1988

Janela da alma, espelho do mundo

por Marilena Chaui

Resumo

Para se destacar o importante vínculo entre o léxico do olhar e o léxico da filosofia podemos recorrer a inúmeros exemplos que demonstram o privilégio do olhar na aquisição do conhecimento. Expressões táteis, olfativas, gustativas e cinestésicas cumprem um papel preciso de trazer o invisível (pensamento) ao visível. Porém, mesmo que participem na elaboração de conceitos e termos, as impressões táteis, gustativas e olfativas se subordinam à impressões e às considerações visuais.

Dos cinco sentidos somente a audição rivaliza com a visão no léxico do conhecimento. “Ver, lança-nos para fora. Ouvir, volta-nos para dentro”. Mais importante do que a diferença entre ver e ouvir é a afirmação platônica de que a verdadeira causa pela qual recebemos a vista e a audição é estarmos destinados ao conhecimento.

A filosofia tem sido um interminável debate entre o ser e o aparecer, o aparecer e o parecer, o parecer e o ser. A cisão anunciada com as teorias perceptiva (visão depende das coisas) e a emissiva (visão depende dos nossos olhos) cresceu e outras separações surgiram ao longo da história da filosofia; a do realismo e do idealismo e a do empirismo e do intelectualismo, por exemplo. Há também uma cisão entre o olhar e a linguagem. A rivalidade entre ambos pode conduzir à expulsão de um deles: as filosofias analíticas contemporâneas, o construtivismo da “ciência como linguagem bem feita” e a crítica da “filosofia da presença” são exemplares na expulsão do olhar.

A filosofia da visão ensina à filosofia, dentre outras coisas, que ver não é pensar e pensar não é ver, mas que sem a visão não podemos pensar, que o pensamento nasce da sublimação do sensível no corpo da palavra que configura campos de sentido a que damos o nome de ideias. O olhar ensina um pensar generoso que, entrando em si, sai de si pelo pensamento de outrem que o apanha e o prossegue.


Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? […] É janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento[…] O admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do universo? […] O espírito do pintor deve fazer-se semelhante a um espelho que adota a cor do que olha e se enche de tantas imagens quantas coisas tiver diante de si.

Leonardo da Vinci

Raras vezes despertam atenção as palavras de nosso cotidiano. Ali estão, disponíveis, costumeiras. Falamos em amor à primeira vista, sem que nos preocupe havermos, assim, atribuído poder mágico aos olhos, poder em que acreditamos se falarmos em mau olhado. Aceitamos discordâncias dizendo que cada qual tem direito ao seu ponto de vista ou à sua perspectiva, sem causar-nos estranheza o crermos que a origem das opiniões dependa do lugar de onde vemos as coisas e sem que nos detenha a palavra “perspectiva”. Se pretendemos assegurar que algo é efetivamente verdadeiro, dizemos ser evidente e sem sombra de dúvida, porém não indagamos por que teríamos feito a verdade equivalente à visão perfeita já que não pensamos com os olhos nem por que teríamos associado dúvida e sombra, associação que transparece quando enfatizamos nossa certeza com um “mas é claro!”. Se desejamos expressar agrado e espanto, exclamamos -“é espetacular!”,”é fenomenal!”. No entanto, não nos demoramos a pensar de onde viriam as palavras espetáculo e fenômeno, nem por que esta última é tão curiosa, pois o cientista, ao falar em fenômenos da natureza, refere-se a regularidades naturais enquanto, no cotidiano, reservamos seu uso para o que é excepcional. Também não nos parece curioso falar em investigação para designar tanto a atividade do cientista quanto a do policial (detetive, em inglês, se diz private eye) e não indagamos se ambos teriam algo a ver com um olhar que espia, espreita e espiona. Aliás, não nos surpreende usarmos a expressão “ter (ou não ter) algo a ver” ao pretendermos afirmar (ou negar) relações entre coisas, pessoas ou fatos. Nem que, laconicamente, declaremos necessária uma consequência dizendo: “logo se vê” ou “está-se vendo”.

Pouca atenção prestamos à relação que espontaneamente fazemos entre ver e falar quando, acautelando alguém, dizemos: “veja o que diz”. Assim como não nos demoramos na relação entre ver e escutar quando, em vez de “escute!”, dizemos: “olhe aqui!”. Relações que estabelecemos quando chamamos aos profetas — aqueles que recebem e proferem uma palavra divina — videntes, sem indagarmos por que ouviriam vendo, nem por que mensagens e prodígios sagrados tendem a procurar nossos olhos — de onde vem a palavra milagre? —, nem por que nossa persuasão seria obtida privilegiadamente pelo ver — não foi essa a exigência de são Tomé?

A palavra visionário nos vem imediatamente quando pretendemos designar tanto aquele que conhece o futuro quanto aquele que sonha sonhos impossíveis, tanto aquele que vê mais e melhor do que nós quanto aquele que nada vê. Mas não perguntamos de onde nasce nossa crença de que o tempo por vir seria dado ao olhar e a um olhar mais perspicaz do que o comum (aliás, não costumamos indagar de onde vem essa palavra: perspicaz). E nos parece muito natural que também os tempos idos possam ser vistos: diante da dor e da catástrofe, não aconselhamos alguém ou nós mesmos a “não olhar para trás”? Não cremos apenas que o tempo, futuro ou passado, destina-se à visão. Essa crença reafirma nossa convicção de que é possível ver o invisível, que o visível está povoado de invisíveis a ver e que, vidente, é aquele que enxerga no visível sinais invisíveis aos nossos olhos profanos.

Falamos em visões de mundo para nos referirmos a diferenças culturais ou para caracterizarmos diferentes ideologias e estas foram descritas pelo jovem Marx a partir da retina e da câmara escura, onde imagens se oferecem invertidas, visão enganada. Falamos em revisão quando pretendemos dizer mudança de ideias, correção do rumo do pensamento ou da escrita, sem indagarmos por que referimos ao olhar alterações de ideias, convicções, práticas ou dizeres.

Assim falamos porque cremos nas palavras e nelas cremos porque cremos em nossos olhos: cremos que as coisas e os outros existem porque os vemos e que os vemos porque existem. Somos, pois, espontaneamente realistas. Ilusões e alucinações, longe de destruírem nossa crença na existência de um mundo em si, reforçam o que Merleau-Ponty chamava de nossa fé perceptiva, porque a ilusão carrega a promessa de uma visão verdadeira que corrigiria a ilusória, desde que corrijamos nosso ponto de vista, pois temos consciência da ilusão e da decepção apenas quando já substituímos uma evidência por outra. Por seu turno, a alucinação traz consigo nossa certeza de que o mundo verdadeiro foi acidentalmente barrado por nossas fantasias e fantasmas, podendo, por essência, ser refeito. Mas não constumamos indagar qual a origem das palavras fantasia e fantasma, como não nos surpreende a distinção entre as palavras alucinado e lúcido, isto é, que loucura e sanidade sejam designadas como ausência ou presença de luz.

