2017

História e utopia

por Franklin Leopoldo e Silva

Resumo

No ensaio a seguir, iremos enfatizar dois aspectos que integram a grande variedade de temas relacionados às utopias. Exploraremos principalmente as perspectivas éticas e históricas que as envolvem. Inicialmente, convém destacar o fato unanimemente aceito de que visões utópicas são engendradas diante de faltas notadas em meio à realidade vivida. Sendo assim, os utopistas criticam, julgam seu meio e seu tempo e querem, através de suas idealizações, “superar eticamente a realidade vivida”. É certo que tais visões se mostram invariavelmente irrealizáveis em sua plenitude, mas isso não deveria diminuir a força inerente às utopias. Tal “força” advém do pensamento clássico: a utopia liga-se à imaginação que é da ordem do inteligível, ligando-se à essência das coisas. Ela, portanto, tem origem na experiência do mundo sensível, mas a ultrapassa. O segundo aspecto, histórico, transparece no próprio perfil do utopista. O senso comum talvez afirme que ele é um sonhador, conduzido por ideologias ou então que é um autor de ficção (caso das utopias e das distopias), mas uma análise mais aprofundada revelará que o utopista tem uma percepção apurada do seu entorno, catalisando em sua obra insatisfações e sentimentos coletivos de seu tempo. Nesse sentido, ele tem algo de historiador em razão de seu espírito crítico e por sua tentativa de conceber o futuro sempre a partir de condições dadas no presente. É o que Max Horkheimer nos diz em outras palavras: “se a utopia tem duas faces, ela é a crítica daquilo que é [existe] e a representação daquilo que deve ser. Sua significação essencial reside no primeiro momento.” Na relação de cada autor com seu tempo, examinaremos como as convicções e crenças de escritores como Morus, Orwell e Huxley refletiram-se em suas obras utópicas ou distópicas. Convém, entretanto, ressaltar diferenças fundamentais entre as duas categorias. A utopia é o não lugar do Bem (a ser atingido arduamente) e que descreve uma tensão com a finalidade de balancear a vida em sociedade e a liberdade do indivíduo; ela visa, pois, uma totalidade, no sentido de se atingir uma perfeição orgânica do sistema. A distopia, ao contrário, é o lugar do Mal, parte de uma visão negativa, uma predição sombria do futuro, baseada na desconfiança da humanidade e do progresso. Nela prevalece o sistema (seja ele o Estado totalitário ou a subjugação do homem pela tecnologia que ele mesmo criou) versus a anulação e controle absoluto do indivíduo, o que pode ir além de suas ações, chegando a condicionar comportamentos e a controlar e vigiar o seu pensamento, fazendo-o convergir para uma espécie de uniformização. Se as circunstâncias e as contingências não permitem antever se utopias ou distopias irão um dia realizar-se plenamente, tal não parece ser o mais importante diante dessas obras do engenho humano: as suas capacidades transformadoras já se encontram na própria crítica que fazem do presente, pois se baseiam numa “filosofia da ação”.


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A MOTIVAÇÃO ÉTICA DA UTOPIA

Por maior que seja a distância entre a utopia e a realidade, é sempre a situação presente e realmente vivida que está na raiz da concepção das utopias. Talvez seja exagerado falar de uma relação positiva de causalidade, mas certamente não seria errado mencionar uma relação negativa, isto é: a utopia é engendrada pelo que falta à realidade vivida para que possa satisfazer as expectativas em relação ao mundo em que nos é dado viver. Falta e ausência são, portanto, fatores constitutivos da utopia, o que fará também que seu conteúdo seja da ordem da imaginação, mas não da ordem da impossibilidade. Ficção e fantasia atuam, pois, no vazio da falta e da ausência dos predicados que são desejados e desejáveis em relação à realidade vivida.

A palavra utopia (ou-topos), que significa o não lugar, sugere esta relação entre a localização ou a referência precisa e a carência, a insatisfação e a irrealização, de um lado; e, de outro, a ausência de referência precisa, a ilocalização, a não direção (desendereçamento) e a realização ideal das potencialidades humanas, a felicidade individual e coletiva. Por isso, nas narrativas utópicas, quase sempre o lugar imaginário é descrito em detalhes, com exceção de sua localização. Uma omissão significativa: a realização integral dos desejos só pode ser imaginada fora de qualquer referência à realidade, que seria, por definição, o lugar do Mal, ao passo que a utopia seria o não lugar do Bem.

A realidade é medida segundo o que se considera que ela deve ser e, portanto, a inexistência é mais relevante do que a existência: a primeira é vista sob o prisma da satisfação, a segunda sob o ângulo da carência. Como o ser é da ordem do factual e o dever ser é da ordem moral, a motivação da utopia é ética, isto é, ela é uma projeção moral que permite à representação saltar sobre a realidade existente e instituir, na ordem do que não existe (ainda), outra realidade ou o mundo projetado, definido em termos ficticiamente materiais, mas principalmente visto como realidade possível do ponto de vista ético. Um mundo melhor é possível: o critério ético se sobrepõe ao princípio de realidade. A possibilidade neste caso deixa de ser uma categoria lógica, uma forma transcendental de ser, para se apresentar como a prioridade ética do dever ser sobre o ser. A utopia obedece, portanto, a outro regime de representação: do ponto de vista ontológico, a realidade efetivamente dada no presente vivido é insuperável e o único modo de ultrapassá-la é vivendo-a inteiramente na passagem do possível ao real: efetivação. A realidade representada utopicamente não pode e talvez não possa ser vivida efetivamente; mas ela supera eticamente a realidade efetiva, já que a experiência da realidade é vivida sob o signo da falta e da precariedade – e notadamente a partir de uma carência ética.

Qual a relação entre existência real (ontologia) e existência possível (ética e não lógica)? A força da possibilidade reside, neste caso, em que, embora não se possa conceber a utopia como existente, pode-se pensá-la como essência, não apenas no sentido da integridade lógica de um conceito, mas, notadamente, no registro da perfeição, ou da integridade ética de uma possibilidade de que algo venha a existir. A sociedade utópica, por exemplo, é pensada como essencialmente perfeita, embora a sua existência de fato não seja posta em questão. Neste sentido se pode estabelecer uma relação entre utopia e ideal, na medida em que a essência – e a sua perfectibilidade – é representada como ideia.

