Globalização, guerra e violência
Resumo
Para melhor entender o Brasil contemporâneo, é preciso integrá-lo às dinâmicas e contradições internacionais. E isso historicamente, sobretudo no que se refere ao sistema econômico de produção, em seus aspectos políticos, sociais e militares.
Por isso a remissão ao século XV, com suas inovações tecnológicas e ideológicas. Era o Capitalismo se expandindo, para o bem de suas elites.
Do ponto de vista tecnológico, o que houve, então, foi a produção de bens e serviços (inclusive os novos) de modo cada vez mais regular, uniforme, fragmentado, rápido, racional e barato. Especialmente, no âmbito da indústria bélica. Um processo que foi acompanhado de uma ideologia que justificava a aplicação de tais inovações para fins expansionistas. Ou seja: o colonialismo irmanado à escravidão. Daí, a superioridade europeia, fosse ela racial, cultural ou religiosa.
A título de exemplo, basta mencionar a destruição de sociedades altamente complexas, como as mesoamericanas, por parte da Espanha, ou a glamourizada expansão para o Oeste americano, à custa de um dos maiores genocídios indígenas da história.
Mais recentemente, houve a doutrina Monroe, a política de Roosevelt e a tese do Destino Manifesto, diante da “turbulenta anarquia” em meio às populações hispânicas.
São práticas que se estendem a hoje, se é que não se tornaram mais vigorosas. Tudo com o objetivo de garantir a crescente disponibilidade de bens de consumo não só para as elites das sociedades centrais como para suas periferias. Por isso – e já que há capital excedente – abrir e manter abertos os mercados de outros países, dos quais se extraem insumos. Mas não só. Afinal, há que se difundir a ideologia da inevitabilidade e conquistar corações e mentes das elites periféricas, devidamente cooptadas.
É assim que se concentra o capital, de modo a gerar exclusão social e violência, não só individual como estatal, em caso de manifestações contra tal estado de coisas.
A partir de 1989, começa a chamada globalização, ou seja, a reincorporação de regiões ex-socialistas e ex-coloniais pela transformação do sistema produtivo presidido por megaempresas apoiadas por seus Estados, causando profundos deslocamentos entre os setores hegemônicos internos, face não só à competição externa como também a setores não-hegemônicos. Consequência disso é o profundo entrelaçamento entre o centro e as sociedades periféricas, nas quais, para além da extração de insumos, há a aplicação de capitais e a venda de produtos a altos custos. Nisso, é preciso destacar os Estados Unidos, que, no mais, impõem-se militarmente também, o que, aliás, alimenta a indústria bélica, num círculo vicioso altamente lucrativo.
Ainda acerca da globalização, note-se que, apesar da proliferação dos conflitos armados, ela é tratada – pela mídia, por acadêmicos e pelas agências internacionais – como um avanço pacífico – e benéfico. Na verdade, a globalização destrói: soberanias e legislações nacionais, o que esvazia qualquer tentativa de civilizar as relações entre capital e trabalho. Mesmo assim, é comum ouvir que se vive o começo da era pós-industrial, em que predominam os serviços e a tecnologia da informação; o conhecimento científico, enfim. Com isso, os recursos naturais e a localização física da produção passariam a ser irrelevantes, de modo a por fim nas fronteiras, nas ideologias, nos Estados – na história até. E eis que surgiria uma era pacífica, democrática, sofisticada, próspera e eficiente.
Ora, nada mais distante da realidade.
Dá prova disso a economia norte-americana, que importa 70% do petróleo que o país consome e depende, em muitos setores, das importações de bens intermediários e componentes industriais, mesmo que produzidos por subsidiárias de megaempresas nacionais no exterior. Até porque o valor de estoque de investimentos norte-americanos diretos no exterior é superior ao de qualquer outro país.
E o Brasil nisso tudo?
Em primeiro lugar, note-se que o Brasil faz fronteira com dez países. De seu lado, a extensão do litoral brasileiro gera necessidades militares específicas, inclusive de defesa de recursos naturais na zona econômica exclusiva, de proteção ambiental e de vigilância costeira. O espaço aéreo não demanda menos.
No mais, o Brasil, como qualquer outro Estado do centro ou da periferia, sofre constante pressão por parte das estratégias americanas, em seus diversos aspectos, a exemplo do plano de desarmamento da periferia e o de estabelecimento da reintegração de territórios ao sistema capitalista global, dominado sobretudo por megaempresas.
Como evitar tudo isso?
O eixo central da estratégia geopolítica brasileira deve ser o esforço deliberado e sistemático de contribuir para a constituição de um mundo multipolar e de elaborar com a Argentina, de forma muito próxima, uma visão comum sobre a estratégia para atingir tal objetivo, atuando sobre a dinâmica internacional do presente. A atuação conjunta nas esferas política e militar, de forma coordenada, autônoma e não-alinhada, é essencial para preservar e recuperar graus de autonomia para a elaboração de políticas econômicas e militares indispensáveis à construção no Cone Sul de um bloco econômico e político capaz de empregar de forma plena seus fatores de produção e de desenvolver tecnologia própria com vistas a uma atuação eficaz de defesa de suas sociedades em um mundo globalizado e violento.
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS E INOVAÇÕES IDEOLÓGICAS
Para melhor entender o Brasil atual, é necessário vê-lo dentro da dinâmica e das contradições do contexto internacional; este contexto somente é compreensivel de um ponto de vista histórico; e esta história é a história do sistema econômico de produção, em seus aspectos políticos, sociais e militares. A etapa histórica atual, caracterizada pela globalização, pela guerra e pela violência, é a resultante viva da dinâmica de expansão do capitalismo.
A expansão do capitalismo, desde o século XV, se fez sob o impulso de inovações tecnológicas, com seus efeitos econômicos e militares, e de “inovações ideológicas”. A análise dessa expansão deve ser feita à luz da estreita interrelação entre essas duas modalidades de inovação e tendo em vista seu objetivo principal, que é a acumulação de riqueza no centro do sistema e o crescente bem-estar de suas elites.
As inovações tecnológicas tornaram a produção de bens e serviços cada vez mais regular, uniforme, fragmentada, rápida, racional e barata e criaram novos produtos, em uma sequência cumulativa e interativa de conhecimentos científicos e tecnológicos e de aperfeiçoamento dos processos produtivos. A característica central da produção era, e continua a ser, o uso da máquina, como complemento e substituto da destreza humana, e sua articulação com novas fontes de energia, em substituição à força animal e natural.
As inovações tecnológicas têm se originado ou sido rapidamente utilizadas em atividades militares. Assim revelam as relações entre o desenvolvimento da metalurgia, da siderurgia e, hoje, da eletrônica e a consequente fabricação de armamentos cada vez mais poderosos; entre novos processos de propulsão e a construção de meios mais rápidos de movimentação de armas e de homens; e entre novos métodos de gestão empresarial e sua aplicação no aperfeiçoamento da organização militar.
O capitalismo encontrou em seus caminhos de expansão formas primitivas de organização econômica e social que correspondiam a estruturas políticas de poder local e que resistiriam à penetração do novo sistema. Para vencer as resistências política e militar dessas sociedades à introdução das suas práticas, o capitalismo utilizou a força militar para impô-las juntamente com o controle político necessário à sua adoção.
Ao mesmo tempo, usou de um complexo aparato de inovações ideológicas para se autojustificar e reduzir as resistências encontradas. Este aparato tinha sempre como princípio fundamental a suposta superioridade racial, cultural e religiosa europeia. De um lado, estavam justificados nos primeiros tempos a escravidão e mais tarde os regimes coloniais de opressão; de outro lado, os respectivos regimes domésticos de privilégio social, político e econômico, baseados na propriedade, na renda, no sexo, na educação e na raça, foram igualmente “racionalizados”.
Nos países que se encontravam no centro do sistema, as “inovações ideológicas” articulavam a barbarização e a demonização do “outro”. Isso contribuiu para “tranquilizar” as consciências mesmo dos setores não integrantes das elites, do que foi mais tarde chamado de opinião pública, diante das incursões militares para a abertura de mercados, expropriação de riquezas e sujeição política de sociedades e Estados que eram previamente estigmatizados como bárbaros, atrasados ou heréticos.
A expansão econômica, política e ideológica do capitalismo se fez em cada região através da adaptação de suas táticas às circunstâncias locais, mas sempre com fundamento na ideologia de superioridade cultural e civilizacional, que justificava a destruição das estruturas sociais, econômicas e políticas das outras sociedades, inclusive de povos e culturas altamente complexas como as encontradas na Meso-América, que chegavam a ter aglomerados urbanos maiores do que os existentes na Europa. A título de exemplo, as inovações tecnológicas no campo dos transportes, do fabrico e do uso das armas de fogo e, em especial, da organização militar foram essenciais para a conquista, por reduzido número de europeus, dos impérios inca e asteca, e para a expansão comercial e política europeia na Ásia. A essas inovações tecnológicas se aliaram “inovações ideológicas”, como os mitos que afirmavam a superioridade da raça branca e do cristianismo, para justificar a escravidão indígena e negra. Estas construções ideológicas “justificavam” o processo de incorporação violenta de índios e negros ao sistema econômico capitalista colonial, através do trabalho escravo, e a expropriação de terras e o saque de riquezas acumuladas, como os objetos e metais preciosos do México e do Peru.
Assim, igualmente se justificaram e hoje até se glamourizam a expansão para o Oeste nos Estados Unidos e o genocídio dos índios americanos; enquanto as políticas de sucessivas intervenções militares no Caribe e nas Américas, que levaram inclusive à criação de um Estado, o Panamá, foram justificadas pela “desinteressada” doutrina Monroe e o corolário de Roosevelt, e mais tarde pela tese triunfalista do Destino Manifesto, diante da “anarquia turbulenta” daquelas populações hispânicas.