É estranho o nosso realismo. Quando a criança pequenina começa a aprender a brincar de esconde-esconde rimos porque fecha os olhos, certa de que, ao fazê-lo, os outros deixam de vê-la porque ela deixou de vê-los. Fechando os olhos, porém, ela exprime nossa crença ancestral de que a visão depende de nós, muito mais do que dependeria das coisas. Subjetivismo que reiteramos quando, diante de algo horrendo, fechamos os olhos para torná-lo inexistente, atribuindo ao olhar um poder de irrealização que ressurge quando dizemos que o que os olhos não vêem o coração não sente. Força irrealizadora que levou Berkeley — para quem ser é percebido, esse et percipi — a garantir a existência do mundo, quando nenhum olhar humano nele se deposita, apelando para o olhar eterno de Deus. Solução que atende à outra face de nossa crença perceptiva, o objetivismo, patenteado na expressão: o pior cego é aquele que não quer ver, pois as coisas aí estão, visíveis.

Provérbio sugestivo, porquanto, se afirma haver seres a ver, também afirma que não vê-los é deliberação da má vontade, enlaçando o olhar à moral. Eis porque, força realizadora e irrealizadora, o olhar sempre foi considerado perigoso: as filhas e a mulher de Ló, transformadas em estátuas de sal; Orfeu perdendo Eurídice; Narciso perdendo-se de si mesmo; Édipo cegando-se para ver o que, vidente, não podia enxergar; Perseu defendendo-se da Medusa forçando-a a olhar-se. Os índios, recusando espelhos, pois sabem que a imagem refletida é sua própria alma e que a perderão se nela e nele depositarem o olhar.

Olho imoral porque guloso: não condenamos aquele que “tem os olhos maiores do que o estômago”? Mas, por isso mesmo, olho carente a abrir-nos para o insaciável, separando-nos de nosso corpo saciado. Olho passivo: não disseram muito filósofos que a passividade é a marca do olhar, disso sendo prova o nunca nos cansarmos de ver porque a atividade estaria nas coisas vistas e na luz, não em nossos olhos? Carência e passividade de que falou santo Agostinho:

Os olhos amam a beleza e a variedade das formas, o brilho e a amenidade das cores […] não me dando descanso, como o dão as vozes dos cantores, que por vezes ficam em silêncio. A própria rainha das cores, esta luz que se derrama por tudo que vemos e por todos os lugares em que me encontro no decorrer do dia, investe contra mim de mil maneiras e acaricia-me, até mesmo quando me ocupo noutra coisa que dela me abstrai. Insinua-se com tal veemência que, se, de repente, me for arrebatada, procuro-a com vivo desejo. Se se ausenta por muito tempo, minha alma cobre-se de tristeza.[1]

No entanto, olho poderoso. Capaz de despir, devorar e matar. Não é o olhar alheio fonte de alienação? Não me transforma em coisa, indagava Sartre? Não me aniquila, roubando-me a condição de sujeito? Não é por ele que “o inferno são os outros”?

Concupiscente, diziam os Padres da Igreja, paixão da carne, inebriada na luz corpórea e sensual “que ameniza a vida dos cegos do século com atraente perfídia e doçura”[2] para lançá-los nas trevas do inferno. Sedutor e seduzido, o olhar é arrastado pelo espelho, que o padre Vieira chamou de “demônio mudo”. Mas também capaz de sinceridade quando, olhos nos olhos, cremos que o olhar expõe no e ao visível nosso íntimo e o de outrem.

Porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si.

Porque estamos certos de que a visão depende de nós e se origina em nossos olhos, expondo nosso interior ao exterior, falamos em janelas da alma. Crença que sustenta os chamados “testes projetivos” da psicologia, onde se espera que a consciência, lançando‑se qual projétil através dos olhos, projete no fora o seu dentro. Crença central na retórica do século XVII quando, na análise das paixões, estudava o “ar da fisionomia”, insistindo nos olhos como “o lugar onde se pode perceber a atividade da alma” porque o “não sei que” da fisionomia é “a atividade da luz natural, que não é senão o brilho resultante do envio constante dos espíritos animais ao olho”.[3] Porém, porque estamos igualmente certos de que a visão se origina lá nas coisas, delas depende, nascendo do “teatro do mundo, as janelas da alma são também espelhos do mundo. Se, desde a Renascença, pintava-se nos olhos uma pequena janela, também dava-se ao espelho, fora ou dentro do quadro, um lugar privilegiado: era com ele que se avaliava a pintura genuína do modelo, era por ele que se configurava o longínquo como paisagem, era nele que o pintado via-se, na própria tela, repetido, re-presentado.[4]

Janela e espelho: os pintores costumam dizer que, ao olhar, sentem-se vistos pelas coisas e que ver é experiência mágica. A magia está em que olhar abriga, espontaneamente e sem qualquer dificuldade, a crença em sua atividade — a visão depende de nós, nascendo em nossos olhos — e em sua passividade — a visão depende das coisas e nasce lá fora, no grande teatro do mundo.

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

[…]

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

[…]

Chega mais perto e contempla as palavras cada

uma tem mil fac[5]es secretas sob a face neutra

[…]

Ver as palavras. Delas chegar perto. Contemplá-las: antes do poema são coisas visuais e, como todo visível, “tem mil faces secretas sob a face neutra”. Antes que espalhem sentido e beleza, antes que falem, vejamo-las em sua nudez. Acerquemo-nos delas “em estado de dicionário”. Quais escolheremos? Aquelas que nos fazem ver o vínculo secreto entre o olhar e o conhecimento. Até mesmo aquela que o designa na filosofia — teoria de conhecimento — pois théoria, ação de ver e contemplar, nasce de théorein, contemplar, examinar, observar, meditar, quando nos voltamos para o théorema: o que se pode contemplar, regra, espetáculo e preceito, visto pelo théoros, o espectador.

Na ampla gama do espectro que vai de phaós (luz, luz dos astros, luz do dia, luz dos olhos, flama, vir à luz, nascer, vivente) a phaiós (sombrio, cinza, escuro, luto), da luz à treva, da vida à morte, espalham-se as palavras do visível: ta phaea (os olhos), que pitagóricos e platônicos chamarão de faróis, “os olhos portadores de luz”; phantós (o visível e o que pode ser dito ou manifestado pelas palavras), a linguagem sendo uma forma da visibilidade; phaédo (o sol), phaeino (brilhar, irradiar, iluminar), phaidós (brilhante, luminoso, claro, sereno, puro, alegre), phaidrôo (fazer brilhar, tornar radioso, alegrar), phaino (fazer brilhar, fazer aparecer, mostrar e mostrar-se, manifestar e manifestar-se, dar a conhecer o caminho, guiar, dar a conhecer pela palavra, explicar), phainómenos (visivelmente, manifestamente, claramente), donde virão fenômeno (e seu conhecimento: fenomenologia), fantasia, fantasma, fantástico, assinalando o parentesco que enlaça visão, imaginação e palavra como resultados do ato da luz. Óphá é ação de ver e sua sede, a vista, mas é também espetáculo, aparição, sonho, visão e visão mística; e, conjugado no perfeito, é aspecto exterior, aparência do visto. Opheio é desejar ver, ser curioso e ávido — a curiosidade, dirá santo Agostinho, é afecção primordial dos olhos, que se dizem to ósse, sede do ato visual. Oráo é ver com olhos atentos e fixos, examinar, ver com o espírito, e oratistés é o visionário, donde, para nós, oráculo. Ósse phaeiná, olhos brilhantes dizia Homero, de quem neles fixa algo — osséia — e de quem , vendo em espírito, adivinha, prevê e imagina, ossomai. Adivinhar e cair na superstição se dizem osseoumai, que é também consultar presságios e ameaçar com os olhos. Da mesma raiz indo-européia — oh — no latim, virão occulurn (olho), occultus (oculto), occultati o (ocultamento). E de kelo virá celo (esconder), por isso dizemos cella (esconderijo, cela, cova) e clandestinus.

