2017

Tradição e ruptura

por Luiz Felipe de Alencastro

Resumo

Diante do contínuo da história, um dos líderes da nova historiografia francesa, Fernand Braudel, desenvolveu três conceitos que qualificam o ritmo de suas transformações. Primeiro, o “tempo longo”, que segue o ritmo lento, das variações sutis e que equivale ao tempo da construção das grandes sociedades e civilizações; Braudel pensou também no “tempo médio”, mais particularizado, que se relaciona a “[…] uma história dos grupos e das comunidades”; por fim o “tempo curto” ou “tempo individual” que é associado à história dos acontecimentos (événementielle). Na história do Brasil, o grande ciclo do açúcar, afinal, nunca deixou de existir desde o século XVI, mesmo depois do ciclo do ouro e das pedras preciosas e do café. A história da monocultura do açúcar pode, portanto, ser lida a partir da ótica de “tempo longo”. Conforme defenderam Gilberto Freyre e Stuart B. Schwartz, as relações sociais engendradas nos engenhos constituíram o cerne da sociedade colonial e imperial em nosso país. Com a República e o sucesso da monocultura do café (o “ouro verde”), a cana-de-açúcar perdeu espaço e prestígio como produto de exportação porque passou a carregar os estigmas de um produto de exportação típico da época do Brasil colonial, não correspondendo mais aos ideais do futuro republicano. A crise do sistema já vinha sendo anunciada na primeira metade do século XIX, pois, entre 1831 e 1850, quando o Brasil era o único país a praticar pirataria negreira, “[…] o açúcar brasileiro foi sobretaxado nas alfândegas britânicas porque era slave-grown sugar (cultivado por escravos), e não o free-grown sugar (produzido por lavradores livres).” Pressões externas como essa refletiam um mundo em transformação que não via mais com bons olhos o escravismo (o que, diga-se de passagem, raramente tinha a ver com motivações filantrópicas). Esse foi um dos ingredientes que conduziram à proibição do tráfico de negros e, mais tarde, à abolição da escravatura no Brasil. Mas permaneceram mentalidades oligárquicas como resultado de uma “açucarocracia”, termo que Freyre gostava de usar. Em tempos mais recentes, com a modernização da produção, o papel do oligarca foi substituído pelo do usineiro e o escravo pelo boia-fria, cuja condição é de “escravidão disfarçada”. Pode-se falar novamente em monocultura em larga escala, visando principalmente a produção do etanol como biocombustível, dentro da tendência mundial de produção de combustíveis renováveis. O Brasil tem sido referência nessa área depois da experiência acumulada e do sucesso a partir do programa Proálcool, implantado em 1975 em meio à crise mundial do Petróleo e em plena ditadura. Mas se o etanol é uma fonte mais limpa e sua produção se justifica diante da produção de carros flex, antigos problemas associados à monocultura que datam da época da Brasil colônia reapareceram: a eventual diminuição de plantações visando à alimentação, as queimadas e os desmatamentos. Não se trata de um problema exclusivamente brasileiro, mas dos países que abraçam a solução dos biocombustíveis em todo o mundo. A esse respeito, Jean Ziegler, relator da ONU sobre o direito à alimentação, têm escrito livros contundentes.


A história dos povos e dos indivíduos flui, muda sempre, como um curso d’água em caudal contínuo. Ninguém vê duas vezes a mesma cena ou vive várias vezes os mesmos eventos. “Não é possível mergulhar duas vezes no mesmo rio”, escreveu o filósofo grego Heráclito no final do século VI a.C.

Todavia, a mutação nem sempre é percebida na sua dimensão. O peso das tradições, a contingência dos fatos e a abrangência das rupturas embaciam o sentido das transformações da vida das pessoas e da sociedade. Refletindo sobre estes temas, Fernand Braudel, num texto que se tornou um clássico das ciências humanas, distingue os três arcos concêntricos do tempo histórico.

