2017

As duas mutações de Nietzsche

por Oswaldo Giacoia Junior

Resumo

O pensamento de Nietzsche não deveria ser conhecido somente pelo seu aspecto demolidor, que investe contra cultura, religião, política, estética, economia e educação, mas também pelo seu aspecto positivo e afirmativo; afinal, ele não é somente o pensador da morte de Deus e, com ela, da crise da razão na Modernidade. Ele é também autor de uma das mais sólidas filosofias da mutação, justamente porque é capaz de pensar a catástrofe até suas derradeiras consequências. E, nesse sentido, o curso da história se desvela, para ele, a partir de duas mutações que, de momentâneas, passaram a definitivas. A primeira aconteceu na Antiguidade e deu início a um longo processo de decadência. É ela a prescrição da cultura clássica grega, representada por Sócrates, para quem a lógica e a dialética deveriam solucionar as grandes questões filosóficas. Assim, uma grande mutação dá origem à cultura científica do Ocidente e se reflete na figura de Sócrates, o mestre supremo do “logos” científico. Por outro lado, com o aprofundamento dessa mutação, houve a confluência helenística entre a racionalidade socrática e a religiosidade cristã, que deu origem à catástrofe dos valores superiores, que, nessa condição, é também prenúncio da transvaloração de todos os valores, isto é, a supressão da moral cristã, hoje secularizada no idealismo da vontade de verdade. E assim, a catástrofe da razão, que constitui o autêntico significado do niilismo, entendido como lógica da decadência, corresponde também à aurora de uma nova mutação: a que se instituirá com o resgate da inocência do vir-a-ser, para além de toda culpa e necessidade de expiação. Nessa perspectiva, seria preciso repensar temas como o “além-do-homem”, a avaliação da gênese dos valores culturais dominantes e o imperativo de instituição de novos valores.


Digo-vos: é preciso ter ainda em si um caos para poder dar à luz uma estrela bailarina. Digo-vos: vós ainda tendes caos em vós.

FRIEDRICH NIETZSCHE[1]

O grande enigma de nosso tempo está na mutação, sobretudo aquela produzida pela extraordinária revolução científica em curso. Mas ela carece de pensamento. Se, na tentativa de contribuir para pensá-la, recorro à filosofia de Nietzsche, é porque nela encontro a lúcida percepção de que, no vácuo, não conseguimos fazer a experiência do vazio. Minha contribuição é um esforço para evitar a resignação intelectualmente demissionária. Paralelamente, ela se pretende uma recusa do triunfalismo compulsivo, da rendição ao encantamento tecnocientífico dominante.

Justifica-se o retorno a Nietzsche, com essa finalidade, pois ele mesmo julgava que a ciência sempre carece de justificação e de uma perspectiva de sentido – que não pode ser encontrada em seu próprio território. Antes seria necessário trilhar outro caminho de pensamento, que nos conduziria a uma experiência renovada da razão. Por isso, pareceu-me indispensável revisitar a denúncia mais radical até hoje empreendida contra a hybris moderna da racionalidade. Proponho-me a demonstrar que a denúncia dessa desmesura é um compromisso com caminhos possíveis da razão, em cujo percurso é necessário inventar – ao mesmo tempo inventar (erfinden) e descobrir (finden) o essencial daquilo que dá a pensar.

Desde as primeiras recepções de seu pensamento, Nietzsche tornou-se célebre como o filósofo da suspeita, devido ao ímpeto disruptivo de sua crítica. Nietzsche, o pensador da crise da razão: “Conheço a minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. Eu não sou um homem. Sou dinamite[2]”. Porém, há um lado positivo e afirmativo nessa filosofia, que sempre empalidece, quando contraposto aos ataques demolidores voltados contra todos os bastiões nos quais se refugia nossa cultura – da religião à política, da moral à economia, da educação à estética. A vertente solar de Nietzsche é haurida num elemento transitivo, portanto ligado à mutação – eis o que cumpre evidenciar que o filósofo do crepúsculo dos ídolos também persegue obstinadamente novas auroras ainda por brilhar. Tomo como ponto de partida o anúncio da morte de Deus. Nietzsche acredita ter enunciado nele a mais radical e profunda denúncia da pretensão totalitária, pela qual uma forma de racionalidade fez-se passar pela razão em geral. Com seu diagnóstico do niilismo europeu, ele problematiza o ocaso, a perda de sentido e cogência por parte dos supremos valores humanos que até hoje dominaram o curso do processo civilizatório no Ocidente; e, ao fazê-lo, proporcionaram também um horizonte de sentido para a história.

Contudo, é necessário atentar para a natureza especial desse diagnóstico: ele registra, a um tempo, crepúsculo e transição – o vazio dos valores é também uma ponte para a ultrapassagem do que se esgota e declina, liberação do espaço para novas aventuras, para a criação de novas tábuas de valor. O pensamento de Nietzsche é uma filosofia da mutação justamente porque é capaz de acompanhar a catástrofe até onde alcançam suas derradeiras consequências, e, nesse limite, o curso da história se determina sempre a partir de mutações que assentaram os trilhos e fixaram seus rumos.

Essa interpretação pode ser ilustrada em quase todo segmento da filosofia de Nietzsche. Um exemplo privilegiado seria a modificação que representou, na Grécia, a consolidação do logos teórico. Ao reconstruir genealogicamente os primórdios da cultura científica ocidental, desde a Antiguidade grega clássica (quando a problemática do niilismo ainda não se apresentava para o jovem Nietzsche em toda a envergadura conceitual que mais tarde adquiriria), o filósofo já detectara ambivalência dessa gêne- se: por um lado, nela se verifica o início de um ciclo histórico; por outro, porém, a aurora é apenas a contraface do ocaso.

Assim, a cultura trágico-artística da Grécia clássica declina, ao mesmo tempo em que se engendra a cultura socrático-alexandrina, cujo apogeu é atingido somente na modernidade. No fundo, um processo decadencial bifronte: de um lado, o declínio da cultura artística e do espírito trágico representados por Ésquilo e Sófocles – que sucumbiram ao ímpeto irre- sistível da dialética socrático-euripidiana. Por outro, Sócrates e Eurípides como figuras paradigmáticas da Auf klärung grega (da transição para a hegemonia cultural do logos científico), mas também para um declínio do tipo humano que nela tem matriz de configuração.

Sócrates é, para Nietzsche, o ícone do otimismo ínsito na essência da lógica e da dialética, o representante da fé incondicional na onipotência da razão que, guiada pelo fio condutor da causalidade, estaria em condições de decifrar todos os enigmas do universo – e não somente solucioná-los, mas também corrigi-los. Uma mutação epocal está na origem da cultura científica, de que Sócrates é o símbolo mais expressivo.