É esse largo parentesco que a pequena frase de Aristóteles, no Sobre a Alma, resume:

É porque a vista (óphis) é o sentido mais desenvolvido, a palavra imaginação (phantásia) tira seu nome da luz (pháos), porque sem a luz (photos) é impossível que seja visto (esti ideín).

Se pháos é a fonte luminosa, da raiz leuk virá lúknos (a lâmpada, o iluminado). Leukós é o brilhante, o iluminado, esplendoroso, claro, branco, puro e límpido; leukaíno, embranquecer, clarear, tornar brilhante; lukonakai a , a iluminação, e leukophaés , o esplendor da brancura. No latim, lux, a fonte luminosa (correspondente a pháos) e lumen, o iluminado (correspondente a leukós e lúknos). O lume recebido da luz para que vejamos faz com que os olhos sejam ditos, agora, lumina.

Mas, o que é ver? Por que Aristóteles escreve esti ideín? Da raiz indo-européia weid, ver é olhar para tomar conhecimento e para ter conhecimento. Esse laço entre ver e conhecer, de um olhar que se tornou cognoscente e não apenas espectador desatento, é o que o verbo grego eidô exprime. Eidô — ver, observar, examinar, fazer ver, instruir, instruir-se, informar, informar-se, conhecer, saber — e, no latim, da mesma raiz, video — ver, olhar, perceber — e viso — visar, ir olhar, ir ver, examinar, observar. Donde, visita (ver frequentemente) que, na versão latina da Bíblia, significa manifestação de Deus ao homem para exame rigoroso ou benevolente de seus atos. “Estar sob a visita de Deus” é ter-Lhe os olhos sobre nós, ser por Ele visitado. Ele que, em sua onisciência, tem o poder para dizer: provideo (ver de antemão) e por isso éprovidentia que nos protege contra um outro olhar, o improváus da caprichosa Fortuna. Se aceitamos Sua visita, também há de proteger-nos do mau olhado, invideo (invejar).

Aquele que diz: eidô (eu vejo), o que vê? Vê e sabe o eidós: forma das coisas exteriores e das coisas interiores, forma própria de uma coisa (o que ela é em si mesma, essência), a ideia. Quem vê o eidós, conhece e sabe a ideia, tem conhecimento — eidotés — e por isso é sábio vidente — eidulis. Quem viu, pode querer fabricar substitutos do visto e, na qualidade de eidolopóios, pode fabricar as formas aparentes das coisas — eidolon (ídolo, simulacro, imagem, retrato). No entanto, se o ver fabricador buscar a semelhança no ato mesmo de ver, estará na eikasia (representação, crença, conjetura, comparação) e tentará fabricar eikon (ícone, pintura, escultura, imagem, imagem refletida no espelho) a partir do eikô (ser semelhante, assemelhar-se, verossímil, provável). Eis por que Platão, que partira à procura do eidós, cuidará para separá-lo do eidolon e do eikon.  

Quem olha, olha de algum lugar. Skópos se diz daquele que observa do alto e de longe, vigilante, protetor, informante e mensageiro. Pratica o skopeuô (observar de longe e do alto, espiar, vigiar, espionar) alojando-se no skopé, o observatório (como o cientista soberano e também o policial, no panopticon de Bentham). Por isso, sua prática não é apenas vigiar e espiar, mas significa, ainda, refletir, ponderar, considerar e julgar, tornando-se skopeutês: aquele que observa, vigia, protege, reflete e julga, situando-se no alto. Donde, altura e eminência desse olhar que se diz skopiá. Dessa raiz indo-européia — spek , em latim, se dirá specio (ver, olhar, observar, perceber), specto (ver, olhar, examinar, ver com reflexão, provar, ajuizar, esperar, acautelar-se). Olhar reflexivo e sábio que vê a species (forma das coisas exteriores, figura, aparência, forma e figura formadas pelo intelecto, esplendor, formosura, semelhança, correspondendo ao grego eidós, a ideia). Eis por que, falando latim, a filosofia expunha a ideia com os nomes de espécie sensível — dada aos olhos do corpo — e espécie inteligível — dada ao olho do espírito. Ideia e espécie: uma só e mesma palavra usada para o corpo e a alma por que são capazes de ver e, portanto, de saber.

A gama de sentidos de specio-specto é de amplidão inesperada: spectabilis é o visível: specimen, a prova, o indício, o argumento e o exemplo. Speculum (espelho) é parente de spetaculum (a festa pública) que se oferece ao spectator (o que vê, espectador), que não apenas se vê no espelho e vê o espetáculo, mas ainda é capaz de voltar-se para o speculandus (a especular, a investigar, a examinar, a vigiar, a espiar) e de ficar em speculatio (sentinela, vigia, estar de observação, explorar, espreitar, pensar vendo) por que exerce a spectio (a vista, a inspeção pelos olhos, a leitura dos agouros) e é capaz de discernir entre as species e o spectrum (espectro, fantasma, aparição, visão irreal). Poderíamos ignorar o vínculo constitutivo, posto por Hegel, entre especulação e fenomenologia? Aquele que olha, se estiver de atalaia no alto, se diz que está na specula; se ali estiver explorando ou espionando, se diz speculator. E se quem olha estiver expectante — spectans — o olha com e por esperança — spes. Se teme o que espera, mas o olha com desprezo e desdém, diz despido (eu desprezo), porém se olhar para o alto com veneração, dirá suspicio, ainda que, se voltar para baixo os olhos, dirá: eu supeito. Se o profeta Isaías, falando no latim da Vulgata, mencionava seus olhos extenuados a olhar para o alto, suspicientes, é porque, dirigindo-se ao tempo, olha para frente — prospido, — para trás — respcio — e para todos os lados — circunspicio — à procura do bom auspicium. Mas olha também para dentro de si e para dentro das coisas — inspicio —, inspeção própria do profeta que, outrora, chamava-se spa.

De skópos também se passa a skía, sombra de alguma coisa ou de alguém, sombra dos mortos, sombra da fumaça, sombra esfumada do desenho, claro-escuro, aparência e ilusão e quem as faz deliberadamente chama-se skiagráphos: pintor. Porque parente da sombra, skías nos remete àquele que fica na sombra e se esconde e, se seu esconderijo for dito em latim, será specus (caverna), spelunca (grota, cova), cella (cela, cova, caverna). Na caverna reina a sombra, skía, de que se aproveita o pintor, skiagráphos, quando traça figuras, sombras do original, e também o eidolopóios, fabricante de simulacros como o poeta. Dela nos convida a sair Platão para que, abandonando cópias e simulacros, vejamos a luminosidade radiante do eidós e, na boa república, onde o filósofo será rei, não haverá poetas nem pintores.

