2015

Fundar a violência: uma mitologia?

por David Lapoujade

Resumo

Dois personagens da mitologia proto-indo-europeia aparecem como alegorias da legitimação de poder: o rei mago sacrifica um dos olhos como oferenda em troca do poder de vidência; o sacerdote jurista, por sua vez, põe a mão na boca do lobo como sacrifício ganhando com isso a submissão do animal, que concorda em ser guiado por um fio de seda. O rei adquire a capacidade, através da magia, de controlar e até mesmo de paralisar seus soldados, o que simboliza o monopólio do poder e da violência. O sacerdote jurista que conduz o lobo detém a exclusividade do direito. Esses mitos são interpretados como justificativa do aparelho de Estado que monopoliza o poder e o direito a fim de proteger o povo de seu estado natural e selvagem em que todos exercem violência contra todos. A contrapartida da paga dos personagens é, no entanto, um simulacro. Não teria havido sacrifício pelo povo, mas antes uma apropriação da violência pelo Estado, que passa a “requalificar a [sua] violência como justiça”, o que equivale a dizer “não somos violentos, a violência vem sempre de fora”. Kafka em um belo texto escreve sobre o agrimensor, funcionário do Império Romano que tinha a função de delimitar suas fronteiras longínquas, confirmando o espaço geográfico de vigência do poder e do direito romanos, diferenciando-o de terras para além do mundo civilizado. Mas se o Estado monopoliza o direito e o poder, não estará ele confiscando também a violência? Em nosso tempo a violência é, sobretudo, escamoteada e supranacional. Sua base estrutural é o capitalismo com seus mecanismos de controle. As guerras ainda são numerosas no planeta, mas elas não são mais o instrumento principal de dominação do homem pelo homem. Estranhamente, a “máquina de guerra” não é mais a guerra, mas a paz aparente. Tal obsolescência da guerra tradicional justifica-se pela guerra econômica e pela eficiência dos modernos mecanismos de controle das ações dos indivíduos, até mesmo de suas vidas privadas. Grégoire Chamayou defende no livro Théorie du drône que esses mecanismos de controle social agem hoje antecipadamente: trata-se de “suspeitar” e “prevenir”, e existem meios tecnológicos para isso. Essas medidas preventivas sobre as ações dos cidadãos faz eco ao que Deleuze e Guattari consideraram: “o que importa agora não é lutar contra populações, mas contra indivíduos”.


[1]

Todos sabemos que a violência circula por todo o campo social sob as mais variadas formas, às vezes direta e explícita, outras vezes indireta, encoberta, implícita e sorrateira, às vezes física, outras vezes mental. Não vem ao caso descrever todas essas formas de violência, seria uma tarefa interminável. Tampouco tenho a pretensão de agrupar todas as suas manifestações sob uma definição geral que se pronunciaria sobre o que é a violência, em si e por si mesma. A violência não existe. A violência é sempre qualificada, nunca qualquer, sempre já tomada na percepção de um campo social que a codifica ou a qualifica, mas que sobretudo a distribui. Nesse sentido, as definições da violência são sempre já políticas e estratégicas.

Desse ponto de vista, podem-se distinguir dois aspectos da violência. De um lado, a violência enquanto exercício de uma relação de força, força física ou mental, a violência enquanto relações entre corpos (em todos os sentidos da palavra corpo, não apenas corpo físico, mas corpo social ou corpo coletivo). Esse aspecto diz respeito ao poder e às relações entre poderes. Mas há necessariamente um segundo aspecto: pois essas relações são sempre codificadas, submetidas a regras ou normas que distribuem esses poderes e essas relações de força num campo social dado. É sobretudo essa distribuição da violência através do campo social que eu gostaria de examinar, porque ela tem a ver com a maneira pela qual a violência é nomeada, qualificada, mas também percebida.

Por exemplo: como se pode dizer de um ato violento que ele é legítimo, enquanto outro ato, às vezes da mesma natureza, será considerado ilegítimo? Seria preciso fazer perguntas de criança: como explicar que o fato de agredir alguém na rua e de lhe roubar todos os seus bens seja considerado uma violência ilegítima, um ato criminoso? Como explicar, inversamente, o fato de que despedir alguém, levá-lo talvez à ruína e à miséria, a ele e a seus familiares, não seja considerado violência ilegítima e nem sequer violência? Não se trata de mergulhar na demagogia dessa questão, mas de ver que ela supõe necessariamente uma partilha, uma distribuição da violência social a que se dá o nome de direito. De um lado os poderes, de outro o direito que os distribui. Desse ponto de vista, é um erro opor sumariamente o discurso à violência, dizendo que a violência é o antilogos, a negação de toda forma de discurso. À forma pacificada, negociadora do discurso, pretende-se opor o mutismo dos corpos e a brutalidade dos golpes. Sabemos bem, no entanto, que os discursos podem servir para legitimar certas formas de violência e que constituem assim, eles próprios, uma forma de violência.

