2017

Fontes passionais da violência

por Jorge Coli

Resumo

A razão, que é naturalmente associada à ordem, exige vigilância para que não se perca no caos e na violência. Mas essa vigilância não pode ser permanente, pois “nem a paz nem a violência são perenes e imóveis”, ademais, a ordem não existe sem o caos. Essa consciência é refletida na mitologia grega e no profundo conhecimento sobre a condição humana que suas lendas contêm. Os homens do Renascimento assimilaram e imolaram tal conhecimento. Para ilustrar tal consciência tomaremos dois quadros de pintores célebres: Vênus e Marte (1483) de Botticelli e Vênus, Marte e Cupido (1490) de Piero de Cosimo. Em ambas as obras, Vênus, que simboliza o amor que harmoniza e fecunda, vigia o sono de Marte. A mensagem é clara sobre a simbologia dos dois deuses assim representados: a força da paz contém por algum certo tempo a violência latente. Mas o deus da guerra há de despertar e a paz não poderá sempre conter o seu ímpeto, sua natureza. Já no século X a.C., Homero descreveu a preparação de Marte para a batalha: “Ao terror e ao medo ele ordena que atrelem seus corcéis, enquanto de suas cintilantes armas vai se vestindo” (Ilíada, Canto XV). Ordem e violência aparecem também em duas faces da obra de Goya: a primeira é revelada nos retratos de aristocratas espanhóis e a segunda em suas gravuras, habitadas por criaturas sombrias, por cenas desoladoras e caóticas, como em O sono da razão produz monstros (1799). A arte frequentemente conjura a violência, seja por meio de sua representação explícita ou, ao contrário, evitando-a expressamente. “A arte pode impedir de ver o túmulo, mas o pressupõe”, escreveu Baudelaire. Partindo dessa consideração, um quadro aparentemente insuspeito e pacífico esconde uma violência e tensão latentes a partir de um olhar mais aprofundado: é o que se constatará a partir da análise de o Caipira picando o fumo (1893) do pintor paulistano Almeida Júnior.


A violência é, de imediato, agente e aliada do caos. É preciso uma ordenação do mundo para que tudo ocorra: a passagem do caos à ordem como início primordial é uma figura reiterada nas cosmogonias. No princípio era o caos e depois surge a ordem que faz com que o ser seja.

A ordem pressupõe razão: a ciência é o encontro da razão própria à ordem natural com a razão que é inerente ao espírito humano. Essa é a convicção iluminista. No entanto, o triunfo da razão e da luz foi imediatamente sentido como frágil e efêmero. Francisco Goya, na célebre gravura O sono da razão produz monstros, criou um emblema. A razão pressupõe a vigilância contínua e impossível justamente porque ininterrupta. Ou seja, a inércia da ordem conduz ao caos. Para escapar dele é preciso um esforço racional reinstaurador.

Pintores do Renascimento criaram quadros que são, ao mesmo tempo, alegóricos e filosóficos. Botticelli ou Piero di Cosimo representaram Vênus e Marte deitados, um diante do outro. Marte dorme enquanto Vênus vigia. Estamos aqui como que diante de uma gangorra em que Eros – o amor que agrega, harmoniza e fecunda – opõe-se a Anteros – o agente desagregador do retorno ao nada, ou ao caos. Vênus, ou seja, o amor, opõe-se à violência que destrói, desfigura, desordena, mas a completa, alternando-se a Marte. Essas obras implicam uma contínua alternância entre o que conduz ao ser e o que leva ao não ser. Dito de outra maneira: elas sabem que o ser depende do não ser dentro de um devir cíclico. Aquilo que imaginamos como ordem estável é apenas o eixo da

Francisco de Goya, Capricho no 43: O sono da razão produz monstros, 1799.

Sandro Botticelli, Vênus e Marte, 1483, 69  173 cm. National Gallery, Londres.

Piero di Cosimo, Vênus, Marte e Cupido, c. 1490, 72  182 cm. Staatliche Museen, Berlim.

gangorra. Há um sobe e desce contínuo que nega os processos ideais das determinantes concebidas pelas ordens racionais, em sua presunção de eternidade estática.