Quem alguma vez tornou visível para si como depois de Sócrates, o mistagogo da ciência, uma escola filosófica é substituída pela outra, como a onda pela onda; como, nos mais remotos domínios do mundo cultivado e como a autêntica tarefa para toda aptidão mais elevada, uma universalidade da ânsia de saber, nunca suspeitada, conduziu a ciência ao alto-mar, do qual, desde então, ela jamais pôde ser de novo completamente removida; como, primeiramente por meio dessa uni- versalidade, uma rede comum do pensamento foi estendida sobre o conjunto do globo terrestre – sim, com vistas à legalidade de um siste- ma solar inteiro; quem tornou presente para si mesmo tudo isso, junto com a surpreendente pirâmide de saber da atualidade – esse não pode se recusar a ver em Sócrates o ponto de inflexão e o vértice da assim chamada história universal[3].

Como consequência dessa mutação, a cultura helenística faz confluir a racionalidade socrática e a religiosidade cristã, generalizando os valores que, no socratismo-platonismo originários, eram ainda apenas potencialmente universais. Depois de inúmeros avatares e peripécias, a fusão entre helenismo e cristianismo adensou-se, graças a uma cumplicidade sempre velada entre a religiosidade cristã e a ciência, cujo desdobramento gerou a convulsão em que a modernidade hoje se abisma – a catástrofe dos valores que foram as supremas referências de nossa cultura.

A lógica e a dialética socráticas tinham sua raiz numa representação delirante (Wahnvorstellung), na pretensão desmesurada de sondar todos os abismos do ser, não somente para conhecê-los, mas também para corrigi-los. A força dessa ambição conduz a racionalidade científica a um incessante arrancar de véus (alethéia), impelindo a vontade de verdade sempre adiante, na direção de limites e fronteiras, numa obsessão da busca permanente, pois numa procura infinita reside seu verdadeiro interesse, muito mais que na descoberta de uma verdade episodicamente desvelada.

Lessing, o mais honesto dos homens teóricos, atreveu-se a declarar que a ele importava mais a busca da verdade do que ela mesma: com isso ficou a descoberto o segredo fundamental da verdade, para espanto, mais ainda, para irritação dos cientistas. Certamente, junto a esse co- nhecimento isolado encontra-se, como um excesso de honestidade, se não de soberba, uma profunda representação delirante, que pela primeira vez veio ao mundo na pessoa de Sócrates – aquela crença inabalável de que, seguindo o fio condutor da causalidade, o pensar alcança até os abismos mais profundos do ser, e que o pensar é capaz não somente de conhecer o ser, mas até de corrigi-lo[4].

E, no entanto, quando a consciência científica, aguilhoada pela poderosa ilusão que a anima, atinge afinal os limites para os quais desde sempre fora impelida, ela faz também a experiência do fracasso de seu otimismo. Fracasso que enseja nova mutação epocal, liberando a consciência para o acolhimento de seu outro. Este, que até então era considerado o negativo e o absolutamente adverso, revela-se como efetivo complemento – ao mesmo tempo em que vem à luz a ilusão em que estava imersa a racionalidade lógica. O homem teórico da cultura socrática constata, “para seu espanto, como a lógica, chegando a tais limites, enrosca-se sobre si mesma e finalmente morde a própria cauda[5]”.

Trata-se de um percurso trágico, aos olhos de Nietzsche: nele a racionalidade científica se encaminha, motu proprio, para a perempção. Pois uma cultura assentada no princípio da cientificidade tem de sucumbir tão logo começa a tornar-se ilógica, ou seja, quando recua perante as conclusões inevitáveis de seus próprios valores. Mas, como catástrofe trágica, isso é também prenúncio de outra mutação – é esse o significado da transvaloração dos valores em que culmina o projeto filosófico de Nietzsche. Pois o “sublime delírio metafísico foi acrescentado como instinto à ciência, e a conduz, sempre e sempre de novo, até aqueles limites nos quais ela tem de se converter em arte: que é o que propriamente se tem em vista nesse mecanismo[6]”. E assim, a experiência-limite da racionalidade tecnocientífica – é esse também o autêntico significado do niilismo europeu, entendido como lógica da decadência – é o prenúncio de nova mutação na epopeia humana de autoconstituição na história. Mutação de grande significado e proporções, que se prepara, desenvolve e consuma desde o núcleo fundamental da cultura científica, numa dialética que se desdobra em duas vertentes, culminando na autossupressão da vontade de verdade (veracidade), juntamente com a autossupressão da moralidade, a figura congênere da vontade de verdade.

A autossupressão da vontade de verdade, juntamente com a autossupressão da moral cristã, da qual a primeira é alma gêmea, consiste no resgate da inocência do vir a ser, numa ultrapassagem da perspectiva de culpa e necessidade de expiação. Assim, como fenômeno reativo e passivo, o niilismo pode ser considerado sintoma de regressão e impotência do espírito. Todavia, também o niilismo pode ser vivido e interpretado em outra chave, como niilismo ativo e afirmativo.

Niilismo como signo de intensificada potência do espírito: como niilis- mo ativo: ele pode ser um signo de fortaleza: a força do espírito pode estar tão acrescida, que para ela as metas até então vigentes (“con- vicções”, artigos de fé) se tornaram inadequadas. Com efeito, uma crença exprime universalmente a coerção de condições de existência, uma submissão à autoridade de relações sob as quais um ser prospera, cresce, ganha força… Por outro lado, um sinal de insuficiente fortaleza para também, produtivamente, instituir-se de novo uma meta, um por quê?, uma crença. Seu maximum de força relativa, ela o alcança como força violentamente ativa de destruição: como niilismo ativo[7].

Nessa ótica seria imensamente produtivo retomar o tema filosófico do Além-do-Homem, como meta a ser instituída por um niilismo ativo: em Nietzsche, jamais se afirma uma perspectiva unilateral, sua transvaloração é, antes de tudo, um esforço transitivo, como se poderia demonstrar em cada uma das mais características figuras de seu pensamento.

No presente trabalho, meu intuito não consiste numa rigorosa demonstração exaustiva dessa tese hermenêutica, mas na despretensiosa sugestão de um caminho que, na minha opinião, pode ser muito promissor e fecundo. Penso que a genealogia de Nietzsche nos convoca para uma reflexão sobre o que nos constitui essencialmente – ela põe em evidência que não é na estabilidade de uma natureza reconciliada, redimida e pacificada que se pode buscar aquilo que nos eleva, senão, antes de tudo, na constante impermanência do que sempre se retrai, do instável e efêmero, do que se debate e declina, do que se encontra em trânsito e, a cada vez, estertora. É nesse terreno fugidio da passagem e da travessia que o pen- samento crítico e vigilante libera algum conteúdo de verdade e esperança que mal se delineia na impalpável tessitura do tempo que escoa.