Há variação no olhar.

De. mirus (espantoso, estranho, maravilhoso) vem mirari (espantar-se, mirar com espanto, mirar, olhar) e admirari (mirar com espanto respeitoso, com veneração). Aqui, paralisado pelo espanto, o olhar vê milagre, miraculum, e maravilhas prodigiosas, mira-bilia. Por seu próprio nome, o milagre pertence ao campo do olhar e está destinado à visão. Não o disse Leonardo?

Ó maravilha! Ó estupenda necessidade! Forças com tua lei todos os efeitos, por via brevíssima, a participar de suas causas, estes são os milagres […].[6]

Todavia, aos olhos maravilhados que mergulham no milagre contrapõe-se um outro olhar, atento, avesso à admiração e ao espanto. São os olhos para os quais ver é intuir: tuere (ter constante sob a vista, proteger, guardar, defender), tueor (manter sob a vista, examinar, observar, dirigir, comandar, governar, administrar), intueor (olhar atentamente, dominar pelo olhar, meditar), intuitus (olhar com respeito e consideração, olhar com propósito e desígnio). Quem não reconhecerá na meditatio de Descartes a busca desse olhar atento que domina, governa, dirige e medita? Desse tueor, desse intuitus mentis, intuição intelectual contrária à passividade do olhar sensível e que trabalha para corrigi-lo, livrando-o de si mesmo?

O olhar na e da intuição não é simples video, nem simplesmente specio-specto. Sua referência é à visão numa outra família, a de perspectio: conhecimento cabal, pleno, completo, cujo ato se diz perspecto, olhar por e para todas as partes e em todas as direções com atenção. E seu resultado se diz perspicio: ver e conhecer perfeitamente, aperceber-se, ver através, atravessar com a vista, perscrutar. Esse olhar que se apercebe, atento, penetrante, atravessador e reflexivo é o de um olho perspicax (perspicaz, engenhoso) que vê perspicue (claramente, manifestamente, evidentemente) porque dotado de uma qualidade fundamental que reencontra no visível e que, dali, por mutação, transmite ao espírito e ao intelecto: a perspicuitas , clareza e distinção do transparente. Esse olhar é o único capaz de vidência perfeita, a evidentia, posta como marca distintiva do verdadeiro. Será, então, surpreendente que Descartes abra a Dióptrica falando em lunetas e telescópios que, em latim, Galileu batizara com o nome de perspicillum?

Se skópos nos ensina porque, afinal, desatentamente falamos em “ponto de vista”, aceitando que ideias e opiniões dependem do lugar de onde vemos o real, também nos ensina que se trata da visão feita nas alturas, que abarca até os confins do horizonte e o todo do mundo circundante. Sua ciência chama-se, no grego, optikê e, no latim, perspectiva. Se perspectiva nos ensina o motivo que nos leva, cotidianamente, a designar o próprio ponto de vista — o nosso e o alheio — também nos ensina onde se efetua aquela visão altiva da skopiá: o olho do observador. Não é casual que perspectiva abrigue dois sentidos, indicando o ver para frente e o ver em profundidade, visão conquistada pelo artista, graças à geometria, fazendo da perspectiva ciência geométrica da visão — dióptrica — e ciência da representação dos objetos — óptica. Com ela, o olho do observador se faz medida do visível e prepara, na filosofia, o advento de um sujeito do conhecimento que se julga capaz de evidência e de intuição porque, do lugar onde se encontra, tudo vê e vê completamente, tornando-se, no dizer de Merleau-Ponty, kósmotheóros, para quem a theoria é o “berço do mundo”, este começando com ela.[7]

***

Dos cinco sentidos, somente a audição (referida à linguagem) rivaliza com                                                                                                                                                                                                                                                              a visão no léxico do conhecimento. Os demais, ou estão ausentes ou operam como metáforas da visão. Falamos em captar uma ideia ou em agarrá-la. Dizemos que um conceito contém ou envolve certas determinações e que as compreendemos (as seguramos juntas) ou as explicamos (as desdobramos uma a uma). Falamos em beber ideias ou opiniões nesta ou naquela fonte, em tocar neste ou naquele ponto. Em português, dizemos que algo “tem (ou não tem) cheiro de verdade” e, para manifestar suspeita, que uma ideia “não cheira bem”. Falamos na posição de conceitos (não é isto a palavra “tese”?), em movimento de uma ideia ou das ideias, passos de um raciocínio, choque de opiniões e no sabor amargo da derrota. Entretanto, essas expressões tácteis, olfativas, gustativas e cinestésicas cumprem um papel preciso, qual seja, trazer o invisível — pensamentos — ao visível.

É sugestivo que o tacto tenha sido sempre o ponto de partida das análises da visão — Platão, Plotino, Aristóteles, Descartes, Berkeley partiram do confronto entre ambos para chegar à sua diferença. No entanto, na linguagem intelectual da filosofia, é o contrário que presenciamos, isto é, vemos operar-se um deslizamento do táctil e do cinestésico para o visual. Intentio, a intencionalidade de que falava são Tomás para referir-se ao ato do conhecimento e que será retomada pela fenomenologia de Husserl para descrever a consciência como transcendência (toda consciência é consciência de; e a fenomenologia, descrição do que aparece à consciência, do aparecer da consciência a si mesma e do que é constituído por ela), origina-se em tendere (tender, estender), intendere (dirigir-se para, ter a intenção de, entender) e tenere (ter, manter, segurar, agarrar, manter-se numa posição). Ora, ao ser verbalizada pela filosofia, a intencionalidade ou intentio desliza de segurar, tender, e manter para visar, algo, rumando, assim, para visare. A fenomenologia fala em visada intencional, num visar que é mentar-significar, colocando a. intentio sob os auspícios do olhar (da consciência) cujo momento mais alto é a Wesenschau, a visão intelectual da essência.

De onde vem esse privilégio do olhar?

Na abertura da Metafísica, Aristóteles escreve:

Por natureza, todos os homens desejam conhecer. Prova disso é o prazer causado pelas sensações, pois mesmo fora de toda utilidade, nos agradam por si mesmas e, acima de todas, as sensações visuais. Com efeito, não só para agir, mas ainda quando não nos propomos a nenhuma ação, preferimos a vista a todo o resto. A causa disto é que a vista é, de todos os nossos sentidos, aquele que nos faz adquirir mais conhecimentos e o que nos faz descobrir mais diferenças .[8]

Se o tacto, lemos no Sobre a Alma e no Sobre a Sensação, por estar espalhado por todo o corpo, tem maior aptidão para adquirir conhecimentos, entretanto, a vista é o instrumento mais apto para a investigação e por isso é o sentido que maior prazer nos causa, pois, por natureza, desejamos conhecer. A aptidão da vista para o discernimento — é o que nos faz descobrir mais diferenças — a coloca como o primeiro sentido de que nos valemos para o conhecimento e como o mais poderoso porque alcança as coisas celestes e terrestres, distingue movimentos, ações e figuras das coisas, e o faz com maior rapidez do que qualquer dos outros sentidos. É ela que imprime mais fortemente na imaginação e na memória as coisas percebidas, permitindo evocá-las com maior fidelidade e facilidade.

