Dilemas da moral iluminista
Resumo
Quais são os princípios característicos do pensamento moral da Ilustração? Fazendo um balanço da atualidade à luz desse legado, verifica-se em que medida seria possível reconstruir, a partir da experiência original da Ilustração, algo que parecesse uma ética iluminista e abre-se caminho para uma fundamentação racional da ética mostrando como o eudemonismo, que foi repudiado como atitude anti-social e hostil à ética do trabalho, permite ao indivíduo completar sua psicogênese, acendendo ao estágio do pensamento crítico e realizar a palavra de ordem kantiana – pensar por si mesmo, qualquer que seja a opinião do seu vizinho, da sua cidade ou do seu país. É preciso repensar o universalismo da Ilustração e a diversidade, e postular, além das diferenças, a necessidade de reinventar o que todos os homens têm em comum.
I
Esta palestra, cujo título foi sugerido por Adauto Novaes, é uma etapa no processo de reflexão que venho fazendo há algum tempo sobre a possibilidade da construção ou reconstrução de um Iluminismo moderno, a partir de metodologia proposta em Razões do Iluminismo. Trata-se de uma distinção entre Ilustração, considerada como uma corrente intelectual historicamente situada, correspondendo ao movimento de ideias que se cristalizou no século XVIII em torno de figuras como Voltaire, Rousseau, Diderot etc., e Iluminismo, que seria uma tendência transepocal, não situada, não limitada a uma época específica — algo como uma destilação teórica da Ilustração.
Usei essa distinção em palestras na antiga Funarte, por exemplo, no ciclo “O olhar”. Tentarei hoje aplicar essa metodologia ao tema da ética.
Isso significa, em primeiro lugar, resumir as principais características do pensamento moral da Ilustração. Em segundo lugar, farei um balanço do nosso presente à luz desse legado. Enfim, verificarei em que medida seria possível reconstruir, a partir da experiência original da Ilustração, algo que se parecesse com uma ética iluminista.
II
Começarei com uma análise muito rápida da filosofia moral da Ilustração, a partir de três de suas características principais: o cognitivismo, o individualismo e o universalismo.
Chamo cognitivista aquela atitude intelectual que postula a possibilidade de uma ética capaz de prescindir da religião revelada e que, em princípio, não vê diferença categorial entre o conhecimento do mundo empírico e o conhecimento do mundo moral: a mesma razão capaz de desvendar as estruturas do mundo natural é capaz de descobrir os fundamentos do comportamento moral e da norma ética. Visto nesses termos, o pensamento moral da Ilustração foi absolutamente cognitivista.
A rejeição da religião revelada era a essência desse pensamento. Ele repudiava a fé institucionalizada e sustentava a possibilidade de construir uma sociedade ética, uma sociedade justa, sem que esta precisasse depender dos ensinamentos da religião. Foi o chamado paradoxo de Bayle, filósofo anterior à Ilustração, mas que a influenciou decisivamente. Ele dizia que uma sociedade de ateus pode ser mais ética que uma sociedade baseada na religião. Estou falando do final do século XVII; essa ideia chocou imensamente os pudibundos, os piedosos, e Bayle só não foi parar na fogueira porque teve a prudência de escrever na Holanda, país em que a Inquisição não era muito popular. Mas essa ideia de que a moral é dissociável da religião difundiu-se muito no século XVIII e praticamente todos os filósofos da época aderiram a esse “paradoxo”, radicalizando-o. Para eles, a religião não somente não era necessária para fundar o comportamento virtuoso como o impedia. Voltaire, por exemplo, dizia que os maiores massacres da história, as maiores abominações da humanidade tinham sido praticados em nome da religião e citava a propósito a Noite de São Bartolomeu. Como vocês sabem, esse foi um dos episódios mais sinistros das guerras de religião que assolaram a Europa no século xvi. A ideia dos filósofos era que, uma vez afastado o fundamento religioso, seria possível basear a moral em fundamentos leigos, seculares.
Quanto à natureza desses fundamentos, a Ilustração propôs basicamente três respostas.
Primeiro, a jusnaturalista. A moral podia ser fundada a partir da conformidade do comportamento humano com a lei da natureza. Rousseau dizia que a natureza gravou em nossos corações os critérios que permitem julgar soberanamente quanto ao bem e ao mal, o justo e o injusto. O fundamento último, portanto, era uma razão natural, uma natureza universal, igual em todas as latitudes, comum a todos os homens.
A segunda resposta foi empirista, a partir da filosofia sensualista de filósofos como D’Alembert, Holbach e Helvétius. Diziam eles que o homem é um animal organizado, sujeito a paixões e que se relaciona com o mundo exterior basicamente através das sensações. O fundamento da moral seriam as sensações do prazer e do desprazer, do agradável e do desagradável. O homem naturalmente é movido pelo desejo de buscar o seu prazer e de evitar o desprazer, e nisso consiste o seu interesse. É esse o fundamento da moral, um fundamento leigo, puramente imanentista.
