Descontrole do tempo histórico e banalização da experiência
Resumo
“Nunca tivemos tantas mudanças e nunca fomos tão incapazes de mudar.” Como compreender tal contradição e o sentido dessa afirmação se vivemos num mundo impulsionado por inovações diárias? As sociedades contemporâneas estabeleceram duas formas de relação que passam habitualmente despercebidas por seus indivíduos: sim, intervimos na história, nas suas dimensões coletiva e pessoal, mas tendemos a ser sujeitos meramente “operantes”, sem conferir significado às coisas. Para agir de fato, seria preciso, segundo Sartre, que interiorizássemos as mudanças exteriores para depois externá-las pela mediação da subjetividade, mas essa operação hoje é rara porque, entre outras coisas, somos bombardeados por mudanças que “por se terem rotinizado, deslizam na superfície do nosso Eu e na superfície das coisas, sem penetrá-las”, e quando é assim, enfrentamos a “perda da própria condição de sujeito”, somos vedados de agir politicamente. Mas tais perdas têm uma trajetória calcada na crise das crenças e das ideologias e dos fins derradeiros do homem e de sua história que ambas encarram. Primeiro, disseminou-se o conceito de “mundo dessacralizado e, por isso, destituído de ordem imanente ou transcendente”; os iluministas preconizavam então o triunfo derradeiro da civilização que se concretizaria no “estágio de autonomia racional e de maioridade moral” (Kant); depois, Marx nos permitiria duas leituras de sua obra, sendo a segunda de cunho teleológico: o processo dialético sem fim, tendo a totalidade como reguladora, ou então as oposições que levam a uma totalidade. Ainda no século XIX, estivemos (e a ainda estamos) sob o impacto de muitas doutrinas, especialmente o positivismo, que fez do progresso um “messianismo secularizado” (Löwith). No século XX, o niilismo encontrou, portanto, espaço nos vazios existenciais. Até mesmo a ideia positivista de progresso não é mais hoje vista como “perspectiva de salvação”. Ao contrário, predomina a suspeita diante da aliança do poder com a tecnologia e a constante ameaça de destruição em massa (da ecologia e, mais diretamente, pelo uso de arsenais bélicos). Em condições tão desfavoráveis para a afirmação do sujeito enquanto tal, para se exercer alguma liberdade de fato, é preciso resistir às pressões objetivas ou construir uma subjetividade singular. É possível, mas trata-se de uma “liberdade difícil”.
A questão que deverá orientar as observações que faremos aqui será a do significado das mutações. Ela precisa ser tratada nas dimensões objetiva e subjetiva, isto é, no plano das mudanças que temos de enfrentar, às quais temos de nos adaptar, contra as quais temos de lutar, e também aquelas que entendemos dever apressar. A essa história que sofremos corresponde aquela que fazemos: tudo que desejamos mudar em nós e na realidade que nos cerca, bem como os meios que mobilizamos para fazê-lo.
Esquematicamente a mudança pode ser vista de dois pontos de vista. No plano da história objetiva, podemos entender que haveria fundamentalmente um processo de transformação em relação ao qual todas as formas históricas seriam provisórias e passageiras, e todas as realizações seriam instáveis, porque a vida histórica se definiria mais pela transformação enquanto processo do que pela simples sucessão de formas estáveis. Algo do mesmo gênero ocorreria também no plano da história pessoal: a existência seria um processo de transformação no qual o sujeito estaria sempre se tornando outro, sem nunca atingir a identidade estável de si mesmo. Outra maneira de entender a mudança é considerá-la meio para atingir um determinado patamar de realidade natural ou histórica tal que já não houvesse mais necessidade de nenhuma modificação. No plano objetivo, a história, passando por várias etapas que poderiam ser localizadas ao longo de uma trajetória de progresso, teria atingido uma meta racional definida de tal modo que já não haveria sentido na continuidade do processo, pelo menos no que diz respeito a uma continuidade transformadora. Do mesmo modo o indivíduo, após um percurso marcado pela provisoriedade das etapas, atingiria um patamar de estabilidade no qual se conservaria, usufruindo, por dizer assim, a identidade conquistada, até sentir os efeitos do decréscimo da vida.