Nem a paz nem a violência são perenes e imóveis. Os quadros florentinos o indicam: Vênus é amante de Marte, e no jogo fusional das pulsões, aquilo que é se desdobra em ciclos: o inverno é a estação da desagregação, de Anteros, de Marte; o verão, da fecundidade, de Eros, de Vênus.

Os neoplatônicos florentinos nos indicam: temos que assumir, portanto, a violência necessária para que exista o equilíbrio. Marte desagregador, herdeiro do caos original, torna-se, ele próprio, fecundador. A ordem não existe sem o caos, sem aquilo que pode ser posto em ordem. A difícil

consciência de que o modo violento é parte do mundo e do humano repousa sobre a incorporação da violência como dado inevitável. “Ao terror e ao medo ele ordena que atrelem seus corcéis, enquanto de suas cintilantes armas vai se vestindo”: assim Homero, no canto xv da Ilíada, descreve Marte em sua fúria.

Gostaria de propor alguns aspectos, muito parciais, que permitem perceber setores dentro desse tema, tão vasto.

1) As experiências do medo, do terror e da violência são frequentes no mundo de hoje. Elas estouram em todo o planeta. Violência das guerras, dos atentados terroristas; violência nos naufrágios causados por travessias desesperadas, os mais pobres desejando atingir o eldorado dos países ricos. Violência contínua, convivencial, numa sociedade como a nossa: é o demônio solto na sociedade em que vivemos, alimentado pelo tráfico de drogas, munido de armas performantes, poderosas e atuais.

Essas formas, e muitas outras, se dão pela brutalidade, pelo sangue, pela destruição do corpo, desencadeando o terror visual. Elas foram, desde sempre, desde as tragédias gregas aos atuais filmes de horror, fontes ininterruptas para nossas experiências catárticas no campo artístico.

Por meio das artes experimentamos, de modo violento, o medo e o terror. Mas trata-se de uma experiência que exclui os danos verdadeiros que ocorrem na vida de todos os dias. É uma percepção feliz da violência, por assim dizer. Voluptuosa. Da mesma maneira que experimentamos paixões e emoções inatingíveis no campo do real ao qual pertencemos. Isso nos leva também a conjurar os perigos verdadeiros, ou antes, a situá-

-los numa inconsciência consciente: penso em Baudelaire referindo-se ao bufão e mímico Fancioule (“Une mort héroique”, poema em prosa que pertence ao conjunto Le spleen de Paris, escrito entre 1855 e 1864): “Fancioule me provava, de maneira peremptória, irrefutável, que a embriaguês da Arte é mais apta do que qualquer outra a velar sobre os terrores do golfo; que o gênio pode representar a comédia na beira do túmulo com uma alegria que impede de ver o túmulo, perdido como está num paraíso excluindo toda ideia de tumba e de destruição”. A arte pode impedir de ver o túmulo, mas o pressupõe.

O horror evidente originado pela violência, e figurado pela arte, depende de uma ação direta e clara. O célebre filme de Tobe Hooper, O massacre da serra elétrica (1974), é um exemplo que vem de imediato ao espírito:

a serra, que contém em si virtualmente as possibilidades da violência brutal e evidente, é o instrumento dos esquartejamentos abomináveis.

Repulsa, medo, paixões que paralisam as forças racionais da ordem. Aqui chegamos ao vínculo entre os impulsos e a violência evidente. E ao ponto de abordar o segundo painel da violência, menos perceptível.

2) Ordo ab chao (a ordem a partir do caos) é um velho lema alquímico, maçônico, cosmogônico. Não preciso insistir aqui na oposição entre os dois.

A ordem é uma imposição: é ela que dispõe o cognoscível, o construído, o reconhecível. O velho poeta inglês John Dryden descreveu em um poema, no fim do século XVII, o surgimento do cosmos:

Quando a natureza jazia sob átomos discordantes, e não podia levantar sua cabeça, a voz melodiosa foi ouvida do alto: levantai, vós que sois mais do que mortos. E então o frio, o quente, o úmido e o seco saltaram na ordem de suas estações.

Portanto, a ordem, que parecia o avesso da violência, que surgia fecundada por Eros, metamorfoseia-se em imposição, por benigna que seja. Determinar, impor, ordenar: são verbos que pressupõem clara satisfação para o espírito racional. Isso, no entanto, se não houver a resistência do caos.