Pode-se dizer que eles buscam explicar, legitimar ou justificar os atos de violência. Justificar deve ser tomado aqui no sentido mais literal: é preciso tentar explicar o que um ato de violência contém de justiça. Nesse sentido, justificar deve ser compreendido como um verbo milagroso. Ele transforma em justiça aquilo que ele explica. Então se adivinha facilmente a finalidade desses discursos: eles querem fazer desaparecer a violência, requalificar a violência como justiça. Não há mais violência, há somente ações de justiça e operações policiais (a serviço da justiça). Em outras palavras, a violência nunca está do lado da violência legítima, mas sempre do outro lado – revolta, insubmissão, insubordinação, protesto –, razão pela qual, aliás, se deve exercer a justiça legitimamente. É o que vemos: a violência legítima é uma violência que busca desaparecer como violência. Os discursos buscam negar essa violência, pela simples e boa razão de que a violência nunca está do seu lado, é sempre atribuída ao outro lado. Essa é a lógica do Estado ou dos aparelhos de poder: não somos violentos, a violência vem sempre de fora.

Um grande número de filosofias procurou revelar essa violência oculta ou invisível. É o que mostra à sua maneira Nietzsche, na segunda dissertação da Genealogia da moral, quando diz que foi necessária uma quantidade inimaginável de sofrimentos, de torturas, para que os homens constituíssem os laços sociais que os vinculam, para que obedecessem a regras, para que se fizesse do homem um animal capaz de prometer. Se cabe fazer a genealogia disso, é precisamente porque tais violências foram esquecidas, como que dissimuladas por seu caráter natural e sua ancestralidade. É uma violência que sua repetição naturaliza e torna invisível. Reencontramos as mesmas observações em Marx, em O capital, acerca da extorsão da força de trabalho nos primeiros tempos do capitalismo. Ele mostra como a população dos campos, violentamente expropriada e reduzida à vagabundagem, primeiro foi submetida à disciplina que o sistema do assalariado exige “por leis de um terrorismo grotesco, pelo chicote, pela marca do ferro em brasa, pela tortura e a escravidão”[2]. Mas, acrescenta em seguida Marx,

 

forma-se uma classe cada vez mais numerosa de trabalhadores que, graças à educação, à tradição e ao hábito, aceita as exigências do regime tão espontaneamente como a mudança das estações […]. Às vezes ainda se recorre à coerção, ao emprego da força bruta, mas só excepcionalmente. No curso ordinário das coisas, o trabalhador pode ser abandonado à ação das “leis naturais” da sociedade, isto é, à dependência do capital, engendrada, garantida e perpetuada pelo próprio mecanismo da produção[3].

Assim como em Nietzsche, o modo de funcionamento capitalista tornou-se tão natural como a presença das árvores ou do céu, e mesmo suas extorsões fazem parte de um sistema legitimado por sua simples existência. A violência nunca está no seu campo, mas do lado dos que querem sabotar as máquinas, assaltar os depósitos de mercadorias, esvaziar as fábricas.

Não se trata de dizer que as sociedades civilizadas demonstram tanta selvageria e barbárie (ou até mais) quanto as sociedades ditas bárbaras ou selvagens. Desde muito tempo tem-se denunciado a violência das sociedades civilizadas. O que importa aqui é a escamoteação dessa violência, o que permitiu às sociedades civilizadas se acreditarem isentas de toda selvageria ou de toda barbárie. Não são somente as sociedades primitivas constroem mitos. Pois não é esta, de fato, a mitologia própria das sociedades civilizadas? Ao contrário das sociedades primitivas em que a violência encontra seu lugar no campo social, onde é ritualizada, encenada, como uma paixão entre outras, as sociedades modernas construíram a ficção de uma sociedade da qual toda violência – pelo menos teoricamente – está excluída. Não é essa uma das marcas da civilização? O etnólogo Pierre Clastres, num texto precisamente intitulado Arqueologia da violência, observa que, se os primeiros habitantes das Américas foram chamados de selvagens, foi em razão das guerras incessantes que faziam, porque sua organização social, desprovida de Estado, era constantemente agitada por violências sociais, cisão de grupos, guerras intestinas, oposições ou rivalidade entre clãs etc. Sinal, para os olhos dos civilizados, de que viviam próximos do estado de natureza.