A segunda dentre as concepções de mudança que formulamos é a que está presente no Iluminismo e que ainda configura em parte o que entendemos por transformação histórica. A humanidade teria passado por várias fases de desenvolvimento racional, correspondente a um processo de amadurecimento histórico, e finalmente teria chegado – no entender de Kant, por exemplo – a um estágio de autonomia racional e de maioridade moral, a que a teria levado o progresso, de modo que doravante se trataria apenas de recolher os frutos desse desenvolvimento, em termos científicos, técnicos e éticos. O indivíduo, homologamente, teria também atingido, em princípio, um grau de suficiência racional e de autonomia moral compatível com os tempos, restando apenas atualizar potencialidades. Para o Iluminismo, as mudanças históricas são guiadas por uma teleologia: o critério de progresso preside o desenvolvimento histórico e reflete inteiramente o percurso da razão na direção de sua autonomia. Ao atingir a meta da razão esclarecida, o processo histórico faz sentido; ao mesmo tempo, é a razão esclarecida que dá sentido a esse processo. E, mesmo que não se possa afirmar o final da história, pode-se supor que o significado do transcurso (e da mudança) já não é essencialmente constitutivo, isto é, já não incide da mesma maneira na formação do gênero humano.
Quanto à primeira concepção mencionada, pode-se duvidar de que alguma vez ela tenha sido inteiramente afirmada no âmbito das grandes teorias da história. Com efeito, se por um lado devemos reconhecer em Hegel a predominância do processo sobre a substancialidade do real, e se, nesse sentido, o movimento de transformação é guindado a uma posição primordial na compreensão da realidade, por outro também é preciso assinalar que a teleologia do processo e a ideia de absoluto tendem a fazer do movimento um meio para se atingir uma estabilidade racionalmente desejável. A realidade é vista como processo lógico e histórico; mas a lógica do movimento histórico faz do processo apenas um meio de constituir a realidade, tanto fenomenologicamente quanto no seu sentido absoluto. Essa espécie de ambiguidade entre realidade substancial e processo deriva da inevitável tendência do intelecto para a identificação de coisas e formas como finalidades do processo, seja no âmbito do percurso, seja na concepção de um fim do processo, perspectiva que, de alguma maneira, reencontra a anterior, em que o sentido do movimento era derivado da relativa imobilidade a que ele tendia.
A leitura de Marx também está comprometida com essas possibilidades entre as quais a interpretação oscila: pode-se entender que o movimento dialético próprio do materialismo histórico corresponda a um processo de totalização sem fim em que a ideia de totalidade apareça apenas como reguladora; ou pode-se afirmar que a lógica das oposições históricas leva a uma totalidade real em que a história teria sido realizada. Correspondentemente, o próprio indivíduo pode ser visto como uma particularidade acabada, fruto das determinações gerais, ou como uma singularidade que incessantemente se faz a partir da incorporação concreta do universal. A decisão entre essas duas vias de interpretação passa pela visão do movimento histórico ou como meio de se atingir a realidade ou como a própria realidade em seu sentido processual e movente.
Mas quando falamos de mudanças históricas falamos de experiência histórica. A temporalidade histórica e o ritmo de mudanças que lhe corresponde podem fazer com que se viva mais ou menos intensamente essa experiência. Numa época em que as comunicações sejam mais lentas, em que a mobilidade social seja exceção, em que as identidades sejam mais cristalizadas e em que o mundo seja visto como organizado do ponto de vista da eternidade, o ritmo da experiência histórica corresponde a um universo humano dotado de necessidade. Quando essas características se invertem, a contingência passa a ocupar uma posição mais significativa no conjunto da vida, e a experiência histórica já não pode contar com apoios relativamente sólidos. Ela se torna fluida, e o sujeito tem mais dificuldade para sustentá-la. O que há de interessante nessa relação é que, presumivelmente, a presença maior da contingência na experiência histórica deveria dar ao sujeito um sentimento mais nítido de liberdade. Ora, não é o que acontece porque a dificuldade de situar-se num mundo não mais naturalmente organizado leva o sujeito a pretender substituir a contingência natural pela representação de uma necessidade formal que ele mesmo estabelece.