E, finalmente, a terceira resposta diz que a norma se funda na conformidade com a própria razão. Foi a resposta de Kant. Para ele, a moralidade não se funda nem na natureza nem nas sensações, mas na razão. Não pode se fundar na natureza porque a natureza é o mundo do determinismo e a moralidade supõe a existência da liberdade; e não se pode fundar no interesse porque o interesse é a esfera da heteronomia, a esfera do que existe de externo à razão livre do homem. Ele dizia que a moralidade se funda num procedimento interno à própria razão. Aqueles que leram Kant sabem do que estou falando: é o famoso imperativo categórico, procedimento pelo qual o indivíduo testa a máxima de suas ações para saber em que medida ela é generalizável. Se essa máxima for generalizável, se for suscetível de ser querida por todos, sem contradição interna poderia aspirar ao estatuto de lei moral universal.
São essas as principais orientações da filosofia ética da Ilustração. Comum a todas é a ideia de que a moralidade pode prescindir da revelação, de que é possível fundá-la em algo mais que em sua conformidade com os dez mandamentos.
Os partidários da lei natural diriam que o preceito “não roubarás” deriva da própria natureza das coisas, deriva do critério gravado em todos os corações humanos, que recomenda o respeito à propriedade. Os empiristas diriam que o preceito pode ser justificado pelo desprazer que adviria da sanção sofrida pelo indivíduo que roubasse. Kant diria que a norma “não roubar” pode ser validada pelo imperativo categórico, porque se eu roubar e quiser transformar essa máxima em princípio de minhas ações, convertendo o enriquecimento ilícito em norma universal, todos roubariam, e portanto eu não poderia conservar a posse do bem furtado. Haveria, portanto, uma contradição interna, e com isso a norma seria validada pela própria razão. Em suma, a norma seria legitimada por um fundamento jusnaturalista, um fundamento empirista, sensualista, e um fundamento baseado na própria razão.
A segunda característica da filosofia ética da Ilustração é o individualismo. A Ilustração foi violentamente individualista. O homem era visto como um átomo, como uma mônada. Essas mônadas deveriam unir-se num contrato para constituírem a vida social. Esse individualismo gerou duas consequências.
Primeiro, as velhas éticas comunitárias da Antiguidade foram relegadas a segundo plano. O que importava não eram mais as obrigações do indivíduo com relação à pólis ou com relação ao bem comum. A ética da Ilustração foi hedonista em autores como La Mettrie e Sade, com uma concepção um tanto tosca da centralidade do prazer sensual. Mas ela foi sobretudo eudemonista, preocupando-se com a felicidade, com a autorrealização do indivíduo. Ele devia realizar-se. Devia ser feliz. Essa ética da felicidade seria impensável, por exemplo, numa perspectiva comunitária, em que o bem comum prevalecia sobre a autorrealização individual.
A outra consequência do individualismo da Ilustração foi a ideia do descentramento do indivíduo com relação às normas incorporadas em sua comunidade. O indivíduo, enquanto átomo isolado, era também uma instância soberana capaz de sobrepor-se às regras e às leis embutidas na comunidade, julgá-las do alto, criticamente. Ele podia fazê-lo porque era um indivíduo autônomo, entronizado como tal por todo o pensamento político e por toda a filosofia moral da época. Não era a comunidade que detinha os critérios que permitiam julgar o bem e o mal; era o indivíduo, enquanto ser humano universal, que retirava da voz da natureza, da organização psíquica do homem como ser sensual e passional, ou da própria razão, os critérios que permitiam julgar o bem e o mal, independentemente não só da revelação, mas também da própria moralidade institucionalizada na comunidade.
Estas foram, portanto, as duas consequências do individualismo ético da Ilustração: o eudemonismo, o direito à felicidade e à autorrealização; e o descentramento, o direito à crítica, o direito de assumir uma posição de exterioridade com relação às normas sociais.
A terceira característica do pensamento ético da Ilustração foi o universalismo. Ele se manifestava na concepção de uma natureza humana universal, de princípios universais da validação e de um certo número de normas materiais universais.
Havia a concepção de uma natureza humana universal, segundo a qual todos os homens são iguais em todas as latitudes, têm as mesmas disposições racionais, têm a mesma organização passional, são movidos pelos mesmos desejos, são motivados pelos mesmos interesses.