No arco de fundo desenrola-se o tempo longo, “uma história lenta, quase imóvel, a história do tempo geográfico onde vem se inscrever as sociedades e as civilizações brevemente agitadas pelas oscilações curtas da história dos acontecimentos”. No arco ou na cena mediana sucede o tempo social, composto por “uma história lentamente ritmada, […] uma história dos grupos e das comunidades”. Enfim, na cena de primeiro plano corre o tempo curto ou tempo individual. É o tempo da história tradicional, na dimensão do indivíduo e não do homem provido de sua consciência coletiva. Aqui intervém uma história dos acontecimentos (événementielle) marcada por “uma agitação de superfície, pelas ondas que as marés levantam no seu possante movimento; uma história de oscilações breves[1]”.

Na concepção braudeliana, o historiador – envolvido pelo movimento curto dos eventos cotidianos – deve procurar divisar o tempo social mediano e, para além, o tempo longo, para compreender a temporalidade histórica.

Há acontecimentos da atualidade brasileira que ilustram a mutação no contexto da concentricidade temporal explicada por Braudel. Assim, o sucesso do agronegócio, e, em particular, da agroindústria sucroalcooleira, remete a um tempo longo – a longue durée – que incorpora o tempo social mediano e também o tempo curto dos eventos imediatos. Sem procurar discorrer sobre todas as etapas da história da indústria canavieira, é possível distinguir as representações mais emblemáticas da cultura da cana-de-açúcar em nosso país[2].

ENGENHO DE SEMPRE

No tempo longo, os fatos são conhecidos. O povoamento português nasceu em torno do engenho de açúcar, no prolongamento da colonização implantada nas Ilhas Atlânticas. O Brasil entrou no mapa do mundo porque exportava açúcar. Ninguém em Portugal tomou ao pé de letra a frase da Carta de Pero Vaz de Caminha afirmando que na Terra Brasilis “em se plantando tudo dá”. Concretamente, ninguém pensou em plantar oliveiras e uvas no Brasil para exportar azeite e vinho para Lisboa. Conhecido como a mais importante commodity da época – já produzido pelos portugueses na ilha da Madeira e em São Tomé –, o açúcar de cana sustentou o impulso da economia colonial nos dois primeiros séculos de presença europeia.

Ambrósio Fernandes Brandão, cristão-novo e senhor de engenho na Paraíba quinhentista, escreveu a respeito do Brasil: “o principal nervo e substância da riqueza da terra é a lavoura dos açúcares”. No seu livro Diálogos das grandezas do Brasil (1618), ele discorre sobre a cultura canavieira na América portuguesa, equiparando a produção de açúcar à fabricação da pólvora e do papel no topo das invenções humanas. Comparando ainda o Brasil com outras colônias americanas, Brandão considerava a economia açucareira “muito maior que a das minas de ouro e de prata” que se desenvolviam na mesma época na América espanhola[3]. Não se tratava de uma intuição do autor. Mesmo no século XVIII – o século das Minas Gerais –, o açúcar proporcionou maiores rendimentos do que o ouro, como demonstrou Stuart B. Schwartz, apoiando-se em cifras e pesquisas de fundo[4]. Gilberto Freyre – numa das interpretações fundadoras da historiografia brasileira – vai mais longe em suas análises para situar as relações sociais engendradas nos engenhos no cerne da sociedade colonial e imperial[5].

Note-se que os períodos de expansão canavieira provocaram, desde o início da colonização, o estrangulamento da cultura de alimentos e a “carestia dos víveres”, mais exatamente da farinha de mandioca, objeto de repetidas queixas nas capitanias do litoral brasileiro. Na fieira de medidas contra os danos da monocultura que se escalonam no tempo, e que incluem as providências do governo holandês em Pernambuco, é possível lembrar a ordem régia de 1788 que obrigava os lavradores e senhores de engenho a plantar “mil covas de mandioca por cada escravo que possuísse empregado na cultura da terra”. Num livro pioneiro e insuficientemente conhecido, Nordeste (1937), Gilberto Freyre também mostrava as mazelas da monocultura açucareira na sua região natal[6].