A mesma associação de novas tecnologias e de novas ideologias ocorreu na expansão da economia japonesa no Oriente, na expansão dos interesses alemães na Europa Central e mais tarde na Europa em geral, assim como ocorrera antes a formação dos impérios coloniais inglês e francês na África e na Ásia, a qual foi edulcorada pela ideia especial do “fardo do homem branco”, que “tinha” de impor sua civilização. Fenômeno semelhante se verificou no Brasil, com a conquista do território, a expropriação das terras das tribos indígenas, a escravidão negra e o tráfico de escravos, fenômenos de rara e extrema violência que contaram, em geral, com a cooperação ideológica ativa da religião e a justificativa, nobre e altruísta, da propagação da Fé, único meio de salvar indígenas e negros do fogo do Inferno.
Do ângulo econômico, a característica central da expansão do capitalismo é a transformação tecnológica constante, como o meio necessário para criar, ganhar e garantir mercados, se necessário pela força, e poupar trabalho humano para reduzir custos e assim maximizar lucros.
Deflagrada a Revolução Industrial, a necessidade inicial, devido às características da economia britânica, de organizar em territórios da periferia a produção de insumos para as indústrias do centro do sistema, levou à criação de uma rede de conexões físicas de produção e comércio entre mercados produtores e consumidores, e, por outro lado, à medida que se elevava o custo do trabalho no centro do sistema e se acumulava capital, surgia o impulso para aplicar o capital excedente de forma mais lucrativa na periferia, devido ao menor custo relativo do trabalho nessas áreas.
Essas características centrais do processo de expansão, endógena e exógena, do capitalismo permanecem até os dias de hoje. As aparências externas das inovações tecnológicas; as relações entre fatores de produção; as mudanças na importância relativa dos setores produtivos; a correlação internacional de forças políticas; as estratégias de manutenção e concentração de poder podem obscurecer aquelas características, mas elas permanecem no âmago do processo.
Assim, após mais de quinhentos anos de expansão, depois de mais de meio século de luta interna entre Estados capitalistas pela hegemonia do sistema e de conflito, competição e vitória sobre o modelo socialista alternativo criado na União Soviética, o capitalismo prossegue ainda com maior vigor sua expansão, com base naquelas mesmas características e objetivos.
O primeiro e principal objetivo, como foi dito, é manter e aumentar o bem-estar, definido como a disponibilidade crescente de bens de consumo, que supostamente trariam maior felicidade, para as sociedades no centro do sistema, isto é, para suas elites e, o que é importante, também para suas periferias internas. Sua estratégia econômica é manter a liderança científica e tecnológica, abrir e manter abertos os mercados de terceiros países, quer sejam do centro, quer da periferia, para aplicar capitais excedentários, colocar produtos e ter acesso a insumos estratégicos e não-estratégicos; manter a superioridade militar pelo avanço tecnológico e pelos mecanismos de controle da periferia (e de Estados do centro eventualmente contestadores); manter o controle pela difusão ideológica da inevitabilidade e beneficência da própria hegemonia e pela conquista das mentes e corações das elites periféricas que se associam a esse projeto, que dele se beneficiam marginalmente e que o executam localmente, com convicção e zelo.
Por outro lado, a primeira grande dificuldade e contradição do processo de expansão e de manutenção do sistema capitalista global é que ele traz em si fortes mecanismos de concentração de riqueza e de poder, assim como poderosos elementos de transformação radical e desequilibradora nos mercados de capital e de trabalho.
Os mecanismos de concentração de riqueza e de poder têm sua origem histórica na concentração da propriedade, nos regimes de servidão feudal e de escravidão colonial, em sua transmissão hereditária e na vinculação entre poder político e propriedade. As transformações econômicas da Revolução Industrial incorporaram novos segmentos sociais, criaram novas classes de trabalhadores e modificaram o sistema político; mantiveram, porém, as características centrais de concentração de riqueza e de poder. Tais características são agravadas pela apropriação prioritária pelos donos do capital dos resultados dos constantes aumentos de produtividade devidos às inovações tecnológicas; pela tendência das novas tecnologias a poupar mão-de-obra, mantendo relativamente alta a oferta de trabalho, e pelas características da democracia política liberal de refletir na esfera política a concentração de poder econômico e social.
A desigualdade inicial de oportunidades, consagrada e reproduzida hereditariamente, cria e agrava as condições de concentração de poder e riqueza em todas as sociedades capitalistas, quer altamente desenvolvidas, quer subdesenvolvidas. Tais tendências de concentração de riqueza e poder e os elementos tecnológicos desestabilizadores dos mercados têm efeitos dentro de cada sociedade e entre as sociedades, causando, todavia, maior concentração de riqueza e de poder e maiores desequilíbrios políticos nas sociedades que se encontram na periferia do sistema.
Por essa razão, nas sociedades da periferia (mas também nas sociedades do centro) os processos de concentração de renda se aceleram juntamente com as crescentes exclusão social e violência individual, que tornam, de um lado, cada vez maior a violência do Estado para defender a propriedade (e os processos de concentração de poder), e, de outro lado, cada vez mais intensos os movimentos de contestação, organizados ou espontâneos, a tais iniquidades.
Os processos de expansão do capitalismo na etapa que se inicia em 1989, chamada de globalização, e que corresponde à reincorporação de áreas ex-socialistas e de áreas periféricas ex-coloniais e à transformação tecnológica do sistema produtivo pelas megaempresas apoiadas por seus Estados, causam profundos deslocamentos entre os setores hegemônicos internos, em face da competição externa, setores que continuam, todavia, responsáveis pelos sistemas políticos e econômicos das sociedades em desequilíbrio e desagregação.
Assim, crescem o descontentamento, a frustração e a angústia dos próprios setores hegemônicos internos das sociedades periféricas nessa etapa de expansão do capitalismo, e a revolta, organizada ou anômica, dos setores não-hegemônicos, em uma combinação que tende a levar à contestação cada vez mais vigorosa dos objetivos do centro do sistema e de seus mecanismos de funcionamento.
Por outro lado, o centro do sistema, isto é, as sociedades centrais hegemônicas, tornou-se profundamente entrelaçado com as sociedades periféricas e dele dependentes para certos insumos básicos, para a aplicação de capitais e a colocação de produtos com margens extraordinárias de lucro.
O fato crucial é que, nesse sistema capitalista globalizado, existe uma sociedade, os Estados Unidos, que exerce a hegemonia através de estruturas de poder e que tem o bem-estar das próprias elites e de sua sociedade em geral extremamente dependente da economia global, devido às suas estreitas vinculações com as mais distantes regiões e sociedades em termos de comércio, de investimentos e de presença militar.
De um lado, o próprio funcionamento da economia produtiva norte-americana, no território geográfico dos Estados Unidos, depende profunda e essencialmente de produtos importados, de matérias-primas, e em especial de petróleo, mas igualmente de produtos industriais estratégicos, produzidos ou não por megaempresas multinacionais americanas, operando no exterior.
De outro lado, o nível de bem-estar da sociedade americana depende não somente da possibilidade de manter um gigantesco e crônico déficit comercial e de importar produtos mais baratos fabricados no exterior por empresas americanas ou não (e daí o decréscimo relativo da participação da indústria no Produto Interno dos Estados Unidos), mas também dos fluxos de lucros e de dividendos gerados pelas aplicações de capitais americanos no exterior, em especial na periferia do sistema, onde as taxas de lucro e de juros são muito superiores àquelas vigentes nos países do centro do sistema, e da capacidade de impor o dólar como moeda de reserva e meio de troca do sistema comercial, monetário e financeiro mundial.
Em terceiro lugar, mas não menos importante, o dinamismo da economia americana depende da geração incessante de descobertas científicas e inovações tecnológicas que permitam, na esfera civil de produção, reduzir custos e criar novos produtos, e, na esfera militar, gerar novas armas e sistemas de informação e comunicação que possibilitem manter sua hegemonia global pela intimidação e uso aberto da força, sempre que necessários à defesa da “civilização ocidental”, isto é, do american way of life.
Ora, tendo em vista a ideologia, dominante na sociedade americana, de primazia absoluta da livre iniciativa e, portanto, do dogma da não-intervenção do Estado na economia, e, de outro lado, o custo e a aleatoriedade da pesquisa científica e tecnológica, a forma de legitimar o financiamento e o subsídio à empresa privada é utilizar a justificativa da segurança nacional, o que, por sua vez, torna imprescindível a existência de um inimigo externo crível. Procura-se atualmente substituir o “inimigo”, papel antes representado pela União Soviética, por supostas ameaças, que reuniriam condições de se tornarem tal adversário. Governo e elites norte-americanos têm se empenhado em apresentar o terrorismo, o fundamentalismo islâmico, o narcotráfico, e os Estados “bandidos” ou “párias” como candidatos a representar o papel de inimigo da maior potência militar da história. Agora, cada vez de forma mais aberta e sem maiores justificativas, utilizam a simples ideia de manter sua hegemonia e defender-se da “barbárie” da periferia e da ameaça amarela no horizonte.
Assim, ainda que a etapa anterior de expansão do capitalismo se tenha concluído (ou quase) e que a reincorporação de áreas ex-socialistas e ex-coloniais periféricas esteja muito avançada (e quase completa), a realidade é que o fator militar se torna essencial para manter o sistema intimidado, e para esmagar, em último caso, as regiões, Estados ou sociedades que forem vitais e que vierem a se revoltar de forma mais explícita e radical contra o processo de expansão e de funcionamento do sistema.