Havia também a ideia de uma universalidade de princípios de moralidade. Os três princípios validadores do comportamento moral — o direito natural, o empirismo e a conformidade com a própria razão — eram considerados universais. A lei da natureza valia em todas as épocas e países, a organização psíquica e passional do homem era uniforme e o procedimento da universalização e generalização contido no imperativo categórico de Kant era um critério válido em todos os tempos e lugares.
Mas haveria também um universalismo substantivo, postulando não apenas a universalidade da natureza humana ou de princípios formais de validação, mas também a universalidade de normas materiais? Existiria ou não um núcleo invariante de normas universalmente válidas, independentemente da história e da geografia, independentemente das culturas, dos países, das nações, dos séculos? A Ilustração deu a essa pergunta uma resposta bastante sofisticada porque, apesar de sua vocação universalista, ela foi agudamente sensível à experiência da diferença.
Os filósofos da Ilustração eram leitores apaixonados de relatos de viagens, que descreviam as diferenças existentes entre os usos e costumes da sociedade francesa e os das sociedades “selvagens”, como os peles-vermelhas americanos ou os índios brasileiros, que foram objeto de uma reflexão e de uma apropriação bastante interessante no século XVIII.
Além disso, o século XVIII foi também um período saturado de história antiga. Os filósofos não cessavam de se assombrar com o fato de que em Atenas a pederastia era lícita, de que em Roma os pais tinham o direito de vida e morte sobre os filhos, de que em Cartago os sacrifícios humanos eram permitidos, de que em Esparta o roubo era encorajado.
Como era possível que as coisas variassem tanto, no tempo e no espaço? Se tudo é tão diverso, se o que é válido de um lado dos Pireneus não é válido do outro lado, podemos falar numa verdade universal, numa moralidade universal? A resposta dos filósofos em geral foi positiva: sim, porque existe uma diferença entre a natureza e o costume.
Essa é uma dicotomia importante para compreender o pensamento moral da Ilustração. O reino do costume é o da diversidade empírica. É na ótica do costume que o que é válido na França não é válido no Brasil. Mas essa variedade é limitada por um pequeno núcleo de normas invariáveis, que constituem a esfera da natureza. Conscientes da variedade dos usos e costumes, os filósofos não diziam que tudo era universal. Mas, convictos da realidade desse núcleo invariável, não diziam que tudo era relativo.
Aderiam a um modesto universalismo, que se traduzia na convicção de que havia três ou quatro normas universalmente válidas. O conteúdo dessas normas variava de pensador para pensador. Para Montesquieu, elas incluíam o respeito que a criatura deve ao criador, a gratidão que o beneficiado deve ao benfeitor, uma certa proporcionalidade entre pena e crime etc. Para Voltaire, havia o que ele chamava o fundo comum da humanidade, que vigorava em todas as épocas e em todos os climas e que incluía virtudes como a benevolência, ou a proibição de mentira.
Para resumir um pouco esta descrição muito superficial do pensamento moral da Ilustração, digamos que ele se baseava em três ideias centrais: a ideia de que a moral podia ter um fundamento secular; a ideia de que o indivíduo, considerado como célula elementar da sociedade, tinha direito à autorrealização e à felicidade e podia descentrar-se com relação à vida comunitária, criticando-a de fora; e a ideia de que existe uma natureza humana universal, de que existem princípios universais de validação ética, e de que existe um pequeno núcleo de normas materiais universais.
É uma simplificação bastante cirúrgica de um movimento muito mais complexo, mas em alguns momentos a compreensão exige uso do bisturi analítico.
III
Muito bem, qual é a realidade que encontramos hoje em dia? Ao resumir o pensamento moral da Ilustração, tive a impressão de estar falando de um continente perdido, de uma Atlântida submersa. Nada disso nos é mais familiar.
Vivemos num mundo onde não existe nenhuma fé na possibilidade de fundar objetivamente a escolha moral. Vivemos num mundo que desconfia do eudemonismo da Ilustração e que não admite a possibilidade de descentramento do indivíduo com relação a sua comunidade. E vivemos numa época dominada cada vez mais pelos diversos particularismos, que negam a existência de verdades universais ou de uma moralidade universal.
O século XX, com efeito, de modo geral é anticognitivista, isto é, nega a possibilidade de fundamento para o comportamento moral. Essa posição deriva em grande parte de revisão positivista de Kant. Este admitia a existência de uma razão teórica, competente para os fatos do mundo empírico, e uma razão prática, competente para lidar com as questões morais. O positivismo contemporâneo nega a existência da segunda razão, da razão prática. Ora, à luz da razão teórica, somente são consideradas válidas as proposições empiricamente verificáveis ou as proposições tautológicas da lógica e da matemática. E, como as proposições normativas da ética não são nem factuais nem tautológicas, elas simplesmente não têm existência, são proposições não significativas. Em consequência, não há possibilidade de fundamentar o julgamento moral à luz da razão. Esta só pode julgar a melhor correlação possível entre meios e fins, mas tais fins são fixados por critérios extrarracionais, ditados seja pelo interesse pessoal, seja pela utilidade social, seja por razões inconscientes. A razão como tal não pode julgar esses fins.