É a aptidão visual para o discernimento que leva Horácio, na Arte Poética, a afirmar que “a mente é movida mais lentamente pelo ouvido do que pelo olho, que faz as coisas parecerem mais claras”. E é a aptidão visual para sustentar a evocação que leva Quintiliano, nas Instituições Oratórias, a recomendar ao retórico ser “conveniente fingir que temos diante dos olhos as imagens das coisas, das pessoas e das palavras”.

No entanto, é justamente o que Aristóteles prezava no olhar — causa de prazer — o que, sob o nome de vã curiosidade, santo Agostinho irá condenar, ao expor o privilégio da vista sobre os demais sentidos, ainda que, ao fazê-lo, reafirme a tese aristotélica da maior aptidão dos olhos para o conhecimento:

(…) um desejo de conhecer tudo, por meio da carne. Este desejo curioso e vão disfarça-se sob nome de conhecimento e ciência. Como nasce da paixão de conhecer tudo, é chamado nas divinas Escrituras, de concupiscência dos olhos, por serem estes os sentidos mais aptos para o conhecimento. É aos olhos que propriamente pertence o ver. Empregamos, contudo, esse termo mesmo em relação aos outros sentidos, quando os usamos para obter qualquer conhecimento. Assim, não dizemos, “ouve como brilha”, “cheira como resplandece”, “saboreia como reluz”, “apalpa como cintila”. Mas já podemos dizer que todas essas coisas se vêem. Por isso não só dizemos “vê como isto brilha” — pois só os olhos o podem sentir—, mas também “vê como ressoa, vê como cheira, vê como sabe bem, vê como é duro”. É por isso que se chama concupiscência dos olhos à total experiência que nos vem pelos sentidos. Apesar de o ofício da vista pertencer primariamente aos olhos, contudo os restantes sentidos usurpam-no por analogia, quando procuram um conhecimento qualquer.[9]

Se o olhar usurpa e é usurpado por todos os outros sentidos, no conhecimento sensível, não menos espantoso é que o léxico da visão domine o do conhecimento intelectual:

É porque meu pai achou que eu necessitava clarear a vista um pouquinho, não podia ser criado como cego. Porque, eu acredito, quem não sabe, sabe mesmo um pouquinho só, é considerado cego. No meu modo de pensar, é. Desde meu filho pequeninho que eu comecei dar a ele um caderninho, para ver se ele não ficava cego. Porque pessoa que não sabe ler nem escrever, mesmo um pouquinho, é considerado cego.[10]

Esplendorosa concupiscência. “No meu modo de pensar”, é cego quem não pode pensar — saber, “mesmo um pouquinho só”. Conhecer é clarear a vista, como se o saber permitisse, enfim, olhar. Clarear a vista é ensiná-la a ver os signos da escrita e da leitura, “para ver se ele não ficava cego”. Ver é pensar pela mediação da linguagem. Aqui, olhos e palavra não são rivais.

O mais significativo nos pares eidô-eidós, óphi s-phaós, phaino-phainómenon, specio-species, specto-speculatio, tueor-intuitus é que já não são metáforas da visão como o eram, antes, as expressões oferecidas por santo Agostinho para os demais sentidos. Agora, esses pares definem o próprio ato do conhecer (intelectual) a partir da visão (sensível). Pensar parece nascer do olhar, será como um olhar ou um modo peculiar de olhar (com o olho do espírito). O laço interno entre ver e conhecer intelectualmente transparece no surgimento da expressão lumen naturale com que o cristianismo filosófico designa a razão humana: Deus é lux — “luz dos homens, luz que brilha nas trevas […] luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo”, escreveu o evangelista João — atividade pura e fonte viva de toda luminosidade; e o espírito humano é lumen, receptáculo da luz, o iluminado pela luz da verdade. E lumina, vimos há pouco, são os olhos.

Desde a interpretação de Platão por Plotino e com os neoplatônicos herméticos e cabalistas da Renascença, a luz e o olhar não têm apenas significado gnoseológico, mas ainda sentido ontológico, pois a luz é o princípio primordial, o mundo, obra da luz, e a verdade, visão de Deus. Nicolau de Cusa dirá que Deus, ato de luz pura e criadora, é vis entificativa (força entificadora), enquanto o homem, o iluminado, passividade ou paixão, é vis assimilativa (força assimiladora). Deus é Theoreion, olhar eterno que contempla tudo porque tudo cria, ver sendo, para Ele, criar do nada; enquanto o homem é Theoreticon, olho receptivo que contempla a obra da luz. Se o homem vê, é porque Deus, olhando-o, o faz vir ao ser para que possa ver: “em me vendo, me tomais capaz de ver e de Voz ver […] ninguém Voz pode ver se não lhe dais o poder de ver, e esse poder nos é dado porque somos vistos por Vós […} Sou uma sombra viva e Vós sois a vida, luz e verdade”. Conhecer é visão em Deus da visão de Deus.

Como e por que se dá a passagem de todas as percepções à visão? Como e por que se dá a passagem do olhar ao saber intelectual, mantendo-se para este as categorias daquele?

Percepção vem de percipio que se origina em capio — agarrar, prender, tomar com ou nas mãos, empreender, receber, suportar. Parece, assim, enraizar-se no tacto e no movimento, não sendo casual que as teorias do conhecimento sempre a considerassem uma ação-paixão por contato: os sentidos precisam ser tocados (pela luz, pelo som, pelo odor, pelo sabor) para sentir. Também não por acaso as teorias clássicas e modernas da visão tomavam como ponto de partida não apenas o tacto, mas ainda um toque peculiar, o bastão cego, mesmo que alguns teóricos se valessem dessa comparação para afastá-la e definir a visão em sua diferença própria. Todavia, como explicar que o olhar, e não o tacto, pudesse absorver todos os sentidos, o todo da percepção? Por que santo Agostinho, na sequência de Aristóteles, teria dito serem os olhos “os sentidos mais aptos para o conhecimento”? Por que Bruno e Leonardo dirão que “a vista é o mais espiritual dos sentidos”? Por que Berkeley, demorando-se no enigma da percepção da distância — pois não a vemos e, sem ela, não vemos —, começa pelo tacto, distingue o táctil e o visual e conclui que a visão nos ensina a inexistência da matéria como substância em si, pois, quando analisada pelo entendimento, revela-se como operação subjetiva que nos ensina a existência da pura espiritualidade?