Nesse caso, a violência torna-se inevitável. É dela que quero falar agora: a violência que se insere por vezes sutilmente, por vezes escancaradamente, no âmago da ordem. Permitam-me analisar mais longamente um caso de ordem violenta no campo da pintura. Trata-se de Caipira picando fumo, quadro de Almeida Júnior.

Há uma ordem geométrica na arte de Almeida Júnior. Trata-se de uma intuição exigente e infalível, uma ossatura rigorosa que encontra não leis de equilíbrio, mas de estabilidade, sem as quais, para ele, a pintura não pode existir. A geometria é sua grande aliada. Ela ordena a natureza e os seres. Caipira picando fumo é uma obra-chave para a compreensão desses procedimentos.

O caipira pertence, por evidentes razões culturais, ao fragmento de cenário que descobrimos por trás dele. A parede de taipa escalavrada, a porta com rachaduras e tábuas mal ajuntadas, a camisa de algodão, a calça de brim, a ceroula que aparece na altura da canela, o cigarro de palha,

Almeida Júnior, Caipira picando fumo, 1893, 202  141 cm. Pinacoteca do Estado, São Paulo.

os pés descalços, os restos de milho, o fumo, a faca, tudo se integra na coerência entre o personagem e seu meio. Porém, nenhum desses elementos sugere a citação pitoresca, o complemento destinado a reforçar uma caracterização. Não fazem apenas parte do mundo caipira, porque, em verdade, constroem esse mundo. Basta atentar: a viga, que corta a tela no sentido da largura, é uma forte faixa horizontal, que dá sustentação aos batentes verticais, de mesma espessura: são sólidos como as tramas de um Mondrian criando superfícies retangulares. A esse jogo ortogonal vêm, em reforço, os troncos dos degraus, paralelos à viga; a grade cruzada de pau a pique que se deixa entrever sob o barrote; as tábuas da porta. O caipira, cujos joelhos e cotovelos articulam ângulos em correspondência, quase simétricos, encontra-se diante da junção principal, a do batente com a viga, que ele oculta. Isto é, o personagem cria, visualmente, o ponto central de equilíbrio. Dessa maneira, ele adquire uma presença sólida, inabalável, impondo-se, não como imagem de impacto, mas como imagem de permanência.

O rigor na composição atinge seu apogeu com um achado, necessário e coerente. Ao picar o fumo, o caipira usa uma faca fina e longa. Ela está no centro do quadro, no meio exato de uma cruz formada pelos antebraços, pela costura da braguilha, pela abertura da camisa no peito, cujo v funciona como uma seta, apontando, de cima para baixo. A faca indica a única transversal do quadro, como uma hélice imóvel, fixada no centro, que é assinalado pela unha do indicador direito ao se juntar à do polegar esquerdo. Ela reforça a estrutura de modo singular e se interpõe entre espectador e o personagem. Impõe a distância. A faca é utilitária. Não apenas, porém. Ela também é uma arma. Ela se situa no ponto fulcral, no equilíbrio interno ao quadro. Mas não está apenas no eixo interno, como é possível encontrar naquelas gangorras do Renascimento. Ela se dispõe como uma barragem ao espectador.

No primeiro capítulo de seu livro clássico e admirável, Homens livres na ordem escravocrata, Maria Sylvia de Carvalho Franco trata das formas de violência entre os caboclos. Partindo da análise de processos-crime, ela afirma de imediato: a violência não é exceção, mas constitutiva da relação comunitária. É como se os caboclos vivessem sobre a linha de uma fronteira perigosa, fácil e constantemente atravessada. A paz é falsa. Ou, de um modo mais rigorosamente formulado:

a oposição entre pessoas envolvidas, sua expressão em termos de luta e solução por meio da força, irrompe de relações cujo conteúdo de hostilidade e sentido de ruptura se organizam de momento, sem que um estado anterior de tensão tenha contribuído. A agressão ou defesa à mão armada, da qual resultam não raro ferimentos graves ou morte, aparecem com frequência entre pessoas que mantêm relações amistosas e irrompem no curso dessas relações[1].