Outra corrente vai mais longe ainda. É o chamado racionalismo crítico, de Popper. Para os popperianos, a ideia do fundamento último é compatível com o falsificacionismo, que está na base de toda ciência objetiva. Se a proposição apresentada como fundamento último escapar à possibilidade da falsificação, nesse caso é uma proposição vazia; e se for falsificada, nesse caso não há fundamento nenhum. Os racionalistas críticos se referem ao trilema de Munchhausen: qualquer tentativa de estabelecer fundamentos últimos leva seja a uma regressão infinita, seja a um círculo lógico, seja à interrupção dogmática do processo de raciocínio e de argumentação, pela seleção arbitrária de certas premissas.
Em suma, os positivistas dizem que não há como justificar racionalmente o mundo da moral porque a moral não tem nada a ver com a razão, e sim, no máximo, com as emoções ou com as conveniências sociais; e o racionalismo crítico dos popperianos vai além, afirmando que, ainda que fosse possível preencher o fosso que separa o mundo do ser do mundo do dever-ser, não se teria lucrado nada com isso porque não há possibilidade lógica de qualquer tipo de fundamentação última.
A segunda característica da filosofia moral da Ilustração, o individualismo, tem sido criticada em seus dois momentos constitutivos.
O hedonismo e o eudemonismo foram repudiados pela esquerda e pela direita, no primeiro caso como sintomas de decadência burguesa e no segundo por estimularem uma atitude antissocial e hostil à ética do trabalho.
Por outro lado, a ideia do descentramento, tão importante para se compreender a força transgressiva do pensamento da Ilustração, também é negada pela esquerda, por se tratar de uma crítica individualista, e portanto sem eficácia histórica. Mas o descentramento inquieta sobretudo os conservadores e em primeira instância os chamados neoaristotélicos.
Essa corrente, muito difundida na Alemanha, endossa a crítica de Hegel à filosofia moral de Kant. Nessa crítica, Hegel estabelece uma diferença entre a Moralitaet e a Sittlichkeit; entre a moralidade e o que poderíamos traduzir por eticidade. A moralidade é a consciência moral kantiana, que, em seu esplêndido isolamento, decide sozinha, sem precisar prestar contas a ninguém, recorrendo exclusivamente ao procedimento monológico do imperativo categórico, quais são as máximas da comunidade que merecem ser consideradas válidas ou não. Num certo sentido, a consciência ética individual se substitui à consciência ética coletiva. Pelo contrário, a Sittlichkeit, a eticidade, significa aquela esfera da sociedade em que a consciência moral já se concretizou, não na consciência solitária de um indivíduo que, arrogantemente, se atribui o direito de julgar sua comunidade, mas em normas, usos e instituições que dão, em cada caso concreto, soluções evidentes para os dilemas morais vividos por cada indivíduo, sem que ele precise sofrer dilaceramentos existenciais ou recorrer a procedimentos tão perigosos como o de julgar a partir de seu foro interno se determinada norma deve ou não ser considerada válida.
Essa é a essência do anti-individualismo moderno. Ele se manifesta na rejeição do hedonismo ou do eudemonismo da Ilustração, considerados destrutivos e anômicos, e na rejeição do descentramento, considerado uma arrogância de maitres-penseurs, de intelectuais que se julgam com direito de colocar sub judice toda vida social até que ela seja validada pelo procedimento abstrato do imperativo categórico.
Enfim, a última característica da filosofia moral da Ilustração — o universalismo — também vem sendo contestada com bastante veemência. Que significa a ideia de uma natureza humana universal? Todos nós sabemos que a natureza humana varia de clima para clima, de indivíduo para indivíduo, de país para país. Que significam princípios universais de validação? Impossível pressupor que o princípio do imperativo categórico seja válido numa sociedade primitiva. E qual o sentido de falar em normas materiais universais? Ninguém ignora que todas as normas variam no tempo e no espaço.
Vivemos, em suma, um clima radicalmente antiuniversalista. Ele se inspira direta ou indiretamente no Contrailuminismo alemão. Foi uma reação iniciada por Herder contra o que era percebido como um universalismo imperialista francês. Vendo‑se como porta-voz da razão, a Ilustração francesa queria reconstruir em toda parte a cidade dos homens, à luz de princípios universais de justiça. Isso era visto pelas sociedades feudais que cercavam a França, sobretudo no período revolucionário, como uma intolerável ameaça. Consequentemente, a ideia do universalismo ético foi substituída pelo particularismo e pelo historismo. Não existem verdades universais: existe a verdade da França e a da Alemanha. Não há preceitos intemporais, todos eles fincam suas raízes na história. A moralidade está imersa num húmus natal — numa aldeia, numa nação, numa cultura — e só nesse húmus tem vigência: tudo o mais é uma construção delirante de intelectuais desvinculados da realidade.