É preciso tratar o tema da guerra e da geopolítica a partir da visão americana, porque, devido às circunstâncias geradas pela Segunda Guerra Mundial e mais tarde pela derrocada da União Soviética, os Estados Unidos se tornaram o único país com interesses econômicos, políticos e militares verdadeiramente globais e até além dos limites do planeta. Os demais Estados têm postura essencialmente reflexa, reagindo à estratégia geopolítica e militar americana ainda quando possam ter interesses militares e uma estratégia geopolítica regionais. No caso do Brasil, devido ao afastamento geográfico da Europa e da Ásia e à irrelevância, sob o aspecto militar, da África, as visões geopolíticas de interesse imediato maior são a norte-americana e, em segundo lugar, a de nosso principal vizinho, a Argentina.
CONFLITO E EXPANSÃO NO SÉCULO XX: A RETOMADA DA GLOBALIZAÇÃO
Antes de examinar as visões geopolíticas e as estratégias militares americanas e argentinas, seria interessante reexaminar a questão da globalização e o que este fenômeno significa concretamente. O processo de globalização corresponde à nova fase de expansão e transformação econômica, política e militar do sistema capitalista, com profundas raízes etnocêntricas e características imperiais.
O período que vai da Revolução Bolchevique em 1917 até a eleição de Reagan em 1980 correspondeu a um longo, e preocupante para o centro do sistema, período de redução gradual de influência ideológica e de perda de territórios e populações que faziam parte do sistema econômico e político global capitalista e que se tornaram socialistas ou economias mistas, com intervenção direta e empresarial do Estado para promover o desenvolvimento e com políticas restritivas à ação do capital estrangeiro.
Por outro lado, o período de 1914 a 1945 corresponde possivelmente ao período de maiores conflitos militares, econômicos, políticos e ideológicos da história, e durante o qual ocorreram a maior destruição física e maiores perdas de vidas humanas.
O período de 1945 até a Revolução Iraniana em 1979 presenciou o fim formal dos impérios coloniais holandês, inglês, francês, belga e português, com o surgimento de dezenas de Estados independentes na África e na Ásia, que pretendiam implementar políticas de desenvolvimento ativas. A contestação do predomínio das duas superpotências no plano internacional se realizou através do Movimento Não-Alinhado, O Movimento reivindicou a adoção de nova ordem econômica internacional e propugnou o desarmamento nuclear completo e geral, apoiando algumas posições da União Soviética ou contando com o apoio desta para algumas de suas reivindicações, em especial no período da luta anticolonial.
Esses fenômenos causavam grande preocupação nos centros de comando do sistema econômico, político e militar capitalista e faziam mesmo com que alguns importantes analistas, como Joseph Schumpeter, sugerissem que a vitória do socialismo seria apenas questão de tempo, e mais recentemente com que outros, como Paul Kennedy, indicassem que os Estados Unidos estariam, a exemplo de grandes potências do passado, em processo de perda de hegemonia e de declínio devido à sobrecarga decorrente da extensão exagerada de seus compromissos políticos e militares.
A partir da queda do Muro de Berlim em 1989 e da retirada soviética do Afeganistão e da Europa Oriental em 1990, inicia-se a acelerada reincorporação ao sistema capitalista de áreas, que antes tinham sido “perdidas” para o supostamente monolítico bloco comunista, através da radical abertura comercial e financeira dos ex-países socialistas às atividades das megaempresas multinacionais. Esse mesmo processo de abertura e de reincorporação passa a ocorrer gradualmente nos Estados periféricos em setores de atividade econômica que se encontravam excluídos legalmente da esfera de atividade daquelas megaempresas, como, por exemplo, as telecomunicações no Brasil.
A globalização corresponde também a um processo de reorganização em nível mundial das próprias características tecnológicas do modo de produzir do sistema capitalista. A tecnologia da informação, acoplada à das telecomunicações, reorganiza o processo tecnológico de produção, permitindo em nível microeconômico, isto é, da empresa, a flexibilização dos equipamentos industriais, a produção individualizada por clientes, a adoção do sistema just in time, a miniaturização de produtos eletrônicos, a precisão e a redução de desperdício nos processos etc. Essas mesmas tecnologias reorganizam os mercados pela possibilidade que trazem de maior eficiência do planejamento global de produção das megaempresas (global sourcing) e pela unificação dos mercados financeiros.
A formação de mercados globais se realiza pela ação das megaempresas multinacionais, cujo centro de comando se encontra nos países altamente desenvolvidos, e não resulta de forma nenhuma da ação das médias e pequenas empresas. Estima-se que parte substancial do comércio mundial, em especial de bens industriais, é um comércio intrafirma, e este comércio intrafirma é um comércio dentro das próprias megaempresas, enquanto a unificação dos mercados financeiros se realiza devido à ação dos megabancos e dos megafundos de pensão. A formação das megaempresas industriais, comerciais e financeiras e sua ação foram tornadas possíveis, a partir da época Thatcher/Reagan, pela desregulamentação, em especial o relaxamento da legislação antitruste, bancária e das bolsas de valores no centro do sistema econômico internacional, e pela abertura dos mercados comerciais e de capitais da periferia, que têm levado a um vasto processo de fusões e associações, e, portanto, a mercados cada vez mais oligopolizados em nível regional e mundial.
O processo de reincorporação de áreas ao sistema econômico, político e militar capitalista, sob o comando das estruturas hegemônicas de poder, verificou-se e verifica-se através de pressões políticas, do estabelecimento de condições para a renegociação das dívidas externas, ou como parte de programas de ajuda financeira, em momentos de crise, aos países periféricos, e da negociação de acordos internacionais de distintas naturezas mas que tem sempre como finalidade última consolidar juridicamente os resultados do processo de globalização.
A normatização internacional, através da negociação de acordos cada vez mais restritivos à capacidade de executar políticas ativas de desenvolvimento econômico, procura consolidar a posição privilegiada das estruturas hegemônicas de poder no sistema internacional e manter os mecanismos de concentração de poder que as favorecem e aos Estados que estão em seu centro.
Tal processo foi precedido e sustentado pela difusão persistente, pela mídia, pelas universidades e acadêmicos e pelas agências internacionais, da ideologia do neoliberalismo, da afirmação enfática do fim do Estado e das fronteiras, da obsolescência das soberanias, da excelência do individualismo, da eficiência e do cosmopolitismo como sendo os fundamentos ideais para a organização das sociedades nacionais e da sociedade internacional. Essa ideologia afirmava igualmente que as disparidades internacionais de poder decorriam de fatores naturais, da excelência das sociedades civilizadas ou do arcaísmo das sociedades periféricas, mas nunca de qualquer mecanismo de exploração econômica ou de dominação política que beneficiasse as sociedades no centro do sistema.
Essa campanha ideológica, aliada às pressões exercidas em todas as esferas de negociação, levou à cooptação gradual das elites dirigentes e acadêmicas dos países da periferia, em especial das chamadas “equipes econômicas”, que passaram a acreditar naquele ideário e a executar estratégias políticas, econômicas e militares de submissão implícita ou explícita às estruturas hegemônicas de poder, através da aceitação das políticas por elas recomendadas (e impostas).
A IMPRESCINDÍVEL FACETA MILITAR DA GLOBALIZAÇÃO: GUERRA E VIOLÊNCIA
A globalização é insistentemente apresentada pela mídia, por acadêmicos, pelos governos dos Estados centrais e pelas agências internacionais como um processo pacífico, benéfico, natural e irresistível, apesar da flagrante proliferação de conflitos armados regionais; das tensões internacionais; dos conflitos armados nacionais; da crescente assimetria de resultados econômicos tanto dentro dos países como entre estes, que se revela pela concentração de renda e riqueza; e das pressões sistemáticas dos governos das grandes potências sobre os Estados da periferia para que modifiquem suas políticas e adotem as que lhes são recomendadas.
As diversas partes (Estados) que compõem os mercados globais são comunidades políticas e sociais distintas, sujeitas a soberanias e legislações distintas. A expansão geográfica do capitalismo, como foi visto, caracteriza-se pela destruição de estruturas preexistentes, pela profunda transformação das relações entre capital e trabalho e pela concentração de renda e poder no seio de cada Estado nacional e no centro do sistema internacional, gerando crescente instabilidade em todas as esferas de atividade humana.
Esta instabilidade gera por sua vez a crescente demanda de modificações, de forma pacífica, tal como na Venezuela, ou revolucionária, como na Colômbia, das instituições políticas e da legislação no interior dos Estados, modificações que podem afetar os interesses externos, isto é, das estruturas hegemônicas e dos países que as constituem, de forma que esses últimos classificam como prejudicial. A existência de organizações e vínculos militares, tais como acordos de cooperação e instalações operacionais e a construção de vínculos políticos internos que facilitem a proteção das rotas físicas de suprimento comercial e as instalações produtivas das megaempresas em terceiros países; a garantia de acesso a insumos estratégicos para as suas economias, como o petróleo e materiais raros; e eventualmente a sustentação de regimes políticos ou sua derrubada, torna cada vez mais indispensável a existência de Forças Armadas cada vez mais sofisticadas, equipadas e aguerridas nos países que se encontram no centro das estruturas hegemônicas de poder, para garantir o funcionamento ininterrupto dos vínculos políticos, econômicos e jurídicos que formam e estruturam os mercados globais.
O atual processo de globalização está assim profundamente vinculado à guerra e à violência. A violência e a guerra não são nem fenômenos anormais nem raros, e assim não podem ser analisadas isolada ou abstratamente, sem antes examinar suas profundas vinculações com os fenômenos sociais e com a estrutura do sistema internacional. São as próprias características do sistema internacional e as políticas exercidas pelas estruturas hegemônicas de poder e seus aliados locais que levam ao conflito, à guerra e à violência doméstica.