Essa postura filosófica está vinculada, na filosofia de Nietzsche, ao que há de mais profundo na compreensão metafísica do humano, em sua postura existencial em relação ao tempo e à finitude. Zaratustra dá, a esse respeito, o mais eloquente testemunho: depois de profundo recolhimento e solidão, quando enfim se decide a voltar para o convívio dos homens, Zaratustra leva a eles uma mensagem redentora; seu ”Evangelho”, a ser proclamado na praça do mercado, o berço da filosofia ocidental, é o enunciado de uma mutação: o Além–do-Homem a vir:

A grandeza do homem consiste em ser uma ponte e não uma meta: o que no homem se pode amar é que ele é um trânsito e um ocaso. Amo aqueles que não sabem viver de outro modo senão fundindo-se com seu ocaso, pois eles são os que transitam para o outro lado. Amo aqueles que, para fundir-se em seu ocaso e sacrificar-se, não buscam uma razão por detrás das estrelas: mas sacrificam-se à terra, para que esta chegue a ser alguma vez a ser do Além-do-Homem. Amo quem justifica os homens do futuro e redime os homens do passado: pois quer perecer por causa dos homens do presente[8].

A “Boa-Nova” contrasta as perspectivas mais sombrias e negativas de seu tempo: o panorama histórico da modernidade política como a era da mediocrização, da padronização uniforme e massiva, do aviltamento do homem – enfim, como o império dos últimos homens:

A degeneração global do homem […] essa degeneração e diminuição do homem até tornar-se o perfeito animal de rebanho (ou, como dizem [os socialistas, OGJ] o homem da “sociedade livre”), essa animalização do homem em bicho-anão de direitos e exigências iguais, é possível, não há dúvida[9].

O último homem é desprezível e repugnante porque simboliza o auto comprazimento do homem moderno, que se concebe como realização do ideal, como meta e a razão de ser, como o fim (em si) da história. Além disso, o último homem é desprezível porque com ele acaba o trânsito, congelado numa figura fixa, estável, inalterável: o último homem é o inventor da felicidade – ele alcançou, enfim, a meta e o fim último da vontade virtuosa, anelada por todos os sistemas éticos do Ocidente, o bem supre- mo. Com o último homem acaba a nostalgia do longínquo – mesquinho e pequeno como a pulga, ele é a espécie que vive por mais longo tempo, a flexibilidade que se adapta a cada nova exigência, cuja virtude suprema consiste na potência infinita de autoconservação a todo custo.

Para Nietzsche, porém, esse espectro é um fantasma a ser conjura- do: “Quem já refletiu nessa possibilidade [a possibilidade do reinado do último homem, OGJ] até o fim conhece um nojo a mais que os outros homens – e também, talvez, uma nova tarefa!…[10]”. O pressuposto dessa missão consiste em evitar a tentação de sucumbir ao feitiço da Medusa que nos captura tanto sob o efeito da grande compaixão pelo homem como por sua antítese e complemento, o grande desprezo pelo homem. “O que é de temer, o que tem efeito mais fatal do que qualquer fatalidade, não é o grande temor, mas o grande nojo ao homem; e também a grande compaixão pelo homem. Supondo que esses dois um dia se casassem, inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a “última vontade” do homem, sua vontade do nada, o niilismo[11].” Nada do que é humano nos seria estranho, tanto o que exalta quanto o que rebaixa e humilha – nada de humano é alheio à filosofia de Nietzsche, nenhum de seus cacos e deploráveis acasos e fragmentos.

Caminho entre os homens como entre fragmentos do futuro: daque- le futuro que eu contemplo. E todos os meus pensamentos e desejos tendem a pensar e reunir em unidade o que é fragmento e enigma e horrível acaso. E como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse também poeta e decifrador de enigmas e redentor do acaso! Re- dimir aqueles que passaram, e transformar todo o “foi” em um “assim eu o quis” – somente isso seria, para mim, redenção! Vontade – assim se chama o libertador e o portador da alegria: isso é o que vos ensinei, amigos meus! E agora aprendei também isto: a própria vontade é, no entanto, um prisioneiro[12].

A vontade, o libertador, é, ela mesma, cativa. Para Nietzsche, o cati- veiro reside na relação com o tempo, a pedra de toque de nossa existência, nosso supremo desafio e tentação: o tempo e o passar do tempo, nosso confronto angustiado com a finitude e a morte. Também quanto a essa percepção, são inequívocas as marcas, em Nietzsche, da experiência vivida com Arthur Schopenhauer, seu mestre e antípoda:

O tempo, a transitoriedade de todas as coisas nele e por meio dele […] O tempo é aquilo em que tudo, em todo instante, se torna nada em nossas mãos – pelo que o tempo perde todo verdadeiro valor […] O que foi não é mais; tanto quanto aquilo que nunca foi. Mas tudo o que é, no próximo instante, já terá sido. Por isso, o presente mais insignificante prevalece em efetividade (Wirklichkeit) sobre o mais significativo passa- do, razão pela qual o passado se relaciona com o presente como algo que é se relaciona ao nada […] A cada ocorrência de nossa vida o É pertence apenas por um instante; daí para a frente, é para sempre o foi. A cada noite nos tornamos mais pobres de um dia. Enlouqueceríamos na contemplação desse escoar de nosso lapso de tempo se, no mais profundo fundamento de nossa essência, não houvesse a consciência de que a nós pertence a nascente da eternidade, sempre inesgotável, de onde o tempo da vida pode se renovar para sempre[13].

Compreensão metafísica nascida de uma aversão, uma repugnância contra o tempo, contra a transitividade no tempo, contra a dimensão do “foi”. Por certo, ao tempo não pertence unicamente o passado, mas também o futuro e o presente. Mas Nietzsche – certamente sob o influxo de Schopenhauer –, quando pensa o tempo, o faz numa acepção especial, e isso um leitor arguto como Heidegger constata: Nietzsche não conside- ra o tempo um mesmo pacote em que o passado, o presente e o futuro estejam embalados em conjunto.