Essa atmosfera impregna todos os particularismos que caracterizam nossa época. É o caso do particularismo nacional, para o qual o gênio da nação, o Volksgeist, determina o que é verdadeiro ou ético. É o caso do particularismo racista, para o qual existem verdades arianas e verdades judaicas, normas germânicas baseadas na especificidade do sangue e do solo e normas judaicas, cosmopolitas e predatórias. É o caso do particularismo culturalista, muito frequente na antropologia (apesar da existência de correntes universalistas influentes dentro da disciplina), para o qual não existem verdades e valores morais que não se enraízem na cultura e que tenham qualquer validade fora dos limites de cada cultura.
Podemos sentir esse particularismo até em certas variedades do movimento feminista. Tradicionalmente, o feminismo se baseava na ideia iluminista da igualdade de direitos entre homens e mulheres, por sua vez baseada no postulado de que, além das diferenças puramente anatômicas, não existiam outras que pudessem justificar conceitos como o de psicologia feminina, alma feminina, princípio feminino, eterno feminino, e outras banalidades do arsenal machista. O feminismo iluminista (com a exceção mais notória de Rousseau, quase todos os filósofos da Ilustração foram ardentes feministas) se opunha a todos esses estereótipos em nome de sua concepção universalista da natureza humana.
Foi justamente esse universalismo que foi sabotado pelo Contrailuminismo do século xix e parte do século XX. No campo das relações entre os sexos, esse antiuniversalismo timbrou em acentuar a diferença. Pelo fato de ser biologicamente diferente, a mulher deveria também ter uma psicologia diferente, deveria ter uma alma diferente, interesses profissionais diferentes. A sociedade falocrática se organizou para que a mulher pudesse viver plenamente a sua diferença, das clínicas ginecológicas até as revistas de modas. Através dos clichês machistas — a mulher é caprichosa e intuitiva, ela é a figura forte que está atrás do macho solar, ela é o ser inteligente que é suficientemente inteligente para esconder sua inteligência etc. —, o opressor masculino produz incessantemente a diferença. Foi a estratégia da diferença que condenou a mulher ao gineceu e ao serralho.
Ora, há um certo feminismo que parece situar-se exatamente nessa linha diferencialista. Não me refiro à versão brasileira dessa tese, que me parece em geral compatível com o universalismo iluminista — um universalismo concreto, que passa pelo reconhecimento de diferenças reais. Refiro-me ao diferencialismo essencialista, que ontologiza a diferença, e que é comum no movimento americano. Esse diferencialismo me parece semelhante a todos os particularismos que mencionei antes. Fala-se numa moralidade feminina (tese aliás sustentada explicitamente no livro In a different voice, de Carol Gilligan) no mesmo sentido em que os demais particularismos diziam que existe uma moralidade ariana, ou alemã, ou xavante.
Estamos longe das análises de Sartre sobre a constituição do judeu pelo antissemita, que nossa geração transpôs para todos os campos setoriais de opressão: o negro como produção imaginária do branco, a mulher como construção imaginária do homem. O particular era visto como o subproduto de uma prática repressiva.
O que parece ter acontecido em nossa época “politicamente correta” é que a libertação do oprimido passa agora pela confirmação de sua alteridade. Antes dizíamos ao escravo: “Teu opressor te privou de tua condição humana. Abandona a particularidade fraudulenta que ele fabricou para ti e reassume tua humanidade”. Hoje se diz: “Assume tua particularidade e recusa o estatuto humano genérico a que teu opressor quer te reduzir”. Em suma, em vez de recusarem o olhar reificante do opressor, que transforma a história em biologia e a biologia em destino, o negro e a mulher se reconhecem nessa reificação. O negro passa a ser sua epiderme e a mulher passa a ser seu útero.
O universal da Ilustração explodiu em mil estilhaços. Quer se queira quer não, tudo indica que a dispersão é nosso destino.
IV
Bem, esse é o mundo em que vivemos. Esse mundo não tem grande coisa a ver com o mundo elegante e harmonioso da Ilustração. Em nossa ordem ética, a ação moral não tem fundamentos, o que nos condena ao decisionismo ou ao niilismo; o direito à autorrealização não tem uma base sólida, o que nos condena ao hedonismo sem princípios ou ao ascetismo; o direito ao descentramento é contestado, o que nos condena ao conformismo; e não há clima para o universalismo, o que nos condena ao relativismo e à imanência das normatividades particulares.
