] Epicuro, op. cit., p. 18.
[77] Idem, ibidem, p. 18.
[78] V. Brochard, “La morale d’Épicure”, in Études de philosophie ancienne et de philosophie moderne, Paris, J. Vrin, 1954, p. 297.
[79] Idem, ibidem, p. 296.
[80] Em Platão (Filebo), todo prazer é da alma; em Epicuro, ao contrário, mesmo os prazeres da alma são corpóreos (por exemplo, as sensações — corpóreas — rememoradas ou antecipadas). A posição platônica é coerente com sua concepção de desejo, associada à questão do prazer e da dor, como procuramos esclarecer em “A água e o mel” (em O desejo).
[81] Epicuro, op. cit., p. 19.
[82] Idem, ibidem, p. 20.
[83] J.-C. Fraisse, Philia — La notion d’amitié dans la philosophie antique, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1984, p. 288.
[84] Idem, ibidem, p. 20.
[85] J.-C. Fraisse, op. cit., p. 305.
[86] Epicuro, op. cit., p. 13.