O tempo não é um curral em que estão embretados o “não mais agora”, o “agora ainda não” e o “agora”. Como fica “o tempo”? Com ele se dá de tal modo que ele anda [gehen]. E ele anda à medida que decorre. O andar do tempo é, de fato, um vir, mas um vir que anda na medida em que decorre. O vindouro do tempo nunca vem para permanecer, mas para passar. O vindouro do tempo desde sempre está marcado com a marca do transcorrer e do decorrer. Por isso, o que é temporal considera-se o passageiro simplesmente[14].

Portanto, não é o tempo, enquanto tal, que revela a impotência e a derrisão da vontade libertadora, mas, no tempo, a dimensão da passagem, o peso do que está feito – o fato consumado.

Assim se chama o ranger de dentes e a mais solitária tribulação da von- tade. Impotente contra o que está feito – a vontade é um mau especta- dor para todo passado. A vontade não pode querer para trás: que não possa quebrantar o tempo nem a voracidade do tempo – essa é a mais solitária tribulação da vontade […] “O que foi, foi” – assim se chama a pedra que (a vontade) não pode remover. E assim ela remove pedras por raiva e por aversão e vinga-se naquilo que não sente, do mesmo modo que ela, raiva e aversão[15].

Vingança é repugnância e aversão da vontade contra o tempo – eis também a essência da fraqueza e da impotência: a impossibilidade de con- frontar não meramente uma dimensão do tempo, um período ao lado dos outros dois, mas de suportar o que o tempo confere, dispensa e lega – o passar e o que passou e, ao legá-lo, congelando-o num “já era” inamovível. O tempo doa e concede apenas o que ele tem, e ele tem o que ele é – a saber, o decurso, o transcurso, a travessia.

A vingança é para Nietzsche a repugnância da vontade contra o tem- po. Isso agora diz: A vingança é a repugnância da vontade contra o decorrer e seu decorrido, contra o tempo e o seu “era”. A repugnância da vingança dirige-se contra o tempo à medida que deixa estar o de-corrido só e apenas enquanto passado, que se congela na rigidez desse algo definitivo… A repugnância da vingança permanece acorrentada a esse “era”; assim como em todo ódio também se oculta a mais abissal dependência daquilo de que o ódio, no fundo, constantemente deseja tornar-se independente, o que, porém, nunca pode, e pode cada vez menos, na medida em que odeia[16].

A vontade, inconsciente da própria impotência, vinga-se naquilo contra o que sucumbe sua força, contra o que sobre ela prevalece – o inamovível e definitivo, a que se acorrenta mais fortemente, a cada ato de vingança. A repugnância da vontade contra o escoar do tempo é também adversidade contra o imutável. Dela nasce todo Além-do-Mundo, toda necessidade de consolo metafísico.

Desse modo, a vontade, o libertador, converteu-se em algo que causa dor: e vinga-se, em tudo o que pode sofrer, de que não possa querer para trás. Isso, e só isso, é a própria vingança: a aversão da vontade con- tra o tempo e seu “foi”. O espírito de vingança: meus amigos, sobre isso é sobre o que melhor refletiram os homens até agora; e onde havia so- frimento, aí devia haver sempre castigo. O eterno no castigo chamado “existência” consiste nisto: em que também a existência tem de tornar a ser eternamente ação e culpa! A não ser que a vontade finalmente se redima a si mesma, e o querer se converta em não querer – mas vós conheceis, meus irmãos, essa canção de fábula da demência! Eu vos apartei de todas essas canções de fábula quando vos ensinei: “a vontade é um criador”. Todo “foi” é um fragmento, um enigma, um espantoso acaso – até que a vontade criadora acrescente: “mas eu o quis assim!” Até que a vontade criadora acrescente: “Mas eu o quero assim! Hei de querê-lo assim![17].

Redenção do acaso e do fragmentário, mesmo na matéria do tempo, um novo mosaico do humano, transmutar para não sucumbir à mediocridade – eis o desafio permanente de Nietzsche. Viver como se todo instante pudesse ser querido para sempre. A existência sub specie aeternitatis, esse é o sentido da metáfora transitiva da corda e da ponte que conduz para Além-do-Homem.

Falemos disso, sapientíssimos, ainda que seja desagradável. Calar é pior; todas as verdades silenciadas tornam-se venenosas. E que caia aos pedaços tudo aquilo que, em nossas verdades, possa cair em pedaços! Ainda há muitas casas a construir[18].

O projeto seria reunir, numa bela e harmoniosa totalidade, o que é disforme e fragmentário. Alçar-se a uma postura em relação ao tempo que transformasse o que até hoje foi um horroroso acaso em objeto de afirmação. Diante disso, desse resgate do passado humano, não acredito que Nietzsche recuasse quando do cumprimento integral das promes- sas da Auf klärung; mesmo que se efetivassem as previsões sombrias do cientista norte-americano Ray Kurzweil. Para ele, em 2045, ocorrerá o que “os biotecnólocos chamam de Singularidade Tecnológica, ou seja, o momento exato em que a inteligência artificial (a de computadores) igualaria a dos humanos[19]”.

Já em 1874, na época da Segunda Consideração Extemporânea, encontra- mos um antecedente irônico dessas premonições apocalípticas: contra um certo determinismo historicista, que era moeda corrente na época, Nietzsche escrevia:

Se tivésseis [sic] efetivamente razão em tua descrição de teu presente e de teu futuro – e ninguém desprezou tanto os dois, ninguém des- prezou com tanto nojo os dois quanto tu –, estou realmente pronto a concordar com a maioria sob a forma proposta por ti, de que na noite do próximo sábado, exatamente à meia-noite, teu mundo deve perecer; e o nosso decreto pode firmar: a partir de amanhã não haverá mais ne- nhum tempo e não será publicado mais nenhum jornal[20].

Retomo, à luz desse diagnóstico do presente, as perplexidades causadas pela extraordinária revolução científica em curso – uma revolução que ainda carece de pensamento. Tentando meditar sobre ela sem ver na ausência de respostas prontas apenas o vazio paralisante do niilismo, pen- so que a filosofia de Nietzsche nos incentiva a persistir na senda da auto- determinação. Sem obliteração, nem delírio de onipotência, mas evitando também a rendição compulsiva à produção técnico-científico-industrial da realidade. A esse respeito, seria ilustrativo retomar a recente polêmica de Zižek contra a previsão por Jürgen Habermas acerca do futuro da na- tureza humana, em particular no que diz respeito à instrumentalização tecnológica do genoma humano.