Por essas e outras razões, o prestígio do açúcar nem sempre tem sido evidente na esfera das representações. A primeira bandeira brasileira, cuja composição foi definida alguns dias depois da Independência, contém tão somente um ramo de café e outro de tabaco, concebidos como emblemas da “riqueza comercial” da nova nação. Sendo extensamente praticada nas possessões europeias do Caribe, a cultura canavieira permanecia marcada pelo estigma de produto típico das colônias. Nessas circunstâncias, o tabaco e sobretudo o café apareciam como símbolos mais adequados do futuro promissor do Brasil independente. Símbolo que funcionava para os brasileiros como para os portugueses inconformados com a Independência. Foi deste setor ultracolonialista que partiu a cantiga de troça difundida após 1822: “Cabra gente brasileira/ Do gentio de Guiné/ Que deixou as Cinco Chagas/ Pelos ramos do café”.

A representação desfavorável da cultura canavieira tem também origem no caráter patrimonial que sempre envolveu a atividade. É sabido que a açucarocracia nordestina se beneficiou, desde o século XVII, de subsídios oficiais e garantias de não execução de dívidas por seus credores. No século XIX, essas franquias eram reconhecidas pelos tribunais sob o título geral “privilégio de senhor de engenho”. Apesar de tudo, a concorrência da produção caribenha atingia periodicamente os senhores de engenho e, mais tarde, os usineiros, fazendo-os retomar a cantilena, repetida ao longo das últimas décadas, pelo perdão das dívidas contraídas junto ao governo e pela concessão de novos créditos bancários. A crise do regime escravista trouxe perspectivas sombrias para os fazendeiros e, em particular, para a cultura canavieira. Comentando o diário de Sebastião Antônio de Accioly Lins Wanderley (1829-1891), barão de Goicana e senhor de engenho pernambucano, Evaldo Cabral de Mello analisa magistralmente o pessimismo histórico que impregnava a açucarocracia (utilizado por Gilberto Freyre e Evaldo Cabral de Mello, o termo foi cunhado por Silvio Romero) nordestina na derrocada do escravismo e do Império[7].

Na virada do século XIX, com a mudança do eixo da política nacional do Nordeste para o Centro-Sul – completada pela imigração estrangeira e a expansão do café no Oeste paulista –, a cultura açucareira inscrevia-se no imaginário nacional com cores de atraso e decadência, mesmo quando era retratada com nostalgia e arte, como nos romances de José Lins do Rego, Menino de engenho (1932) e Banguê (1934). Paradoxalmente, a modernização canavieira seguia seu curso no Nordeste e em outras áreas tradicionais brasileiras. Sobretudo em usinas de Pernambuco (a Central Barreiros) e de Alagoas (Central Leão), e ainda em Campos, no Rio de Janeiro. Ou seja, em zonas cujo cultivo havia se iniciado nos séculos XVI e XVII. No entanto, por volta de 1951, as usinas paulistas, mais dinâmicas, ultrapassavam a produção nordestina[8]. Nomes da imigração italiana em São Paulo – Dedini, Mattarazzo, Morganti, Romi, Ometto – substituíam as velhas cepas luso-brasileiras da oligarquia nordestina e fluminense na liderança da agroindústria canavieira.

O PROÁLCOOL: DA DITADURA À GLOBALIZAÇÃO

Após 1964, a aliança entre grandes empresários e ditadura facilitou a constituição, no Centro-Sul, das grandes cooperativas que dominaram o mercado sucroalcooleiro do país: a Cooperativa dos Produtores de Açúcar e Álcool Fluminense (Cooperflu) e, sobretudo, a Cooperativa de Produtores de Cana-de-açúcar, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Coopersucar). Dona da maior parte do álcool produzido no Brasil, a Coopersucar teve um papel decisivo na implementação do Proálcool (1975). De fato, em 1977, a Coopersucar possuía 77 usinas, 68 das quais em São Paulo, comercializando 41% da produção nacional de açúcar e 64% da de álcool[9].