Ora, isso acontece num momento em que todas as certezas se dissolvem no ar. Com a queda do muro e o colapso do socialismo real, muitos mergulharam na anomia e no vazio existencial.
Essa situação é insustentável, o que gera a necessidade de explorar outros caminhos.
Um deles seria regredir a soluções arcaicas, anteriores à Ilustração.
A tentação mais óbvia é recolocar a moral sobre fundamentos religiosos. O cristianismo tradicional está sempre disponível, mas não faltam alternativas pós-modernas, que vão desde os fundamentalismos, evangélicos ou carismáticos, até o esoterismo. Quando a tradição religiosa não basta, há receitas ecléticas, um pouco de Jung, algum Herman Hesse, Reich em pequenas doses, e muita meditação no interior de pirâmides de cristal, entre um baralho de tarô e um livro de Paulo Coelho.
Outra regressão seria política. Não deixa de ser tentadora a volta às éticas comunitárias, em que todas as respostas eram dadas pelos usos sociais vigentes. O homem abandona o difícil privilégio do descentramento e se recentra no húmus comunitário.
Essas duas regressões são tão assustadoras que devemos pensar em outro caminho: a tentativa de construir uma ética iluminista moderna, a partir da matriz original da Ilustração.
Em outros trabalhos, usei a teoria da ação comunicativa, de Habermas e Apel, como elo mediador entre a Ilustração e o Iluminismo. Podemos tentar o mesmo exercício no campo da moralidade, o que significa tomar como base a ética discursiva.
O ponto de partida da ética discursiva é o mundo vivido (Lebenswelt): o lugar das relações sociais espontâneas, das certezas pré-reflexivas, dos vínculos que nunca foram postos em dúvida. As relações sociais que se dão no mundo vivido assumem, caracteristicamente, a forma da ação comunicativa: um processo interativo, linguisticamente mediatizado, pelo qual os indivíduos coordenam seus projetos de ação e organizam suas ligações recíprocas.
Na comunicação normal, invocamos sempre, implicitamente, pretensões de validade com relação a todos os enunciados. Quando falamos estamos sempre asseverando, tacitamente, que nossas afirmações sobre fatos e acontecimentos são verdadeiras, que a norma subjacente ao enunciado prescritivo é justa, e que a expressão dos nossos sentimentos é veraz. No mundo vivido, essas três pretensões de validade se entrelaçam: a de verdade, a de justiça e a de veracidade.
A coordenação comunicativa entre os interlocutores se dá através da expectativa de que se necessário cada interlocutor poderá justificar essas pretensões de validade. Normalmente, isso se fará sem qualquer dificuldade. Ego apresentará a Alter argumentos para justificar tanto suas afirmações sobre fatos como suas afirmações de caráter prescritivo — dentro de um quadro teórico geralmente aceito, no primeiro caso, ou dentro de uma ordem normativa existente, no segundo. A situação muda quando o que se contesta é a própria validade da teoria ou da norma. Sua problematização requer o abandono do mundo vivido e o ingresso num tipo de argumentação sui generis. É o discurso.
As pretensões de validade correspondentes às questões cognitivas são problematizadas nos discursos teóricos, e as correspondentes a questões normativas, nos discursos práticos. Nos dois casos, os participantes se distanciam do mundo vivido e assumem uma atitude de investigação imparcial do que antes era visto como não problemático. Nos dois casos, a argumentação discursiva tem como ponto de partida a suspensão radical da crença na validade do que havia sido afirmado. Ela é posta entre parênteses, até que se chegue, pelo consenso, à comprovação do enunciado descritivo ou à justificação da norma.
Nos dois discursos, é portanto o consenso que valida a proposição. Mas o consenso precisa ser fundado. Ele será fundado se a argumentação tiver sido conduzida segundo certos pressupostos pragmáticos, como o de que todos os interessados tenham direito de participar do discurso, de que todos os participantes tenham iguais oportunidades de apresentar e refutar argumentos, de que todos os argumentos sejam submetidos ao livre exame de todos e de que nenhum dos participantes sofra qualquer coação.
Dizer que as questões morais podem ser validadas no discurso significa tomar partido contra a tese positivista de que tais questões não são validáveis. Para a ética discursiva, as proposições normativas são tão wahrheitsfaheig, tão suscetíveis de serem falsas ou verdadeiras, como as proposições descritivas. Como estas, as proposições normativas são legitimadas por um consenso fundado. O consenso em questões práticas será fundado quando a argumentação for conduzida segundo uma regra de procedimento derivada dos pressupostos pragmáticos de qualquer argumentação, teórica ou prática. Essa regra é o princípio da universalização, o princípio U. É o seguinte o enunciado do princípio U: “Todas as normas válidas precisam atender à condição de que as consequências e os efeitos colaterais que presumivelmente resultarão da observância geral dessa norma para a satisfação dos interesses de cada indivíduo possam ser aceitos não coercitivamente por todos os envolvidos”.