Nos termos da razão clássica e, de forma geral, no âmbito do pensamento tradicional, vigora o preceito lógico e ontológico da prioridade da essência sobre a existência, anterioridade da qual derivam algumas consequências importantes. Sendo a essência determinante, enquanto atributo principal que define a identidade do objeto a ser conhecido, a ordem e a coerência do conhecimento (que refletem a ordem objetiva ou ontológica) requerem que os atributos existenciais, secundários em relação à essência, jamais possam contrariá-la. Pois como poderia aquilo que é derivado contrariar aquilo que se põe como primordial e sua razão de ser? Consequentemente, num estilo tradicional de pensamento, tudo aquilo que não contraria a essência de alguma coisa pode ser considerado como possível no plano da existência da coisa. É neste sentido que a utopia é sempre considerada como da ordem do pensamento – da sua modalidade imaginante ou imaginária. Pois a diferença entre a essência e a existência, na ordem tradicional, é que a essência é pensada (pertence à ordem do inteligível) e a existência é constatada e pertence à ordem da realidade sensível. A relação entre inteligibilidade e realidade que vigora na utopia não é, portanto, de oposição, mas sim aquela que se pode estabelecer entre possibilidade e realidade, considerando-se a passagem que de direito se pode supor de uma à outra.

Como a utopia possui um teor principalmente ético, a essência que precede a realidade neste caso é pensada do ponto de vista ético, mais do que como possibilidade ontológica. Ocorre que a essência, por ser inteligível, comporta, tradicionalmente, a necessidade – assim como a realidade é da ordem da contingência. Em princípio, posso imaginar qualquer mundo possível; mas a significação ética da utopia me leva a pensar em algo melhor do que a realidade, ou mesmo no melhor dentre todos os mundos possíveis. Ora, notamos então que a concepção utópica traz em si uma necessidade ética, se assim podemos dizer, que diz respeito ao valor daquilo que é desejado como real: o melhor. O mundo utópico não precisa existir necessariamente, mas deve ser o melhor, porque é essencialmente o melhor e, caso venha a existir, a existência deveria acompanhar esta necessidade de essência. Existência > fato; essência > valor.

Mimesis e criação. Sendo a utopia algo que reúne a essência pensada e a existência imaginada, o que predomina na concepção ficcional da existência é a imaginação que reproduz o real (mimesis) ou a imaginação produtora, isto é, a elaboração imaginária ou a produção de um conteúdo imaginário, supondo-se que a imaginação não seja somente reprodutora. Esta distinção, feita por Kant, é importante para o romantismo e para a arte que requer a autonomia do imaginário. Não é fácil discernir reprodução e produção na elaboração da utopia. Nas obras, é nítido que as cidades, por exemplo, são concebidas ao mesmo tempo a partir das cidades existentes e contra elas, na tentativa de superação. O mesmo se deve dizer das pessoas, da organização social, da educação, dos objetos materiais, das relações humanas, do poder etc. Muitas vezes a fantasia ou a ficção ocorre a partir da exacerbação de traços da realidade.

DISTOPIA: HISTÓRIA, REDENÇÃO E AMEAÇA

A diferença entre utopia e distopia tem muito a ver com o contexto histórico em que ambas são produzidas. As obras indicam que o trabalho da imaginação pode ser inspirado pela realidade histórica de duas maneiras. No caso da utopia, pode-se falar da possibilidade de um mundo melhor, quaisquer que sejam as dificuldades para passar do possível ao real. Neste caso, imaginar um mundo melhor relaciona-se com a possibilidade de construir mediações para que se possa atingir e construir esta outra realidade. A diferença é enorme, e talvez a distância seja intransponível na prática, mas o espírito humano persiste e insiste em que a consciência do possível se possa tornar consciência do real.

No caso da distopia, a relação entre a imaginação e a realidade ocorre de forma diversa. O peso da realidade, a consolidação de suas categorias, a definição demasiadamente clara e definitiva das finalidades e o aprimoramento dos meios – ideológicos e tecnológicos – conferem à realidade vivida não apenas um perfil de irreversibilidade quanto à direção histórica, mas também indicam que as marcas deste mundo em que vivemos se caracterizam por uma inevitável tendência a se acentuarem e se tornarem cada vez mais fortes e influentes na conduta prática e na vida psicológica. Isto pode ser resumido na perspectiva de totalização: a realidade atual se constitui de modo tal que a única possibilidade de mudança está no reforço das características já existentes, de modo que já não seria possível pensar numa modificação significativa da experiência, isto é, na trajetória de vida que se possa esperar.

Quais seriam as razões históricas que, como já vimos, estão por trás desta diferença e determinam em parte os dois modos de conceber o futuro? Nos três exemplos que podemos tomar aqui – A utopia, de Thomas Morus; 1984, de George Orwell, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley – a diferença nos contextos históricos, entre o primeiro e os dois outros livros, pode nos instruir quanto a essa influência da realidade na imaginação, que parece muito importante na constituição do gênero. Morus viveu de 1478 a 1535, época que costuma ser denominada nos livros de história Renascença, e que se define, esquematicamente, pelo cultivo da erudição literária, histórica, filosófica, filológica, com o objetivo de restituir a verdade da cultura antiga, greco-romana, que teria sido deturpada pelas interpretações surgidas na Idade Média, muitas das quais mais comprometidas com a justificação da doutrina cristã do que com a razão como produtora de um pensamento independente.