Associando-se a Emerson Fittipaldi, o primeiro campeão brasileiro de Fórmula 1, e projetada nos circuitos mundiais de corrida pelo carro que levava seu nome, a Coopersucar apresentava-se como a face avançada e moderna do “Brasil Grande” da ditadura. Num anúncio de maio de 1976, publicado no The Times, com a foto de Fittipaldi e do carro Coopersucar Fittipaldi, a Coopersucar saudava a “histórica” visita oficial do ditador-

-presidente Geisel a Londres, sob o título “O Brasil está na corrida, a Coo

persucar ajuda o Brasil a competir[10]”. Na mesma época, outros órgãos da imprensa inglesa denunciavam as ligações de dirigentes da Coopersucar com os setores mais truculentos da ditadura brasileira.

Independentemente da influência exercida pela Coopersucar, o Proálcool suscitou críticas desde o início. Note-se que o objetivo prioritário do programa – substituir parte do combustível importado após o primeiro choque petroleiro – não deixava espaço para considerações ambientais. Quanto aos objetivos sociais, havia a meta da geração de empregos no campo. Não se pretendia promover a melhoria das condições do trabalho rural. De maneira geral, as sequelas do Proálcool apareciam para a ditadura e para os defensores do programa como um mal menor diante da ameaça da crise energética iniciada em 1973-1974 e confirmada pelo segundo choque petroleiro de 1979, na sequência da Revolução Iraniana. Decerto, os efeitos perversos da monocultura, a favelização das cidades vizinhas às usinas, a exploração dos boias-frias, as queimadas dos canaviais e os dejetos espalhados no campo, como o bagaço e o vinhoto (resíduo do fabrico do açúcar e do álcool), poluidor de rios e riachos, foram discutidos e criticados por especialistas e setores da oposição.

Resta que tais críticas surgiam no âmbito dos ataques dirigidos ao “capitalismo selvagem” implementado pela ditadura e não constituíram um tema dominante na fase da transição democrática brasileira. Objeções de outra natureza foram dirigidas ao Proálcool por setores das camadas dirigentes e até por beneficiários do programa. Para estes setores – industriais, outros ramos do agronegócio e grupos sucroalcooleiros mais capitalizados –, os defeitos do Proálcool provinham do uso de verbas públicas para financiar usineiros ineficientes – leia-se nordestinos –, com o fito de guardar as clientelas políticas tradicionalmente aliadas ao governo. Tal restrição vem ainda registrada num balanço favorável do Proálcool publicado recentemente pelo Centro de Tecnologia Canavieira:

Iniciado em 1975 no rastro do choque do petróleo […] o programa [Proálcool] foi associado por décadas a uma invenção do Regime Militar para subsidiar usineiros Brasil afora, alguns deles atavicamente comprometidos com o atraso. Não se pode dizer que é um argumento falso. Mas, olhando para trás, vê-se que vieram do programa os avanços que hoje colocam o País na vanguarda do setor[11].

Como é sabido, os ciclos de baixa dos preços do barril do petróleo, juntando-se ao aumento do preço do açúcar no mercado internacional, provocaram um declínio do uso do álcool combustível no país. Tais fatores levaram à estagnação do programa do álcool entre 1986 e 1995. A retomada veio com o aumento da proporção do álcool misturado à gasolina e, sobretudo, com a tecnologia flex fuel, importada da Califórnia e utilizada a partir de 2003 nos carros fabricados no Brasil.

DO ÁLCOOL AO ETANOL

Na sequência, a imagem positiva da cultura canavieira surgiu bem mais recentemente, quando cresceu o alarme dos especialistas e da opinião pública ocidental a respeito do aquecimento planetário e do efeito estufa. Embora tivesse se recusado a ratificar o Protocolo de Kyoto, o governo Bush, no seu segundo mandato, começou a sofrer a pressão de ambientalistas e de estados importantes, como a Califórnia, Massachusetts e Nova York, que implementaram medidas estaduais de respeito ao ambiente[12]. Guerras e instabilidade nos países produtores de petróleo e a vitória dos democratas – mais favoráveis às políticas ambientalistas – nas eleições do Congresso em 2006 levaram o governo Bush a manifestar interesse pelos biocombustíveis. Paralelamente, o fabrico do etanol a partir do milho (caso dos EUA) ou de beterraba e colza (caso europeu) fez com que os governos europeus e asiáticos ampliassem a pesquisa e o uso de combustíveis renováveis. Obviamente, a exemplo do governo brasileiro durante o Proálcool, os governos ocidentais também procuravam justificativas para subvencionar seus agricultores ameaçados pela concorrência internacional.