Philonous: De bom grado digo-te para reteres a palavra matéria e aplicá-la aos objetos dos sentidos, se o quiseres, desde que não lhes atribua qualquer subsistência distinta do serem percebidos. Hylas: [.. .] creio que não me negarás o privilégio de usar a palavra matéria como quiser, acrescentando-a à coleção de qualidades que subsistem apenas na mente. De bom grado aceito não haver, em senso estrito, nenhuma substância senão o Espírito […] Por muito tempo desconfiei dos meus sentidos, pensava que via coisas numa luz mortiça e através de falsas lentes. Agora, estão removidas as lentes e uma nova luz brilha em meu entendimento. Estou claramente convencido de que vejo as coisas em suas formas nativas e não mais me atormento sobre suas naturezas desconhecidas ou existência absoluta.[11]

Se o olhar usurpa os demais sentidos fazendo-se cânone de todas as percepções é por que, como dizia Merleau-Ponty, ver é ter à distância. O olhar apalpa as coisas, repousa sobre elas, viaja no meio delas, mas delas não se apropria. “Resume” e ultrapassa os outros sentidos porque os realiza naquilo que lhes é vedado pela finitude do corpo, a saída de si, sem precisar de mediação alguma, e a volta a si, sem sofrer qualquer alteração material.

É essa imaterialidade da operação visual que a torna tão propícia ao espírito. Ela prepara os olhos para a transferência ao intelecto, começando por usurpá-lo — o pensamento fala com a linguagem do olhar — e terminando por serem usurpados por ele — o espírito dirá que os olhos não sabem ver.

* * *

Desde seu nascimento, no afã de decifrar o enigma do olhar, a filosofia cindiu o que nossa atitude fideísta mantém unido: a crença na simultânea passividade e atividade da visão. Doravante, ou a visão depende das coisas (que são causas ativas do ver), ou depende de nossos olhos (que fazem as coisas serem vistas).

A tradição nascida com Demócrito, Epicuro e Lucrécio decide-se pela primeira alternativa, tornando-se conhecida, mais tarde, como teoria perceptiva, pois fiel ao sentido latino de percipio. Para Demócrito, os olhos, feitos de átomos d’água, são espelhos onde vêm refletir-se átomos de fogo (fonte da luz) que se desprendem das coisas luminosas ou iluminadas, espalhando-se pelo ar e alcançando os olhos, onde se espelham. Para Epicuro e Lucrécio, os olhos são jaulas que capturam e aprisionam os pequeninos simulacros voejantes — os eidola — enviados pelas coisas e delas conservando a aparência. Povoando todo o espaço imaterial, ou o vácuo, deslocando-se em todas as direções, pequeninas imagens entrecruzam-se, irradiam-se continuamente das coisas que as soltam como películas que delas mantêm a forma e a figura por breve tempo. Fantasmas transparentes, alcançam os olhos e são por eles capturados na visão:

Digo, pois, que são emitidas da superfície das coisas, efígies e representações dessas mesmas coisas que voejam pelos ares. Dever-se-ia dar lhes o nome de películas ou cascas, pois têm a forma e o aspecto do corpo de que são imagens e do qual emanam para errarem pelo espaço […] Existem, portanto, imagens fiéis das coisas que voejam de um lado para outro, formadas que são de sutil material e que não podem ser tomadas em separado.[12]

Em contrapartida, a tradição nascida com Empédocles, os pitagóricos, platônicos e neoplatônicos, que receberia o nome de teoria emissiva, decide-se pela segunda alternativa. Os olhos, parentes do fogo e da luz, são faróis emissores de raios luminosos que, deslocando-se no espaço, chocam-se com as coisas materiais e esse encontro é responsável pela visão. Os olhos viajam pelo sensível tocando as coisas com sua luminosidade para fazê-las visíveis ou para reconhecê-las como parentes suas, porque também luminosas como eles.

Um fragmento de Empédocles, recolhido por Aristóteles, diz:

Assim como alguém que se proponha a sair numa noite tempestuosa prepara uma lanterna, flama de fogo brilhando em meio à tempestade, ajustando à sua volta placas transparentes para protegê-la do vento e para cortar as rajadas da ventania, enquanto, através delas, brilha com seus raios infatigáveis o fogo em suas partes mais sutis, assim também, o Amor captou o fogo, embebeu a pupila arredondada, envolvida de membranas delicadas e delicados tecidos que fendem e atravessam o dilúvio circundante, deixando passar o fogo porque este é mais sutil.[13]

E, por sua vez, no Timeu, Platão escreve:

Entre todos os instrumentos [que servem para a alma prever] os deuses modelaram primeiro os olhos portadores de luz e os implantaram no rosto pela seguinte razão. Um fogo tendo a propriedade de não queimar e sim de brilhar com doce luz, decidiram que seria o corpo próprio de cada dia. Porque o puro fogo dentro de nós é parente daquele, fizeram com que escoasse através dos olhos, fabricando o globo ocular, especialmente a pupila, úmido e de textura cerrada, de modo a não deixar passar nada grosseiro, mas apenas o fogo que filtra por aí por si mesmo.[14]

E Plotino, retomando o Timeu:

Quando o deus, ou os deuses, enviou as almas para o devir, implantou no rosto os olhos portadores de luz.[15]

A medicina antiga dizia que “pensar é o passeio da alma” e esse impulso ou essa aptidão para sair de si anuncia o parentesco que, desde muito cedo, criou-se entre o olhar e o pensar, preparando a afirmação renascentista dos olhos como “o mais espiritual dos sentidos” e consumando a passagem ao olho do espírito.

Espelhos, jaulas ou faróis, os olhos estão no limite entre a materialidade e a espiritualidade. São enigmática materialidade “espiritualizada”. Não surpreende que materialistas, como Lucrécio, falem em fantasmas e películas voejantes feitas de matéria sutil correndo pelo vácuo; ou que Berkeley procure a visão pelo invisível — a distância — nem que Descartes elabore a geometria do visível através do invisível — a profundidade.

Aristóteles, conciliando teoria perceptiva e emissiva, afirmava, no Sobre a Alma, que o sentido da vista é potencialidade do olho para ver e que precisa ser atualizada pela atividade que permite ver, a luz, agindo sobre o meio que faz ver, o translúcido. “O objeto da visão é o visível e o visível é a superfície colorida e também um certo tipo de coisa” que é o translúcido. O translúcido *água, ar, éter — é a propriedade do que se torna visível pela ação da luz e também a do que se torna vidente sob a atualização de sua potencialidade para ver, os olhos, que, diz Aristóteles, como Demócrito, são feitos d’água, embora não seja isto a causa de verem e sim o serem transparentes. Assim não fosse, indaga ele, no Da Sensação, se os olhos fossem meros espelhos, como explicar que, entre os demais espelhos, “sejam os únicos que vêem?”. Do mesmo modo, contra os olhos faróis, indaga: se a visão resultasse da luz emitida pelos olhos, como explicar que “não tenham poder para ver na escuridão?”. Vemos a materialidade do opaco — a cor — porque só a vemos pela “imaterialidade” do translúcido, onde atua a luz, pois “o translúcido é visível, mas não em si ou absolutamente, porém graças à cor”. E a luz, prossegue Aristóteles, não é corpo nem qualquer coisa corporal, “é a cor do translúcido quando este existe em ato”. A luz é atividade imaterial corporificada no translúcido pela cor. Incorporeidade com que concorda Plotino, cuja Eneáda IV, 5 é a refutação da teoria aristotélica da visão, ainda muito “materialista”. A luz, diz Plotino, não carece de meios, sequer do éter ou diáfano, nem dos meios translúcidos para manifestar-se ou atuar, pois ‘a luz que emana dos corpos é ato puro do corpo luminoso que se manifesta no exterior” — phaós, phaino, phainómenon.