A guerra é um esforço sustentado de imposição de vontade entre Estados pela força física. O fato de, após a Segunda Guerra Mundial, ter sido tornada ilegal como meio de ação política dos Estados e tornada prerrogativa exclusiva do sistema de segurança coletiva da Organização das Nações Unidas não lhe retira esta sua característica essencial. Por outro lado, guerra e geopolítica estão estreitamente interligadas, e a guerra, assim como a diplomacia, é um instrumento da geopolítica.
A guerra e a geopolítica devem ser compreendidas como partes inerentes de processos econômicos e políticos mais amplos e de natureza histórica. Dentre esses processos, como foi visto, aqueles de maior interesse na atualidade são a reincorporação de áreas ex-socialistas ou periféricas ao sistema econômico e político global, capitalista; a consolidação jurídica dessa reincorporação; a formação de mercados globais; e a preservação de uma mecânica de apropriação da riqueza mundial.
Os sistemas de produção, distribuição e apropriação de riqueza não são naturais e automáticos nem apresentam resultados únicos e igualmente benéficos para todas as sociedades que deles participam. Seu funcionamento, sua organização legal, a distribuição de seus resultados dependem, de um lado, da ação das megaempresas multinacionais, e, de outro lado, dos Estados, em sua agressiva política de implantação de normas jurídicas de organização do sistema com vistas a criar melhores condições para a ação de suas empresas (e melhores resultados para seus acionistas e suas populações). O conjunto de normas jurídicas e agências internacionais tem como objetivo conferir razoável estabilidade às relações que constituem o processo mundial de produção, comércio e distribuição de riquezas e assim permitir a maior apropriação possível de resultados para as elites e as populações dos países centrais. A eficiência desse sistema de concentração de riqueza pode ser constatada pelo próprio crescimento histórico do hiato de renda entre os países altamente desenvolvidos e os países da periferia ex-colonial.
Em consequência, por envolver o bem-estar das elites e das populações dos Estados altamente desenvolvidos, a disputa no plano das megaempresas (as demais empresas são espectadoras passivas desse jogo) e no plano dos Estados pela apropriação da riqueza mundial é acirrada, com notáveis componentes políticos e militares. A estruturação do sistema de forças militares para garantir a permanência do sistema, a hegemonia das estruturas de poder, lideradas pelos Estados Unidos, e o atual modo de apropriação da riqueza mundial é faceta indispensável e inerente ao sistema internacional em sua fase atual.
A globalização é um processo altamente assimétrico, devido ao fato de que, quanto mais livre o jogo das forças de mercado entre unidades radicalmente desiguais (sejam elas Estados ou empresas), maior a concentração de renda, de riqueza e de poder econômico, em um círculo vicioso, enquanto, de seu lado, o progresso tecnológico acelerado gera desequilíbrios radicais nos mercados de trabalho, aumenta e aguça a marginalidade social.
Por outro lado, ã medida que se formam novas e gigantescas megaempresas, cresce a arrogância e a impaciência empresarial diante do Estado e das tentativas, ainda que tímidas, do Estado e dos políticos de redistribuir a riqueza e de procurar mitigar os efeitos dos processos de exploração para garantir a própria permanência desses processos, fazendo assim com que prevaleçam o “curto prazismo”, típico do pensamento empresarial, e a gestão econômica estatal conservadora e estagnacionista.
O próprio êxito da estratégia neoliberal em promover a redução do Estado, em especial na periferia, contribui para que aumentem as tensões sociais locais, devido à redução ou eliminação das políticas sociais compensatórias, tornando mais provável a ocorrência de rebeliões, desorganizadas e sem objetivos definidos, que se manifestam na violência urbana e em motins espontâneos, ou organizadas em movimentos sociais pacíficos mas eventualmente violentos.
Há uma percepção crescente na periferia de que a globalização, isto é, a reincorporação de áreas e a penetração e controle pelas megaempresas das economias locais, levou a maior corrupção, à ruptura das estruturas sociais, à desarticulação do capitalismo e do Estado locais. As megaempresas multinacionais se tornam rapidamente o alvo preferencial de antagonismo social e de propostas de reformulação legislativa para coibir a extensão da penetração dos interesses multinacionais.
Os fenômenos de transformação tecnológica e de concentração de poder ocorrem tanto no centro como na periferia. Todavia, a transferência de renda da periferia para o centro; as características demográficas da periferia; sua lenta e deficiente acumulação de capital e precária infra-estrutura; seus baixos níveis de bem-estar; seu ressentimento em relação ao passado colonial e racista são todos elementos que fazem com que a probabilidade de reação contra os processos de reincorporação e de globalização seja maior na periferia do que no centro, podendo assumir as formas de caos mafioso, como na ex-União Soviética, de revolta popular democrática, como na Venezuela, de revolta armada, como na Colômbia, e de guerrilhas localizadas, como no México.
Todavia, tais revoltas e turbulências não teriam maior importância não fosse a relação entre as estruturas hegemônicas de poder e a periferia, do ponto de vista da profunda integração dos sistemas produtivos, mas em especial do sistema de apropriação de riquezas, da necessária sobrevivência de Estados e de ordens jurídicas distintas, apesar de todo o esforço de norma-tização e de uniformização jurídica em nível mundial, promovido incessantemente pelas estruturas hegemônicas de poder.
A estruturação de um sistema de forças militares tem assim sua causa e necessidade, de um lado, na transformação tecnológica, na concentração de poder econômico e na apropriação de riqueza, que geram crescentes e radicais desigualdades entre os países e dentro dos países, com consequências políticas que assumem a forma de rebeliões ou de reivindicações de re-orientação de políticas; e, de outro lado, no crescente entrelaçamento da economia da sociedade americana com o resto do mundo; e, finalmente, na relação da economia americana com a guerra como forma de estimular o seu crescimento e de preservar seu funcionamento.
CARACTERÍSTICAS DA ECONOMIA MUNDIAL, DA ECONOMIA AMERICANA E DA GUERRA
São comuns as afirmativas de que a humanidade está vivendo o início de uma era pós-industrial, às vezes descrita como a era dos serviços, ou da tecnologia da informação, ou finalmente, do conhecimento científico, em que o trabalho, assim como os recursos naturais, teriam deixado de ser fatores importantes, em que a localização física da produção seria irrelevante, e em que se assistiria ao fim das fronteiras, das ideologias, da História e dos Estados.
Essa nova sociedade seria pacífica, democrática, sofisticada, próspera e eficiente, e nela não haveria lugar racional nem para a segurança nem para a guerra nem, portanto, para a geopolítica. Todavia, e contrariando tais afirmativas, a segurança, a guerra e a violência dominam cada vez mais o cotidiano dos indivíduos e dos estadistas.
Na realidade, a pletora de bens da sociedade moderna deveria demonstrar cabal e definitivamente que a atividade industrial continua central na vida moderna, ainda que os métodos de produção sejam cada vez mais complexos, sofisticados e automatizados, e que, para alguns países, que exportaram unidades de produção para o exterior, a indústria possa ter diminuído de importância no conjunto das atividades econômicas que se realizam em seu território nacional. Apesar da importância crescente das atividades econômicas ligadas ao lazer e ao entretenimento, em especial as “indústrias” de audiovisual, de turismo e culturais, cuja aparência faz pensar que parecem prescindir de base física, certamente dependem elas igualmente da infra-estrutura física e dos bens produzidos pela indústria, no sentido tradicional.
As atividades econômicas se desenvolvem sempre em lugar determinado, que se encontra em território legalmente definido, em uma combinação de capital, trabalho e insumos. É impossível imaginar a produção de um bem ou de um serviço qualquer fora de um espaço físico específico, apenas com o concurso de indivíduos, por mais qualificados que sejam, sem o concurso simultâneo de matéria-prima e de equipamentos. Nesses territórios específicos e perfeitamente conhecidos, que se encontram sob a soberania de distintos Estados, localizam-se as unidades de produção, quer sejam agrícolas, industriais ou de serviços, e nessas unidades trabalham indivíduos, desde os mais poderosos executivos e sofisticados técnicos aos mais simples operários.
As atividades financeiras, tais como os fluxos de capitais voláteis, os mercados de câmbio, as transações com derivativos etc., apresentadas como imateriais, invisíveis, misteriosas, imprevisíveis e incontroláveis, têm base física, que são os equipamentos indispensáveis para que se realizem. Dependem elas de computadores, satélites e outros sistemas de transmissão, de contabilidade e de indivíduos que as realizam sob o comando de outros que assim o fazem a partir de sistemas de informação e de aplicação de recursos que têm correspondentes ao nível da produção, ao nível da atividade física. A propriedade e as características do capital somente se realizam e interessam porque, em última instância, correspondem a um poder de comando sobre ativos físicos e pessoas e não sobre bens imateriais.
As unidades de produção com frequência utilizam matérias-primas e bens intermediários produzidos por unidades que se encontram em outros territórios, assim como sua produção pode estar destinada em parte ou no todo a consumidores finais ou intermediários que se encontram em outros territórios, sob diferentes regimes políticos, ordens jurídicas e soberanias. A atividade econômica não faria sentido sem os consumidores que adquirem os bens e serviços que resultam da produção, e estes consumidores se encontram em territórios definidos, igualmente sujeitos à soberania de Estados específicos.
No caso da maior parte das economias nacionais e das empresas, a parcela mais significativa das atividades de produção e de consumo se realiza dentro de um mesmo território, isto é, produtores e consumidores, capitalistas e assalariados, encontram-se sob a mesma soberania política e sujeitos à mesma ordem jurídica. Esta afirmação é válida inclusive para a sociedade americana, a maior economia e a maior potência militar do mundo. Todavia, os Estados Unidos são certamente aquela sociedade em que a natureza de sua economia produtiva e do consumo dos produtos que geram suas empresas é mais global, vale dizer, em que é mais importante é o que ocorre fora de seu território nacional, fora do alcance direto da soberania do Estado americano.