Haveria, portanto, pelo menos teoricamente, duas configurações. Num mundo naturalmente organizado, seja de modo imanente por uma racionalidade intrínseca que se expressaria em necessidade natural, seja por via de normas transcendentes que governariam as coisas a partir de seu criador, as mudanças corresponderiam ao transcurso da ordem objetiva. Num mundo cuja organização dependeria da representação do sujeito de conhecimento e de ação, e em que a necessidade seria resultado de operações subjetivas ou de sínteses entre possibilidades lógicas e dados de realidade, as mudanças corresponderiam a uma ordem constituída. Essa constituição humana de uma ordem se prolonga naturalmente no seu controle. Quando o sujeito moderno teve de introduzir pela razão subjetiva ordem num mundo dessacralizado e, por isso, destituído de ordem imanente ou transcendente, a grande oportunidade que nesse momento apareceu foi a possibilidade de mutações controladas pelos critérios e conveniências humanos. Num universo de ideias em que ordem e mutação eram conceitos correspondentes, a hegemonia da ordem racional significava o controle da natureza e do homem. Um universo matemático e calculável tal como o representado pela ciência moderna traz o valor implícito de um mundo em que a homogeneidade, a regularidade, a uniformidade e a previsibilidade venham a diminuir o impacto das mudanças e possibilitar o controle de seu ritmo e de seu tempo. A vocação tecnológica da ciência moderna traz consigo o propósito de mudanças controladas e de transformações sempre submetidas aos critérios de estabilidade. Práxis bem organizada implica, então, possibilidades técnicas, sociais e políticas de mudar, quando e onde isso se fizer conveniente, ou de não mudar, por critérios análogos.
Houve um tempo, mais próximo ao alvorecer da modernidade, em que se pôde pensar que o homem, por ser sujeito da experiência histórica, só por isso seria capaz de controlá-la. Nessa ordem, instituída pelo próprio ser humano, ele poderia regular as mudanças e alterar a seu gosto o ritmo das transformações. Afinal, a ordem objetiva agora não era senão o campo das interferências possíveis do sujeito, algo como seu domínio, e nada poderia ocorrer ali que não passasse pelo seu controle. De fato, esse campo dominado pelo sujeito como um domínio de objetividade constituído estaria sem dúvida sob o controle do sujeito, enquanto ele se mantivesse como tal. O sujeito previu as possibilidades de ocorrências no campo objetivo cujas mudanças ele deveria controlar. Mas talvez não tenha previsto ao menos uma mutação: a perda da própria condição de sujeito, com as consequências que isso acarreta para o sentido das mutações. Com efeito, não se trata apenas de mutações no próprio sujeito, que poderiam repercutir no domínio e controle sobre o campo objetivo das mutações. Parece ter ocorrido algo de mais fundamental: o sujeito foi destituído de sua posição, isto é, do direito à subjetividade, principalmente no que concerne à instituição subjetiva de uma ordem objetiva.
Na verdade, o que sustenta o alcance da subjetividade moderna, em suas versões metafísica e transcendental, é a possibilidade de constituir, real ou formalmente, a objetividade e, nesse sentido, recortar a realidade como objeto. Aí está o fundamento de todo domínio e de todo controle. Mas foi esse vínculo demasiadamente íntimo entre subjetividade e objetividade que teria levado a história do sujeito aos episódios que parecem anunciar o seu final. O fato de que a objetividade se constituiu no interior da subjetividade foi sinal do poder constituinte do sujeito e de sua capacidade de projetar-se no que não era ele e assimilá-lo a si. Mas esse mesmo fato parece ser também o motivo de um certo processo de dissolução do sujeito na objetividade por ele constituída e que ele deveria dominar. E isso não necessariamente porque o sujeito se teria tornado vítima de seu próprio poder ao voltá-lo contra si. O sujeito não cometeu, nesse sentido, erros. Apenas viveu a sua própria história e nela submergiu, se entendermos que a história da subjetividade é também a história da técnica e da razão instrumental que desemboca na tecnociência.