O léxico do olhar é todo tecido de palavras imaterializantes. Essa imaterialidade, a secreta simpatia entre o olho e a luz, sua participação no invisível — distância, profundidade, translúcido, matéria sutil voejante, fantasma — também se exprimia, particularmente para a Renascença, na espantosa velocidade do olhar. Assim, enquanto o aristotélico Suarez escrevia:

a vista abarca velozmente as coisas mais distantes porque realiza sua operação do modo mais puro e imaterial e sem mudança material;[16]

por seu turno, os neoplatônicos herméticos, viam na velocidade a marca do poder rigorosamente mágico do olhar, pois dele trata o Trismegisto no Corpus Hermeticus. Poder para alargar-se até aos confins, viajar num átimo das alturas estelares aos profundos infernais da matéria, estendendo tênue passarela entre o corpo e a alma, ligados pela alma do mundo e pelo espírito do mundo. Olhar (h)eróico: erótico e conquistador, entregue ao abraço da beleza do universo:

Pois todas as coisas, seja o que for que representem ou signifiquem, são chamadas e levada pelo sentido da visão à condição de espécies inteligíveis e, por último, todos os gêneros e todas as espécies sensíveis são contraídos no visível e nas coisas visíveis, isto é, nas mais vigorosas e eficazes espécies, pois a vista é o mais espiritual de todos os sentidos […] capta as coisas longínquas com extraordinária rapidez e por isso as coisas apreendidads por ela são convocadas mais facilmente por nós e mais eficazmente as retemos na alma.[17]

A espiritualidade da visão, escrita e leitura do mundo de quem cuida “para ver se não fica cego”, é descoberta (renascentista) não só do olho (h)eróico-erótico, mas também do olhar rigorosamente poético, criador de todas as artes, responsável pela passagem das “artes mecânicas” à dignidade de “artes liberais”. Inventor e conquistador, o olho:

é senhor da astronomia, autor da cosmografia, conselheiro e corretor de todas as artes humanas […] É o príncipe das matemáticas; suas disciplinas são intimamente certas; determinou as altitudes e dimensões das estrelas; descobriu os elementos e seus níveis; permitiu o anúncio de acontecimentos futuros, graças ao curso dos astros; engendrou a arquitetura, a perspectiva, a divina pintura […] O engenho humano lhe deve a descoberta do fogo, que oferece ao olhar o que as trevas lhe haviam roubado. Ajuntou à natureza o ornamento da agricultura e o prazer dos jardins […]

O que o olho não faz? Desloca homens.de leste para oeste, inventou a navegação e ultrapassa a natureza cujas obras são finitas, enquanto aquelas que o olho comanda às mãos são infinitas, como o demonstra a pintura.[18]

Por que, então, haveríamos de nos surpreender com a presença do léxico do olhar no léxico da filosofia? Não nasceu ela sob os auspícios de Apolo, deus da luz e da clarividência, dito o Resplandecente? Espantoso seria se a filosofia não vivesse obcecada pela luz e pelo olhar.

Por que nos espantariam a fuga platônica da caverna, a imersão plotiniana na luminosidade do bem, o lumen naturale dos medievais e dos modernos, a intuição soberana de Descartes, que Leibniz conceba o mundo como “processo de esclarecimento” ou a definição da verdade por Espinosa: sane lux seipsam et tenebras manifestat, sic verum norma sui et falsi est, “assim como a luz manifesta-se a si mesma e às trevas, também o verdadeiro é norma de si e do falso”?

Por que nos maravilharia a Renascença conceber-se como luz e na luz — o mundo, “lâmpada de alabastro” que irradia internamente a luz invisível, splendor et candor — designando, pela primeira vez, a Idade Média como “idade da treva”? Não são os humanistas os que recusam ver o príncipe, numa república, apresentar-se na tenebrosa figura do rei medieval, isto é, como Sol da Justiça? Não é o mito solar que, no De Monarchia, mantém Dante suspenso no intervalo de duas eras, enquanto renascentista falando no poder como lâmpada presa ao firmamento, mas enquanto medieval distinguindo o poder papal (solar) do imperial (lunar), segundo o ter e o receber a luz? E não é a luz, agora copernicana e hermética, que sustenta a utopia de Campanella, A Cidade do Sol?

Não é também pela “mutação no olhar” que Foucault narra o nascimento da clínica? Desde Paracelso, a medicina nova pedia um novo olhar: romper com a tradição galênica significava ultrapassar a visão dos sintomas e fazer-se médico era fazer-se mago e filósofo do invisível.

Se o médico entende exatamente as coisas, vê e reconhece todas as doenças no macrocosmo exterior ao homem e, se tiver uma ideia clara do homem e de sua natureza, então, e somente então, será médico […] A filosofia ensina como o sol e a lua aparecem e estão intangivelmente impressos no homem como o estão no firmamento, um sendo a imagem especular do outro. Assim como um homem pode ver-se exatamente refletido num espelho, assim também o médico deve ter exato conhecimento do homem para nele ver o espelho dos quatro elementos, nos quais o microcosmo se revela a si mesmo. O médico deve falar do que é invisível. O que é visível, pertence ao seu conhecimento, como qualquer outro, que não seja médico, reconhece a doença pelo sintoma. Mas isto está longe de fazê-lo médico: torna-se médico quando, e somente quando, souber o invisível e imaterial, eficazes.[19]

É o retorno do olhar ao visível que marca o advento da clínica, desligando a medicina da magia naturalis de Paracelso e da geometria cartesiana, para a qual ver era ” tornar a percepção transparente pára o exercício do espírito”. Agora,

As formas da racionalidade médica mergulham na espessura maravilhosa da percepção […] O espaço da experiência parece identificado com o domínio do olhar atento, dessa vigilância empírica aberta à evidência dos conteúdos visíveis. O olho se torna depositário e fonte de clareza; tem o poder de fazer vir à luz uma verdade que só recebe na medida em que lhe deu a luz […] Toda a luz passou para o lado tênue do archote do olho que gira, agora, em torno dos volumes e diz, no caminho, o lugar e a forma deles […] O olhar […] abriu a possibilidade de uma experiência clínica.[20]

Apagando, primeiro, a magia do microcosmo espelho do macrocosmo, e, depois, a geometria da luz, para mergulhar na “espessura insistente, intransponível do objeto”, a clínica realiza a flexão que “marca a passagem das Luzes ao século XIX. Agora, se o otimismo clássico pode perder-se nas brumas do olhar romântico, também se pode recuperá-lo com o positivismo nascente e sua renascida fé na observação.