A globalização do tema levou, em alguns meses, a uma significativa substituição semântica. A palavra “álcool”, usada em todos os postos de abastecimento brasileiros desde 1975, foi substituída, nos discursos e na mídia nacional, pela palavra usada nos Estados Unidos e na Europa: etanol.

Diante do interesse internacional sobre a experiência brasileira – exemplo único e perene de substituição em larga escala da gasolina por um combustível renovável –, o programa do álcool transformou-se num trunfo diplomático para o governo Lula. A partir de então, o Itamaraty e o presidente Lula, nas suas viagens no país e no exterior, assumiram plenamente o papel de propagandistas do programa do álcool. Cooperação técnica para a fabricação de usinas-destilarias similares às do Brasil nos países da América Central e da África e campanha para a redução das tarifas que pesam sobre o álcool combustível na Europa e nos Estados Unidos compunham a estratégia de Brasília, definida por um jornal costa-riquenho como “diplomacia de biocombustíveis[13]”.

Ponto alto desta ofensiva diplomática, a visita do presidente Bush ao Brasil, em março de 2007, concretiza a assinatura do chamado “Acordo do Etanol” pelos dois presidentes. Buscando a padronização internacional do produto para transformá-lo numa commodity apta a ser negociada no mundo todo, o acordo prevê ainda a cooperação norte-americana-brasileira na produção de biocombustíveis nos países do Caribe e da América Central. Enfim, os dois países comprometem-se a compartilhar pesquisas em biocombustíveis da “nova geração”, isto é, extraídos de material celulósico de restos de madeira, palha e outros produtos.

Embalada pela expectativa de baixa das tarifas de importação na União Europeia e nos Estados Unidos e pelo consumo crescente de biocombustíveis, a cultura canavieira ganhou novamente grande destaque. E Lula passou a ver no etanol a salvação da lavoura, do Brasil e do mundo. Tomado de euforia, o presidente Lula lançou-se numa ode aos usineiros:

Os usineiros de cana, que há dez anos eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais, porque todo mundo está de olho no álcool. E por quê? Porque têm políticas sérias. E têm políticas sérias porque quando a gente quer ganhar o mercado externo, nós temos que ser mais sérios, porque nós temos que garantir para eles o atendimento ao suprimento[14].

Francisco de Oliveira, pernambucano e ex-diretor da Sudene, escreveu um comentário sarcástico sobre esta declaração presidencial:

Fazendo tábula rasa da história dos trabalhadores sob o capitalismo, Lula se entregou a perigosos exercícios intelectuais: designou os usineiros de açúcar do Brasil como heróis, os mais importantes do Brasil moderno, vale dizer, do Brasil lulista. Logo ele, pernambucano, desconhecer a história dos trabalhadores da cana-de-açúcar. Jogou na lata de lixo as vidas ceifadas e de qualquer modo amesquinhadas por uma das formas de exploração do trabalho mais brutais[15].

OS MALES DA MONOCULTURA DE ONTEM E DE HOJE

Tirante as críticas que tocam nas condições do trabalho nos campos de cana-de-açúcar, sobre as quais voltarei a falar, fatores internacionais provocaram uma nova cambalhota no prestígio da cultura canavieira e do etanol brasileiro. No começo de 2008, ao mesmo tempo em que a crise financeira dos subprimes atingia os Estados Unidos e a Europa, a retomada da inflação reaparecia no horizonte da economia mundial. Na sequência de vários estudos, o aumento dos preços de alimentos passou a ser atribuído à extensão do cultivo de agrocombustíveis em alguns países. De Fidel Castro aos ecologistas e à cnbb levantaram-se protestos contra os efeitos sociais e ambientais dos agrocombustíveis e do etanol de cana.