O total do comércio exterior americano, que se havia mantido historicamente abaixo de 10% do Produto Interno Bruto, rapidamente se elevou a partir da década de 1970, até atingir 20% do PIB. A economia norte-americana não só importa mais de 50% do seu consumo de petróleo, índice que deverá atingir 70% até 2010, como depende, em muitos setores, das importações de bens intermediários e componentes industriais, ainda que produzidos por subsidiárias de megaempresas americanas localizadas no exterior. Por outro lado, tanto o extraordinário déficit na balança comercial quanto a sua reduzida taxa de poupança interna aumentam sua dependência de capitais externos, para financiar tais déficits, e de capitais locais, no exterior, para financiar a expansão de suas megaempresas em terceiros mercados.
O entrelaçamento da economia doméstica americana com a economia de terceiros países e com as atividades de megaempresas americanas no exterior se verifica em outras dimensões além do comércio e das finanças. Este entrelaçamento tem um componente físico que pode ser aferido pelo número de filiais de megaempresas de origem e propriedade americana; pelo maior número de mercados em que se encontram instaladas as subsidiárias dessas megaempresas; pelo fato de desenvolverem tais empresas maior gama de atividades de produção e comercialização do que as megaempresas de outras nacionalidades. O valor total do estoque de investimentos diretos americanos no exterior é superior ao valor dos estoques de investimentos diretos de qualquer outro país no exterior, e sua importância é maior e sua penetração mais profunda na economia de terceiros países.
Os megafundos de pensão americanos (e japoneses) são os principais responsáveis pela movimentação de capitais especulativos no mundo através de operações em bolsas de valores e nos mercados cambiais, enquanto os métodos americanos de contabilidade empresarial enfatizam a lucratividade de curto prazo, o que explica o menor interesse de empresas americanas em. investimentos de longo prazo, de retorno menor e mais arriscado, e a consequente velocidade dos fluxos de capitais entre países.
A maior parcela das operações de produção e comercialização das megaempresas multinacionais, em especial as de propriedade norte-americana, ocorre em seus próprios territórios nacionais, e portanto ali se gera o maior volume de seus negócios. Todavia, muitas vezes a maior parte ou parte muito significativa de seus lucros se realiza fora de seu território nacional e em especial na periferia do sistema capitalista, isto é, naqueles países não altamente industrializados e que não fazem parte da chamada tríade: Estados Unidos/Canadá, União Europeia e Japão. Ademais, a economia americana e o nível de renda de sua população dependem do ingresso de receitas de juros e de amortização de empréstimos feitos ao exterior. Apesar de os países da tríade concentrarem, em conjunto, acima de 80% da produção e do comércio internacional, a situação dos países da periferia como geradores de lucros e juros extraordinários para o centro do sistema esclarece a razão de sua importância, que vai além de sua relevância como supridores de insumos estratégicos, tais como o petróleo e minerais raros.
A despeito da importância da participação da pequena e média empresa no PIB norte-americano, as megaempresas multinacionais americanas, devido à sua dimensão individual na produção, na pesquisa e desenvolvimento tecnológico, e no esforço militar, têm influência mais do que proporcional no processo político americano, tanto junto ao Congresso quanto junto ao Executivo.
Esta importância da economia mundial para a economia americana como um todo, como se verifica no caso do petróleo, e especificamente para certos setores e empresas importantes e poderosos na economia americana, faz com que o governo dos Estados Unidos tenda a considerar o mundo como sendo território seu e, como tal, deva ser defendido no interesse da sociedade norte-americana.
A GEOPOLÍTICA E A GUERRA PARA OS ESTADOS UNIDOS
A geopolítica, como exercício de definição de objetivos nacionais na esfera internacional, análise da importância relativa de influir, controlar e defender certas regiões para alcançar aqueles objetivos e de elaboração de estratégias diplomáticas e militares em tempo de paz e de guerra a serem desenvolvidas no confronto ou em cooperação com os demais Estados, é preocupação central e permanente da sociedade e do governo norte-americanos. Em consequência, deve e tem de ser de central interesse para os países que se encontram no centro do sistema e, ainda mais, para os que se encontram na periferia e que são soberanos sobre as regiões que são alvo daquelas estratégias americanas de ação.
Os territórios onde se encontram os centros de produção e de consumo existem sempre em espaços geográficos específicos mas variam de importância como fontes de matérias-primas estratégicas, como mercados consumidores, como rotas de acesso e de comunicação, como origem de ameaças, e por essas razões a geopolítica tem de estar presente para a definição de prioridades geográficas de defesa do sistema, inclusive com instrumentos militares.
A defesa da gigantesca e complexíssima malha mundial de interesses e conexões de que depende o funcionamento da economia norte-americana no próprio território dos Estados Unidos, e portanto o bem-estar e a segurança da sociedade americana, tem de ser feita de forma permanente e atenta através de estratégias ideológicas, políticas e econômicas e, em um último caso, militares, com o uso da força.
Todavia, a estratégia central americana em defesa de sua economia global não é militar, não é a guerra, que aliás deve ser evitada, devido ao seu custo econômico e político interno e externo, à desorganização que traz à dinâmica econômica e política do sistema como um todo e ao risco de desdobramentos imprevisíveis e de difícil controle de conflitos em locais remotos, em aparência restritos e menores.
Apesar de se procurar evitar o uso da força, a preparação para a guerra é essencial, pois o funcionamento do sistema global tende ao desequilíbrio e à concentração de riqueza, e, portanto, à geração de insatisfações e a rupturas, à disputa por hegemonia dentro do sistema e a contestações externas. Assim, a hipótese de guerra está sempre presente nas diversas esferas do governo e da sociedade americana e é uma preocupação central, ainda que disfarçada pelo eufemismo do termo “segurança”.
Antes do uso da força, e portanto da guerra, para a imposição de sua vontade, a mais importante das estratégias é de natureza ideológica. Ela consiste em tentar convencer os governos locais, que controlam os diversos territórios nacionais, de que a forma de organização da economia mundial e o esquema de funcionamento da economia americana no centro desta economia mundial são igualmente benéficos para tais governos — se não totalmente benéficos, os melhores possíveis para seus interesses específicos (ou de suas elites —, e que, portanto, devem eles contribuir para sua permanência, mesmo diante de evidências de crescente desequilíbrio de custos e benefícios do sistema, tais como o consumo desproporcional de energia e de recursos naturais, o desperdício e os danos ao meio ambiente, a concentração de renda e o hiato alarmante entre países do centro e da periferia.
Alguns dos instrumentos da estratégia ideológica são a elaboração de “teorias” de justificação da organização e do funcionamento do sistema e de interpretação de eventos “críticos” em seu seio; a difusão dessas teorias em nível doméstico e internacional; e, finalmente, a preparação de “públicos e elites receptivas” à sua difusão e cooperativos com a execução de políticas específicas. Essa questão ideológica, apesar de sua extraordinária importância, não será aqui abordada em sua totalidade e detalhe, mas apenas no contexto das questões da guerra e da estratégia militar das estruturas hegemônicas para a defesa do processo de globalização, a qual, além de aspectos e objetivos militares, stricto sensu, apresenta relevantes aspectos ideológicos, políticos e econômicos.
ASPECTOS MILITARES DA ESTRATÉGIA MILITAR DA GLOBALIZAÇÃO
A estratégia militar tem como seu princípio central o desarmamento dos demais Estados, em especial através de mecanismos jurídicos e de sanções para impedir a difusão de tecnologias de armas de destruição em massa nucleares, biológicas e químicas. Este aspecto é essencial, pois, apesar do extraordinário desequilíbrio dos arsenais de tais armas, são elas as únicas capazes de exercer efeito de dissuasão em relação às políticas de poder dos Estados Unidos e das estruturas hegemônicas, pelo receio de danos que poderiam ser infligidos à população civil e o temor das elites dirigentes quanto à reação popular diante de tal possibilidade.
Assim, o objetivo militar precípuo é a promoção sistemática do desarmamento, sobretudo dos grandes Estados periféricos, não só no que diz respeito a armas de destruição em massa, como em relação aos armamentos convencionais. Este objetivo é complementado pelo desestímulo e pressão exercidos sobre quaisquer tentativas de criação (e para a desativação) de indústrias bélicas na periferia e contra os programas de pesquisa em tecnologias de possível uso militar. Os programas de fornecimento de equipamento militar de gerações anteriores, e portanto obsoleto, contribuem para amortecer os anseios de criação de tais indústrias e para influir sobre o pensamento estratégico nos países da periferia, através dos esquemas de treinamento, manutenção e doutrina de utilização de equipamentos.
O desarmamento é promovido através da negociação de acordos internacionais de proibição da posse, uso, comércio e produção de certas armas e tecnologias de destruição em massa, que não incluem obrigações efetivas dos países detentores dessas armas de se desarmarem ou de interromperem os seus esforços de constante aperfeiçoamento dessas tecnologias. O caso das armas químicas, em que os países altamente desenvolvidos aceitaram a obrigação de se desarmarem, é uma exceção que se explica por dois motivos. Em primeiro lugar, a dificuldade de identificação das instalações de produção, o custo menor e mais acessível a países pobres e a maior facilidade de acesso à sua tecnologia, o que permite, em princípio, a países periféricos, mesmo menores, desenvolver tais armas. Esses fatores e a “flexibilidade” no uso dessas armas tornam maior o interesse dos países centrais em proscrevê-las totalmente. Em segundo lugar, o desequilíbrio extraordinário, em favor das Grandes Potências, dos estoques existentes de armas químicas permite a elas manter sua predominância, enquanto se desarmam os Estados periféricos.