Podemos ver tudo isso de um modo extraordinariamente simples e ao mesmo tempo terrivelmente dramático. O sujeito moderno é aquele que se dispõe a mudar o mundo: transformar, interferir, organizar, fabricar, produzir etc. atividades que alteram o perfil da realidade natural e humana. Dentre as mudanças que assim foram introduzidas, destacam-se aquelas que se referem ao próprio sujeito, ao conteúdo, sentido e dinâmica de sua própria experiência. E foram essas mudanças que levaram ao que vemos hoje como sendo a sua própria destituição. A tal ponto que, se perguntarmos qual é a grande mudança histórica que teria ocorrido nos últimos tempos e que afeta nossa vida na atualidade, teríamos, muito provavelmente, que responder: é a impossibilidade de mudar.
Contra essa constatação se dirá, e com razão, que nunca houve tantas mudanças e num ritmo tão acelerado como esse que vivemos hoje. O que se trata de explicar, então, é o paradoxo a que chegamos: nunca vivemos tantas mudanças e nunca fomos tão incapazes de mudar. Qual o motivo dessa estranha identificação na qual o frenesi das mudanças equivale à mais previsível rotina? Por que a experiência de um tempo histórico marcado pela variação e pela velocidade equivale à indiferença? Em suma, as mutações não nos atingem como protagonistas dessa experiência histórica diversificada e veloz; elas nos conduzem como passageiros alheios ao trajeto e despreocupados com o destino. E isso não significa que haja uma continuidade histórica confiável a tal ponto que não precisássemos nos inquietar com possíveis surpresas. O devir histórico tem sido tão surpreendente – na acepção decepcionante do termo – que justifica perguntar se na história a gênese e constituição do sentido não se teriam transformado na vigência do absurdo. Se estivermos diante do absurdo, talvez seja natural que não exerçamos o poder de negar a realidade, que é sempre também o poder de afirmar a possibilidade de outra. Com efeito, a negação ocorre sempre a partir de uma situação, a mesma que nos faz vislumbrar outros conteúdos de realidade, para os quais nos transportamos em projeto, estimulados pela contradição do que existe a encontrar num outro tempo, ainda não existente, uma outra realidade. Mas se o que está diante de nós situa-se aquém da possibilidade de negação, porque não possuiria um mínimo de densidade real para ser comparado a algo que o superasse, então sobrevêm a indiferença, a impossibilidade de projetar-se e de projetar um mundo, a anulação da expectativa. A uniformidade do deserto, que faz com que o que se percorreu não sirva de referência, tampouco o que ainda se está por andar; e o lugar presente é uma referência, mas vazia.
Todos sabemos o impacto que causou a tese de Löwith, proclamada no final dos anos 1940, de que o progresso é o messianismo secularizado. Ela permitia – e ainda permite – explicar muita coisa, e principalmente certas ambiguidades e ambivalências da passagem do mundo sacralizado à civilização secular. Com efeito, se o humanismo é uma aposta no homem afiançada pela universalidade da razão metodicamente aplicada, pode-se dizer que na época moderna a história continua sendo uma trajetória salvífica na qual o homem poderá encontrar a felicidade cuja busca é inspirada pela racionalidade técnica entendida como saber e poder que convergem para a construção do Bem. O progresso como tradução laica da Salvação seria assim a bandeira positiva seguida pelas modernas legiões de povos ocidentais. E o progresso dá testemunho de si cada dia: as descobertas científicas e, principalmente, as inovações que passam a compor a nossa vida sucedem-se diariamente, de modo que se observa constante coincidência entre tempo histórico e inovação. Ou seja, a experiência histórica é a experiência da mudança no sentido do advento da novidade, conforme convém ao progresso.