Já as sociedades civilizadas possuem, ao contrário, uma organização social, um aparelho de Estado, um sistema econômico que as protege contra a violência de um estado de natureza no qual reina uma guerra de todos contra todos, segundo a fórmula de Hobbes. Elas baniram do campo social não somente o espetáculo da violência, mas o direito de exercê-la. É o que faz com que a violência seja sempre concebida como selvageria, barbárie, brutalidade, animalidade etc. Mas, para além desses qualificativos, o que importa compreender é o confisco dessa violência pelo aparelho de Estado. Pois desde sempre o Estado se concebe como aquilo que cria uma ordem política e social da qual, de direito, toda violência desapareceu. Essa é sua pretensão fundamental. E é o sentido mesmo de todos os discursos de que falávamos há pouco, já que eles buscam justificar certos atos de violência, transformá-los milagrosamente em atos de justiça. Todos os discursos equivalem a dizer: as desordens da violência vêm sempre de fora e, se devemos também ser violentos, é para restabelecer a ordem de um espaço sem violência.

O que eu gostaria de compreender com vocês é o confisco dessa violência, o fato de que somente o Estado (e mais tarde o capitalismo, secundado pelos Estados) tenha o direito de exercer uma violência (que logo não será mais nomeada violência, mas justiça ou ordem) e o fato de que qualquer outra forma de violência, todas as violências que não vêm do Estado, que vêm de fora, sejam justamente qualificadas como violências. Em suma, é essa cisão entre violência legítima e violência ilegítima que eu gostaria de tentar analisar e talvez modificar, retraçando as principais etapas, os grandes momentos de sua instauração.

Para isso é preciso remontar aos mitos indo-europeus estudados por Georges Dumézil (retomados e utilizados por Deleuze e Guattari em Mil platôs). Com efeito, vemos que é a captura da violência que constitui seu problema central. O que dizem esses mitos, encontrados tanto entre os germanos quanto entre os romanos, os hindus ou, mais tarde, os irlandeses? O problema deles é apropriar-se da violência dos homens de guerra. Como neutralizar a violência dos guerreiros ou do chefe de guerra? Esse será o problema central dos Estados e dos impérios: neutralizar o que Deleuze e Guattari chamam de máquina de guerra. Dumézil reconhece dois métodos complementares que não se opõem, mas ocorrem pareados e se verificam na maior parte das mitologias ou dos relatos pseudo-históricos. Eles remetem a duas figuras distintas, mas solidárias: o rei mago e o sacerdote jurista, cada um deles capturando à sua maneira a violência dos chefes de guerra.

Em primeiro lugar o rei mago. Como ele procede? O rei mago é caolho. Aceitou perder um olho em troca de um poder mágico de vidência. É uma espécie de pagamento feito aos deuses. Esse poder mágico lhe dá igualmente o poder de paralisar aqueles com cujo olhar ele cruza. Assim, quando se apresenta no campo de batalha, com um único olhar fulminante ele desarma instantaneamente todos os combatentes. Seu poder é tal que é como se privasse os outros de sua violência ou como se os outros já estivessem sempre privados dela. Eis que todos os combatentes estão atados ao rei mago, como se ele houvesse lançado uma rede que os mantém cativos. Acho que todos nós conhecemos indivíduos contra os quais, aterrorizados, nada podemos fazer. Esse primeiro vínculo social, esse vínculo originário é o que os romanos chamam de nexum, um dom sem contrapartida. O que faz a marca do rei ou do déspota são os sinais de poder.

Mas há um segundo tipo de vínculo, que nos é mais familiar. Ele não procede mais de maneira mágica, é um acordo obtido pela astúcia. Dessa vez entra em cena um sacerdote jurista. O que diz a lenda? Ela diz que um lobo que devia ser o flagelo dos deuses não quer se deixar prender a um fio de seda mágico (vejam aqui também o tema do vínculo), pois teme ser prisioneiro dele para sempre. Os deuses lhe dizem: se não conseguires romper esse fio, isso será a prova de que nada temos a temer de ti e te soltaremos. Mas o lobo, desconfiado, recusa e propõe: que um de vocês ponha sua mão na minha boca como caução de que não haverá falsidade. Nenhum deus quer fazer isso; é então um sacerdote que estende sua mão e a põe na boca do lobo. E, naturalmente, o lobo é capturado – até o fim do mundo – enquanto o sacerdote se torna maneta. O pacto divino seria uma pura fraude sem o sacrifício da mão do sacerdote. Isso reaparece em Nietzsche e em Marx: me dá tua força de trabalho e te darei um salário (como o fio de seda mágico). Eis aí, portanto, o segundo modo de apropriação da violência, que apela menos ao mythos que ao logos (astúcia e cálculo). Talvez já se tenha aqui uma primeira aproximação do que será chamado de teorias do contrato como explicação hipotética do vínculo social entre os homens, destinado a pôr fim à violência do estado de natureza. Pois esse segundo vínculo diz respeito não tanto ao poder, à relação entre os poderes e aos sinais de poder, como era o caso do rei mago, e sim ao direito. O acordo, o pacto ou o contrato são uma questão jurídica, conduzida por um sacerdote jurista.