A declaração mais radical veio, em abril de 2007, do sociólogo Jean Ziegler, relator da Organização das Nações Unidas para o Direito à Alimentação. Para ele, a produção de etanol constituía nada mais, nada menos do que um “crime contra humanidade”, pois agravava a crise alimentar e a fome no mundo[16]. Voltavam à ordem do dia os malefícios da monocultura que haviam sido detectados e combatidos sem sucesso no período colonial. A alegação de que a cana-de-açúcar estava invadindo, ou invadiria, a Amazônia fez a junção de duas ameaças largamente ressentidas mundo afora: o etanol reduzia o cultivo de alimentos e acelerava a desflorestação do “pulmão do mundo”.

Tais críticas paralisaram momentaneamente a “diplomacia dos biocombustíveis” itamaratiana e colocaram o presidente Lula na defensiva. No seu discurso na “Cúpula sobre Segurança Alimentar”, organizada no mês de junho de 2008 pela fao, em Roma, Lula partiu para o contra-ataque, declarando que as críticas ao etanol eram uma manobra perpetrada por setores comprometidos com a indústria do petróleo e do carvão:

É com espanto que vejo tentativas de criar uma relação de causa e efeito entre os biocombustíveis e o aumento do preço dos alimentos. […] Vejo com indignação que muitos dos dedos apontados contra a energia limpa dos biocombustíveis estão sujos de óleo e carvão[17].

Mas o debate registrou reviravoltas. De um lado, as críticas aos biocombustíveis poupam o caso da cana-de-açúcar. Insuspeita de condescendência com o agronegócio, a Oxfam, organização não governamental inglesa dedicada ao combate à pobreza no mundo e muito ativa na África, publicou um relatório afirmando que a cultura de biocombustíveis empobreceu 30 milhões de pessoas em várias partes do mundo. Porém, o diagnóstico em relação ao Brasil é diferente e bem favorável: “Embora a produção de etanol brasileiro esteja longe de ser perfeita e apresente vários problemas sociais e de sustentabilidade ambiental, este é o mais favorável biocombustível no mundo em termos de custo e equilíbrio de gases do efeito estufa”. De quebra, o relatório fustiga “as políticas protecionistas dos países ricos que travam as exportações do etanol brasileiro[18]”.

Por outro lado, aumentam as críticas à exploração dos trabalhadores nos canaviais brasileiros. Volta-se, portanto, a uma questão fulcral. Depois de estimular a escravidão e o tráfico negreiro durante três séculos, depois de um século de semiescravização de trabalhadores brasileiros, a cultura de cana-de-açúcar poderá cessar de explorar a mão de obra que utiliza? A indústria canavieira é compatível com as normas do direito trabalhista e da previdência social?

Na verdade, as pesquisas recentes demonstram que os estragos sociais não cessaram. O trabalho do cortador de cana, pago por “tarefa”, isto é, pela quantidade de cana cortada, constitui uma forma precária de assalariamento que dá lugar a uma exploração medieval. Fazendo gestos repetitivos no calor escaldante, mal alimentados, sem atendimento médico, os cortadores de cana adoecem e às vezes morrem de cansaço. O aumento das exigências de produtividade intensifica a cadência do trabalho. Pedro Ramos, pesquisador da Unicamp e especialista no assunto, afirma que muitos dos cortadores de cana “são trabalhadores em um regime de escravidão disfarçada”. Segundo ele, nos anos 1980, um trabalhador cortava quatro toneladas e ganhava o equivalente a r$ 9,09 por dia. Nos anos 2000, cortava em média 15 toneladas e ganhava cerca de r$ 6,88 por dia. Como no início da Revolução Industrial oitocentista, o aumento da produtividade intensifica a cadência do trabalho e a exploração dos trabalhadores. Em São Paulo, 400 mil homens e mulheres trabalhavam no corte de cana. No Brasil inteiro o número chegava a 1 milhão[19].