Nesse confronto está contemplada a perspectiva de uma mutação somente comparável àquela de que se originou o Homo sapiens. Refiro-

-me à superação do humano, em sua forma histórica até hoje conhecida, a transição para o transumano, para o pós-humano. Essa possibilidade se apresenta, da maneira mais desafiadora, com a engenharia genética e a nanotecnologia, com a disponibilização tecnocientífica do genoma, que transtorna completamente as modalidades tradicionais de autocompreen- são ética do ser humano. Diz Zižek:

A principal consequência dos avanços da biogenética seria o colapso da noção tradicional de natureza, e de natureza humana, em particular: ao conhecermos as regras de sua construção, os objetos naturais se tornam objetos disponíveis e manipuláveis. A natureza, humana e inumana, é assim “dessubstancializada”, privada de sua impenetrável densidade, daquilo que Heidegger chamou de “terra”. A biogenética, com sua re- dução da própria psique humana a um objeto de manipulação tecnoló- gica, é portanto efetivamente uma espécie de instância empírica do que Heidegger via como o “perigo” inerente à tecnologia moderna[21].

Perigo de quê? Perigo de que o próprio homem se torne objeto da técnica, de que a base somática da personalidade possa ser instrumentalizada para fins incompatíveis com os valores e princípios éticos que, até aqui, deram ao gênero humano os elementos essenciais de sua autocompreensão. É nesse sentido que se mobilizam as reservas de Jürgen Habermas. Para ele, as atuais pesquisas biotecnológicas com embriões e genoma humano poderiam abrir caminho para uma intervenção eugênica positiva, liberando o terreno para uma produção tecnológica da vida, para além dos limites restritivos, justificados pelo interesse terapêutico na identificação, prevenção e tratamento de patologias geneticamente causadas. Um dos maiores riscos seria a virtual “fabricação” do design genético humano e a possibilidade, por ela franqueada, de submeter o patrimônio biológico à lógica e à dinâmica de preferências narcisistas individuais, segundo os ditames de um mercado potencialmente florescente.

Não há, segundo Habermas, resposta normativa convincente para esses problemas, se recorrermos às garantias constitucionais de direitos humanos, ou a argumentos tradicionais, fundados na dignidade da pessoa. Tendo em vista as experiências de engenharia genética com embriões, Habermas afirma: “Sob as condições do pluralismo de cosmovisões, não podemos atribuir ‘desde o início’ ao embrião a ‘proteção absoluta de vida’ de que gozam pessoas como portadoras de direitos fundamentais[22]”. Por isso, o argumento contrário à instrumentalização da vida humana por uma eugenia liberal não deve ser buscado diretamente no âmbito jurisdicional, ou constitucional, da proteção legal assegurada às pessoas, mas num limiar bem mais recuado: no plano normativo dos sentimentos, intuições, convicções que subsidiam a moral racional dos direitos huma- nos. Essa dimensão, por assim dizer infrajurídica, seria a autocompreensão ética, pois que partilhada por todas as pessoas morais.

A partir dessa perspectiva impõe-se a pergunta sobre se a tecnicização da natureza humana altera a autocompreensão ética, própria da espé- cie, de tal modo que nós não podemos mais nos compreender como seres vivos, livres e moralmente iguais, orientados por normas e fun- damentos[23].

A imposição de limites morais ao projeto de eugenia liberal passa, aos olhos de Habermas, pelas pressuposições que afetam essencialmente o substrato ético de autocompreensão do ser humano como pessoa e como fim em si: a possibilidade de condução autônoma da vida, e as condições de um tratamento recíproco e igualitário.

A disposição arbitrária sobre a configuração genética de uma outra pes- soa fundaria uma relação interpessoal desconhecida até agora entre o gerador e o gerado, entre o modelo e a cópia genética. Essa relação de dependência diverge das conhecidas relações interpessoais na medida em que ela subtrai a possibilidade de transformação em uma relação entre iguais, entre posicionados normativamente iguais e tratados de modo igual. O designer fixa de modo irrevogável e assimétrico a figura inicial do seu produto – fundamentalmente sem deixar aberta a possi- bilidade de uma troca de papéis[24].

A conclusão de Habermas é que a irreversibilidade de uma decisão tomada por outrem sobre o nascimento de uma pessoa, com efeito contínuo sobre sua existência, anula a possibilidade de autocondução da existência: “a autocompreensão moral se modifica assim que a pessoa atribui o fun- damento natural de seu desenvolvimento a uma outra pessoa, porque ela encontra um propósito alheio na imagem das próprias disposições[25]”.

Desse modo, os direitos humanos estariam ligados a uma autocompreensão ética, própria da espécie, razão pela qual se torna legítima a exigência de subtrair à instrumentalização – por via jurídico-normativa – aquilo que a ciência e a tecnologia tornaram disponível[26]. A instrumentalização da vida humana pelas novas técnicas de pesquisa genética encontra sua barreira moral na possibilidade de rompimento do plano de simetria e reciprocidade exigido pelo status virtual de futuro participante no circuito do agir comunicativo, portanto de virtual membro de uma comunidade moral.

Contra essa identificação kantiana entre personalidade e autonomia dirige-se o essencial da crítica a Habermas por Slavoj Zižek.

Assim, basicamente, o que Habermas está dizendo é: embora hoje saibamos que nossas disposições dependem da insignificante contingência genética, vamos fingir e agir como se não fosse o caso, de modo a mantermos nosso sentido de dignidade e de autonomia – o paradoxo, aqui, é que a autonomia só pode ser mantida proibindo o acesso à cega contingência natural que nos determina, isto é, em última instância limitando a nossa autonomia e a liberdade de intervenção científica.

Não seria isso uma nova versão do antigo argumento conservador de que para mantermos nossa dignidade moral é melhor não saber certas coisas? Em suma, a lógica de Habermas é a seguinte: já que os resultados da ciência representam uma ameaça para nossa (noção pre- dominante de) autonomia e liberdade, devemos reprimir a ciência – o preço que pagamos por essa solução é a separação fetichista entre ciên- cia e ética (“Sei muito bem o que a ciência afirma; não obstante, para manter minha [aparência] de autonomia, prefiro ignorar e agir como se não soubesse”). Essa divisão nos impede de enfrentar a verdadeira pergunta: como essas novas condições nos forçam a transformar e reinventar as próprias noções de liberdade, autonomia e responsabilidade ética[27]?

Zižek posiciona-se, pois, em oposição diametral a Habermas. Contra ele, Zižek advoga a completa objetivação do genoma humano.

Ao contrário de Jürgen Habermas, deveríamos assim afirmar a neces- sidade ética de assumirmos a plena objetivação do genoma: essa redu- ção do meu ser substancial à fórmula insensível do genoma me força a atravessar o fantasmagórico étoffe du moi, o estofo de que são feitos nossos egos – e é somente através desse esforço que pode emergir a subjetividade propriamente dita[28].