Tal é a dupla pinça do aparelho de Estado ou do poder imperial, uma relativa ao poder, a outra, ao direito. Uma é manejada pelo rei mago, a outra, pelo sacerdote jurista. Em ambos os casos, trata-se de capturar a violência dos guerreiros ou do chefe de guerra. Percebe-se bem o que significa aqui capturar. Não se trata apenas de capturar o que já existe, como se capturam cavalos. Trata-se de assegurar o monopólio da violência. O déspota, o rei e o soberano são depositários de toda a violência social, de tal modo que ninguém mais tem o direito de exercê-la. É a própria definição da soberania. A violência não é mais um poder que cada um pode exercer, que pode circular entre indivíduos ou grupos em conflito. De direito, essa violência não mais lhes pertence; pertence agora ao déspota, o único a possuí-la legitimamente, a tal ponto que, se vierem a exercê-la, isso constituirá uma ofensa ao soberano. O Estado se funda sobre esse desapossamento da violência.

Mais ainda, o aparelho de captura preexiste, de certa maneira, àquilo que ele captura. Esse é o sentido particular que adquire a palavra captura em Deleuze e Guattari. O Estado não pode se contentar em capturar o que já existe. Pois de onde tiraria então sua legitimidade? Se uma coisa existe antes dele, é porque pode existir sem ele. É preciso então que o aparelho de captura preexista de direito àquilo de que se apropria. Sua pretensão última é preexistir a tudo o que existe (como se afirmassem que o cavalo doméstico preexiste teoricamente ao cavalo selvagem, e domesticá-lo é extirpar dele toda a violência, tudo que subsiste nele de seu pertencimento ao estado de natureza). Esse é o sentido mesmo da mitologia como relato das fundações, das origens. O Estado é primeiro, absolutamente primeiro. Todas as outras formas de existência não têm legitimidade alguma comparada à sua. Ele é o único fundamento, o princípio último. Precisamente, o discurso relativo ao que é primeiro é o discurso do mythos (a mitologia como relato das fundações, das origens remotas, das instaurações, das edificações primeiras) ou o discurso do logos (a filosofia como busca das razões primeiras, não as causas físicas, mas os princípios metafísicos). Ou seja, ou a ação mágica do rei, ou a ação lógica dos princípios ou das ideias, ou ainda as duas juntas.

A enorme pretensão do mythos e do logos, cada um à sua maneira, é criar um espaço-tempo ordenado em que a violência natural, passional esteja ausente. Esse espaço-tempo é o do Estado ou do império, um espaço de ordem no qual a violência vira sinônimo de desordem. Justamente, se os atos de violência do Estado cessam de ser vistos como violentos, é por serem atos de justiça que buscam restaurar uma ordem ameaçada. É sempre essa a pretensão do Estado e a razão de sua polícia: restabelecer a ordem da qual doravante são os únicos fiadores.

De certa maneira, o que está em questão aqui são os fundamentos da soberania política. Mas a questão nada tem de abstrata. A questão dos fundamentos não é uma questão teórica. Ao contrário, trata-se muito concretamente de impor um novo tipo de espaço-tempo. De fato, vê-se claramente que o tempo muda. É uma espécie de temporalidade dupla. De um lado, cada um de nós está sempre já despojado de seu poder, em conformidade com a instauração mitológica. Houve uma primeira vez fundadora, mas num tempo vertical, num tempo anterior ao tempo, um primeiro desapossamento, mas que se repete a cada dia no tempo cronológico e horizontal. O eixo temporal vertical continua a ressoar e a se repetir no eixo horizontal cronológico, como se cada Estado, mesmo moderno, continuasse a alimentar ambições imperiais arcaicas ou, pelo menos, a preservar uma forma de soberania. O Estado realiza esse prodígio que Nietzsche já indicava no cristianismo. Contraímos uma dívida antes mesmo de nascer, uma dívida de existência que faz com que sejamos sempre já devedores, já desapossados. Estamos no registro da dívida infinita como violência primeira fundadora.