O segundo objetivo militar na estratégia de defesa do processo de globalização é o esforço permanente de sofisticação tecnológica dos armamentos (convencionais ou não) e dos meios militares de informação, em especial sua miniaturização, robotização e colocação inclusive em satélites e em estações orbitais. Finalmente, e vinculado à sofisticação tecnológica dos armamentos, o desenvolvimento da capacidade de intervenção rápida em qualquer região de qualquer país requer a manutenção de redes de bases militares (e de acordos de segurança) que intimidam preventivamente e constituem a base necessária de operação, sem depender de autorização prévia dos países onde estão instaladas as bases, e constitui assim o terceiro aspecto militar, stricto sensu, da estratégia de defesa da globalização.
ASPECTOS POLÍTICOS DA ESTRATÉGIA MILITAR DE GLOBALIZAÇÃO
A estratégia principal de natureza política corresponde à formação de alianças e organizações formais e informais que constituem estruturas hegemônicas de poder, que elaboram e negociam normas de conduta e compromissos jurídicos, que vinculam os Estados a determinadas políticas e que procuram limitar a possibilidade de ação autônoma, em especial na periferia do sistema, assegurando assim estabilidade e previsibilidade de comportamento, e criar “justificativas jurídicas e éticas” para a execução de sanções, inclusive pela força.
Tais normas se dividem em duas grandes classes: compromissos sobre políticas econômicas e compromissos sobre a natureza de regimes políticos, com vistas a dois objetivos básicos: garantir a mais livre e irrestrita movimentação de bens e de capitais (mas não a livre circulação de mão-de-obra) e, no segundo caso, a manutenção de democracias formais que permitem maior “transparência” política para poder mais facilmente influir no processo de elaboração de normas internas. O compromisso democrático formal cria finalmente a possibilidade de a “comunidade internacional” intervir militarmente a partir da justificativa de defesa da democracia, sempre e apenas quando conveniente aos interesses do sistema, e restringe migrações, pois deixam de existir, por definição, refugiados politicos, demandantes de asilo.
A adoção de tais normas de “good (political) governance and sound (economic) management” é impulsionada por negociações em nível mundial, regional e bilateral, em especial através dos foros de agências internacionais, particularmente as Nações Unidas, que conferem a tais negociações, entre Estados tão desiguais em poder, a aparência de equidade, democracia, consenso voluntário, aceitação satisfeita e imparcialidade de resultados.
Os principais instrumentos políticos da estratégia militar de globalização são o sistema de segurança coletiva da ONU e os sistemas regionais de segurança. O sistema de segurança coletiva das Nações Unidas não foi imaginado inicialmente como instrumento militar de defesa da globalização, mas sim como um sistema para manter a paz e promover a cooperação e a reconstrução no pós-guerra, sob a hegemonia americana. Hoje, o sistema político-militar das Nações Unidas se concentra no Conselho de Segurança e se transformou cada vez mais em um sistema de apoio político-jurídico a ações militares dentro do contexto de expansão do capitalismo e de segurança das atividades e transações econômicas. Os sistemas regionais de segurança são instrumentos político-jurídicos de apoio e justificação de ação militar, como os sistemas da Otan, da OEA e do Tiar; o Tratado de Segurança dos Estados Unidos com o Japão; e o Tratado de Segurança entre os Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia. Esses acordos têm como objetivo permitir a manutenção permanente de bases militares em territórios estrangeiros em tempo de paz, defender e garantir o processo de expansão do sistema capitalista, rompendo resistências e convencendo governos recalcitrantes. Tais acordos são importantes, pois travestem a ação militar de unilateral em multilateral, com a justificativa legal de cumprir compromissos de defesa de aliados.
A ação, secreta ou ostensiva, para sustentar ou derrubar regimes democráticos ou ditatoriais (neste último caso apenas quando se revelam contrários aos interesses do processo de globalização) faz parte importante do aspecto político da estratégia militar. Os casos do Chile, da Iugoslávia, do Peru, da Arábia Saudita e da Venezuela indicam claramente que o fator determinante do comportamento político e eventualmente militar das estruturas hegemônicas de poder não é a essência realmente democrática do sistema de governo da sociedade periférica, mas sim seu apoio e submissão aos objetivos daquelas estruturas hegemônicas no processo de globalização.
ASPECTOS IDEOLÓGICOS DA ESTRATÉGIA MILITAR DA GLOBALIZAÇÃO
Os aspectos ideológicos da estratégia militar da globalização são de extraordinária importância, devido àquele objetivo mencionado de evitar o conflito, mantendo as estruturas de dominação, e assim há um notável esforço de elaboração, divulgação e reiteração de argumentos gerais e específicos em todos os meios de comunicação, e um interesse essencial em tornar esses meios permeáveis, quer através do controle direto de sua propriedade ou indireto via publicidade, quer por meio dos sistemas de geração e difusão de notícias.
Após impedir o armamento de inimigos potenciais ou hipotéticos, torna-se necessário estimular o seu desarmamento, ainda que estejam eles apenas fracamente equipados com armas convencionais e obsoletas. O argumento ideológico para estimular e persuadir os demais Estados a se desarmarem inicia, pela afirmação de que a possibilidade de conflito armado é remota e até inexistente e que, em caso de conflito, as estruturas hegemônicas e os Estados Unidos defenderiam o país vítima de eventual agressão. Assim, os países da periferia deveriam alocar seus escassos recursos às tarefas prioritárias do desenvolvimento e da luta contra a pobreza. Ademais, a própria existência de armamentos na periferia geraria tensões, corridas armamentistas e estimularia conflitos, enquanto a existência de forças armadas na periferia seria uma ameaça para a democracia, devido às suas tendências autoritárias inatas, como comprovaria seu passado. Finalmente, as armas convencionais seriam inúteis em caso de conflito com as estruturas hegemônicas e com os Estados Unidos, dada a extraordinária disparidade de forças.
Há países que, pela sua experiência, maturidade política e poder, teriam o direito de desenvolver e produzir armas de todos os tipos, desde aquelas denominadas armas de destruição em massa até as armas convencionais. Tais países têm esse direito porque não se valem dessas armas em proveito pessoal, mas as utilizam para defender os “valores da civilização”, ameaçados pela ação dos Estados “párias”, ou pela instabilidade política que tem sua origem nos países jovens e periféricos, e que aliás os caracteriza.
Os Estados jovens e periféricos não têm necessidade de terem Forças Armadas nem estão preparados para isso, além do fato de que elas não lhes seriam úteis e eficazes. Não têm necessidade porque poderão ser protegidos mais eficientemente por aliados mais fortes (e ponderados); não estão preparados porque são povos recentes, instáveis, com propensão a conflitos internos e externos e a rivalidades fúteis, podendo, pela sua imaturidade, desencadear conflitos regionais que viriam a englobar outros países e assim tornar necessária a intervenção dos países ponderados, civilizados; não lhes são úteis porque, sendo pobres e subdesenvolvidos, poderiam e deveriam usar os escassos .recursos para minorar a pobreza ou promover o desenvolvimento, em vez de desperdiçá-los com armas, em especial sofisticadas e “perigosas” (para os países centrais). As Forças Armadas dos países periféricos não são eficazes devido ao extraordinário desequilíbrio de poder entre elas e as dos Estados que integram as estruturas hegemônicas, que poderiam aniquilá-las rapidamente.
Um outro argumento da estratégia ideológica de desarmamento da periferia é a equação que procura identificar Forças Armadas com autoritarismo e, portanto, como instituição intrinsecamente contrária à democracia. Assim, a redução dos efetivos das Forças Armadas e seu enfraquecimento contribuiriam para fortalecer e garantir a democracia, em especial em países que sofreram com regimes autoritários militares.
Um último e mais recente argumento é o de que os países desenvolvidos e civilizados, por estarem dotados de tecnologia militar altamente sofisticada, quando são obrigados ao uso da força militar podem fazer uma guerra “sem mortos”, asséptica, ao contrário dos países pobres, que fazem guerras sangrentas e, portanto, condenáveis até mesmo por “razões humanitárias”.
ASPECTOS ECONÔMICO-TECNOLÓGICOS DA ESTRATÉGIA MILITAR DA GLOBALIZAÇÃO
O dínamo da economia americana é a sua liderança cientifica e tecnológica. Essa liderança tecnológica permite a introdução de inovações no processo produtivo que reduzem custos ou criam novos produtos que, através do sistema de patentes, correspondem a mercados monopolizados, onde se geram lucros “extraordinários”.
A pesquisa científica gera conhecimentos sobre as leis da natureza que mais tarde são, de uma forma ou de outra, incorporados às atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico das empresas e do Estado. Ora, as empresas, de uma forma geral, têm certa aversão ao investimento em pesquisa, mesmo tecnológica, tanto mais quanto mais são seus resultados aleatórios, demorados e custosos.
Assim, nessas áreas de maior risco e custo, a ação do Estado é necessária para garantir a realização de pesquisas. Todavia, a sociedade americana é em extremo refratária à intervenção do Estado na economia, em especial à ideia de política industrial. Assim, o argumento de segurança nacional, supremo nos Estados Unidos, é muito conveniente para permitir encomendar pesquisas militares a empresas privadas, cujos resultados podem vir a ter aplicação civil e serem utilizados por essas empresas, além de ajudar a manter os laboratórios dedicados à pesquisa tecnológica civil mais imediata.
Os orçamentos militares das grandes potências constituem, dessa forma, importante incentivo e subsídio às megaempresas que realizam pesquisa tecnológica de ponta e que produzem armamentos, mas que também desempenham atividades produtivas civis, a exemplo das companhias construtoras de aviões. O orçamento militar dos EUA em 1999/2000 foi o maior da história americana, alcançando cerca de 250 bilhões de dólares, o que revela o grau de importância do subsídio estatal às empresas privadas americanas.