Esta tendência à valorização da razão humana como testemunho da liberdade enquanto traço essencial ficou conhecida como humanismo renascentista, que pode ser tomado como uma atitude que se caracteriza pela atenção voltada para as possibilidades humanas, aquelas que os seres humanos poderiam realizar por si mesmos. Ora, esta espécie de potencial de libertação que o homem traz em si aponta para a autonomia como marca de todas as atividades humanas, e para a razão como o critério que deveria determinar as possibilidades e os limites do conhecimento e das práticas, das quais a mais importante seria a organização política. Em suma, humanismo significa, neste caso, que o homem por si mesmo seria capaz de construir para si, em todos os aspectos, um mundo melhor do que aquele moldado pela obediência a verdades e autoridades extrínsecas.

A utopia de Morus tem como pano de fundo esse cenário histórico, algo como uma redescoberta política e cultural do indivíduo e de seu poder de conhecer e instituir suas práticas coletivas. Isto guiado pela razão e sem atender a dogmatismos incompatíveis com a independência do pensamento. Mesmo a religião se beneficia da compreensão proporcionada pela racionalidade, que, de direito, deveria esclarecê-la e preservá-la da superstição. Morus é profundamente religioso (morreu pela sua crença), mas também profundamente convencido de que o homem pode construir sua felicidade.

Se consideramos agora o livro 1984, de George Orwell, encontramos uma situação histórica substancialmente diversa. Orwell viveu de 1903 a 1950, e o livro, publicado em 1949, provavelmente foi escrito nos anos imediatamente anteriores, a partir de uma experiência política intensamente vivida, já que ele participara na Guerra Civil da Espanha em 1936. Nessa condição de protagonista e de espectador interessado, Orwell formou sua consciência política tendo diante de si o processo histórico de ascensão dos totalitarismos, a direita triunfante na Espanha de Franco e o regime de Stálin na União Soviética. Não é, portanto, correta a imagem que se criou do livro quando de sua publicação, uma espécie de tratado anticomunista, imagem muito conveniente nos Estados Unidos, numa época em que o macarthismo era quase dominante. Orwell era “de esquerda”, mas num sentido mais radical do que o comunismo do Partido Comunista: era contra qualquer regime totalitário e se dizia adepto de um “socialismo democrático”. Não concordava com o PC soviético nem com os PCS da Europa, nem mesmo com o Partido Trabalhista inglês, porque entendia que todos os partidos estavam mais preocupados com o poder, sua conservação e sua reprodução, do que com o bem comum ou a libertação dos povos.

É preciso entender essa atitude no contexto da decepção dos intelectuais europeus no pós-guerra, que nutriam expectativas de liberdade e transformação a partir da derrota do nazismo e da “libertação” da França, esperanças que foram imediatamente frustradas.

Orwell foi também particularmente sensível àquilo que, logo depois da vitória dos Aliados, se tornou o domínio das “zonas de influência” dos Estados Unidos e da União Soviética, ao modo da divisão do mundo entre dois impérios. O enredo de 1984 vai refletir esse problema.

Nesse sentido, o pano de fundo do romance de Orwell é a perspectiva histórica de consolidação de sociedades fechadas, e não apenas aquelas que se caracterizam pelos regimes totalitários como o comunismo stalinista e o fascismo franquista, mas também aquelas que se organizam a partir da democracia formal, mas que trazem marcas significativas de intolerância, ódio e obscurantismo, como no caso dos Estados Unidos.

Já não se trata de uma transformação vivida como a passagem do dogmatismo teológico a possibilidades filosoficamente fundadas em sociedades politicamente organizadas a partir do homem e de sua razão, mas da provável expansão e aprofundamento de um sistema inteiramente definido pelo controle do indivíduo, por via de mecanismos que atingem não apenas a conduta social no que tem de exterior e material, mas também todos os aspectos da vida afetiva, o domínio da interioridade, que se pensava preservado de tais interferências.

O grande paradoxo experimentado pela geração de Orwell consiste em que os sacrifícios que a vitória sobre o nazismo custou não fizeram renascer de fato a liberdade pela qual se tinha lutado.

No caso de Huxley, o período em que viveu (1894-1963), atravessado pelas características que já mencionamos, o fez projetar em sua narrativa futurista um aspecto que é também muito importante para entender as razões e o espírito das distopias: o progresso científico, o aprimoramento tecnológico e as consequências deste processo profundamente enraizado numa ambiguidade que parece ser intrínseca. Admirável mundo novo foi publicado em 1932, um momento em que a Europa, invadida por uma estranha letargia, recusava-se a tomar consciência do que se passava na Alemanha, isto é, dos fenômenos que poderiam ser agrupados sob a expressão literária ovo da serpente. O nazismo é, também, um fenômeno explicável por via do progresso da tecnologia material – suas novas possibilidades bélicas – e por outra faceta da tecnologia, a administração da vida. O mundo em que tudo isto se torna possível é fruto do progresso, do avanço acelerado do conhecimento científico e de suas aplicações tecnológicas. Neste sentido, é necessário lembrar a posição de Huxley perante a arma nuclear.

O romance de Huxley vai privilegiar este ponto: a possibilidade de um domínio tecnológico total que permita a organização de uma sociedade inteiramente planejada em todos os seus aspectos, com destaque para a vida humana e o perfeito controle do destino das pessoas. Uma máquina eficiente cujo funcionamento esteja voltado para a manutenção e reprodução do próprio sistema. O aspecto predominante neste caso refere-se às consequências humanas – éticas e políticas – do progresso pautado pelo desenvolvimento da tecnociência e de uma burocracia tecnocientífica que se torna pura expressão do poder como dispositivo anônimo de controle social. Afinal, a história e o progresso são elementos de redenção do gênero humano ou de ameaça à vida e à liberdade? Uma questão de escatologia histórica.

Seria interessante apreciar o resultado, na ficção e na realidade, do controle externo e interno da vida (biopsíquico, biopolítico) para finalidades instrumentais.

O MUNDO, O IMAGINÁRIO. HISTÓRIA E FICÇÃO

Segundo Max Horkheimer, “se a utopia tem duas faces, ela é a crítica daquilo que é [existe] e a representação daquilo que deve ser. Sua significação essencial reside no primeiro momento”[2].