Mas a inovação como regra absoluta do progresso torna o processo rotineiro. Vivemos num tempo em que o aparecimento de novidades e avanços tecnológicos situa-se totalmente dentro do previsto. O novo, que a cada dia nos chega, não nos afeta como surpresa, antes tende a nos entediar como continuidade rotineira de um processo com o qual já nos acostumamos e que, na medida mesma em que se define pela apresentação do novo, nada de novo tem mais a nos oferecer. Isso significa que o progresso deixou de ser uma expectativa ou uma crença para tornar-se um hábito. Esperamos o advento do novo como o cético humano espera o nascimento do sol: um evento objetivo que não se distingue de uma rotina psicológica. E alimentamos tantas esperanças novas nos frutos do progresso quanto colocamos novas expectativas no nascimento de mais um dia; em ambos os casos a rotina prevalece, e se fortalece a certeza de que tudo muda para continuar o mesmo. Assim, entendemos o progresso como uma força sempre presente em nossas vidas, mas cujo sentido já nos é difícil decifrar. Essa diferença está profundamente entranhada no niilismo contemporâneo: o progresso e a história são forças que acompanhamos ou que nos arrastam; mas já não sabemos se possuem sentido.
E assim, as mutações que traduzem a história e o progresso se apresentam, sobretudo, como quantidade: medimos o tempo que passa pela quantidade de opções que nos são oferecidas no que se refere aos mais diversos aspectos da vida. Temos sempre um número maior de maneiras de viver e um maior número de bens de que podemos desfrutar, porque as mudanças operadas nos mais diferentes aspectos da realidade abrem novas possibilidades de que nos podemos aproveitar. Nesse acúmulo quantitativo está certamente um dos motivos da indiferença em relação às mutações. Ora, isso incide drasticamente sobre o significado daquilo
que designamos, no século XIX, como “religião do progresso”. Tratava-se então de um vetor de crença que podia servir para avaliar a vida e aquilo que os homens estariam fazendo em prol de si mesmos, no intuito de fazer do curso do progresso uma história da salvação. Atualmente, a ideia de que o progresso esteja associado a qualquer perspectiva de salvação é vista com muitas dúvidas, não apenas devido à aliança entre progresso e poder destrutivo no que se refere ao potencial bélico e à ecologia, mas também porque o progresso passou a estar relacionado com a solução ou a contemporização de problemas imediatos e pontuais, e não mais com o núcleo qualitativo e significativo da vida, como ocorria no Iluminismo. Para nós, a série de mudanças que vivemos na interminável rotina do progresso acontece na interface entre a superfície de nossa subjetividade e a superfície do mundo: as mudanças, por se terem rotinizado, deslizam na superfície do nosso Eu e na superfície das coisas, sem penetrá-las. E há mesmo razões para supor que, de modo geral, prejuízos na qualidade de nossa existência estão relacionados à acumulação quantitativa de mudanças e inovações.
Tudo isso parece estar relacionado a algo que já mencionamos, mas em que precisamos insistir: talvez a mais notável de todas as mutações tenha sido aquela que nos levou a descrer de sua efetividade e mesmo a constatar a impossibilidade da mudança. O que nos remete de imediato a questões de relevante atualidade que, esquematicamente, podem ser enunciadas como a relação entre, de um lado, as mutações históricas como constitutivas da vida política e social e, de outro, os fenômenos contemporâneos que podem ser agregados sob a égide identificadora de democracia formal e totalitarismo real. Por que julgamos poder relacionar esses elementos?