Contudo, assim como é necessária a “criação” de inimigos críveis para justificar as dotações orçamentárias, os impostos que as alimentam e os contratos de pesquisa de fabricação de armas com empresas privadas, torna-se eventualmente necessário testar em batalha a eficácia dos novos equipamentos e demonstrar sua utilidade na defesa da sociedade americana e dos contribuintes que as financiaram. Assim, gera-se uma predisposição à utilização dos armamentos e à solução de crises pela utilização da violência física. Vinculadas a esta tendência, encontram-se as políticas de exportação de armamentos de segunda e terceira geração, normalmente para Estados em zonas de tensão (mas não apenas, como se verificou em 1999 no caso de venda de aviões para o Chile), o que tende a criar e estimular as corridas armamentistas, a agravar situações de instabilidade e, fechando o círculo, a justificar as dotações orçamentárias para o desenvolvimento de novas armas e a manutenção do sistema de bases militares para conter a violência na periferia e a ameaça que traz para o funcionamento “suave” do sistema.
AS ÁREAS GEOGRÁFICAS VITAIS PARA A ESTRATÉGIA AMERICANA
As áreas estratégicas vitais para os Estados Unidos não constituem necessariamente áreas de interesse vital para outras grandes potências, mas estas últimas são a elas “arrastadas” pelos mecanismos das estruturas hegemônicas de poder devido à predominância dos Estados Unidos no centro dessas estruturas. Todavia, ainda que dificilmente os Estados Unidos se deixem envolver em conflitos fora de áreas estratégicas vitais, é praticamente nula a possibilidade de que existam conflitos que não os afetem de alguma forma, dada a natureza global de seus interesses econômicos, políticos e militares. Assim, ainda que se possam identificar áreas prioritárias, nenhuma região geográfica escapa a seu interesse, inclusive pela repercussão que certos eventos aparentemente marginais podem ter para as áreas que consideram nevrálgicas como, por exemplo, a eventual vitória do fundamentalismo islâmico em um país de menor prioridade para os Estados Unidos e a repercussão desse fato sobre a situação do Oriente Próximo, área da mais alta prioridade para os Estados Unidos.
Assim, a partir dessas considerações e da estratégia militar de defesa da globalização, trata-se de definir as áreas geográficas a serem objeto de defesa militar prioritária e especial atenção política e diplomática. Em primeiro lugar, as regiões supridoras de petróleo são absolutamente estratégicas, tendo em vista a elevada e crescente dependência da economia e da sociedade americana em relação ao petróleo importado. Essas regiões são, em primeiro lugar, o Caribe, onde se encontram as fontes próximas e mais seguras de suprimentos, que são México e Venezuela, e, em segundo lugar, o Oriente Próximo, que é vital, na medida em que concentra, junto com o Mar Cáspio, cerca de 60% das reservas mundiais e, portanto, as fontes de suprimento futuro do produto. A centralidade da questão política e econômica do petróleo decorre, de um lado, do fato de que a substituição do petróleo por fontes alternativas de energia se verifica lentamente e, por outro, de que a volatilidade política e militar nessas regiões é extremamente elevada, pela dificuldade, talvez intransponível, de estabelecer a convivência pacífica duradoura entre Israel e seus vizinhos e pela desagregação política e os latentes conflitos raciais e religiosos entre os Estados da região do Mar Cáspio.
A segunda categoria de regiões prioritárias do ponto de vista geopolítico corresponde àquelas onde se encontra a maior parte dos investimentos diretos no exterior das megaempresas americanas e onde estão, portanto, as principais unidades de produção e geração de fluxos de juros e lucros, como também os principais mercados consumidores para a produção americana de bens. Tais regiões incluem desde logo, e em especial, o Canadá, a União Europeia e o Japão, que correspondem a 80% do comércio exterior e investimentos americanos, mas igualmente os grandes Estados periféricos, onde a dimensão dos mercados e a estrutura econômica permitem a geração de lucros extraordinários.
Em terceiro lugar, situam-se aquelas regiões onde se originam as “ameaças”, assim consideradas pela opinião pública norte-americana e seu governo, e que afetam de forma difusa sua sociedade ou seus interesses no exterior, como o narcotráfico, o terrorismo e a imigração, bem como questões transfronteiriças de meio ambiente, e onde ocorrem violações dos direitos humanos, em áreas que sensibilizam a opinião pública americana, espontaneamente ou sob estímulo de interesses estratégicos específicos da política exterior americana.
A ESTRATÉGIA GEOPOLíTICA E MILITAR ARGENTINA
A estratégia geopolítica argentina nos últimos dez anos foi fortemente influenciada pela derrota na Guerra das Malvinas e pela necessidade percebida de superar suas supostas e reais consequências, mantendo o objetivo histórico de restabelecer a soberania argentina sobre o arquipélago. Este é o ponto central para entender a geopolítica argentina, sua política exterior e suas relações com o Brasil, que se caracterizam pela rivalidade política histórica, pela frustração da perda de liderança e pela admiração do “êxito” brasileiro em construir uma forte economia industrial.
Os males da Argentina eram vistos, pela corrente ideológica que se tornou hegemônica no governo Menem, como decorrentes de longa e fútil confrontação histórica com os países desenvolvidos, em especial com os Estados Unidos, e de sua vã e prejudicial tentativa de industrialização periférica, abandonando suas tradicionais vantagens comparativas na agropecuária e sua forma tradicional de inserção na economia mundial. Os episódios de confrontação com os Estados Unidos decorreriam de equivocada estratégia de oposição à política pan-americanista e à gradual expansão econômica americana no hemisfério, deslocando o Reino Unido, seu principal mercado e fonte de capital. Esta estratégia foi marcada pelo episódio do neutralismo argentino na Segunda Guerra Mundial, seguida da ideologia de Perón da Terceira Posição, precursora do Movimento Não-Alinhado, que tanto contrariou a política exterior americana, e finalmente teria atingido seu clímax com a invasão das Malvinas.
A nova estratégia do governo Menem, em uma reviravolta radical, teria como instrumento principal, declarado publicamente, a explícita subordinação da política exterior argentina à norte-americana (e às estruturas hegemônicas em geral) através do alinhamento, por princípio e antecipado, de posições, condição supostamente indispensável para a Argentina readquirir credibilidade como Estado “normal”, expiando o pecado mortal do desafio armado a uma grande potência, justo aquela a que se vinculara tão profundamente a ponto de ser chamada de VI Domínio do Commonwealth.
Do lado econômico, a estratégia da política externa argentina se desenvolveria em torno de três eixos:
- a abertura radical, financeira e comercial, da economia argentina e sua reincorporação ao sistema capitalista global, inclusive com a vinculação do peso ao dólar, em um esquema de caixa de conversão, abandonando qualquer veleidade de política monetária;
- o acesso preferencial ao mercado brasileiro, através do Mercosul, para colocar suas exportações, pelo menos enquanto estivessem elas bloqueadas em mercados mais ricos, tais como a União Europeia;
- a adesão incondicional e sem reciprocidade aos objetivos econômicos e políticos estratégicos das estruturas hegemônicas de poder, com prioridade para os Estados Unidos e suas iniciativas, em todos os foros e temas internacionais.
O aspecto militar central da estratégia argentina seriam o desarmamento unilateral e a virtual dissolução das Forças Armadas argentinas, responsabilizadas pelos regimes autoritários de violência extrema (com os quais aliás tantos políticos, empresários e personalidades civis cooperaram ou aos quais apoiaram) e pela confrontação com os Estados Unidos e o Ocidente. Ora, para atingir tal objetivo, seria de grande importância induzir o Brasil a seguir-lhe os passos, sem todavia antagonizá-lo frontalmente. Uma das táticas desenvolvidas pela Argentina foi estimular o desarmamento brasileiro, utilizando a bandeira da pacificação e da democratização regional e o exemplo do seu autodesarmamento e de sua adesão a regimes internacionais discriminatórios e desiguais de não-proliferação de armas de destruição em massa e de desarmamento da periferia, tais como o MTCR e o TNP. A eliminação das disputas de fronteiras com o Chile e o fim da imaginada aliança tradicional Brasil-Chile foram igualmente aspectos importantes da estratégia militar do novo governo argentino.
Outro aspecto da estratégia militar e da política externa argentina tem sido a de apoiar as ações militares das estruturas hegemônicas de poder — o que, aliás, já tinha ocorrido no passado, quando de seu apoio militar a regimes autoritários na América Central —, delas procurando participar ativamente e nelas procurando ingressar até como forma de, aos olhos da opinião de suas elites e opinião pública, tradicionalmente ressentidas e desconfiadas quanto ao suposto expansionismo e “hegemonismo” brasileiro, contrabalançar o poder econômico brasileiro e sua temida preponderância na América do Sul.
Assim, a Argentina poderia contrabalançar a atual e futura inferioridade em dimensão econômica diante do Brasil com seu prestígio político internacional, o apoio americano em caso de pressão política brasileira, e se consagrar como país-modelo da “nova periferia”: desarmada, pacífica, progressista, normal e culta, diante de um Brasil ainda arcaico, com veladas pretensões militares, confrontacionista, anormal e inculto. Assim “renascida”, poderia a Argentina apresentar com possibilidade de êxito suas reivindicações sobre as Ilhas Malvinas (e outros arquipélagos no Atlântico Sul), além de se colocar como candidata legítima a uma vaga no Conselho de Segurança das Nações Unidas, ou pelo menos dificultar a pretensão brasileira, que certos círculos parecem considerar (intimamente) como inaceitável para o orgulho nacional argentino, pois seria a consagração internacional da hegemonia do Brasil na América do Sul.