Antevendo, talvez, uma objeção filosófica desse gênero, Habermas se antecipa em sua reação, sacando sobre o que há de mais profundo na consciência moral de sua geração:

Sem o [elemento, OGJ] propulsor dos sentimentos morais da obriga- ção e da culpa, da censura e do perdão, sem o [elemento, OGJ] liber- tador do respeito moral, sem o [elemento, OGJ] opressivo do fracasso moral, sem a “amistosidade” de um relacionamento civilizado com o conflito e a contradição, teríamos de experimentar – assim pensamos nós ainda hoje – como insuportável o mundo povoado pelos homens. A vida num vácuo moral, em uma forma de vida que não conheceria mais sequer o cinismo moral, não seria digna de ser vivida. Quando as figuras do mundo religiosas e metafísicas perderam sua cogência universal, nós (ou a maioria de nós), na transição para o tolerado plu- ralismo das cosmovisões, não nos tornamos nem cínicos frios, nem relativistas indiferentes, nós que nos mantivemos aferrados ao código binário dos juízos morais verdadeiros e falsos – e quisemos nos man- ter aferrados a eles[29].

Se compelido a intervir nesse debate, penso que Nietzsche acompa- nharia o passo que leva ao atravessamento do fantasmático estofo do ego, para atingir um novo vir a ser da subjetividade. Em Além do bem e do mal, escreve ele: “A medida nos é estranha, confessemos a nós mesmos; a co- michão que sentimos é a do infinito, desmedido como um ginete sobre o corcel em disparada, deixamos cair as rédeas ante o infinito, nós, homens modernos, semibárbaros; e temos a nossa bem-aventurança ali onde mais estamos – em perigo[30]”. Sem dúvida, atravessar esse estofo genômico do ego é também tentar permanecer e firmar-se num chão que ainda treme. Com efeito, séculos antes dessa celeuma, Nietzsche já desestabilizara a noção tradicional de subjetividade, fundada na unidade simples da consciência. Para ele, o sujeito seria uma estrutura social de impulsos e afetos. Zaratustra já tematizara a oposição entre a grande razão do corpo e a pequena razão da alma ou do espírito.

Ponto de partida: do corpo e da fisiologia: por quê? Obtemos a repre- sentação adequada do modo de nossa unidade subjetiva, a saber, como governantes à frente de uma comunidade – não como “almas” ou “for- ças vitais”; assim também da dependência dos governantes em rela- ção aos governados e às condições de hierarquia e divisão de trabalho, como possibilitação simultânea das singularidades e do todo. Do mes- mo modo, ao “sujeito” não pertence a eternidade; também justamente no obedecer e comandar expressa-se o combate, e à vida pertence um cambiante determinar de fronteiras de poder. Às condições de acordo com as quais pode haver governo pertence alguma incerteza em que deve ser mantido o governante a respeito das disposições particulares e até das perturbações da comunidade. Em síntese: alcançamos uma apreciação também para o não saber, para o falsear, para o perspectivo. O mais importante, porém, é que entendamos o comandante e seus subalternos como sendo de idêntica espécie, todos sensíveis, volitivos, pensantes. O questionar direto do sujeito sobre si mesmo e toda autor- reflexão do espírito encontram nisso seus perigos: a saber, que o inter- pretar-se falsamente poderia ser útil e importante para sua atividade. Por isso, questionamos o corpo e recusamos o testemunho dos senti- dos aguçados: examinamos, por assim dizer, se os próprios subalternos podem entrar em contato conoscob[31].

Nietzsche não pensa, com isso, uma produção serial do humano, mas um mergulho no misterioso ego-corporal, mais promissor e fecundo do que a tradicional autoinspeção da alma, ou da mente. Seria necessário retomar a perspectiva de um “corpo cósmico”, cujas virtualidades permanecem ainda inexploradas. Desse modo, poderíamos indicar à vida confusa e claudicante dos fatos um horizonte promissor, uma potência conquistada sobre a compulsão tecnocientífica de produção e consumo da vida, pois, desde Spinoza, somos forçados a confessar nossa ignorância sobre o que pode o corpo.

O corpo humano, no qual torna-se de novo vivo e corpóreo o passado inteiro, remoto e próximo, de todo vir a ser orgânico; através do qual, por sobre o qual, para além do qual, parece fluir uma imensa e inson-dável corrente: o corpo é um pensamento mais admirável do que a antiga “alma”[32].

O corpo não é mero objeto disponível, mas “um pensamento admirável”; resgatado da fabricação técnica, ele detém a insondável natureza labiríntica que conduz aos percursos mais abissais do universo – um feixe proteiforme de vontades de poder. É certo que esse labirinto encerra também o perigo de mais de um Minotauro. Mas no elemento do perigo, do terreno que ainda treme, temos nossa tentação e felicidade. Para Nietzsche, o corpo não pode ser adequadamente tomado apenas no registro físico-somático, ou biológico, mas tem a impalpável concretude de um campo de forças, de uma superfície de múltiplos cruzamentos. O corpo fala a linguagem dos sinais – sua natureza é uma semiose infinita. Com todo o desenvolvimento de nossa ciência, o certo é que ainda não sabemos o que pode um corpo. E, num certo sentido, talvez jamais venhamos a sabê-lo – pois o corpo ultrapassa infinitamente o orgulho de nossa razão, ele é um “prodígio dos prodígios”, o corpo é o “ominoso” paroxal.

O mais espantoso é antes o corpo; não se pode admirar até o fim como o corpo humano se tornou possível: como uma tal imensa reunião de seres vivos, cada um dependente, submetido e, todavia, em certo sen- tido, de novo comandando e agindo por vontade própria; como pode, enquanto totalidade, viver, crescer e subsistir por um lapso de tempo: e tudo isso, visivelmente, não ocorre em virtude da consciência. Para esse “milagre dos milagres”, a consciência é justamente apenas uma “ferramenta” e nada mais, assim como o entendimento, o estômago, são uma ferramenta […] Todo esse fenômeno “corpo”, considerado segundo uma medida intelectual, é tão superior à nossa consciência, ao nosso “espírito”, nosso pensar, sentir, querer conscientes, como a álgebra o é em relação à soma de um mais um.[33]

O corpo tem, para Nietzsche, uma dignidade ontológica que o preserva de insensatos arroubos metafísicos. Ele deve ser entendido como uma linha de desenvolvimento do orgânico, uma pista seguida pela vida em seu conjunto – um traço de memória cósmica que, para nós, permanece familiar.