Maria Sylvia de Carvalho Franco nos fala do desafio, do afrontamento, essas técnicas sociais carregadas de tensões. Elas são o momento heroico de um cotidiano não heroico. Almeida Júnior nunca representa o afrontamento, nem o seu resultado dramático. Pinta o caipira num cotidiano falsamente neutro, no qual as ações de violência estão contidas. Seus quadros articulam fundo e figura, ligando-os ambos para melhor projetar o personagem como imagem forte, regida geometricamente, mas isolada socialmente. Na frente dessa projeção, a faca. Esse poderoso isolamento impôs as imagens dos caipiras de Almeida Júnior na cultura brasileira.

O caminho que tomei para compreender os quadros caipiras de Almeida Júnior encontra uma conclusão surpreendentemente adequada no extremo fim do primeiro capítulo de Homens livres na ordem escravocrata. A passagem é longa, mas vale ser transcrita:

Nestas existências inteiramente pobres, incipientes no domínio da natureza e rudimentares nos ajustamentos humanos, pouco se propõe ao entendimento do homem, senão a sua própria pessoa. É ela que sobressai diretamente, solitária e despojada, por sobre a natureza; ela apenas constitui o sistema de referência através do qual o sujeito consegue perceber-se. Desde que, nas realizações objetivas de seu espírito, quase nulas, dificilmente lograria reconhecer-se, é aquilo que pode fazer de si próprio e de seu semelhante que abre a possibilidade de autoconsciência: sua dimensão de homem chega-lhe, assim, estritamente como subjetividade. Através dessa pura e direta apreensão de si mesmo como pessoa, vinda da irrealização de seus atributos humanos na criação de um mundo exterior, define-se o caráter irredutível das tensões geradas. […] Em seu mundo vazio de coisas e falto de regulamentação, a capacidade de preservar a própria pessoa contra qualquer violação aparece como única maneira de ser: conservar intocada a independência e ter a coragem necessária para defendê-la são condições de que o caipira não pode abrir mão, sob pena de perder-se[2].

Ao isolar seu caipira, instalando-o para o espectador como pessoa solitária e despojada, representando-o no manejo pacífico de instrumentos que guardam a latência agressiva porque podem se metamorfosear em armas, Almeida Júnior intuiu, com seus meios de pintor, muito do que a socióloga viria, mais tarde, analisar. Expondo de modo tão crucial sua faca, interpondo-a de fato entre si mesmo e o espectador, o caipira protege-se, protege sua autonomia individualizada, protege, pela violência possível, uma identidade. Graças ao rigor da construção pictórica, a violência se inseriu numa ordem prestes a atacar para proteger-se.

* * *

Nós somos sempre assediados pela desordem caótica e violenta. Mas somos assediados também pela violência da ordem. A ordem enlouquecida é mais fácil de constatar: batalhões marchando para a destruição racional e sistemática, tecnologia a serviço dos mais tremendos aniquilamentos, forças policiais desencadeadas contra civis que se manifestam. Esses exemplos, e tantos outros, são largamente evidenciados pelos meios de comunicação.

Mas há outros, insidiosos como aquele de Almeida Júnior. Tomo um exemplo da atualidade. As Olimpíadas nos mostraram atletas treinados desde a infância, por meio da disciplina mais violenta ao encontro do corpo. Essa ordem disciplinar visa a uma satisfação irracional: o ganho de um irrisório centésimo de segundo. Note-se que esse controle de tempo tão ínfimo só pode ser feito por um meio técnico sofisticado, o cronômetro. A tecnologia, que parece tão neutra, impõe suas exigências violentas.

Os pintores do Renascimento nos ofereceram uma relação humanista dialética entre Eros e Anteros, ordem criadora e violência destruidora. Aqueles musculosos atletas – e, neste raciocínio, a dopagem se configura como consequência natural – simbolizam o contrário do humanismo, sacrificando tudo a uma contabilidade fria. É o triunfo da violência inerente, hiperordenada, sobre as faculdades complexas do pensamento.

Notas

  1. Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata, São Paulo: ieb, 1969, p. 22.
  2. 2. Ibidem, p-. 59-60.

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