Mas não é só o tempo que muda. Também o espaço organiza-se de outro modo. Quando o soberano reina numa terra, ele deve distribuí-la a seus súditos, cercando-a, demarcando-a, principalmente delimitando as fronteiras de seu império. No império romano, essa função primordial, quase sagrada, cabia ao agrimensor. Num belo texto sobre Kafka, Agamben lembra que o agrimensor do império era chamado de juris auctor, criador de direito. Cabia a ele a função de traçar os limites territoriais nos confins do império. Ultrapassar ou apagar esses limites podia ser passível de morte. O limite define aqui a forma de interioridade do Estado, a extensão de sua forma de soberania, na medida em que esta desempenha um papel separador; ela separa o interior do exterior. Mas esse limite não é apenas topográfico. Ele separa ao mesmo tempo a civilização da barbárie, a violência legítima da violência bárbara que vem de fora. A violência, a verdadeira violência vem sempre de fora.

Os aparelhos de Estado – arcaicos ou modernos – se definem por esse englobamento relativo, ao mesmo tempo temporal e espacial. Certamente os mitos invocados por Dumézil remetem a origens longínquas e fictícias. Mas estarão esses relatos remotos tão afastados de nós? Não se repete diariamente essa luta entre um aparelho de Estado organizador e a violência guerreira? Não há uma violência, sempre já feita, que se exerce continuamente sobre nós e contra a qual não dispomos de nenhum direito? Não há uma incessante repetição da mais velha mitologia na brutalidade ordinária da época, nos menores mecanismos de poder da época? Se, por uma razão ou outra, alguém não suporta mais a ordem social e seu espaço-tempo e sente toda a sua violência, ele será tomado pela cólera. De que é feita essa cólera? Todos nós conhecemos esses breves momentos de fúria: é uma violenta agitação de elementos afetivos quase incontroláveis. Gaguejamos, trememos. Somos tomados pela violência, é uma espécie de efervescência ou de onda que se apodera de nós e nos arrasta às vezes ao irreparável, ao gesto excessivo, à palavra excessiva, em suma, são forças que nos fazem ultrapassar um limite. Essa agitação nos faz sair de certo espaço-tempo organizado para entrar em outro espaço-tempo no qual nada está organizado da mesma maneira. É um poder de destruição, essa cólera, mas de destruição positiva, no sentido de que derruba os limites.

Não há mais o mesmo tipo de organização: já não se trata mais de uma espécie de aparelho de Estado que nos organiza interiormente, mas daquilo que Deleuze e Guattari chamam de máquina de guerra, que, de início, nos desorganiza, para depois nos organizar de outro modo. De certa maneira, o aparelho psíquico repete o conflito entre o aparelho de Estado e a máquina de guerra. De um lado, uma forma de interioridade organizada que distribui os meios e os fins em função das exigências sociais; de outro, forças que vêm de fora, uma fúria que desorganiza essa distribuição e arrasta o indivíduo para fora de suas territorialidades familiares, para fora dos espaços-tempos que ele conhece. São modos de funcionamento que atravessam cada um de nós, assim como atravessam amplos e espessos tecidos sociais de uma sociedade.

Um exemplo muito bom é a sequência de abertura do filme Margin Call (no Brasil, O dia antes do fim), de Jeffrey Chandor, que descreve uma cena de demissão numa empresa americana. Pratica-se uma violência contra um empregado, mas uma violência cheia de controle e fingida compaixão “I’m so sorry”, “nothing personal”. Evidentemente o empregado mantém a calma, atordoado, sob o choque da notícia. Pega a pasta que contém todos os seus negócios e deixa a sede da empresa. Uma vez fora, quer dar um telefonema, mas cortaram a linha do aparelho. Ele o atira ao chão com força. Depois, ao cruzar com a mulher que considera responsável por sua demissão, insulta-a, “fuck you”, e logo é invadido por forças que vêm de fora (a fúria do homem de guerra que encontramos, por exemplo, em Aquiles ou em Ajax). Como se diz, ele está fora de si. Mas estar fora de si significa que o si designa uma forma de interioridade, ao passo que os afetos, o caráter passional da violência, se lançam num meio de exterioridade (o fora de si).

Isso remete a uma distinção, na vida passional, entre sentimento e afeto. Os sentimentos pertencem à vida interior da consciência; têm uma força de gravidade, uma duração, uma espécie de remanência que os inscreve na forma de interioridade do psiquismo (o si). Bem diferente é o afeto, violento, brusco, ao mesmo tempo pontual e intempestivo; ele vem sempre de fora e do mais longínquo de nós mesmos ( já que põe fora de si). É o que dizem à sua maneira Deleuze e Guattari quando, em Mil platôs, distinguem sentimento de afeto. Eles veem aí uma distinção análoga à do trabalhador e do guerreiro (como os dois estados do empregado despedido de Margin Call).