O mundo visto, sentido, interpretado de tal modo que a vida orgânica se conserva nessa perspectiva de interpretação. O homem não é apenas um indivíduo, mas totalidade do orgânico continuando a viver numa determinada linha. Que ele se conserve – com isso fica demonstrado que uma espécie de interpretação (ainda que sempre alargada) tam- bém subsistiu, que o sistema de interpretação não mudoub[34].

Compreendamos, assim, de maneira apropriada, a importância do novo ponto de partida: como unidade de organização, o corpo abre a perspectiva para a compreensão da totalidade do orgânico, pois o homem não é senão essa mesma totalidade continuando a viver numa determinada direção.

Essa profundidade vulcânica deve apurar os ouvidos para a exortação de Zaratustra: o corpo saudável fala do sentido da terra.

Enfermos e moribundos eram os que desprezaram o corpo e a ter- ra e inventaram as coisas celestes e as gotas de sangue redentoras: mas ainda mesmo esses doces e sombrios venenos, eles os tomaram do corpo e da terra! Quiseram escapar de sua miséria, e as estrelas eram para eles demasiadamente distantes. Por isso suspiraram: “Oh, se houvesse caminhos celestes para nos deslizarmos furtivamente em um outro ser e em outra felicidade!” – então inventaram para si seus caminhos furtivos e suas pequenas beberagens de sangue! Então esses ingratos se imaginaram subtraídos de seu corpo e dessa terra. Entre- tanto, a quem deviam eles as convulsões e as delícias de seu êxtase? A seu corpo e a esta terra. Zaratustra é indulgente com os enfermos. Em verdade, ele não se zanga com seus modos de consolo e ingratidão. Que eles possam se tornar convalescentes e superadores e criar para si um corpo superior[35].

Criar um corpo superior, ensinar aos homens uma nova vontade, fiel ao do sentido da terra, que os capacite para querer como próprio o mesmo caminho que, até agora, foi percorrido às cegas. Assumir como um caminho da vontade, e não se evadir ignominiosamente dele, como o fazem os impotentes e os agonizantes. Em nossos dias, essa palavra tem o peso de um legado prodigioso – uma exortação para criar um corpo superior e, a partir da própria vontade, transfigurar e redimir a physis, também no que diz respeito ao próprio corpo.

À sombra do niilismo extremo, toda dimensão significativa – inscrita na natureza ou na história – mostra-se dependente de uma vontade humana. Teríamos alcançado, por fim, a condição de tomar em nossas mãos o nosso e o futuro, e criar um corpo superior, talvez o casulo do Além-do-Homem. Para tanto, convém renunciar à tentação do artefato, e repensar, em outro registro, o corpo (a grande razão) e a pequena razão da mente. Importa perder a inocência diante da fantasia de mobilização total dos últimos homens – esses demiurgos de uma felicidade degradada.

Eis aqui uma perspectiva de sentido em que a mutação permanente – como tarefa de transvaloração, como transfiguração do humano e autossuperação que escapa à fúria desencadeada da reificação – pode ainda ser acolhida como uma meta digna de ser pensada. Se toda compulsão é patológica, a nossa nos conduz à “administração econômica global de interesses e rendimentos” – não ao autocontrole e à redenção. Acredito que Nietzsche pensou a mutação num registro de emancipação autêntica, a dos espíritos livres, muito livres. O eterno retorno da reprodução tecnológica e narcisista ficaria aquém das possibilidades atualmente liberadas – muito aquém do que nosso ofuscamento maravilhado pode discernir. Nosso derrisório delírio de onipotência nos mantém atados ao destino deplorável de herdeiros autocomplacentes de um corpo degradado.

Para Nietzsche, seria necessário, pois, pensar o agir tecnologicamente mediado e potencializado do homo faber sob uma nova ótica: não mais como soberano e autárquico, mas como dirigido pela natureza e pela constituição enfim conquistada pelo corpo, na sequência de eônios de mutação – inserido em múltiplas relações de poder, sedimentadas na his- tória; e não foi propriamente a racionalidade técnica que o produziu, mas seu multiforme e infinito poder de variação.

O corpo, com suas virtualidades, é o sintoma da trajetória humana no mundo, não um fim em si, antes um ponto de passagem.

No inteiro desenvolvimento do espírito, trata-se talvez do corpo: ele é história sensível de que um corpo superior se configura. O orgânico ascen- de para degraus ainda superiores. Nossa ânsia de conhecimento da na- tureza é um meio pelo qual o corpo quer se aperfeiçoar. Ou antes: são feitos milhares de experimentos, para modificar a nutrição, habitação, modos de vida do corpo; a consciência e as avaliações, todas as espécies de prazer e desprazer são signos dessas modificações e experimentos. Por fim, não se trata, de modo algum, do homem: ele deve ser superado[36].

Tudo se passa, pois, como se a superação do niilismo exigisse a convocação do pensamento, o reencontro de uma razão autocrítica e autorreflexiva, permanentemente renovada no diálogo constante com o legado espiritual da tradição. Muito mais que no recolhimento silencioso, e reverente, a responsabilidade do pensamento se afirma confrontando as grandiloquentes palavras de ordem contemporâneas, seus programas de antropotécnica, como se neles residisse uma perspectiva emancipatória.

Contra a banalização do humano, em corações e mentes, afirma-se a mutação pensada por Nietzsche – como pensamento enraizado no corpo (sempre entendido no sentido de “grande razão”) essa atitude o considera um delicado, hiperacurado e plurifacetado sensório do mundo, como uma

[…] criatura repleta de contradições [que] tem, porém, em seu ser (Wesen) um grande método de conhecimento: ele sente muitos prós e contras – ele se eleva à justiça – ao discernimento para além do avaliar em bem e mal. O homem mais sábio seria o mais rico em contradições, o que tem como que órgãos do tato para todas as espécies de homem: e, em meio a isso, seus grandes instantes de grandiosa consonância – o ele- vado acaso também em nós! Uma espécie de movimento planetário[37].

Mutação que se pode vislumbrar, a meu ver, no extremo oposto do açodamento tecnológico, sociológico, antropológico, psicológico, logístico, nos quais a reação assustada costuma refugiar nossa mente. Em Nietzsche, ao contrário, o corpo atesta que, no homem, o orgânico em seu conjunto prossegue sua escalada infinita, num movimento planetário. Dele o homem faz parte como o “animal não fixado”, o que realiza experimentos consigo mesmo, o mais instável e sofredor dos animais. Ominoso, o corpo se abre em campo de experiências e nos ensina, por derradeiro, que a conquista da maioridade não culmina na marcha triunfal de um otimismo míope. Ao contrário, essa libertação nos situaria na modesta condição de perplexidade, de quem desperta de um pesadelo, aberto no- vamente para um “sentimento cósmico”. O que pode um corpo?