Todavia, o sucesso da estratégia argentina dependia de várias condições que se revelaram irrealistas, pois não se concretizaram:
- a liberalização, em nível global, do comércio internacional de bens, em. especial agrícolas, e a capacidade argentina de competir nesse novo quadro comercial com os Estados Unidos, o que permitiria a vigorosa expansão de suas exportações;
- a existência de fluxos significativos de capital estrangeiro permanentemente acessíveis para empréstimos e inversões, e sua capacidade de competir com o Brasil na atração de investimentos externos, no quadro do Mercosul, isto é, uma união aduaneira;
- a capacidade de aumentar e diversificar suas exportações de bens industriais como resultado do ingresso de capitais e dos investimentos diretos estrangeiros;
- a manutenção da política brasileira de vinculação informal do real ao dólar ou a eventual dolarização da economia brasileira, para manter equilibrado o comércio com o Brasil, de grande importância para a Argentina;
- a manutenção de sua coesão política interna ante o agravamento dos desequilíbrios regionais e das tensões sociais causados pela abert’ura radical da economia e a redução do Estado;
- a desvinculação de interesses políticos entre os Estados Unidos e o Reino Unido, e a suposta recompensa política pelo bom comportamento diante das estruturas hegemônicas de poder.
Na atualidade, o governo argentino se encontra diante de uma pesada herança econômica, social, política e estratégica que tem, todavia, uma característica positiva: a impossibilidade de prosseguir na (desastrosa) estratégia anterior, pelos seus custos sociais, pela extraordinária vulnerabilidade exterior, pela frustração diante do comportamento das estruturas hegemônicas e pela necessidade de repensar suas relações com o Brasil, inclusive, mas não somente, no âmbito do Mercosul.
A GEOPOLÍTICA, A GUERRA E O BRASIL
A posição geopolítica do Brasil é sui generis e complexa devido a fatores graves e permanentes de impossível ou difícil modificação a curto prazo e devido à vinculação, durante o governo Menem, da geopolítica e estratégia de seu principal vizinho, inclusive econômico, com quem está engajado, em um esquema amplo de integração comercial, aos interesses estratégicos das estruturas hegemônicas de poder.
Em primeiro lugar, o fato de ter o Brasil extensas fronteiras terrestres com dez países vizinhos, de terem essas fronteiras se tornado cada vez mais “vivas”, de tais países serem subdesenvolvidos e portanto conviverem com graves desigualdades sociais, econômicas e políticas, faz com que o Brasil seja diretamente afetado pela conjuntura política e econômica nesses países e por eventuais insurreições que possam afetar as regiões de fronteiras ou as populações brasileiras que ali residem. A extensão do litoral brasileiro gera, de seu lado, necessidades militares específicas, inclusive de defesa dos recursos naturais na zona econômica exclusiva, de proteção ambiental e de vigilância costeira, enquanto o espaço aéreo brasileiro gera necessidades semelhantes.
Por outro lado, a situação política em alguns desses países vizinhos tem feito com que os Estados Unidos tenham aumentado ali sua presença militar, sob diferentes pretextos, que vão desde programas de cooperação técnica na luta contra o narcotráfico até a assistência militar direta, com a realização de exercícios militares conjuntos e a crescente presença de “assessores” militares.
A proximidade de alguns desses vizinhos, onde o narcotráfico tem se tornado uma ameaça cada vez mais grave, inclusive com profunda infiltração nos aparelhos do Estado, com a Amazônia, e o fato de ser esta uma região de baixa densidade demográfica e de selva, juntamente com danos ambientais de alegado caráter global, transfronteiriço, causados pela exploração econômica predatória, sem controle efetivo do Estado brasileiro, e a situação dos indígenas em seu confronto com os brancos migrantes, fazem com que a região possa facilmente ser objeto de projetos mais ou menos concretos de internacionalização, sob uma ampla gama de pretextos, em especial ambientais e humanitários.
Por outro lado, o Brasil, como todos os demais Estados, quer do centro, quer da periferia, sofre permanentemente os efeitos da execução das estratégias americanas em suas mais diversas iniciativas, pois, no esforço de legitimar e coonestar sua ação, os Estados Unidos procuram arregimentar o apoio até de países distantes geográfica e politicamente das situações específicas de conflito.
Duas dessas estratégias nos afetam diretamente, quais sejam a do desarmamento da periferia e a da normatização e consolidação da reincorporação de áreas ao sistema capitalista global, dominado pelas megaempresas e pelos Estados no centro das estruturas hegemônicas de poder.
No primeiro caso, convencido pelo argumento de que contribuiria de forma relevante para a paz mundial e o desarmamento, o Brasil renunciou ou restringiu seu direito de desenvolver tecnologias vinculadas ainda que indiretamente às armas de destruição em massa, sem que as grandes potências se tenham desarmado ou mesmo indicado qualquer intenção séria de que iriam fazê-lo de forma significativa.
Os resultados da adesão, sem reciprocidade, a essa estratégia de desarmamento unilateral poderão revelar-se prejudiciais aos interesses e à política exterior brasileira a médio e longo prazo, podendo ser ainda agravados caso o Brasil adote uma política de desarmamento convencional.
No segundo caso, a adesão brasileira, igualmente sem reciprocidade, aos esforços de consolidação jurídica da reincorporação de áreas e de abertura dos mercados de bens e de capitais, sob o argumento de contribuir para a nova era da economia globalizada, fez com que o Brasil assumisse uma série de compromissos que limitam sua capacidade de implementar políticas econômicas adequadas às necessidades do desenvolvimento, à remoção de disparidades e à superação das vulnerabilidades externas.
Assim, uma gama de razões que decorrem da posição geopolítica sui generis do Brasil e das estratégias das estruturas hegemônicas de poder e dos Estados Unidos em seu centro (tais como a expansão da competência do Conselho de Segurança da ONU, a consolidação e a aceitação gradual da teoria do direito e até do “dever” de intervenção humanitária e ambiental, e o esforço de legitimação de uma ação global da Otan) torna absolutamente necessário repensar a geopolítica brasileira, definir uma estratégia compatível com a dimensão do território e da economia brasileira, com a dimensão dos desafios que cabe ao Brasil enfrentar e com o potencial do país, que decorre de suas características físicas e humanas específicas e do grau de desenvolvimento alcançado.
Em primeiro lugar, seria indispensável superar o equívoco da percepção, permanentemente “alimentada”, de antagonismo entre “sociedade civil e Estado” e a ideia de que o Brasil pode e deve dispensar suas Forças Armadas devido à sua suposta tendência autoritária e aos erros cometidos no passado. Tal como militares, instituições e numerosas e notáveis personalidades dos mais distintos setores da sociedade civil deram apoio político e econômico ao regime autoritário entre 1964 e 1985 e participaram dos mais altos cargos de direção do Estado. É preciso distinguir os erros de indivíduos que integram uma instituição, militar ou civil, em um determinado período histórico da necessidade permanente de o Estado e a sociedade terem tal ou qual instituição, em um mundo crescentemente caracterizado pela violência, pelo arbítrio e pela instabilidade. Os erros graves de indivíduos devem ser punidos, e as instituições, sejam elas civis ou militares, que cooperaram com o regime autoritário devem ser preservadas e democratizadas, efetivamente, para que seja possível construir uma sociedade e um Estado de fato coesos, solidários e democráticos, e não plutocráticos, individualistas e conflitivos.
O eixo central da estratégia geopolítica brasileira deve ser o esforço deliberado e sistemático de contribuir para a constituição de um mundo multipolar e de elaborar com a Argentina, de forma muito próxima, uma visão comum sobre a estratégia para atingir tal objetivo, atuando sobre a dinâmica internacional do presente. A atuação conjunta na esfera política e militar, de forma coordenada, autônoma e não-alinhada, é essencial para preservar e recuperar graus de autonomia para a elaboração de políticas econômicas e militares indispensáveis à construção no Cone Sul de um bloco econômico e político capaz de empregar de forma plena seus fatores de produção e de desenvolver tecnologia própria com vistas a uma atuação eficaz de defesa de suas sociedades em um mundo globalizado e violento.
Há duas questões centrais nesta estratégia que não podem ser postergadas nem elididas nem deixar de ser enfrentadas, sob pena de grave prejuízo político: na esfera econômica, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca); e, na esfera político-militar, a ampliação das atribuições e do número de membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
A formação da Área de Livre Comércio das Américas, por definição, eliminaria as preferências de tarifa zero de que gozam as empresas brasileiras e argentinas no Mercosul, reduziria a capacidade de atrair investimentos, inclusive para exportar, e tornaria as economias dos dois países dependentes e inermes diante das decisões das autoridades econômicas americanas, em especial no que diz respeito à execução de sua política monetária e fiscal, decisões de que Brasil e Argentina não participariam. Paralelamente ao desafio da Alca, será necessário transformar o Mercosul de um esquema de integração comercial neoliberal em um projeto de integração para o desenvolvimento, através da gradual elaboração de políticas comerciais, industriais e tecnológicas comuns que equilibrem os custos e benefícios econômicos, sociais e políticos da integração, o que, naturalmente, implica a elaboração e a execução de políticas comuns no âmbito internacional.
No caso do Conselho de Segurança, quando se acelerar o processo de sua reforma e se tornar inadiável a inclusão do Japão e Alemanha entre os membros permanentes com direito a veto, surgirá a oportunidade única, que não se repetirá no futuro, de incluir Estados que “representem” a América Latina, que, se forem dois, seriam a Argentina e o Brasil. Porém, caso seja isto de todo impossível, e limitado a apenas um o assento permanente “latino-americano”, será necessário alcançar um entendimento estratégico de longo prazo e de alto nível sobre a candidatura brasileira como capaz de representar e defender, em um Conselho de competência ampliada, os interesses do novo Cone Sul, cada vez mais integrado econômica, política e militarmente.