O sentimento implica uma avaliação da matéria e de suas resistências, um sentido da forma e de seus desenvolvimentos, uma economia da força e de seus deslocamentos, toda uma gravidade. Mas o regime da máquina de guerra é antes o dos afetos, que remetem apenas à motivação em si, a velocidades e composições de velocidade entre elementos. O afeto é a descarga rápida da emoção, a resposta pronta, enquanto o sentimento é sempre uma emoção deslocada, retardada, resistente. Os afetos são projéteis da mesma forma que as armas, enquanto os sentimentos são introspectivos como as ferramentas[4].

Assim se compreende talvez melhor o que está em jogo nos textos mitológicos, aparentemente tão distantes de nós, mas que nos concernem de perto. Compreende-se que as máquinas de guerra tenham sido a preocupação permanente dos aparelhos de Estado. O que pensar de forças que desorganizam a ordem, a composição do espaço-tempo deles? Quem contesta sua origem e a legitimidade de sua soberania? É o que se compreende ainda mais quando se sabe que grandes impérios foram riscados do mapa por prodigiosas máquinas de guerra nômades (sociedades sem Estado), como Tamerlão e Gengis Khan. Tais máquinas de guerra são poderosas máquinas destruidoras, ora positivas, ora negativas, que vêm sempre de fora. Convém distinguir aqui o fora de uma exterioridade qualquer. Quando dois Estados se enfrentam ou travam uma guerra, trata-se de uma questão de política externa. Mas as tribos ou as máquinas de guerra não têm lugar fixo algum; é como se viessem de parte nenhuma, fora das relações entre os Estados. Isso é tanto mais verdadeiro na medida em que elas contestam com toda a sua força os espaços-tempos englobantes dos Estados.

Contudo, essas grandes máquinas de guerra nômades desapareceram definitivamente por volta do século XVII. Como diz Fernand Braudel, “a pólvora de canhão triunfou sobre a rapidez delas”, acrescentando que “as civilizações venceram, já antes de terminar o século XVIII, tanto em Pequim como em Moscou, tanto em Delhi como em Teerã”[5]. Mas a pólvora de canhão não basta para explicar esse desaparecimento. É que, paralelamente, a máquina de guerra deixa de ser exterior ao Estado, que consegue apropriar-se dela sob a forma da instituição militar ou do exército regular. Ele se apropria não só da violência, mas de uma capacidade de destruição guerreira permanente (da qual era desprovido, ele que precisou formar exércitos). Mas a função da máquina de guerra se modifica igualmente; ela não está mais a serviço de uma fúria sem objetivo. Daí por diante terá um único objetivo: a guerra e a destruição das forças inimigas. Se antes a máquina de guerra podia dar a impressão de estar a serviço de uma livre circulação dos nômades por uma terra sem limites, isso não mais acontece com sua integração no Estado; daí por diante ela estará a serviço exclusivo da guerra e das conquistas territoriais.

Essa história da violência nos é familiar, já que é a história moderna dos Estados-nações que não cessaram de fazer guerras entre si cada vez mais mortíferas, cada vez mais devastadoras, até as guerras ditas totais do século XX. É que as guerras, cada vez mais, revelam sua subordinação ao sistema capitalista: não se trata mais apenas de vencer o exército inimigo, é preciso destruir a economia, a infraestrutura do país, ocasionando sempre um número maior de mortos nas populações civis. Capturada pelos Estados, a máquina de guerra não tem mais a forma de exterioridade que tinha em sua primeira forma (embora tenha havido o retorno nazista, no qual a máquina de guerra se apoderou do aparelho de Estado para levá-lo a uma destruição suicida. É o que se lê numa estranha conversa mencionada por Borges[6]).

Em sua apresentação do ciclo de conferências deste ano, Adauto Novaes lembrou com razão que a grande guerra de 1914-18 não terminou, na medida em que é uma guerra que celebra a subordinação do Estado às exigências do capitalismo. Mas talvez se deva sublinhar a mutação que começou a se produzir no final da Segunda Guerra Mundial, quando as grandes potências deixaram de fazer guerra diretamente entre si. É como uma nova mutação da máquina de guerra ou uma nova idade. Na primeira, a violência da máquina de guerra pertence antes de tudo aos nômades. Na segunda, os Estados se apropriam dela através da instituição militar e dos combates armados. Mas chega uma terceira idade em que o capitalismo, com o apoio dos Estados, deixa de fazer a guerra.

Claro, continuam existindo guerras locais, sempre devastadoras. As grandes potências guerreiam entre si através de países interpostos (como foi o caso do Vietnã); mas ao mesmo tempo se desenvolve uma estranha paz, fundada num poder de destruição sem precedente, como uma violência muda inédita: a da dissuasão nuclear. Pode haver guerras, mas elas se fazem no interior desse equilíbrio mortífero, como um novo fundamento e uma nova paz que faz de cada um de nós, desde o nascimento, um sobrevivente ou uma vida em sursis. Pode-se mesmo dizer, como o fazem Deleuze e Guattari, que as guerras locais que continuam a se produzir no globo são partes de uma paz global aterrorizante.