Entendemos que a mutação histórica que pode ser aproximadamente definida como a experiência da impossibilidade de mudar é nova e original. Não se trata, obviamente, de uma tendência conservadora encorajada por fundamentos filosóficos e políticos ligados a um mundo organizado segundo a transcendência das Formas, de Deus ou de uma Inteligência suprema. Não se trata, como vimos, de um mundo em que a necessidade transcendente ou imanente desempenharia papel primordial. Pelo contrário, trata-se de um mundo profundamente afetado pela contingência. E, no entanto, como vimos ainda, essa contingência não se traduz em liberdade. É como se a contingência estivesse a serviço da fatalidade, e a liberdade fosse utilizada para ignorar a possibilidade de escolha. A razão disso encontramos na leitura que julgamos ser possível fazer de Hannah Arendt: a política teria desaparecido porque a ideia de certeza vinculada à racionalidade técnica teria expulsado da vida e da práxis o discernimento como critério das escolhas práticas. Como a vida política é o processo pelo qual os homens em sociedade escolhem, independentemente da certeza teórica, os rumos da comunidade, o que se há de conservar e o que se há de mudar, tendo em vista o bem comum, o vazio político se configura como a experiência da inocuidade de decidir e da impossibilidade de mudar. Assim o mundo contemporâneo estaria “politicamente” constituído de tal forma que os indivíduos absorvessem, como único modo de vida possível, a recusa da vida pública como meio e lócus de discussão das possibilidades humanas, isto é, das mudanças que se tornariam possíveis a partir das decisões tomadas no espaço de risco da esfera pública por indivíduos reunidos em comunidade. O desaparecimento do espaço comunitário e da intersubjetividade política configura o vazio que nos separa do valor que poderia conferir base sólida à dignidade humana. Trata-se de uma mutação que, vivida como ruptura, impede que a memória histórica venha em auxílio de uma possível recuperação da integridade da experiência.
Dessa forma podemos dizer que um mundo que se define por tantas e tão frequentes mutações é ao mesmo tempo um mundo que se caracteriza pela recusa de uma experiência intrínseca das mutações. Se é verdade, como disse Sartre, que o indivíduo somente se constitui na sua singularidade quando interioriza as mudanças exteriores e as exterioriza pela mediação de sua subjetividade, talvez se possa dizer que vivemos num mundo em que as mutações não são verdadeiramente interiorizadas pelos sujeitos, muito menos exteriorizadas enquanto determinações assumidas singularmente. Simplesmente são objetos de experiência externa em que a história resvala na composição superficial de um sujeito exterior a si mesmo e de um mundo que se faz estranho na sua profundidade e familiar na sua trivialidade. Uma experiência destituída de significações internas e externas se caracteriza pela perda das referências. Por isso experimentamos as mutações em regime de relação extrínseca, como se já não pudéssemos ser senhores das situações em que as coisas mudam e em que nós mudamos. Por isso também assistimos às mutações como a um espetáculo variado que, embora afete nossas vidas, é algo de que participamos muito indiretamente.
Ora, a experiência da mudança é a experiência do tempo. Bergson mostrou que o processo da vida e o processo da consciência que os dados imediatos da realidade nos revelam dão testemunho de que o real seria essencialmente fluxo do devir. Quando nos voltamos para nós mesmos sem a interposição de esquemas teóricos, lógicos ou metafísicos, o que atingimos em nós mesmos é o fluxo da consciência como continuidade diferenciada de qualidades que se dá numa modulação que de direito seria irredutível à segmentação analítica, mas que de fato traduzimos na lógica da descontinuidade e remetemos à unidade do ser. É como se a experiência da mudança e do movimento fosse sempre descaracterizada pelas formas que lhe impomos, por necessidade teórica e por conveniência prática. Assim, o tempo transcorre diante de nós, articulado e organizado, como sucessão de instantaneidades ou de imobilidades, e essa representação objetiva, que acabamos por interiorizar, oculta a consciência íntima do tempo, comprometendo assim a experiência do devir, a captação da temporalidade no fluxo da realidade externa e no ritmo de nossa história pessoal.