O texto nos permite pensar as noções de história e ficção, considerando o caráter relativo dos significados e tomando distância de duas posições: de um lado, a identificação completa entre história e ficção; de outro, a total oposição e impossibilidade de qualquer interface entre as duas. Com efeito, a história pode ser vista como a narrativa de fatos e a articulação entre eles, na forma da causalidade, por exemplo, e de acordo com os mais estritos critérios de positividade e objetividade. Isto significa que o historiador deve aplicar-se ao restabelecimento de fatos de modo que eles apareçam em sua realidade própria, em si mesmos, e é também o que se espera da reconstrução das sequências de fatos que nos levam a conhecer a produção dos acontecimentos. Positividade significa, no caso, realidade, objetividade, o conhecimento desta realidade de acordo com uma correspondência bem estabelecida entre sujeito e objeto, condição da verdade. Para tanto, o historiador mobiliza os recursos necessários, dentro das exigências epistemológicas de cientificidade.

No caso da história do passado, a característica mais marcante do fato é que ele não existe mais. É preciso realizar uma operação retrospectiva para localizá-lo no tempo e situá-lo entre suas causas e consequências, já que o conhecimento histórico supõe fatos e suas articulações. É preciso concordar, neste caso, que a positividade do fato está inteiramente vinculada aos métodos de reconstituição daquilo que existiu no passado: o valor dos testemunhos, dos documentos, das narrativas, das indicações diretas e indiretas. O objeto da história, portanto, é algo próprio de memória, principalmente coletiva. A sua estrutura temporal exclui a percepção e a consciência direta de quem o investiga. Nesta situação é que se colocam os problemas e as dificuldades relativas à facticidade e ao sentido da história.

A questão que pode ser colocada, então, é como preencher as lacunas decorrentes da reconstituição como acesso indireto aos fatos. Por isso, muitas vezes, o historiador opta pelo conhecimento, não propriamente do fato na sua positividade originária, mas das interpretações por meio das quais os contemporâneos estabeleceram suas relações com os fatos. De que maneira algo os afetou, como se situaram em relação a isso, como reagiram e determinaram suas intenções e ações a partir do que lhes acontecia. Esta perspectiva parte do princípio de que a consciência dos fatos não é o mesmo que sua apreensão neutra, mas envolve uma visão do fato que se inclui numa visão de mundo estabelecida a partir de certas condições. A história que se faz desta maneira tem de considerar a pluralidade possível das interpretações, e o historiador tem que se haver com a possibilidade de que ele esteja interpretando interpretações. Neste caso, teria que repor completamente as questões relativas à positividade e objetividade como critérios, ao menos na medida em que constituem heranças de uma epistemologia das ciências exatas e naturais.

A questão, em suma, é esta: qual é a natureza do objeto histórico? No limite, não se poderia até mesmo colocar em dúvida se se trata de um objeto? Quais são as possibilidades e limites da reconstituição dos fatos ou da apreensão dos significados que lhes atribuíram aqueles que os viveram? Os seres humanos, isto é, as consciências, constituem mediações obrigatórias entre o sujeito e o objeto do conhecimento histórico.

Tais dificuldades nos levam a outra modalidade de conhecimento histórico que pode ser vista como história crítica: procedimentos que procuram, por via de vários recursos metódicos, examinar (no sentido kantiano de criticar) os fatos a partir de todas as condições inerentes ao acontecer histórico. O que envolve tanto a objetividade factual na sua relativa independência, quanto a conduta dos agentes históricos que são também produtores dos acontecimentos. Isto não significa necessariamente tomar partido, mas sim compreender o sentido das tensões manifestadas e, por via delas, as intenções dos agentes, bem como a proporção em que se realizam, se desviam ou se desfazem no processo, já que os sujeitos neste caso são sujeitos da história e sujeitos à história. Um bom exemplo é o assassinato de Júlio César: o sentido do acontecimento, a compreensão de sua gênese, do momento político em termos de correlação de forças e do alcance de suas consequências – a ambição de poder ou a defesa da república. Certamente, não é por acaso que esta compreensão passe pela obra de Shakespeare, Júlio César, que é uma ficção produzida a pretexto do fato histórico.

Tanto a utopia quanto a distopia têm origem numa história crítica do presente, mesmo quando o tempo presente é visto como decorrência do passado ou de uma tradição. Não é difícil entender a posição histórica de Morus, de Orwell ou de Huxley. Neles, a narrativa se serve de certa indeterminação, inerente ao seu caráter ficcional, mas deixa muito nítido que as raízes da invenção literária estão na história presente e numa análise histórico-crítica do presente.

Tanto a utopia quanto a distopia podem, assim, ser vistas como a tomada de uma posição crítica quanto ao presente, a partir da compreensão histórica das condições, isto é, das possibilidades e dos limites de uma organização social historicamente engendrada. Condições, em termos de possibilidades e limites, são vistas a partir de um exame crítico que, entretanto, não tem apenas um objetivo teórico, mas também, talvez sobretudo, prático. Ou seja, o que move o utopista e o distopista não é a objetividade da visão histórica, embora isto também deva ser levado em conta, mas uma perspectiva ética da qual decorrem possibilidades de configuração política da sociedade e das relações indivíduo/sociedade.

Nesse sentido, o valor da vida, individual e coletiva, assume um grau de importância superior ao fato. O utopista e o distopista precisam ser, de algum modo, historiadores, ou pelo menos precisam examinar a história, sobretudo do presente, mas a prioridade é dada às possibilidades éticas e não aos limites da objetividade factual. E é esta prioridade da perspectiva ética que constitui o impulso narrativo de caráter ficcional. Não se trata de substituir a história pela ficção, mas de refletir sobre a história através da ficção. A narrativa de ficção prolonga, de alguma maneira, a vocação de uma história crítica, na medida em que esta não se atém exclusivamente aos fatos no seu ser bruto, mas os examina quanto à dimensão significativa, aí colocando questões de alcance e possibilidade no que toca, por exemplo, à relação entre subjetividade e objetividade na configuração histórica das sociedades.