O princípio U pode ser fundamentado. Ele deriva dos pressupostos pragmáticos de toda e qualquer argumentação discursiva. Cada pessoa que ingressa numa argumentação se obriga intuitivamente a aceitar procedimentos que equivalem ao reconhecimento implícito do princípio.
Podemos a partir dos princípios da ética discursiva tentar resgatar as linhas básicas do pensamento moral da Ilustração e torná-los plausíveis para a construção de uma ética iluminista contemporânea. Para isso, vejamos de novo as três características da moralidade da Ilustração: o cognitivismo, o individualismo e o universalismo.
No que diz respeito ao cognitivismo, vimos que um dos dilemas enfrentados pela moralidade do nosso tempo é que não temos mais critérios para julgar o justo e o injusto, pois o mundo do Sollen, do dever-ser, não está sujeito à jurisdição da razão. Ora, Habermas mostra que não há nenhuma diferença de natureza entre as proposições factuais e as normativas, na medida em que ambas são validáveis pelo discurso.
As proposições factuais serão consideradas verdadeiras não se corresponderem à realidade objetiva, mas se forem objeto de um consenso. O que torna a teoria da relatividade verdadeira não é apenas o fato de que corresponde à realidade, mas o fato de que a comunidade dos cientistas, consensualmente, chegou à conclusão de que o paradigma da relatividade introduzido por Einstein é verdadeiro.
Ora, se isso é assim, a ética discursiva recupera o direito de fundamentar a norma. Como a ética da Ilustração, a discursiva pode afirmar que moral é legitimável por um critério objetivo. Mas a qual dos três critérios da Ilustração se filia a ética discursiva — o jusnaturalista, o empirista ou o imanente à razão? Ao terceiro, o kantiano. Também Habermas funda a validade da norma em seu caráter universalizável, com a diferença de que ele reformula discursivamente o imperativo categórico: o processo de universalização não se dá monologicamente, no interior de uma consciência transcendental, e sim dialogicamente, no interior de um discurso.
A ética discursiva nos permite também responder às objeções do racionalismo crítico — a tese da impossibilidade de qualquer fundamento último — por uma estratégia extremamente astuciosa, que Apel chama de estratégia da contradição performativa. O que ele quer dizer, em outras palavras, é o seguinte: a verdade da teoria comunicativa é tão evidente que mesmo os autores que a contestam admitem implicitamente a realidade daquilo que está sendo criticado. Consciente ou inconscientemente, todos reconhecem que não há argumentação sem a observância de certos pressupostos de qualquer tipo de comunicação discursiva, como o de que todos os interessados são livres, o de que nenhum deles pode ser coagido, o de que todos os participantes têm direitos iguais de apresentar e de refutar argumentos, o de que todos os argumentos têm que ser submetidos ao livre exame de todos etc. Suponhamos que um dos presentes diga que esses pressupostos são falsos. Por exemplo, ele nega que a comunicação linguística implica a invocação de pretensões de validade. Mas ao fazer essa afirmação, ele está invocando para ela uma pretensão de validade. Está dizendo que aquilo que ele está dizendo é verdadeiro, está disposto a defender a validade dessa afirmação pela argumentação, está disposto a admitir que o interlocutor possa recorrer à argumentação, invocando por sua vez uma pretensão de validade. Ou suponhamos que ele queira refutar a tese de que toda proposição deve ser submetida ao livre exame de todos. Ele só pode fazer essa refutação por um ato linguístico da forma: afirmo, isto é, submeto esta tese ao livre exame de todos, que não é necessário submeter esta tese ao livre exame de todos. Ou seja, ele está afirmando, numa parte da frase, aquilo mesmo que está negando na outra parte. Surge assim uma contradição. A partir dela, Habermas pode identificar os pressupostos gerais e necessários de toda a comunicação linguística. Ora, o princípio U deriva desses pressupostos gerais e necessários. Não posso, sem contradizer pressupostos gerais da argumentação, negar que os interesses de todos os participantes de um discurso prático precisam ser respeitados ou que todos eles devam ser isentos de coação. Desse modo, indireto mas eficaz, a ética discursiva valida o seu próprio princípio de validação, o princípio U.
Com isso, o cognitivismo da Ilustração é salvaguardado. Como a filosofia moral da Ilustração, a ética discursiva sustenta que a norma é fundamentável. E, mais rigorosa que a Ilustração, ela fundamenta o próprio critério de fundamentação.