É desse modo que nos colocamos diante do movimento da realidade e não nele. É desse modo que o captamos objetivamente na justaposição de partes que traduzem o fluxo de mudanças sucessivas que não conseguimos captar. Essa posição externa às mudanças se reflete, como já vimos, numa relação extrínseca com o processo histórico e com o desenvolvimento da vida social. Só assumimos a posição de sujeitos históricos quando agimos politicamente, e isso se aplica tanto à ação transformadora quanto à ação conservadora do presente. Quando a desintegração ideológica e o desaparecimento do cenário público tornam impossível a ação política, os acontecimentos que traduzem as mudanças na esfera social ocorrem sem referência a agentes históricos produtores de significação. É o que designamos como a falência da participação política, razão pela qual o desaparecimento da política e a falência da democracia real coincidem. A relação extrínseca com as mudanças significa a incapacidade de agir participativamente no processo coletivo, e nesse contexto torna-se impossível a democracia real: as instituições passam a ter vida vegetativa, e a vida
democrática se reduz à reiteração formal de justificativas de sua própria inexistência. A democracia formal tende a se prolongar num totalitarismo real, e o fundamento dessa reciprocidade, em que o caráter democrático das formas políticas esconde a realidade do totalitarismo, é a indiferença e a exterioridade dos indivíduos em relação à vida social e histórica. Numa palavra: a disposição indiferente para sofrer mudanças e a incapacidade (ou a ideia de que não há necessidade) de produzi-las.
É preciso voltar ao aparente paradoxo: como as pessoas podem ser tão alheias às mudanças e ao mesmo tempo ter toda a sua vida pautada por elas? Alguém poderia dizer que a resposta está em algo que conhecemos há muito tempo e que está na base de muitas atitudes humanas, notadamente na modernidade: a alienação. Mas não seria uma resposta satisfatória. Pois a dificuldade do problema está precisamente em que as pessoas estão, de um lado, profundamente envolvidas nas mudanças e comprometidas com as suas consequências subjetivas e sociais e, por outro, inteiramente alheias ao sentido histórico das mudanças e ao rumo histórico do processo que elas configuram. Por essa razão, alienação seria uma resposta incompleta e parcial. O que seria preciso entender é como se pode participar das mudanças, vivendo-as com intensidade e radicalidade, e ao mesmo tempo ignorar totalmente o que elas significam. Pois essa contradição parece ser o elemento principal do cenário contemporâneo.
Ensaiemos uma aproximação do problema valendo-nos da relação entre fato e significação, tal como foi formulada por Sartre com a finalidade de esclarecer o modo pelo qual o sujeito em situação lida com as determinações que poderiam tolher a sua liberdade. Os fatos fazem parte da estrutura da situação de tal modo que o sujeito os encontra e nada pode fazer a respeito, no sentido de anulá-los ou mudá-los. Os fatos fazem parte de um mundo em si, duro, opaco e inarredável. Mas como o sujeito os representa, isto é, atribui-lhes significação no contexto de um mundo humano, esses fatos são para um sujeito e giram na sua órbita como significações produzidas. Nesse sentido o sujeito, pela sua capacidade de significar o mundo, prolonga sua subjetividade nos fatos e se projeta nesse mundo em princípio dado e imutável. No mundo humano não haveria fatos brutos, porque seriam sempre trabalhados pela significação. Assim o sujeito se situa na corrente da história ao mesmo tempo num mundo “mais velho do que ele” (Merleau-Ponty) na sua autonomia bruta de coisa, e, no entanto, constituído significativamente por ele, a partir de expectativas e possibilidades que projeta em torno de si. O acontecimento não espera por mim e não se dobra às minhas intenções; mas se ele se relaciona ao agente histórico, então é, também necessariamente, uma projeção da subjetividade que se sujeita ao jogo de ganha e perde que se passa no palco da história.