Assim devemos entender a frase de Horkheimer: a significação essencial da utopia (e da distopia) reside no momento crítico: “crítica daquilo que é”. Tais narrativas se defrontam com o existente: medem a sua força e as possibilidades de superá-lo. O impulso da utopia é a crença nesta possibilidade. Já a distopia tende a estimar como insuperável a força do existente ou o caráter irrevogável da presença do negativo, do inumano. Mas esta diferença não impede que, em ambos os tipos de narrativa, a resistência apareça como possível e mesmo necessária à restauração ética do mundo social. Como se o dever ético que caracteriza a singularidade humana se exprimisse em assumir o sentido político da resistência.

E isto porque, se a história não é apenas fato, mas também significação, o indivíduo que a vive vivendo sua história pessoal tampouco se resume à cronologia dos fatos, mas se constitui principalmente pela livre atribuição de sentido aos fatos com que se defronta ao longo da existência histórica. Ora, a resistência ao inumano, principalmente quando este predomina, é manifestação privilegiada da liberdade e do resgate histórico da individualidade. Em Orwell esta perspectiva é explícita.

No caso da utopia, a resistência se mostra na oposição ao que é como “representação daquilo que deve ser”. No caso da distopia, a resistência se vincula à ficção como representação daquilo que pode vir a ser, mas que não deve ser. Os modos afirmativo e negativo do dever ser derivam da perspectiva ética dessas narrativas, e da função política que elas pretendem desempenhar. Nos dois casos se pode encontrar uma relação entre história e ficção que passa pelo viés da crítica histórica.

Reencontramos, assim, o tema da vinculação entre história, redenção ou ameaça. Trata-se de possibilidades de compreensão da teleologia histórica, isto é, da finalidade que a história persegue, se é que se pode supor esta ordem nos acontecimentos. Até que ponto esta finalidade depende de um curso objetivo da história ou até que ponto este percurso e esta finalidade dependem das ações humanas, contrapostas à ordem objetiva da história? Em ambos os casos, as possibilidades de redenção ou ameaça podem ser colocadas. A ilha de Utopia existe graças ao simples transcurso da história ou por via das ações humanas? O mundo de 1984 é inevitável ou podemos optar por colaborar para seu advento ou resistir à sua efetivação? Em uma carta a Arnold Ruge, de setembro de 1843, Marx escreveu: “O mundo sempre sonhou com alguma coisa da qual precisaria apenas se tornar consciente para que fosse possuída como realidade”[3].

UTOPIA E DISTOPIA. INDIVÍDUO E COLETIVIDADE

Tanto na utopia quanto na distopia nota-se a presença forte de estruturas racionais, isto é, de características distintivas da razão, consolidadas na tradição, pelo menos desde Aristóteles. Dois desses traços marcantes são determinação e previsibilidade. Pelo primeiro a sociedade, em todos os aspectos de sua organização, é perfeitamente conhecida, com a diferença de que isto ocorre, no caso da utopia, por parte de todos os integrantes da sociedade e, no caso da distopia, por parte daqueles que são responsáveis pela organização, manutenção e controle do sistema e, apenas em casos excepcionais, pelos outros membros. Determinação é requisito essencial do conhecimento porque permite que os elementos sejam discernidos com clareza e, assim, distinguidos no que são e na função que desempenham. Neste sentido, vale considerar como primordial o alcance da lógica da organização, pois é ela que fornece as condições de determinação, que deve ser a mais completa possível.

A previsibilidade decorre da determinação e é considerada, na tradição, como igualmente relevante na constituição do conhecimento. O que está inteiramente determinado não pode aparecer de modo diferente. Logo, pode-se prever a regularidade de fenômenos desde que bem determinados: nas mesmas condições, eles se repetirão necessariamente. Por isso a finalidade do conhecimento é a intelecção de uma ordem, que constitui, também, o próprio conhecimento no seu estatuto teórico. Assim como a determinação possui papel relevante na compreensão da estrutura, assim também a previsibilidade desempenha função importante na sucessão dos elementos que necessitam ser entendidos cronologicamente. Nas sociedades utópicas e distópicas, por razões diversas, deve haver equilíbrio entre o aspecto estrutural e o aspecto processual da realidade social ou, em outros termos, uma combinação entre estabilidade (sincronia) e aprimoramento (diacronia) do sistema.

O entendimento do ajuste entre os dois elementos mencionados acima permite a percepção de outra categoria constitutiva da organização: a totalidade, definida como a perfeita sintonia das partes num sistema fechado e autossuficiente. De modo geral, as sociedades utópicas são imaginadas como ilhas ou como lugares distantes e isolados: ou não há comunicação com o exterior ou esta comunicação é inteiramente controlada, para que haja total domínio de suas possibilidades, alcance e efeitos. No caso da sociedade distópica de Orwell, em que a guerra, ativa ou latente, é componente constitutivo da realidade social, e constitui o tipo dominante de comunicação com o outro, o objetivo constantemente perseguido é eliminar a outra parte ou incorporá-la por uma vitória seguida de dominação. Portanto, mesmo quando se trata de uma divisão da realidade em duas partes equilibradas de modo tenso, a finalidade é a totalidade, a constituição da unidade e da identidade pela anulação da diferença.

Como vimos a respeito das duas outras categorias, a totalidade também é um requisito da racionalidade, presente, de modo diverso, na utopia e na distopia. Uma totalidade racional é uma totalidade sistemática: a razão em seu perfil clássico, seja antigo ou moderno, é sempre sistemática, no sentido de que tende para uma integração perfeita dos elementos que a compõem, e para uma demarcação nítida de seus limites, característica que não deve ser vista como necessariamente negativa (na nossa acepção habitual de limite como restrição), mas sim de perfectibilidade ou acabamento, exclusão de qualquer marca de indefinição. Os exemplos clássicos são a série dos números com um infinito indefinido (simplesmente não tem fim porque sempre se pode acrescentar mais um elemento) e Deus como o infinito realizado, plenitude positiva não susceptível de qualquer acréscimo substancial. Em princípio, a utopia deveria ser vista como a totalidade perfeita, plena sintonia das partes entre si e com o todo que formam. A distopia, pelo contrário, seria a realização da totalidade política como totalitarismo e não como totalização, entendendo-se por isto que a totalidade não representaria nenhum grau de perfeição orgânica, mas uma imposição de identidade e uniformidade.