Neste contexto, o passado mal sarado de três séculos de escravidão volta à tona. Em abril de 2007, dias após Lula saudar os usineiros, agentes da salvação da lavoura e do planeta, uma blitz do Ministério do Trabalho descobriu cortadores de cana submetidos a uma situação subumana numa grande usina paulista. De quebra, o procurador Luís Henrique Rafael, do Ministério Público do Trabalho, disse que essa situação é comum em São Paulo, estado de onde sai 60% da produção nacional de etanol. Pouco antes, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, tentou moderar os ataques aos usineiros, burladores contumazes da legislação trabalhista, dizendo: “São situações residuais, porém inaceitáveis”. Mas advertiu: “Os empresários brasileiros precisam ficar atentos: qualquer repercussão negativa no mercado de trabalho poderá significar restrições para exportações de nossos produtos[20]”.

Tudo isso porque o The Guardian escreveu sobre o estatuto de “quase escravos” em que viviam os cortadores de cana no Brasil. Acusação imediatamente rebatida pelo embaixador brasileiro em Londres[21].

Vem à memória o paralelo histórico com a hostilidade internacional – e as investidas da imprensa inglesa – que o Brasil enfrentou entre 1831 e 1850, quando era o único país independente praticando a pirataria negreira. Na época, o açúcar brasileiro foi sobretaxado nas alfândegas britânicas porque era slave-grown sugar (cultivado por escravos), e não o free-grown sugar (produzido por lavradores livres). O assunto era polêmico na própria Inglaterra, mas acabou levando o Brasil a extinguir o tráfico negreiro em 1850[22].

O chanceler Amorim deve ter se lembrado disso tudo porque, segundo consta, o assunto é estudado no Instituto Rio Branco. A frase-chave do entrevero oitocentista foi proferida pelo então chanceler inglês Lorde Palmerston, em 1848, na CPI sobre o tráfico negreiro no Parlamento de Londres:

No Brasil, a quantidade de terras que podem ser cultivadas, se houver uma oferta ilimitada de trabalho, é incalculável. É um grande equívoco acreditar que o temor de tumultos sociais pode levar os brasileiros a reduzir a importação de escravos africanos. Tais perigos só teriam efeito quando atingissem uma dimensão capaz de fazer o governo brasileiro reagir. No meio-tempo, nossa produção de açúcar das Antilhas [britânicas] já teria sofrido o impacto do enorme aumento da produção de açúcar brasileira[23].

Ou seja, os ingleses achavam que, se deixassem o Brasil produzir açúcar barato, de qualquer jeito, com o braço africano, decretavam a falência de seus canaviais na Jamaica, onde a escravidão já havia sido abolida. Naturalmente, não era só por filantropia que eles se opunham ao tráfico negreiro. Mas sua ação ajudou a acabar com essa barbaridade em nosso país.

Regressão ou progresso? Mutação ou continuidade? Trazendo para o presente cinco séculos de história, a agroindústria açucareira serve de ilustração para pensar o Brasil na nova divisão internacional do trabalho.