Ora, há indícios de que essa inseparabilidade entre fato e significação já não mais faz parte da experiência. Esta, exteriorizada e padronizada pelas injunções da contemporaneidade, desintegrou a relação, de tal modo que o sujeito pode, sim, ao contrário do que Sartre pensava, fazer a experiência dos fatos sem experimentar, neles, a significação, pela simples razão de que o sujeito doador de significações ao mundo está obnubilado pelo sujeito meramente operante, aquele para quem a experiência consiste em deslizar sobre os fatos com a rapidez do surfista e a habilidade do competidor. É nesse sentido que se faz, contemporaneamente, uma experiência mutilada das mutações, e a extrema diversidade pode resultar, então, na mais completa homogeneidade. Nesse sentido, permanecer alheio ao significado das mutações torna-se perfeitamente compatível com a aceitação indiferente de todas elas, do ritmo em que se dão, e da justificação implícita a partir da qual são vividas.
Seria preciso, para prolongar e completar essas observações, perguntar se a causa do paradoxo que consiste em assumir para com o mundo um compromisso fundado na indiferença em relação à história não estaria relacionada a uma atitude análoga que o sujeito assume consigo mesmo, isto é, com a sua história pessoal. Pois tudo indica que a incapacidade de apreender significativamente os fatos e a corrente de mudanças em que se inserem tem muito a ver com a incapacidade do sujeito para apreender-se significativamente e atribuir significação à sua própria história. O motivo, como já indicamos, seria a vivência do tempo histórico em regime de exterioridade. Isso não significa de modo algum que a experiência histórica requeira uma grande densidade interior, de cunho agostiniano, por exemplo, ou separação e hierarquia entre a exterioridade e a interioridade. Mas, mesmo sem adotar esse dualismo, justamente criticado na filosofia contemporânea, há de se convir que a condição de agente histórico não pode ser completamente separada do estatuto do sujeito e que, nesse sentido, a história é, também, experiência subjetiva.
A contingência faz com que entre as dimensões subjetiva e objetiva da existência histórica haja um equilíbrio instável: às intenções do sujeito que age na história o mais das vezes não correspondem os resultados originalmente visados porque esse sujeito, embora agente, nunca é senhor da situação em que age. Reciprocamente, esse mesmo sujeito pode, através da liberdade possível, resistir às pressões objetivas ou transformá-las a partir da sua subjetividade singular. Para que a vida histórica reflita essa instabilidade constitutiva o sujeito deve exercer uma liberdade difícil, permeada por determinações de todo tipo e que o pressionam em vários níveis. Tudo indica que o sujeito contemporâneo, de modo geral, não está podendo arcar com essa dificuldade, e assim tenta atingir um equilíbrio estável na existência histórica através da rendição da liberdade às determinações. Isso significa, no limite, a submissão cega à dimensão objetiva e ao ritmo exterior das mutações. Sartre disse que o sujeito, ao mesmo tempo livre e determinado, se constitui ao fazer algo com o que fazem dele. Ora, na impossibilidade de viver essa experiência complexa e contraditória, o sujeito tende a reduzir essa relação dialética a um de seus polos, deixando-se constituir pela exterioridade objetiva sem sequer tentar se autoconstituir apesar disso.
Essa simplificação da experiência é também a sua banalização. Nesse sentido se pode dizer que a banalização da experiência consiste na aceitação de uma vida unidimensional, em que as solicitações do mundo objetivo atravessam a subjetividade sem encontrar a opacidade de uma liberdade por via da qual o indivíduo poderia se opor à realidade dada por meio da projeção de outras possibilidades, isto é, de uma outra experiência existencial e histórica em que o tempo fosse vivido também na dimensão da singularidade subjetiva – e não apenas na esfera da homogeneidade objetiva. Trata-se de um paradoxo extremamente revelador para quem desejar fazer um diagnóstico da contemporaneidade: a experiência banalizada é aquela que se caracteriza pela renúncia do sujeito a participar ativamente das transformações de sua própria história e do fluxo mais íntimo de sua própria temporalidade. Nesse sentido se pode dizer que as possibilidades emancipadoras de um mundo em mutação se dissolvem no frenesi alienante da vivência absolutamente externa e completamente impessoal da rotina das transformações, com a qual o indivíduo convive no modo de um consumo indiferente do que é sempre novo e sempre igual.