É importante acrescentar que identidade e uniformidade estão de algum modo presentes nas sociedades utópicas, mas não como imposição, e sim como uma espécie de estratégia de indução comportamental que passa pela anuência dos indivíduos. Na descrição da ilha de Utopia, de Morus, lemos que as pessoas seguem regras como refeições em conjunto, o lugar que devem ocupar à mesa, e mesmo o tipo de alimentação mais conveniente para cada um. Mas nada disso é imposto: as pessoas são livres para não comer com os outros ou, caso o façam, ocupar qualquer lugar; “mas o fato é que ninguém tem prazer nisso”. Há uma ambiguidade nesta descrição, em que a possibilidade de uma opção fica, na prática, descartada, visto que ninguém desejaria escolher outra coisa. Esta espécie de condicionamento que recebe uma significação eticamente positiva por ser corroborado pelos próprios indivíduos pretenderia levar em consideração dois fatores. Primeiramente, a necessidade de certa homogeneidade na organização social, expressa em comportamentos que ficariam a igual distância da regra explícita e do costume espontaneamente consolidado. Em segundo lugar, a preservação da liberdade que seria indissoluvelmente vivida como individual e comunitária. O aspecto externo desta concórdia vivida como experiência social é a roupa, igual para todos, inclusive para os que exercem funções dirigentes. Outro fator, este bem mais importante e complexo, é a língua, em relação à qual se aplica deliberadamente todo cuidado na manutenção de sua uniformidade estrutural e léxica, exatamente para que ela seja um instrumento de compreensão mútua a partir de um poder expressivo concebido e utilizado em seu mais alto teor de racionalidade. Há aqui algo que se apresenta como marca profunda da idade clássica: a relação entre linguagem e pensamento, e a língua como expressão da razão e, assim, meio efetivo de entendimento entre todos os seres humanos.

Dois aspectos devem ser destacados nesta tentativa de construção de uma totalidade bem ordenada, cuja estrutura lógica coincida com expectativas de felicidade individual e coletiva, e que são de índole racional, enquanto se referem ao caráter geral da sociedade como organização, e também na medida em que devam contemplar a singularidade de cada indivíduo. Com efeito, o problema crucial da organização social é estabelecer o necessário equilíbrio contido na expressão inserção comunitária do indivíduo se a entendemos como definição de individualidade. A abstração pode ser entendida de duas maneiras, no que diz respeito à questão aqui tratada: o indivíduo pode ser abstraído, isto é, inteiramente separado da realidade social, e ter sua presença diluída na esfera do coletivo, com o desaparecimento da sua singularidade; ou a realidade social pode ser separada do indivíduo e tornar-se a única realidade, que tira sua força absoluta da relatividade dos indivíduos, a ela inteiramente submetidos. No primeiro caso, a abstração, isto é, a separação, leva à anulação do que seria a realidade individual; no segundo caso, a abstração (separação) leva à exacerbação da dimensão estrutural e coletiva do social, que se mostra, então, como a única realidade, ou o ser na dimensão total e totalitária. Nesta relação – ou nos seus limites – entre indivíduo e sociedade pode ser colocada também a questão da relação (e hierarquia) entre ontologia e ética – ou estrutura sistêmica e relações humanas. O que se procurou, nas utopias e em algumas filosofias sociais (Marx, por exemplo), foi talvez a instauração ou a recuperação de uma reciprocidade entre indivíduo e comunidade, na tentativa de estabelecer a indissociabilidade que deveria vigorar entre as duas instâncias.

Portanto, quando se diz, em relação à utopia de Morus, que o indivíduo não pode ser compreendido fora de sua inserção comunitária, devemos entender a relação dinâmica entre três esferas de atuação: o exercício da individualidade, no sentido da liberdade individual, das escolhas concernentes à vontade do indivíduo; a vinculação orgânica deste exercício à comunidade, de modo que a liberdade individual e o exercício comunitário desta liberdade tendam a coincidir; e, como resultado, a sociabilidade que é ao mesmo tempo um sistema que prescreve aos indivíduos o modo de vida e a experiência constante que cada um faz de sua participação livre e ativa na comunidade. A pretensão, como se vê, é atingir a universalidade da razão: uma totalidade objetiva constituída pela sintonia das singularidades subjetivas. Sabemos que nas distopias a primeira característica é obtida ao preço do sacrifício da segunda. Mas seria preciso entender, no contexto da utopia, os pesos relativos do indivíduo singular e da organização social, algo que se dá entre a harmonia e a tensão. De um lado, a liberdade de opção; de outro, as necessidades sistêmicas da sociedade, cuja organização exige que os indivíduos de alguma forma se distribuam entre todas as tarefas necessárias à manutenção do social, e que a vida de cada um, vivida com liberdade, esteja sintonizada com o todo organizado institucionalmente. Veja, por exemplo, na Utopia, a família, o casamento e o divórcio, bem como o critério econômico da distribuição de funções e da organização institucional. Possibilidades e limites da existência histórica devem ser considerados a partir de mediações que se fazem necessárias para a organização objetiva da sociedade.

Tudo indica que outra diferença importante entre utopia e distopia consiste em entender que a organização da sociedade é, em grande parte, a organização dos elementos mediadores entre a totalidade e as partes, bem como das partes entre si. Se privilegiarmos o aspecto esquemático e matemático da razão, sobretudo no seu perfil clássico relacionado com a ciência moderna (física), poderemos desprezar as mediações, isto é, poderemos estabelecer relações mecânicas (exatas) que podem ser formalmente verdadeiras, mas que talvez não contemplem a complexidade de uma totalidade social. O exemplo maior é o caso que já mencionamos: as relações entre indivíduo e sociedade. As transições que em diferentes momentos se fazem de uma instância a outra devem percorrer mediações para que o processo de constituição das relações se mantenha ajustado à realidade na perspectiva histórica. De modo geral, a utopia procura respeitar as mediações, enquanto a distopia tende a ignorá-las em prol da eficácia de um sistema feito de relações diretas. Aí estaria a distinção entre o sistema baseado na harmonia e o sistema calcado na violência.