Reencontramos algo da mitologia inicial: uma espécie de fundamento que captura todos os poderes de guerra para fazer reinar uma estranha paz. Como o mostram Deleuze e Guattari, a nova máquina de guerra que se instaura e se desdobra após a Guerra Fria não tem mais a guerra como objeto ou objetivo, mas sim a paz, uma estranha paz de terror. É como uma terceira guerra mundial, mas concebida como paz perpétua, mediante a organização de uma segurança pública e de uma ordem policial inédita, ao mesmo tempo local e global. Nunca os homens foram tão vigiados, controlados, suspeitados, como se a cada passo que dessem estivessem transpondo um posto de fronteira. Trata-se de uma máquina de guerra ainda mais imperceptível porque ela não faz mais a guerra.

Como os novos poderes não são mais políticos e militares, de agora em diante importa menos investir no armamento ou na organização militar (embora isso sempre faça parte das prioridades) do que conduzir uma política policial e de segurança. As novas formas de violência se dão menos no confronto entre exércitos do que entre vastos mecanismos de segurança e de controle, de um lado, e populações quaisquer, de outro. O inimigo não é mais circunscrito, está potencialmente em toda parte. A paz substituiu a guerra e as operações de polícia substituem cada vez mais as operações militares – a menos que elas venham a se confundir.

Tudo se passa como se o capitalismo reencontrasse algo da ambição imperial de que falam os mitos. Não se trata mais de reinar sobre uma terra extensa e de traçar imperiosamente seus limites. Trata-se de englobar a terra inteira, de cingi-la para vigiar e controlar todas as suas partes. Se não há mais poder central, é precisamente porque se trata menos de reinar sobre uma terra limitada do que controlar os indivíduos que a povoam. Não se luta mais contra a população de um país, caçam-se indivíduos de um país a outro. O modelo que tende a se generalizar é o da luta antiterrorista. É o que mostra Grégoire Chamayou num livro notável, Théorie du drône (Teoria do drone). A ocupação da terra não importa mais, o que importa são os indivíduos, suas redes ou sua importância no seio dessa ou daquela rede submetida à vigilância. Tal é o novo englobamento: não mais circunscrever limites como fazia o agrimensor romano, não mais cercar ou demarcar o espaço, mas reconstituir um espaço liso englobante (que passa pelo mar, pelo céu ou pelos circuitos informáticos) capaz de envolver a terra e de controlar a circulação e a atividade das populações. Trata-se de englobar o espaço a fim de identificar os indivíduos criminosos que nele circulam (como fazem os drones).

Que o poder da nova máquina de guerra não mais se exerça de maneira visível, em relação a um território, significa igualmente que não se pode mais remontar a um poder central, por mais distante, por mais elevado que seja. Os centros de poder não são mais distantes, são inapreensíveis, fugazes. Há cada vez menos autoridades para (ou contra) as quais se voltar. Há antes uma multiplicidade de sistemas de controle contra os quais nada podemos, pois são automatizados e contêm de antemão todas as instruções às quais devemos nos submeter imperativamente; de modo que não sabemos mais contra quem dirigir nossa cólera. Lidamos com uma cólera que não pode se organizar em conflito, por falta de adversários, de inimigos ou de responsáveis. Que toda violência tenha se tornado impossível, eis aí uma forma de violência muito contemporânea, inseparável de uma política preventiva generalizada que busca se precaver contra todo risco, todo transbordamento, antecipando todo ato criminoso.

Então não é difícil ver qual violência se exerce e em que novo espaço-tempo estamos mergulhados. Um espaço cada vez mais fragmentado, um tempo sem duração, fluxo de presentes que se sobrepõem como outros tantos imperativos encadeados, uma espécie de aceleração que age como uma violência invisível, mas incessante. A ironia desse novo espaço-tempo é que ele repete, sob uma forma infelizmente rica de futuro, algo do mais longínquo passado. Ele perpetua a mitologia de um império do qual toda violência estaria ausente, conjurada, posta para fora – mas que fora? – por meio da violência que ele exerce sobre os indivíduos, uma violência que não se chama mais violência, mas ordem ou justiça. Sob muitos aspectos, a ausência de violência que nos impõem é um meio de nos privar de nossa capacidade de protesto. É o que eu gostaria de mostrar.