A pergunta de Spinoza permanece, para Nietzsche, sem resposta. Jamais saberemos integralmente o que pode o corpo, pois o corpo ainda é o absoluto paradoxo. Felizmente mesmo hoje, quando ele se nos ofere- ce como um caminho para atravessar o arcaico estofo de nossos “egos”.

  1. Friedrich Nietzsche, Also Sprach Zarathustra [Assim Falou Zaratustra], Prefácio, § 5. Em: G. Colli e M. Montinari (ed.), Sämtliche Werke, Kritische Studienausgabe (KSA), Berlim/Nova York/Munique: De Gruyter, DTV, 1980, vol. 4, p. 19. Quando não houver indicação em contrário, as traduções são de responsabilidade do autor [N. E.].
  2. Friedrich Nietzsche, Ecce Homo. Por que sou um destino, 1, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Com- panhia das Letras, 1995, p. 109.
  3. Friedrich Nietzsche, Die Geburt der Tragödie, § 15. Em: G. Colli e M. Montinari (ed.), Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), Berlim/Nova York/Munique: De Gruyter, DTV, 1980, vol. 1. pp. 99 ss.
  4. Ibidem, p. 99.
  5. Ibidem, p. 101.
  6. Ibidem, p. 101.
  7. Friedrich Nietzsche, Fragmento póstumo, n. 9 [35]. Em: KSA, op. cit., vol. 12, pp. 350 ss.
  8. Friedrich Nietzsche, Also Sprach Zarathustra [Assim Falou Zaratustra], Prólogo, § 4. Em: KSA, op. cit., pp. 16 ss.
  9. Idem, Além do bem e do mal, Aforismo n. 203, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 92.
  10. Ibidem.
  11. Idem, Genealogia da moral, III, 14, trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998,

    p. 111.

  12. Idem, Also Sprach Zarathustra [Assim falou Zaratustra], II: Da Redenção. Em: KSA, op. cit., pp. 177 ss.
  13. Arthur Schopenhauer, Parerga und Paralipomena II, Capítulo xI, 142 e 143: Acréscimos à doutrina da na- didade da vontade. Em: Schopenhauer, A. Werke. Ed. Wofgang Frhr. Von Löhneysen, Frankfurt/M: Suhrkamp, 1986, vol. V, pp. 334 ss.
  14. Martin Heidegger, Que significa pensar?, trad. Paulo R. Schneider. Em: Schneider, P. R., O outro pensar, Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p. 178.
  15. Friedrich Nietzsche, Also Sprach Zarathustra [Assim falou Zaratustra] II: Da Redenção. Em: KSA, op. cit.,

    pp. 177 ss.

  16. Martin Heidegger, Que significa pensar?, trad. Paulo R. Schneider. Em: P. R. Schneider, O outro pensar,

    Ijuí: Editora Unijuí, 2005, pp. 182 ss. Tradução ligeiramente modificada.

  17. Friedrich Nietzsche, Also Sprach Zarathustra [Assim Falou Zaratustra] II: Da Redenção. Em: KSA, op. cit.,

    pp. 177 ss.

  18. Ibidem, pp. 146 ss.
  19. O Estado de São Paulo. Caderno 2 Cultura, 19 ago. 2007, p. D6.
  20. Friedrich Nietzsche, Segunda Consideração Intempestiva. Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida. Ix, trad. Marco A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 200b, p. 83
  21. Slavoj Zizek, A falha da bioética, Caderno Mais!, Folha de S.Paulo, 22 jun. 200b,
  22. Ibidem, p. p. 78.
  23. Ibidemp. p. 74.
  24. Jürgen Habermas, A pessoa clonada não seria um caso de dano ao direito civil. Em: A constelação pós-nacio- nal: ensaios políticos, trad. Márcio Seligmann-Silva, São Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 218.
  25. Ibidem, pp. 218 ss.
  26. Ibidem, p. 46.
  27. Slavoj Žižek, op. cit., p. 5.
  28. Ibidem, p. 8.
  29. Jürgen Habermas, Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik?, Frank- furt/M: Suhrkamp Verlag, 2001, pp. 124 ss.
  30. Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, Aforismo n. 224, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 117.
  31. Friedrich Nietzsche, Fragmento póstumo, ago.-set. 1885, n. 40 [21]. Em: KSA, op. cit., vol. 11, pp. 638 ss.
  32. Friedrich Nietzsche, Fragmento póstumo, jun.-jul. 1885, n. 36 [35]. Em: KSA, op. cit., vol. 11, p. 565.
  33. Curiosamente, o fragmento continua da seguinte maneira: “E como se poderia deixar de falar moralmente! – Assim cavaqueando, entreguei-me sem freio ao meu impulso pedagógico, pois eu estava feliz em ter alguém que suportasse ouvir-me. Todavia, justamente nesse ponto Ariadne não suportou mais – a história ocorreu, com efeito, durante minha primeira temporada em Naxos: – ‘mas, meu senhor, disse ela, o senhor fala em suíno-alemão!’ – ‘Alemão, respondi bem-humorado, simplesmente alemão! Deixai fora o suíno, minha deusa! Vós avaliais por baixo a dificuldade de dizer coisas refinadas em alemão.’ – ‘Coisas refinadas!’– gritou Ariadne espantada; mas isso foi apenas positivismo! Filosofia de focinheira! Mingau de conceitos e esterco de cem filosofias! O que se quer ainda daí para diante!’– Entrementes, ela brincava impacientemente com o célebre fio, que uma vez guiou seu Teseu através do labirinto. Revelou-se, portanto, que Ariadne estava atrasada em dois milênios em sua formação filosófica.” Friedrich Nietzsche, Fragmento póstumo, jun.-jul. 1885, n. 37 [4]. Em: KSA, op. cit., vol. 11, pp. 576 ss.
  34. Friedrich Nietzsche, Fragmento póstumo, fim de 1886-primavera de 1887, n. 7 [2]. Em: KSA. op. cit. vol. 12, pp. 251 ss.
  35. Friedrich Nietzsche, Also Sprach Zarathustra [Assim falou Zaratustra] I:.Von den Hinterweltlern (Dos Trans- mundanos). Em: KSA. op. cit., vol. 4, pp. 35 ss.
  36. Friedrich Nietzsche, Fragmento póstumo, inverno de 188b-1884, n. 24 [16]. Em: KSA, vol. 10, pp. 653 ss.
  37. Friedrich Nietzsche, Fragmento póstumo, verão-outono de 1884, n. 26 [119]. Em: KSA, vol. 11, pp. 181 ss.

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