UTOPIA E DISTOPIA. IMAGINAÇÃO E AÇÃO COMO MEIOS DE CONSTITUIR OUTRA REALIDADE

Como se poderia classificar o conteúdo filosófico da utopia? Pelo modo como se tem considerado habitualmente o gênero, a noção de ideal a princípio parece ser a mais indicada para a apreensão do significado de utopia. E o principal argumento a favor desta afirmação refere-se ao caráter perfeito da cidade utópica, o que torna o próprio conceito de utopia sinônimo de uma totalidade definitivamente acabada e autossuficiente. É neste sentido que se costuma associar utopia a algo que pode ser imaginado, mas que não pode ser atingido. Ou seja, o imaginário, no sentido do inexistente, seria o âmbito da representação da utopia.

Mas a questão exige que se examine, preliminarmente, o modo ou os modos como se concebe, no contexto da filosofia, o que seja ideal. Tomemos, primeiramente, o exemplo de Kant. O que caracteriza a sua concepção de conhecimento é o equilíbrio adequado entre as possibilidades e os limites que as categorias do entendimento – o aparato lógico-transcendental – permitem estabelecer na definição do que seja experiência possível, isto é, o conhecimento que podemos alcançar a partir de um uso válido das formas racionais. O conhecimento se constitui por este procedimento, que se resume na observação cuidadosa dos limites da validade teórica (científica) das nossas representações. Entretanto, se separarmos a possibilidade dos limites, poderemos estender o uso das categorias do entendimento indefinidamente, ultrapassando assim as fronteiras de validade do conhecimento teórico – os limites do entendimento – e fazendo um uso destas formas unicamente guiado pela razão, em sua ambição de integralizar o conhecimento e totalizar a representação intelectual da realidade. O entendimento observa limites; a razão tende a ultrapassá-los e transcender o uso teórico (imanente) na direção do uso transcendente.

Embora esse uso seja, do ponto de vista teórico, ilegítimo, já que não produz nenhum conhecimento, ele de alguma maneira se justifica pela função reguladora que exerce. Isto significa que, embora o conhecimento restrito aos parâmetros da experiência seja necessariamente limitado ao que se pode abranger neste âmbito, e não se possa, assim, constituir de fato conhecimentos que o ultrapassem, é útil que a atividade de conhecer seja regulada por ideias que, em si mesmas irrealizáveis, no entanto colocam para o conhecimento exigências que o impulsionam na direção de uma realização sistemática da totalidade e da unidade. A diferença, portanto, é esta: só podemos constituir nosso conhecimento a partir dos limites muito precisos de uma experiência bastante restrita em relação ao que podemos pensar para além de tais limites; mas podemos regular nosso conhecimento lançando hipoteticamente nosso olhar para muito mais longe, para a totalidade e a unidade sistemáticas que nunca poderemos constituir, mas que servem para que nos esforcemos para ampliar a experiência o mais que pudermos.

O caráter regulador das ideias de totalidade e unidade faz com que elas funcionem como ideais, no sentido de algo posto no horizonte como finalidade impulsionadora embora inatingível de fato. E é importante ressaltar o caráter absolutamente racional de tais ideias: elas representam a completude sistemática que a razão humana aspira para o conhecimento (metafísica), mas que o entendimento não pode atingir.

Se aplicarmos a analogia, diremos então que a utopia é a máxima realização da ideia de uma organização social absolutamente perfeita. As circunstâncias e contingências que cercam a realização de fato implicariam a impossibilidade de realizar este ideal que, no entanto, permanece válido como modelo racional da cidade perfeita, e também como medida e critério para julgar a realização efetiva da vida social, ética e política na dimensão de sua existência.

Hegel criticou essa relação entre constituição e regulação a partir da necessidade de compreender o real e não aquilo que se pode conceber além dele. Assim, dedicar-se a representar um ideal inatingível como polo regulador da realidade seria um modo de perder a realidade efetiva e presente, o verdadeiro objeto da filosofia, sem o qual a compreensão se projeta no vazio. A autêntica maneira de pensar além da realidade presente não é ultrapassá-la na direção de um ideal, mas compreendê-la em sua negatividade, isto é, em seu movimento ou processo de superação e transformação. O que determina a transformação da realidade, e também a sua realização como totalidade, é o negativo que o real traz em si, é a possibilidade de negar a si mesmo e tornar-se outro. O movimento histórico, adequadamente compreendido, suprime a dicotomia kantiana entre constituição e regulação, isto é, retira da representação da história o componente idealista. Neste sentido, A República de Platão não é a proclamação de um ideal, mas a compreensão da essência da organização política.

Isso significa que não basta conceber a sociedade justa como um ideal regulador, mas é preciso compreender as contradições da sociedade existente, o movimento histórico que a engendrou e a mantém, e a possibilidade de constituir outra realidade social. Neste processo, a superação do presente constituído pode passar pela imaginação, isto é, pela construção imaginária de outra sociedade, pois neste caso a atividade do imaginário estaria associada a uma atitude racional de crítica do presente. Neste sentido, Marx e Engels valorizam a utopia como crítica social, como reação ao sistema dominante e como constatação embrionária do conflito de classes, atribuindo assim a ela, no que traz de elementos críticos, uma função altamente positiva como impulso de transformação. Como se referem de modo geral aos utopistas do século XIX, avaliam que esses autores teriam percebido com clareza os aspectos negativos da realidade social, como a desigualdade e a exploração enquanto vetores da organização social.