Não só não devemos mais nos opor ao sistema, mas devemos mostrar que estamos integrados nele, que aderimos a seus valores, a seu modo de funcionamento. O espaço-tempo no qual vivemos, as acelerações dos ritmos de vida a que somos submetidos, fazem que nossos espaços-tempos sejam cada vez mais sufocantes, não havendo lugar nenhum para nossas violências, de antemão desativadas. Desse ponto de vista, o trecho de Margin Call que mencionei não ilustra apenas uma espécie de conflito arcaico entre um aparelho de Estado que constitui o si e uma máquina de guerra que nos arrasta para o fora de si. Ele mostra também um mecanismo de poder que tenta controlar todas as reações possíveis do interlocutor, antecipar sua incompreensão, suas perguntas, que controla a duração da conversa, que o priva de suas redes (confisco do acesso ao computador e ao telefone), toda uma gestão do risco como atentado – ou violência – dirigido ao sistema em questão. É como uma tentativa de neutralizar toda violência.

Ora, são esses limites, justamente, que o personagem ultrapassa por um breve instante. Sua cólera faz com que por um instante ele passe para o outro lado. Não é nada de extremo, não se trata de uma experiência limítrofe. Só que ele não se alimenta dessa cólera, como também não dá a ela os meios de se organizar. E, quando novas forças se manifestam, ele não as reconhece. Elas não criam uma nova zona de direito para ele que, a seguir, abandonará essas forças para traí-las. Ele deveria tê-las organizado, dando-lhes uma consistência, uma forma, um prolongamento etc. Reconhecer essas forças de protesto não é contestar o direito, mas obrigá-lo a mudar para que as forças se redistribuam de outro modo. Pois uma força não pode organizar-se no campo social sem um direito do qual se valha; ela tem necessidade dele para construir um espaço de contestação. Inversamente, um direito sem poder, sem essas forças passionais, é vazio e abstrato, simples vestimenta ideológica (como os direitos humanos) sempre refugada pela inércia. Nesse ponto, certas violências devem ser vistas omo extremamente preciosas; pois elas constituem verdadeiras forças de oposição, as únicas capazes de engendrar novos discursos e de instaurar – talvez – novos direitos, os novos modos de organização e os novos modos de existência do amanhã. Mas isso só é possível se a violência for vista não apenas como uma força, mas como uma expressão, a tarefa sendo então determinar o que, justamente, ela exprime com tanta força. É sob essa condição que a máquina de guerra volta a ser positiva, volta a ser uma força de destruição, de desorganização positiva.

Claro, as coisas continuam. Só que, com a Guerra Fria, desenvolveu-se outra coisa que indica uma mutação nesse confronto. Certamente prosseguem as guerras, sempre atrozes, embora ocorram noutras partes; aliás, elas se tornaram partes de uma nova paz mundial. A máquina de guerra não é mais a dos Estados, embora os Estados participem dela ativamente. Se a situação mudou, é também porque a soberania dos Estados agora está subordinada à expansão do capitalismo mundial.

A hipótese de Deleuze e Guattari é decisiva, desse ponto de vista: o objeto da nova máquina de guerra não é mais a guerra, é a paz, uma estranha paz de terror ou de sobrevivência, testemunhada pelo controle sempre crescente dos indivíduos. É que o inimigo não é mais o chefe de guerra, é potencialmente qualquer um. Assim como a paz substitui a guerra, a polícia substitui o exército. Trata-se de um novo espaço-tempo. Mas, se o Estado tinha ainda um fundamento, se era o fundamento da organização social, sabemos agora que não há mais fundamento.

A violência das guerras por muito tempo se associou a um espaço político no qual se disputavam territórios. Por muito tempo a ocupação constituiu um objetivo militar: ocupar o espaço, colonizá-lo para lutar contra populações insurrecionais. Mas o que importa agora não é lutar contra populações, mas contra indivíduos. O modelo não é mais o da contra-insurreição, mas o da luta antiterrorista. Como dizem Deleuze e Guattari em Mil platôs, “os alvos não são mais adversários, mas criminosos a eliminar.”

  1. A tradução do presente ensaio, incluindo as citações de obras feitas pelo autor, é de Paulo Neves.
  2. Karl Marx, Le Capital, tome I, Paris: La Pléiade, 1969, pp. 1195-6. Edição brasileira: O capital, livro 1, São Paulo: Boitempo, 2013.
  3. Ibidem.
  4. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux, Paris: Minuit, 1980, pp. 440 e 497-8. Edição brasileira: Mil platôs, São Paulo: Editora 34, 1995.
  5. Fernand Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme, xve-xviiie siècle, v. 3, Paris: Armand Collin, 1979, p. 71. Edição brasileira: Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII – O tempo do mundo, vol. 3, São Paulo: wmf Martins Fontes, 2009.
  6. O autor provavelmente se refere ao conto “Deutsches requiem” de Jorge Luis Borges, publicado no livro El Aleph. [n.t.]

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