E o individualismo? A ética discursiva é uma teoria não individualista, porque ela se baseia na hipótese de um mundo vivido linguisticamente compartilhado. Não obstante, consegue salvar os dois principais temas do individualismo ético da Ilustração: o direito à felicidade e o descentramento.
O indivíduo só existe em interação, mas essa interação pressupõe o reconhecimento da dignidade e integridade de cada participante. O homem tem direitos como indivíduo, que não podem ser cancelados pelos direitos da comunidade. Entre esses direitos do homem como indivíduo, e não apenas como membro da comunidade, está o direito à autorrealização, segundo seu próprio estilo e sua própria concepção de felicidade. Habermas está tão consciente desse direito que se afasta, nesse ponto, do rigorismo kantiano. Os desejos e afetos, excluídos por Kant por se situarem na esfera da heteronomia, são readmitidos pela ética discursiva, sob a forma dos interesses generalizáveis.
Quanto ao descentramento, a ética discursiva o redefine, expurgando-o de suas características individualistas. O descentramento se dá quando os indivíduos abandonam o mundo vivido e entram num processo de argumentação coletiva. Nesse momento, eles se situam em relação ao mundo vivido numa perspectiva de excentricidade, de exterioridade. Ou seja, o descentramento é coletivo, e não individual, como na Ilustração. É toda uma comunidade argumentativa que rompe as relações espontâneas que seus membros mantinham entre si no mundo vivido e que assume uma postura judicativa e crítica com relação à sua própria sociedade.
Finalmente, a ética discursiva assume sem complexos a herança universalista da Ilustração, nos três aspectos em que ela se manifestou: a concepção de uma natureza humana universal, de um princípio universal de validação e de certas normas substantivas universais.
Ela desafia abertamente o historismo contemporâneo e afirma sem pestanejar que existe, sim, uma natureza humana universal, embora não definida nos termos individualistas, atomísticos, da Ilustração. O universalismo é característico de uma espécie humana que por toda parte se produz e se reproduz simbolicamente a partir da linguagem, o mais universal dos atributos da espécie.
Ela proclama também a universalidade do seu princípio de validação, o princípio U, versão comunicativa do imperativo categórico. Sem dúvida, a vigência plena desse princípio é mais fácil numa sociedade moderna, cujo sistema político oferece condições adequadas para assegurar a comunicação livre, que numa sociedade primitiva, cuja moldura político-institucional proíbe ou desencoraja a abertura de discursos problematizadores. Mas não há sociedade sem linguagem e não há linguagem sem pelo menos uma virtualidade discursiva, e, como todo discurso pressupõe a validade de U, este é um princípio necessariamente universal.
É possível, enfim, a partir de uma perspectiva discursiva, comprovar a existência de um núcleo mínimo de normas universais. Quais são elas? Simplesmente as que estão contidas nas estruturas de interação e da comunicação discursiva. A mera ideia da comunicação já aponta para o valor do entendimento mútuo e para a norma da não violência. Cada pretensão de validade remete a um valor: a vinculada às proposições factuais remete à verdade, a vinculada às proposições prescritivas remete à justiça, a vinculada às proposições subjetivas remete à veracidade. Os pressupostos pragmáticos do discurso são férteis em normas e valores. O pressuposto de que todos os indivíduos têm direitos idênticos de apresentar e refutar argumentos remete à ideia da igualdade; o pressuposto de que nenhum indivíduo deve ser coagido remete à ideia de liberdade; o pressuposto de que nenhum deve ser excluído remete à ideia da não discriminação. Em suma, há elementos de uma ética material incrustados nas estruturas formais da interação e do discurso, e, como essas estruturas são universais, aquela ética também é universal.
V
Teria eu conseguido, com isso, fazer a mediação, no campo da moralidade, entre a Ilustração e o Iluminismo? Certamente não. Mas creio ter demonstrado que essa passagem não é impossível.
Indiquei o caminho para uma fundamentação racional da ética. Mostrei como o eudemonismo da Ilustração pode ser incluído numa ética iluminista. Coloquei o direito ao descentramento no cerne da moralidade iluminista, pois é ele que permite ao indivíduo completar sua psicogênese, acedendo ao estágio do pensamento crítico, e realizar plenamente a palavra de ordem kantiana — sapere aude — pensando por si mesmo, qualquer que seja a opinião do seu vizinho, da sua cidade ou de seu país. E propus uma pista para repensar o universalismo da Ilustração, reconhecendo plenamente o pluralismo e a diversidade, mas postulando, acima das diferenças, além das diferenças, a necessidade de reinventar o que todos os homens têm em comum.
A utopia iluminista é a de uma ética fundada na razão, voltada para a felicidade, capaz de julgar e criticar o existente, e tendo como telos uma comunidade argumentativa sem fronteiras, em que a igualdade não signifique nivelamento e em que a universalidade não leve à dissolução do particular.