Por que nos surprenderíamos, então, que se mantivesse intacto o prestígio da luz e do olhar que sustentaram o que, referindo-se a 1789, Starobinski chama de “mito solar da revolução”, a Revolução Francesa como obra das luzes, aurora da nova humanidade e exposição da razão na história, vitória contra a treva do medo e da superstição? Luzes cujo esplendor o século da Ilustração encontrou na Flauta Mágica, de Mozart-Sarastro, e em O que são as Luzes, de Kant. Luzes que permitem ao aufklärer recusar o intuitus mentis cartesiano, por dogmático, e o delírio dos illuminati, por irracional, liberando a razão da metafísica e da theologia teuthonica de um Swedenborg ou de um Jacob Boehme, para quem a criação do mundo é revelação do fundo obscuro e atormentado rumando para a luminosidade da Divina Sabedoria e para o juízo do Olho de Deus que nos visita em sua cólera sombria. Doravante, mundo e razão caminham juntos, efetuando as Luzes, perfectibilidade que, desde o início do século XVII, se anunciava com Francis Bacon, paladino do aumento das ciências e das artes, que exigia do saber não começar pela “experiência frutífera” (aplicação prática dos conhecimentos), mas pela “experiência lucífera (saber do saber, conhecimento do poder de conhecer para exercer poder). Não dizia ele que alguém que começasse pela prática, seria como aquele que, devendo atravessar à noite espessa floresta, só se lembrasse de “acender o archote” depois de estar perdido?

Por que espantar-nos, afinal, com o privilégio do olhar? Não tem sido a história da filosofia o interminável debate entre o ser e o aparecer, o aparecer e o parecer, o parecer e o ser? Não é a teoria do conhecimento a longa Dialética do Esclarecimento?

Dialética sem reconciliação, pois a cisão que se anunciava com as teorias perceptiva e emissiva do olhar como diferença entre os olhos e as coisas não fez senão crescer em separações que palmilharam toda a história da filosofia: a do realismo — que crê na percepção como coincidência entre sujeito e coisa, tal como esta seria em si mesma — e do idealismo — que crê na percepção como síntese operada pelo sujeito que domina, organiza internamente e pensa a coisa, posta pelas operações subjetivas, a do empirismo — que procura explicar a percepção como síntese passiva das sensações causadas em nós pela coisa como mosaico de qualidades externas que estimulam os sentidos — e a do intelectualismo — que, pela reflexão, busca objetivar a sensação e fazê-la aparecer como matéria do conhecimento, disposta diante do intelecto que a analisa, percorre e organiza.

Em qualquer dos casos, passamos da fé perceptiva à atitude analítica que decompõe a visão em qualidades (das coisas) e sensações (dos olhos), desliga-as e desfaz as próprias coisas para que estas sejam refeitas na condição de causas ativas do que se passa nos olhos e no cérebro, ou na condição de aparências passivas, resultantes da síntese subjetiva e na qual o sujeito não são os olhos, mas o cérebro (na versão empirista) ou a consciência (na versão intelectualista). A atitude analítica, no desejo de explicar e compreender, quebra a promiscuidade ingênua entre os olhos e as coisas, recusa, escreveu Merleau-Ponty, que “a volubilidade seja uma propriedade essencial do olhar” e sobretudo destrói seu anonimato primordial.

Uma profunda mutação acontece quando passamos da experiência de ver — do olhar — à explicação racional dessa experiência — ao pensamento de ver —, quando passamos da percepção ao juízo. Passagem curiosa quando nos lembramos do nascimento da linguagem do conhecimento intelectual na do olhar e de como a visão servira de paradigma para o pensar. Este parece, agora, neutralizar tudo quanto, na visão, seria rebelde e irredutível à intelecção. Procedimento que consiste em fazer da própria visão um juízo que põe o visível e o vidente e que esclarece, afinal, por que a filosofia sempre teve tanto interesse pela ilusão. Esta seria aquilo que, na visão, resiste à razão — como o vemos no procedimento cartesiano das Meditações — ou como aquilo que, na visão, espera pelo esclarecimento espiritual — como acontece na Nova Teoria da Visão e nos Três Diálogos entre Hylas e Philonous, de Berkeley. Dessa mudança, operada na passagem da fé perceptiva à atitude analítica, excelente testemunho são os versos de La Fontaine: em Um Animal na Lua:

Pendant qu’un philosophe assure

Que toujours par leurs sens les hommes sont dupés

Un autre philosophe jure

Qu’ils ne nous ont jamais trompés.

Tous les deux ont raison: et la philosophie

Dit vrai, quand elle dit que les sens tromperont

Tant que sur leur rapport les hommes jugeront.

[…]

Mes yeux, moyennant ce secours [da razão]

Ne me trompent jamais en me mentant toujours*

 

(*) Enquanto um filósofo assegura/ que pelos sentidos os homens são sempre esbulhados/ um outro filósofo jura/ que nunca nos enganaram/ ambos têm razão, e a filosofia/ diz o verdadeiro quando diz que os sentidos enganarão! enquanto por eles os homens julgarem […] / meus olhos, graças a esse socorro [da razão]/ nunca me enganam, mentindo-me sempre.

***

Não há apenas cisão entre o olhar e o mundo e entre os olhos (do corpo) e o olho (do espírito). A filosofia nascente preparava também a cisão entre o olhar e a linguagem.

A rivalidade entre ambos pode conduzir à expulsão de um deles: as filosofias analíticas contemporâneas, o construtivismo da “ciência como linguagem bem feita”, a crítica da “filosofia da presença” são exemplares na expulsão do olhar; Descartes (e, com ele, todos os modernos), desejoso de romper com a tagarelice ignorante da dialética e com a ilusão passional da retórica, é exemplar na expusão da linguagem, a verdade sendo evidência alcançada no silêncio puro da intuição intelectual. É significativo, aliás, que Espinosa filólogo e gramático — colocasse no grau mais baixo do conhecimento o “conhecimento por ouvir dizer, por sinais e por escrita” e, no grau mais alto, a scientia intuitiva, vitória sobre as controvérsias entre falantes.

A cisão entre o olhar e a palavra anuncia-se desde a quebra na antiga concepção grega da verdade como Alétheia que, a partir do célebre ensaio de Heidegger sobre a paidéia platônica do olhar (o mito da caverna no diálogo A República como pedagogia do olhar que abandona as sombras dos eidola pela luz do eidós), foi traduzida como: “o não oculto”, a verdade como inesgotável desocultamento do ser, como manifestação, aparição, phainómenon.

Retomando as análises del P. Vernant sobre a memória e o tempo na Grécia Arcaica, M. Detienne, em Les Maitres de Vérité dans la Grèce Archaïque, relembra que a figura inspirada do poeta e do adivinho, do aedo e do oráculo, articula-se à figura do cego. É a cegueira que lhes confere o dom da vidência. Escreve Vernant :

Cegos para a luz, eles vêem o invisível. O deus que os inspira lhes descobre, numa espécie de revelação, as realidades que escapam ao olhar humano. Essa dupla visão refere-se particularmente às partes do tempo inacessíveis às criaturas mortais: o que aconteceu outrora e o que ainda não aconteceu […] