Fronteiras invisíveis
Resumo
O Brasil e a América Latina, esta principalmente na sua porção sul-americana, herdaram de suas potências colonizadoras o largo contencioso das guerras coloniais, que se prolongaram século 19 à frente com a formação das identidades nacionais. O desenvolvimento das novas nações não resolveu os conflitos, senão que, em certa medida, os agudizou, pela influência combinada do imperialismo inglês e da formação dos novos interesses e classes nacionais.
O Brasil constituiu-se como monarquia, enquanto toda a América Latina desenvolveu-se em repúblicas, o que resultou em não menores conflito. A economia brasileira fincou-se no escravismo, enquanto as principais repúblicas sul-americanas o conheceram só marginalmente, com exceção da Colômbia.
A diferença linguística, embora da mesma árvore românica, impôs-se como uma fronteira invisível, mas muito eficaz, na comunicação entre os povos, o que contribuiu para uma precária formação de uma cultura comum: talvez o catolicismo tenha sido um dos poucos vasos comunicantes entre as formações portuguesa e espanhola.
Nossos heróis não são os mesmos do lado espanhol: Bonifácio não é um nome para argentinos, chilenos, uruguaios, paraguaios, e entre nós San Martin e Bolivar podem ser nomes de praças mas não habitam o imaginário brasileiro. Nossos imperadores, então nem falar: em algum momento, no passado do século 19, eles podiam ser algozes para nossos vizinhos.
Nossos mitos fundadores pouco têm em comum. Mesmo com a advertência da moderna antropologia, permanecem irredutíveis as diferenças entre as culturas autóctones que se formaram no que viria a ser nosso território e as esplêndidas civilizações do Planalto Andino e da Meseta Mexicana. Enquanto os heróis Cuauthemóc, Tupac Amaru inspiram desde um intenso culto cívico-patriótico até lutas políticas e grupos insurgentes, nada de parecido ocorreu no Brasil. Não se anota uma única referência aos índios brasileiros no nível político, nem mesmo quando a oposição à ditadura assumiu um combate armado.
A lista seria longa e quase interminável. Muito recentemente, não faz um século ainda, nossas diferenças deixaram de ser resolvidas à bala.
Mudaram o plano cultural, com forte exportação do cinema brasileiro e forte importação da frondosa literatura fantástica de escritura espanhola, com Garcia Márquez como emblema. O pensamento da Cepal e sua ação haviam começado a formar uma original identidade latino-americana. O planejamento da Cepal iniciou a tentativa de unificação econômica, com a ALALC, que no período das ditaduras foi escanteada pela ilusão de integrar-se no mercado capitalista mundiais, ilusão que ainda persiste. Os esforços de interlocução acadêmica, que floresceram no período de ouro do Clasco, entre 1960 e 1980, dando lugar a um pensamento latino-americano, viram-se frustrados pelas ditaduras e suas preferências imperialistas. O Mercosul apareceu como uma tentativa de ressuscitar, num conjunto mais restrito, a integração nacional. Mas a forte dependência externa plantada pelas ditaduras torna vacilantes os esforços integracionistas.
O que nos une e o que nos separa. O que é a América Latina para os brasileiros? Faz sentido a integração? O cotidiano brasileiro pode ser fecundado pelo contato com a América Latina? Para o homem do povo, o que é a América Latina? Não se pretende exaurir tão forte pergunta, mas apenas retomar uma tradição interrompida, talvez com a certeza de que, se o neoliberalismo nos avassalou e ao mesmo tempo fechou as portas do centro desenvolvido, talvez seja tempo de transformar nossos defeitos em virtudes. Até onde ser latino-americano pode nos ajudar a sermos universais?
Singularidade ou isolamento?
Como todo país quase continental, o Brasil tem enormes dificuldades de abrir-se para maior intercâmbio com outras nacionalidades e nações, sobretudo aquelas que nos são vizinhas. Não por especiais xenofobias étnicas, religiosas ou de classe: entre os fins do século XIX e primeiras décadas do XX, tornamo-nos um dos maiores recebedores de imigrações, sobretudo italiana e japonesa, assim como das que formaram pequenas comunidades alemãs, polonesas, além de um amplo leque de imigrantes dos países do Oriente Médio, principalmente libaneses. Os judeus vieram de variada procedência, com ênfase para os provenientes da Europa central. Tanto a recepção quanto a adaptação não se fizeram sem problemas, mas talvez apenas em pouquíssimos casos tenham-se transformado em mútuas agressões. Vale marcar que nunca houve uma migração maciça proveniente da própria América Latina, embora o Brasil tenha-se beneficiado algumas vezes da “drenagem de cérebros” no auge das repressões argentina e uruguaia, recebendo técnicos, pesquisadores e professores universitários.
Um capítulo especial poderia ser aberto à migração dos negros da África, transformados em escravos. Mas, tendo chegado ainda no século XVI, eles de fato são cofundadores do Brasil, tanta é a presença do negro em nossa formação, que ficaria artificial considerá-los uma “nacionalidade” à parte que colocasse problemas para sua integração. Sabe-se o que custou aos negros o opróbrio do duro regime escravista, mas esse opróbrio foi parte da formação dos “brasileiros”. O que não alivia a questão, mas por sua singularidade destaca-a de qualquer consideração no meio de outros processos de intercâmbio.
Quanto à migração de brasileiros para outras paragens, ela era praticamente inexistente até a década de 1980, quando o rápido desenvolvimento das décadas anteriores foi substituído por uma longa estagnação, e o desemprego empurrou brasileiros para tentar a vida fora. Os Estados Unidos são os maiores receptores de brasileiros, e há enormes comunidades em alguns pontos, como a que se agrupa nos arredores de Boston, formada sobretudo por mineiros de Governador Valadares e vizinhanças. A Europa também os recebe, mas em quantidades bem menores. E não há migração expressiva para outros países da América Latina, até mesmo porque atravessam, como nós, um período de longa estagnação econômica. Salvo os que se internaram no Paraguai, a partir dos anos 1970, para plantar soja, que são conhecidos como “brasiguaios” e que têm perturbado, por vezes, as relações com o país hospedeiro.
De fato, a migração de latino-americanos para os Estados Unidos transformou-se numa das grandes fontes de ingresso de dólares, mesmo para o Brasil são remetidos cerca de 5 bilhões de dólares anuais pelos que para lá se transferiram. O México tem a remessa de dólares dos seus que vivem e trabalham nos Estados Unidos como sua segunda fonte de divisas, maior mesmo que a gerada pela exportação de petróleo. Cuba depende, em grande medida, da remessa de cubanos para suas famílias que permaneceram na ilha, para aliviar a enorme carência de moedas fortes da economia cubana.
As enormes desigualdades regionais e de classe têm absorvido o melhor dos nossos esforços. Convém notar que a própria integração nacional, no sentido da formação de um único mercado, é muito recente, datando dos anos 1930, por dificuldades de transporte e de comunicação, embora a unidade política esteja assegurada pelo menos desde a segunda década do século XIX. A verdadeira dificuldade residiu, entretanto, na forma de “arquipélago” das várias economias regionais brasileiras, voltadas para a exportação de bens primários para a Europa, com o mercado interno nacional desempenhando um papel claramente secundário. A grande exceção no período colonial foi o caráter transicional da economia de Minas Gerais, fazendo uma ponte entre o “Norte agrário” (a expressão é de Evaldo Cabral de Melo) e o “Sul pecuário”, como nos explicaram Caio Prado Jr. e Celso Furtado.[1]
Não se subestimem essas dificuldades em relação à “Nuestra América”. Somos o único país de fala portuguesa; nosso desenvolvimento político deu-se pós-independência, sob uma forma monárquica de governo, enquanto toda a América optou pela república. Pela própria história colonial e por diferenças nos processos de independência, nossos “pais fundadores” não nos são comuns: enquanto boa parte da América do Sul cultua Bolívar, San Martín, Sucre, O’Higgins e Miranda, nosso herói da independência foi o próprio herdeiro da Coroa portuguesa.
Recuando às culturas autóctones fundadoras dos nossos povos, não tivemos no Brasil culturas do porte e do estágio equivalentes aos impérios inca e asteca e à civilização maia, o que nos priva de um laço identitário que não é irrelevante em processos de busca de integração. Cuauhtémoc e Tupac Amaru não têm equivalentes míticos no Brasil, mesmo que as modernas antropologia e história indígena tenham reavaliado o estatuto das culturas indígenas do Brasil pré-colonial, retirando-lhes o rótulo de “selvagens”, que aliás nunca foi aplicado aos seus homônimos andinos, mexicanos e centro-americanos. Dizendo de outro modo, não há, entre brasileiros e outras nacionalidades da América Latina, um “paraíso perdido” comum que lastreie e caucione esforços de recuperação e resgate de experiências históricas interrompidas e fraudadas pela colonização ibérica.
Nossa história pós-independência foi marcada, sobretudo com a Argentina, Uruguai e Paraguai, hoje nossos mais próximos parceiros no Mercosul, pela herança dos conflitos coloniais entre Portugal e Espanha, que nos legaram um contencioso pesado, resolvido por conflitos e guerras de fronteira, que culminaram na ominosa guerra contra o Paraguai — ao lado, convém lembrar, da Argentina e do Uruguai. Ainda na primeira década do século XX, estávamos às voltas com um conflito com a Bolívia, por ajuste de fronteiras, de que resultou a anexação do então território do Acre, hoje um estado da federação, no felizmente último conflito com nossos vizinhos.
Essas singularidades foram, em grande medida, moldadas pelas nossas histórias coloniais, e em seguida as sucessivas hegemonias britânica e norte-americana na expansão do capitalismo também se mesclaram aos interesses já nacionais. Mas, de qualquer modo, cristalizaram-se em formações nacionais arredias, isolacionistas em grande parte, mesmo entre aquelas que, por razões de fala e história comum, tinham talvez outros motivos para buscar modalidades de cooperação supranacionais. Não é o caso de repertoriar aqui todos os esforços ao longo e ao largo da América Latina. Convém assinalar apenas os esforços mais recentes no plano da integração de mercados e um ou outro caso mais audacioso, de plena integração econômica. Houve a tentativa do Mercado Comum Centro-americano, com Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica, entre 1960 e 1980, lastreados na anterior tentativa da Federação Centro-americana com Morazán no século XIX. E o Pacto Andino também tentou ir além de uniões aduaneiras, num resgate do espaço do Vice-reinado do Peru e posteriormente da frustrada Gran Colombia de Bolívar. No começo dos anos 1980, tais esforços já tinham perecido, minados inicialmente pelo golpe militar no Chile em 1973, pela guerra civil em El Salvador, pelo terrorismo de Estado na Guatemala pós-Julio César Montenegro e pela campanha anti-sandinista liderada pelos Estados Unidos. Na dissolução do Mercado Comum Centro-americano, o dedo pesado do imperialismo norte-americano foi provavelmente a influência mais funesta. Uma breve revisão dos casos da Associação Latino-americana de Livre-comércio (Alalc) e da Associação Latino-americana de Integração (Aladi) virá em seu momento, mais adiante.
Essa história, em termos brasileiros, corporificou-se desde a resolução do conflito com o Paraguai numa política indiferente em relação aos nossos vizinhos, e atravessou todo o período da República Velha, adentrando a história brasileira praticamente até os anos 1950. Vargas talvez tenha sido o único governante republicano a tentar maior aproximação com a América Latina, como política sistemática. Em outras palavras, a república no Brasil não significou mudança de política em relação à América Latina e especificamente em relação ao Cone Sul. Ao contrário, talvez uma hostilidade mal-encoberta tenha sido na verdade a marca da política brasileira para a América Latina. E a recíproca é verdadeira: tampouco de outro lado anotou-se alguma iniciativa verdadeiramente marcante no sentido de buscar maior cooperação com o Brasil. Basta dizer que durante décadas o segundo principal corpo do Exército brasileiro, o III Exército, esteve sempre estacionado no Rio Grande do Sul, na tripla fronteira com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.
Uma vez mais, foi o êxito das políticas liberais que levantou os principais países a dar-se as costas: a Argentina chegou logo à situação de grande celeiro mundial de cereais e carnes, tendo formado nas primeiras duas décadas do século XX entre as cinco maiores economias capitalistas mundiais, e o Brasil viu o café alçar-se à condição de primeira mercadoria do comércio mundial até bem avançados os anos 1940. O livre-cambismo imperou como política econômica, com a pletora de divisas estrangeiras, que ao mesmo tempo estrangulava a industrialização interna. A situação somente se alterou com a Grande Depressão, quando os empréstimos internacionais para continuar a ciranda da valorização do café encerraram-se definitivamente. Nos demais países da América Latina, a Grande Depressão também afetou fortemente as exportações, mas isso não significou, em nenhum dos casos, mudanças radicais na divisão social interna do trabalho, salvo em países como Argentina e México, que desbravaram também os caminhos da industrialização.
Isso tudo apenas adverte para as dificuldades de relacionamento, que são ainda maiores quando se pensa em integração, o que supõe mais do que simplesmente comércio. Diante da história europeia, entretanto, tais dificuldades podem parecer brincadeira de criança. O “continente sombrio”— como o chamou Mark Mazower —,[2] cujas histórias nacionais remontam a tempos tão remotos quanto seus conflitos, aliás formadores da própria Europa, e ainda hoje atualizados dramaticamente pelas guerras étnico-nacionais nos Bálcãs, foi capaz de superá-los no mais formidável esforço histórico de constituição de uma supranacionalidade, na União Européia, agora com 25 membros.
Em busca de um futuro cooperativo: a Alalc e a Aladi
A rigor, a história do isolamento “internacional” na América Latina e do isolacionismo como política externa fundamentava-se nas economias voltadas para a exportação em praticamente todo o território latino-americano. O que Fernando Novaes chamou de diferenças entre as “colônias de povoamento”, Estados Unidos da América do Norte, e “colônias de exploração”, todo o restante das Américas, inclusive Canadá.[3] A longo prazo, as primeiras elaboraram uma divisão social do trabalho que sentou as bases para a expansão capitalista, enquanto as outras, por seu êxito imediato, construíram arquiteturas sociais de exploração, o escravismo e a encomienda, que se revelaram fatais para o futuro.
Especializadas em matérias-primas e outros bens primários, de fato, a complementaridade entre os países não se apresentava como necessidade econômica; até pelo contrário, cada um buscou, após sua independência, tirar o maior proveito da relação com as antigas e as novas metrópoles, na época do comércio internacional do paradigma ricardiano das vantagens comparativas. Mesmo a Argentina, que alcançou uma industrialização precoce, antes que qualquer outro país latino-americano, experimentando taxas e níveis de crescimento superiores aos da grande maioria dos hoje mais importantes países europeus, o fez com base em suas especializações primárias. Pode-se alegar ausência de perspectiva estratégica, mas, copiando Marx, o próprio problema da integração só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir.
A questão da complementaridade surge no rastro dos esforços de industrialização induzidos pela crise dos anos 1930, a chamada, às vezes impropriamente, “industrialização substitutiva de importações”. O tamanho dos mercados nacionais para as indústrias da Segunda Revolução Industrial indicava fortes limites para a adoção de escalas cuja produtividade ensejasse um processo de reprodução auto-sustentável. A Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) esteve atenta, desde sua criação, para tais limites, empreendendo, desde cedo, uma campanha de doutrinação em favor da integração, desde os simples acordos de livre-comércio até as uniões alfandegárias e, no caso dos cinco países da América Central pactantes do Tratado de Manágua e dos membros do Pacto Andino, atingindo nos seus auges o nível de coordenação e planejamento de políticas industriais. Pode-se dizer que a Cepal foi a grande instituição integracionista. Vargas, aliás, foi a liderança latino-americana mais importante e decisiva para a manutenção da Cepal, ameaçada desde o nascedouro pela oposição dos Estados Unidos. Furtado[4] conta que foi um assessor especial de Vargas, Cleanto de Paiva Leite, paraibano como ele, que o levou para conversar com o presidente, mostrando-lhe a verdadeira importância da Cepal, e no outro dia a delegação brasileira à reunião anual que ocorria no México foi instruída para votar pela manutenção da instituição matriz da integração latino-americana.
Os anos 1950 tinham visto a assinatura do Tratado de Roma, que fez avançar o processo europeu iniciado pela reforma das indústrias do carvão e do aço, servindo de paradigma para o que se tentou na América Latina. Em 1960, a Alalc inicia formalmente a abertura dos mercados dos países pactantes, que incluía o México, modestamente através de um acordo de livre-comércio, com a cláusula de “nação mais favorecida” para os países de economias mais débeis. O primeiro secretário-geral da Alalc foi o brasileiro Rômulo de Almeida, então um ex-assessor de Vargas, o que dá ideia da importância que o Brasil dedicava ao tema. Não é o lugar aqui para explorar mais detidamente os avanços e conquistas da lenta abertura procedida pela Alalc.
Melhorou muito o comércio interregional com a Alalc, e algumas iniciativas apontavam para políticas setoriais de integração. Sobretudo algumas grandes empresas transnacionais, sempre atentas para essas oportunidades, estiveram presentes no incremento do comércio. Mas a década de 1960 viu a eclosão de golpes militares nos principais países — praticamente todos, salvo o México —, cuja raiz pode ser encontrada na própria “industrialização substitutiva de importações”, que havia mudado a estrutura do poder econômico e desarranjado os acordos políticos, dos quais os mais importantes foram os que a literatura chamou “populistas”, um termo e um conceito hoje em franca revisão.
Regimes militares autoritários e “internacionalizantes” substituíram os acordos em que as burguesias nacionais tinham relevância, ao lado de organizações das classes trabalhadoras. Na esteira desses regimes autoritários, a ainda precária integração pelo livre comércio foi duramente atingida, posto que os novos regimes “internacionalizantes” buscaram acoplar-se outra vez, diretamente, aos centros dinâmicos do capitalismo desenvolvido, na ilusão que se abriu com a pletora de dólares propiciada, entre outros, pela emergência dos petro e eurodólares. Então, a pauta da expansão capitalista mudou substancialmente, e os regimes militares optaram por uma estratégia de financiamento internacional que repousava numa crescente dívida externa e na consequente amarração das economias nacionais latino-americanas à financeirização do capitalismo, que já se esboçava a partir da desvalorização do dólar empreendida por Nixon em 1971.
Mesmo regimes como a ditadura militar brasileira, que seguiu sendo fortemente desenvolvimentista, buscou outra vez uma espécie de autarquização e desprezou os avanços logrados pela Alalc, desviando o curso da expansão da economia brasileira da integração regional. Já na década de 1970, a Alalc estava praticamente condenada, e foi substituída pela Aladi, cujos objetivos eram mais modestos e centravam-se numa tentativa de complementaridade industrial. Acusou-se pouco progresso até a década de 1980, e o México praticamente abandonou o desiderato da integração latino-americana, para voltar seus esforços no sentido de uma decidida integração com os Estados Unidos e o Canadá, afinal concretizada com o Nafta, já nos anos 1990. Isso enfraqueceu muito a estratégia latino-americana, e a antiga centralidade da Cepal evaporou-se. De toda forma, a integração latino-americana nunca foi muito popular no Brasil, precisamente devido à ausência de ligas mais profundas, míticas e culturais entre nós e os demais países latino-americanos, como já se ressaltou.
A grande burguesia brasileira dividiu-se entre o projeto “internacionalizante” — sob a égide dos Estados Unidos e da Europa, e em algum momento com o Japão desempenhando o papel de um novo subcentro — e a busca de uma nova autarquização, como sob o “Consulado” Geisel. O apoio à integração latino-americana praticamente sumiu da agenda política brasileira. Os sindicatos estavam silenciados, mas mesmo que não estivessem nunca colocaram, de forma incisiva, a integração nos seus objetivos de classe. Os partidos políticos, sob forte controle militar, não tinham nenhuma agenda integracionista, nem o da situação, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), praticamente uma simples “correia de transmissão” dos militares para a administração do ersatz de representação republicana mantida e para a gestão dos estados e do controle oligárquico da política. O partido da oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), tampouco deu ênfase à integração, direcionando suas escassas forças para o objetivo da redemocratização do país, afinal lograda em 1984.
A “cooperação” do terror: a Operação Condor
Tingindo de cores sombrias as relações entre os países do chamado “Cone Sur” — nesse caso incluindo o Chile — no período mais terrível das ditaduras militares no Brasil, no Uruguai, na Argentina e no Chile, empreendeu-se uma articulação, conhecida como Operação Condor, no terreno de perseguições políticas, eliminação física de militantes políticos, repressão a movimentos armados e mesmo a organizações políticas como o Partido Comunista Brasileiro, que nunca apoiou ações armadas. Tais ações incluíam treinamento de polícias em técnicas de interrogatórios e torturas, fichamento de militantes, troca de informações, monitoramento dos movimentos políticos, enfim, toda a longa coorte costumeira em ditaduras, das quais as do período, nos países citados, inscreveram-se entre as mais sangrentas. Essas ações eram fortemente subsidiadas e instrumentadas pelos Estados Unidos, que na Escola do Panamá encarregaram-se do treinamento repressivo para policiais e militares latino-americanos, e doaram fundos para financiar as ações repressivas. Incluía-se aí a presença de agentes norte-americanos, como ficou claro nos casos do Uruguai, com o sinistro Dante Mitrione, e a ação ostensiva no golpe militar contra Salvador Allende, no Chile. A ditadura militar brasileira fez parte da Operação Condor, duramente sobretudo no período Médici, enquanto Geisel, segundo Elio Gaspari,[5] buscou afastar-se, embora nunca a tenha abandonado. Esse é um capítulo sombrio, e essa uma “integração” nunca sonhada por seus povos. E demonstra como a formação das ditaduras militares inscrevia-se na Guerra Fria entre os Estados Unidos e a então União Soviética, embora esse não possa ser um argumento para absolver as forças políticas internas golpistas. Esse capítulo contrasta fortemente com a trajetória anterior de tolerância e asilo político entre o Brasil e seus vizinhos: Prestes, depois da dissolução da lendária coluna no fim dos anos 1920, asilou-se na Bolívia e posteriormente na Argentina; Goulart, deposto em 1964, foi residir no Uruguai; e o golpe que derrubou Allende em 1973 Iá encontrou centenas de brasileiros exilados, que se valiam da tradicional hospitalidade chilena.
O intermezzo cultural
O que foi surpreendente naquela quadra dos regimes militares e da baixa de cotação da integração regional foi a ascensão do intercâmbio cultural, um fenômeno ligado ao crescente prestígio do que se convencionou chamar de “realismo fantástico”, protagonizado pela literatura latino-americana de Gabriel García Márquez, Augusto Roa Bastos, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Jorge Luis Borges — menos realista e mais fantástica —, Juan Rulfo, Ernesto Sábato, Miguel Angel Asturias, Mario Benedetti, Julio Cortázar, Francisco Herrera Luque, enfim, da grande safra latino-americana que explodiu nos anos 1970; Rómulo Gallegos muitos anos antes já havia surpreendido com a figura de Dofia Bárbara. Alguns livros desses autores tornaram-se populares no Brasil, pelo menos na classe média letrada, e foram, certamente, um veículo importante para nos fazer conhecer essa América tão vizinha e tão desconhecida. O cinema brasileiro, que havia ganhado ainda antes do golpe militar de 1964 reconhecimento internacional, na senda de Gláuber Rocha, ainda continuou a iluminar até os anos 1970, e deve ter feito o mesmo papel nos países da América Latina no sentido de dar a conhecer o grande e estranho vizinho de matriz lusófona.
Um dos meios mais importantes do intercâmbio cultural deu-se no âmbito das ciências sociais, então paradoxalmente revitalizadas pelo confronto com os regimes ditatoriais e autoritários. Foi a época de ouro do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso) e de suas reuniões, transportando para os meios acadêmicos e universitários o legado da Cepal. Entretanto, na área da economia a formação dos economistas brasileiros direcionou-se crescentemente para os Estados Unidos, e por isso a importância da Cepal declinou substancialmente. Num balanço geral, a problemática da integração latino-americana teve um lugar francamente secundário na prática das políticas econômicas, e mesmo o surto do intercâmbio propiciado pela literatura não foi capaz de preencher o vazio ideológico crescente, devido à perda de prestígio da Cepal, associada injustamente ao “malogro” do desenvolvimentismo, e à crescente ascensão das correntes “internacionalistas” do pensamento econômico e da grande burguesia. Mesmo um regime francamente desenvolvimentista-autarquizante como a ditadura militar brasileira do período 1964-1984 talvez tenha dado o decisivo empurrão para sepultar a Alalc e a precária integração latino-americana.
Mercosul, a integração paradoxal
Em meados dos anos 1980, algumas evidências se impuseram. Coincidiram, reforçando-se mutuamente, o deslocamento das ditaduras militares, substituídas por regimes democraticamente restaurados, e a crise da dívida externa para a maioria dos países que haviam apostado numa crescente integração com o centro capitalista desenvolvido. A queda das ditaduras prometia resgatar o que se chamou o “déficit social crescente devido à perda de dinamismo das economias” e restabelecer processos de expansão nacionalmente centrados. A integração pareceu, então, poder dar conta dessas tarefas, até mesmo porque a dívida externa não permitia maiores margens de manobra e os mercados desenvolvidos não se abriam para acolher exportações latino-americanas que aliviassem os problemas da conta corrente do balanço de pagamentos.
A estratégia agora era mais modesta e ao mesmo tempo prometia chegar mais longe. Descartada a adesão mexicana, cujo processo de “naftização” avançava ainda que sem o acordo formal, somente alcançado já nos anos 1990, Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai decidiram envidar esforços no caminho de uma união alfandegária, com forte liberação do comércio. Itaipu já havia ligado a economia paraguaia à brasileira, pela via do fornecimento de energia elétrica, e não é exagero dizer que, junto com a exploração da soja por fazendeiros brasileiros no Paraguai, sua economia já é um departamento da economia brasileira. Convidaram, desde logo, o Chile e a Bolívia, que entretanto seguem sendo membros-observadores. O Chile tem buscado insistentemente a via de maior integração com os Estados Unidos, mas namora permanentemente o Mercosul. A Bolívia, pela sua exportação de gás para o Brasil e a Argentina, reuniria condições para integrar o novel bloco, mas até agora parece resignada a uma “integração forçada e subordinada” pelas suas exportações de gás.
Desde então, o comércio no Mercosul cresceu substancialmente, a ponto de os países converterem-se, mutuamente, nos maiores parceiros comerciais isoladamente. O Brasil é hoje o principal parceiro comercial argentino, e a Argentina absorve algo em torno de 10% das exportações brasileiras. O mesmo se dá com Uruguai e Paraguai, embora ainda não nas mesmas proporções. É bem verdade que seguem dependendo muito de suas relações comerciais com os Estados Unidos e a Europa, mas de qualquer modo jamais as relações comerciais regionais haviam constituído elementos estruturais de suas respectivas economias. Como a crise atual está mostrando, o desempenho da economia de cada integrante do Mercosul não é indiferente a cada um deles, e portanto a integração inscreveu-se na estratégia de longo prazo da expansão econômica capitalista do bloco.
O mesmo não se pode dizer dos serviços na balança de conta-corrente. Esse segue sendo uma espécie de “calcanhar de Aquiles” do Mercosul, devido precisamente ao fato de que as relações financeiras entre os sócios do Mercosul não se comparam às suas relações comerciais. De alguma forma, pode-se dizer que o produto das transações comerciais no Mercosul serve para pagar os serviços financeiros com os seus credores dos centros desenvolvidos do capitalismo. Nesse capítulo, anota-se, pois, um rotundo fracasso.
Nos anos 1990, os parceiros do Mercosul foram presas das concepções de política econômica usualmente denominadas Consenso de Washington, isto é, políticas comerciais liberais, aberturas ilimitadas para o resto do mundo — Argentina e Uruguai chegaram ao limite nesse aspecto —, quase anulando as vantagens do livre-comércio interregional, políticas de privatização e desregulamentação dos mercados, inclusive o de mão-de-obra, e um forte antiintervencionismo do Estado como doutrina. Em síntese, políticas neoliberais. Isso minou os avanços das políticas de integração e é a razão do relativo impasse em que se encontra o acordo regional. Pouco se fez além da liberação do comércio. No setor automobilístico, importante para os parques industriais da Argentina e do Brasil, até se chegou ao Acordo de Ouro Preto, que obrigava a intercâmbios que visavam manter o equilíbrio na preferência das multinacionais automobilísticas entre os países. Mas na prática foram elas que fizeram a política industrial do setor no Mercosul.
Indo contra o exemplo histórico que, no caso emblemático da União Europeia, havia ensinado que uma integração a partir de nacionalidades já ancilarmente constituídas não se faz pelo mercado, mas criando-se um novo mercado sob regulamentação estatal supranacional, os parceiros do Mercosul compraram a ilusão. A crescente financeirização das economias latino-americanas tem anulado o esforço feito no item comércio. A ancoragem das economias no dólar norte-americano retirou a autonomia das políticas econômicas nacionais e regionais, como a Argentina o provou recentemente, ao ficar em estado de prostração econômica. Mesmo no caso brasileiro, a primeira fase do Plano Real de estabilização monetária, com um real fortemente apreciado, jogou fora os saldos da balança comercial da década de 1980.
O apoio ao Mercosul cresceu enormemente há pelo menos uma década, e é maior justamente agora, quando o acordo dá sinais de relativa estagnação e, em alguns casos, de regressão. A Argentina, com enormes esforços, está saindo da profunda crise produzida pelo neoliberalismo de Carlos Saúl Menem, e está, mui justamente, recorrendo a expedientes que visam re-proteger sua indústria, o que colide com os interesses brasileiros. O Brasil tem mostrado maior tolerância com as necessidades de seu importante parceiro. Um tanto paradoxalmente, a unanimidade do Mercosul como parte da solução para a volta do crescimento econômico no Brasil aparece hoje muito mais nitidamente do que em qualquer período anterior dos esforços de integração regional.
Entre os empresários, o Mercosul parece ser uma unanimidade, e talvez o setor financeiro seja justamente aquele que não concede nenhuma prioridade ao acordo regional. Mas também é verdade que não the faz oposição, sendo certo que cresceu a presença de bancos brasileiros na Argentina e no Uruguai. O movimento sindical no Brasil, particularmente aquele comandado pela CUT, tornou o Mercosul uma de suas bandeiras. A mídia impressa é muito simpática à integração. Os partidos políticos são também praticamente unânimes, e em todos os programas partidários o Mercosul aparece como prioridade, e talvez até de uma forma ingênua.
Popularmente é difícil estimar a taxa de adesão ao Mercosul; não há informações específicas a respeito. Talvez na região sulina, onde os contatos sempre foram mais intensos — e também mais belicosos, por causa da herança colonial e seus consequentes problemas fronteiriços —, exista um apoio popular mais forte em torno das vantagens do acordo. Há mesmo uma certa identidade gauchesca nas regiões de fronteira com a Argentina e o Uruguai. O que se pode dizer taxativamente é que não há oposição popular, até mesmo porque o Brasil tem uma população reconhecidamente não xenófoba em relação aos estrangeiros em geral. Fora do futebol, em que a rivalidade é eterna, não há nenhuma hostilidade. Mas isso na prática ajuda pouco, porque não há na estrutura institucional do Mercosul, que é grandemente incompleta, diga-se logo, nenhum foro no qual a intervenção popular possa ajudar no processo de integração. Não avançamos para a formação de um parlamento do Mercosul, como a Europa o fez desde cedo com o Parlamento de Estrasburgo.
No campo da cultura, o Mercosul é um rotundo fracasso; talvez tenha havido mesmo uma profunda regressão. O cinema brasileiro hoje é melhor tecnicamente, mas perdeu a aura de diferente, de especificamente brasileiro. A recíproca parece também verdadeira: a nova safra de filmes argentinos faz sucesso no Brasil, como o O filho da noiva, que permaneceu em cartaz em São Paulo por muitas semanas, talvez meses, mas não chama a atenção por ser especificamente argentino. Do lado da literatura, um fenômeno semelhante se passou — talvez até no mundo todo —, e lemos hoje Tomás Eloy Martínez, Federico Andahazi, Reynaldo Sietecasas e outros modernos novelistas argentinos, e continuamos a ler Borges, e Sábato, e Benedetti, e Roa Bastos, mas sem o impacto dos anos 1970. E, ao que nos conste, a literatura brasileira tampouco faz sucesso no Mercosul.
Um produto brasileiro de exportação “cultural” são as novelas da Globo, mas ao que parece não são populares no Mercosul. Da América Latina, o Brasil importa o trash das novelas mexicanas, eterna repetição da melosa Mamãe Dolores. O capítulo sobre a cultura na integração regional poderia estender-se numa longa lamentação, cujo núcleo de argumentação não pode se sustentar na possível — e falsa — falta de qualidade; mas a explicação reside na “indústria cultural”. O que não for “produto” cultural não tem patrocínio, e o que não for convertido em marca não tem promoção. É aqui que reside o fracasso dos intercâmbios culturais no Mercosul. O cinema brasileiro e o dos seus parceiros, assim como sua literatura, não são marcas. Aqui, sim, seria possível pensar que o Mercosul poderia ter instituído uma grande política cultural como momento da integração. Mas isso nunca foi feito, e a cultura, mesmo transformada em mercadoria, não tem lugar no Mercosul. Ou, na linha da argumentação de Isleide Fontenelle, a mercadoria transformada em cultura não está nas estratégias das grandes empresas que se beneficiaram do incremento do comércio com o Mercosul.[6] As grandes distribuidoras de cinema não têm interesse específico em promover a produção latino-americana, e as emissoras de televisão aberta, em todos os países, não têm programas latino-americanos. Entre os canais pagos no Brasil, não existe um único de qualquer país latino-americano, o que é certo também para nossos vizinhos.
O Mercosul foi vitimado, na hora de sua nova arrancada, por uma conjunção de fatores, entre os quais o mais forte certamente foi a adoção de políticas neoliberais nos seus dois maiores parceiros — Brasil e Argentina —, trabalhando contra a lição da história de que processos eminentemente políticos não podem ser conduzidos pela “mão da Providência”. Isso levou à anulação das “vantagens comparativas” do comércio intra-regional, ao mesmo tempo que a financeirização das economias fez com que os excedentes comerciais simplesmente caucionassem a servidão financeira. A heteronomia monetária também transformou em ilusão a busca desesperada de excedentes comerciais, impossibilitados pela lógica mesma das estabilizações monetárias logradas sob Cavallo e Plano Real. E a aparente disposição política não tem conseguido contornar os escolhos da globalização, para se dispor numa arquitetura regional capaz de tornar os países atores relevantes da economia mundial globalizada. Do lado da cultura, como já se resumiu, sua transformação em mercadoria, ou vice-versa, debate-se contra a impotência da relativa irrelevância das economias do Mercosul no comércio e nas finanças internacionais.
Atualização da perspectiva: labirinto?
Como em Borges, haverá saída para o labirinto em que se enfiou a América Latina, ou tudo se consumará num jogo de espelhos entre os parceiros do Mercosul, que não ampliam nada e somente refletem? As possibilidades da cultura como ponte para a integração, ou ela mesma como “a integração”, parecem, no momento, gravemente anuladas pela “indústria cultural”, que somente leva água para o moinho da globalização, vale dizer, para a hegemonia norte-americana.
Resta a política como campo de possibilidades. Não há dúvida de que as políticas neoliberais que internalizaram de forma feroz a globalização são hoje pouco populares, o que difere radicalmente da situação de uma dezena de anos atrás, quando a estabilização lograda no Brasil, e antes mesmo na Argentina, se tornou quase um senso comum. Há outro consenso que se formou, de que a situação crítica pela qual passou a Argentina e na qual permanece o Brasil, com novos poucos avanços, e a estagnação das economias do Uruguai e do Paraguai se devem, sobretudo, às políticas neoliberais e à globalização. O problema reside na possibilidade da passagem desse quase-consenso social para a política. Dizendo de outra maneira, como transformar — e será que se pode transformá-lo — numa política pró-integração?