Notas

  1. Fernand Braudel. Ecrits sur l’histoire, Paris: Flammarion, 1969, reed. 1977. Ver ainda a esse respeito Gérard Noiriel, “Comment on récrit l’histoire. Les usages du temps dans les Écrits sur l’histoire de Fernand Braudel”, na Revue d’histoire du XIXe siècle, n. 25, 2002. Número dedicado ao tema “O tempo e os historiadores”.
  2. Numa perspectiva mais ampla, Sidney Mintz escreveu um precioso livro sobre as metamorfoses do açúcar, Sidney W. Mintz, Sweetness and power – The place of sugar in modern history, Nova York: Viking, 1986.
  3. Ambrósio Fernandes Brandão, “Diálogo primeiro”, Diálogos das grandezas do Brasil (1618), edição de Capistrano de Abreu. Salvador: Progresso, 1956.
  4. Stuart B. Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society Bahia 15501835, Londres, 1985; ed. bras. Segredos Internos – Engenhos e escravos na sociedade colonial, São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Cf. resenha do livro por Francisco de Oliveira e L. F. de Alencastro, “Engenho de sempre”, Novos Estudos Cebrap, nº 24, 1989, pp. 196-202.
  5. Sabe-se que as principais interpretações do Brasil desenvolvem-se em torno de um eixo social dominante que se inscreve na continuidade histórica. Assim, a importância da criação de gado na bacia do rio São Francisco foi posta em relevo por Capistrano de Abreu, em Capítulos de história colonial (1907); as relações escravistas nos engenhos de açúcar são estudadas por Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala, (1933); Caio Prado Jr. analisou o impacto do capitalismo mercantil na sociedade colonial em Formação do Brasil contemporâneo, (1942); Raymundo Faoro se debruçou sobre os privilégios burocráticos em Os donos do poder (1958); Celso Furtado estudou a articulação do mercado interno, fundado na economia do ouro, ao mercado internacional, em Formação econômica do Brasil (1959).
  6. Veja-se a análise desta obra em Regina Horta Duarte, “Com açúcar, com afeto: impressões do Brasil em Nordeste de Gilberto Freyre”, Tempo, Rio de Janeiro, n. 19, pp. 125-147.
  7. Evaldo Cabral de Mello, “O fim das casas-grandes”. Em: L. F. de Alencastro, História da vida privada no Brasil Império: a corte e a modernidade nacional, vol. ii, São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 386-440.
  8. Graciela de Souza Oliver e Tamás Szmrecsányi, “A Estação Experimental de Piracicaba e a modernização tecnológica da agroindústria canavieira (1920 a 1940)”, Revista Brasileira de História, 2003, vol. 23 (46), pp. 37-60.
  9. Barbara Nunberg, “Structural Change and State Policy: The Politics of Sugar in Brazil Since 1964”,

    Latin American Research Review, vol. 21, n. 2, 1986, pp. 53-92.

  10. The Times, 3 maio 1976, p. 37.
  11. “As mentes brilhantes do etanol brasileiro”, entrevista com o físico José Walter Bautista Vidal, um dos criadores do Proálcool, publicada no site do Centro de Tecnologia Canavieira. fundado em 1969, em Piracicaba, pela Coopersucar, e que reúne atualmente 173 associados, representando mais de 55% da produção nacional de cana-de-açúcar. Disponível em: <http://www.ctcanavieira.com.br/index. php?option=com_content&task=view&id=65&Itemid=26>. Acesso em: jul. 2008.
  12. America’s Greenest States”, Forbes, 17 out. 2007. Disponível em: <http://www.forbes.com/business/2007/10/16/environment-energy-vermont-biz-beltway-cx_bw_mm_1017greenstates.html>. Acesso em: jul. 2008.
  13. La Nación, 10 ago. 2007. Disponível em: <http://www.nacion.com/ln_ee/2007/agosto/10/ultima- sr1199181.html>. Acesso em: jan. 2017.
  14. Folha de S.Paulo, 20 mar. 2007. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ul– t96u90477.shtml>. Acesso em jan. 2017.
  15. Francisco de Oliveira, ”O pós-moderno”, Folha de S.Paulo, 27 maio 2007.
  16. Folha de S.Paulo, 4 jun. 2008. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ul– t91u408756.shtml>. Acesso em: jan. 2017.
  17. Folha de S.Paulo de 3 jun. 2008. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ul– t91u408450.shtml> Acesso em: jan. 2017.
  18. Disponível em: <http://www.oxfam.org.uk/resources/policy/climate_change/downloads/bp114_ inconvenient_truth.pdf> Acesso em: jul. 2008.
  19. UOL Economia, 7 mar. 2007. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/economia/ultnot/efe/ 2007/03/07/ult1767u88021.jhtm>. Acesso em: jan. 2017. Vejam-se também vários artigos sobre o assunto na Folha de S.Paulo, 29 abr. 2007.
  20. Folha de S.Paulo, 21 mar. 2007.
  21. The Guardian, Londres, 17 mar. 2007.
  22. Abordei o tema em várias ocasiões e, ultimamente, em posts de meu blog: <http://sequenciasparisienses.blogspot.com>
  23. Abordei o tema em várias ocasiões, como em “Le versant brésilien de l’Atlantique Sud 15501850”. An-

    nales, 61 (2), mar-abr. 2006, e, ultimamente, em posts de meu blog: <http://sequenciasparisienses. blogspot.com>.

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