Essa visão se reflete nas propostas dos socialistas utópicos, como Fourier e Owen. O que elas têm de utópico deriva justamente de uma ausência de compreensão do movimento histórico na constituição da realidade social. É esta característica que os leva a imaginar uma sociedade mais perfeita, sem atentar para as condições socioeconômicas que determinam a sociedade atual e a do futuro. Daí o utopismo, definido como “a fabricação imaginária de cidades racionalmente perfeitas”[4]. Esta formulação teria sido a única possível num momento histórico em que as aspirações revolucionárias ainda não podiam assumir formas diretamente práticas, isto é, uma crítica material relacionada com as possibilidades de transformação material da sociedade por via do movimento histórico. Assim, de um lado, as utopias refletem a situação histórica na qual são produzidas; de outro, elas existem e desempenham seu papel porque ainda não há, por parte dos agentes históricos de transformação, consciência do movimento histórico e da função que poderiam nele desempenhar. Mas a utopia se insere num percurso que levará a esta tomada de consciência, algo que coincidirá com a passagem do socialismo utópico ao socialismo científico.

Por consequência dessa apreciação e de outras acerca da significação histórica da utopia, pode-se apontar uma relação entre utopia e verdade da história, ao menos no sentido de que a concepção utópica da sociedade reage a uma situação considerada racionalmente inconsistente e eticamente comprometida com interesses ideológicos. Na suposição de uma oposição entre verdade e ideologia, a utopia realizaria a crítica da ideologia pela negação da realidade social organizada a partir da mistificação política. Ora, a negação da realidade pode ser, no limite, a posição da irrealidade. E. Bloch dizia, a respeito, que o que importa nos sonhos não é tanto sua verdade ou sua mentira, mas, sim, o fato de que eles existem e a sua simples existência coloca a questão de sua realização. Talvez seja esta posição da utopia entre o sonho e a realidade – no limite, a negação da realidade pelo sonho (como no discurso de Martin Luther King) – o aspecto mais afirmativo da liberdade.

Já em Descartes, a tese da liberdade coincide com o poder infinito de negação, traço que nos assemelha a Deus, pois não há evidência, por mais luminosa que seja, ou opção moral, por mais imperativa, que não possam ser negadas. No limite, a afirmação depende da razão, da clareza e da distinção que a suportam; mas a negação não depende da razão e pode, até mesmo, ir contra todas as razões. Descartes, naturalmente, não encoraja o uso desta liberdade em sua forma mais radical, porque a liberdade mais perfeita não seria, para ele, contrariar a razão, mas segui-la. O que não anula a tese da realidade radical, infinita, da liberdade.

A relação entre utopia e liberdade se mostra em que a utopia seria, primeiramente, um ato de negação. Em suas raízes cartesianas, este ato, ao negar a realidade finita presente, de direito se volta para a exploração de possibilidades infinitas abertas pela liberdade. Para concretizar alguma destas possibilidades, é preciso criar uma realidade finita, perfeita, que seria a cidade utópica. Mas se sua verdade é da ordem da história, como mencionamos antes, ela não poderia ser perfeita no sentido de definitivamente acabada, mas teria de se definir pelo movimento de progresso e aprimoramento. Entretanto, não seria justamente uma das características da cidade perfeita a estabilidade, a anulação da contingência que instabiliza as cidades imperfeitas?

A solução, ao menos no caso da Utopia de Morus, é considerar que a cidade é essencialmente perfeita, e que esta perfeição essencial seria totalmente compatível com o progresso e o aprimoramento na ordem da sua existência. Mudar sempre para melhor seria um sinal de sua perfeição e permitiria que esta perfeição não contrariasse o predicado da historicidade. O tempo, que nas cidades imperfeitas pode ser fator de decadência e destruição, na Utopia é integrado através de um exercício de discernimento que assimila o que é bom para a cidade e esquece o que lhe teria sido trazido de mau. Não há, propriamente, a intenção de suspender o tempo, mas certamente a de afastar seus efeitos negativos. O que pesa, é verdade, no equilíbrio entre devir e eternidade, mais para o lado do permanente e do eterno. Apesar disso, a paralisação no tempo não faz parte da essência da utopia.

Seria, antes, numa literatura anti-humanista que a paralisia do tempo poderia ocorrer como sinal da repetição intrínseca a uma concepção de vida vazia. Lacroix cita a Montanha mágica de Thomas Mann – o tempo linear e repetitivo do sanatório, como se houvesse a intenção de fazer de todos os dias um único dia. O castelo de Kaf ka, e a interminável espera da personagem como experiência do tempo imobilizado. Esperando Godot de Beckett pode ser visto como a alegoria da exigência do fim da espera, da chegada do instante final, que nunca ocorrerá. Ou, no caso de O castelo, a convocação da personagem coincide com o momento de sua morte.

No caso da Utopia, não existe propriamente uma espera porque os habitantes não carecem de algo que precisariam esperar. Trata-se de duas experiências diversas e eventualmente simultâneas: a duração eterna da cidade perfeita e a vivência de uma historicidade que não altera o essencial.

De modo semelhante, a Utopia não se coaduna nem com uma filosofia da contemplação nem com uma filosofia exclusivamente da ação. Não se trata de contemplar estaticamente uma representação imaginária, porque na raiz do ato de imaginar está a negação da realidade dada, que já traz em si a expectativa de ação; nem de agir na direção de um simples desdobramento do presente em futuro, o que seria a reiteração do mesmo. Trata-se de imaginar e de constituir outra sociedade: não apenas modificar a existência, mas alterar a essência. Uma filosofia da ação, mas que procura agir sobre o princípio e a essência da sociedade, e não apenas “reformar” alguns de seus aspectos. “Não há utopia sem a representação totalizante e irruptiva da alteridade social”[5].

Notas

  1. Não havendo indicações em contrário, as traduções dos trechos citados são de minha autoria.
  2. Max Horkheimer, Les débuts de la philosophie bourgeoise de l’Histoire, Paris: Payot, 2001, p. 39.
  3. Marx and Engels Internet Archive. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/marx>. Acesso em: 4 fev. 2016.
  4. Karl Marx; Friedrich Engels, Manifesto comunista, São Paulo: Boitempo, 1998, p. 60.
  5. Bronislaw Backzco, Lumières de l’utopie, Paris: Payot, 1978, p. 67.

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