Não se deve esquecer, no balanço das atuais dificuldades, que a proposta da Alca seduz muitos governos latino-americanos, mas felizmente nos países-membros do Mercosul as posições do Brasil e da Argentina passaram ostensivamente a uma posição no mínimo de cautela e no máximo de adiamento da entrada em ação dos mecanismos da Alca. A política externa brasileira sob o governo Lula — que guarda inteira discrepância com sua política interna — move-se num leque de opções muito interessante. Cautela quanto à Alca, tentativa de acordo com a União Européia, maior força ao Mercosul — embora, na verdade, as iniciativas tenham arrefecido — e abertura para o bloco dos países gigantes que têm políticas autônomas e grandes mercados, como China e Índia, e secundariamente África do Sul. Quanto à Alca, a experiência do México de quase destruição de sua economia agrícola, sobretudo a do campesinato, deveria advertir para os efeitos danosos da política de subsídios que torna os produtos norte-americanos “competitivos”. E a política “maquiladora” do México pode ser perigosa no quadro de um acordo com a Alca, uma espécie de China na América Latina.
Um balanço provisório
A sugestão do título deste ensaio é de que fronteiras invisíveis entre o Brasil e a América Latina sempre foram mais eficazes para a falta de intercâmbio que as fronteiras oficiais. Terão perdido eficácia tais fronteiras invisíveis? Parece que foram substituídas pela globalização como a nova fronteira, invisível, mas bem presente. Há esforços, na linha da política externa do governo Lula, de formação de um grande bloco, capaz de negociar melhor as condições do comércio internacional. Mas no campo financeiro não se nota nada de relevante, e, num capitalismo de dominância financeira na acumulação de capital, tal irrelevância — já comprometida pela extroversão da dinâmica do progresso técnico — tende a anular os esforços de comércio. Nos outros campos, como já se assinalou, os avanços ou são pífios ou simplesmente não existem. Não tão paradoxalmente como parece, sobretudo pela hostilidade da mídia brasileira, o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, tem feito propostas audazes, como a formação de uma grande petrolífera estatal latino-americana, o que não é totalmente inviável, dadas a própria contribuição da estatal venezuelana e a importância internacional da Petrobras.
As diferenças linguísticas, apesar do forte parentesco, continuam a pesar, sobretudo no campo cultural. E a hegemonia norte-americana no terreno da “indústria cultural”, cinema e televisão tem operado uma inversão: o cinema e a televisão latino-americanos são cada vez mais “norte-americanos”. As literaturas não se “norte-americanizaram”, mas esse é justamente um campo não exatamente popular, ou de grande público. Na política falta audácia, falta um projeto “europeu”, e a mídia impressa falada e televisiva, fator fundamental no nosso tempo, é não só cética a respeito, mas até francamente hostil. Tudo o que parece um projeto latino-americano é tido como “populista”. O paradoxo é tão mais evidente exatamente pelo fato de que, pela primeira vez em sua história, a América Latina não abriga nenhuma ditadura, nenhum chefete, nem tiranos. Nem parece haver nenhuma disputa muito séria pela liderança do continente, ressalvado o fato de que o Brasil, pelo seu próprio tamanho, tende a exercer esse papel em algumas conjunturas, não sendo, entretanto, um projeto de dominação. Mas a democratização ainda está devendo aos latino-americanos em geral, e especialmente em cada um dos países, uma radical melhora das condições de vida, submetidos que estão a intensos constrangimentos vindos do capitalismo globalizado. Enfim, num mundo de crescente complexidade, o projeto latino-americano ainda não conseguiu se construir como um outro polo de poder, economia e cultura. Continuamos a erguer entre nós fronteiras invisíveis.
Notas
[1] Evaldo Cabral de Melo, O Norte agrário e o Império (1871-1889) (Rio de Janeiro/ Brasília: Nova Fronteira/INL, 1984); Caio Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo (6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1961); Celso Furtado, Formação econômica do Brasil (25 ed. São Paulo: Nacional, 1995).
[2] Mark Mazower, O continente sombrio: a Europa no século XX (São Paulo: Companhia das Letras, 2001).
[3] Fernando A. Novaes, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (17771808) (São Paulo: Hucitec, 1979). De fato, a utilização dessas categorias deve-se originalmente a Paul Leroy Beaulieu, um economista francês citado desde Gilberto Freire e Caio Prado Jr. Freire destacou a diferença da colonização portuguesa, que, no Brasil, logo se deslocou da exploração para as plantações de cana-de-açúcar. Ver Gilberto Freire, Casa grande & senzala (30a ed. Rio de Janeiro: Record, 1995).
[4] Celso Furtado, “IV centenário de Raúl Prebich”, em Em busca de novo modelo: reflexões sobre a crise contemporânea (São Paulo: Paz e Terra, 2002).
[5] Elio Gaspari, Ilusões armadas, vol 3: A ditadura derrotada (São Paulo: Companhia das Letras, 2003).
[6] Isleide Fontenelle, O nome da marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável (São Paulo: Boitempo, 2002).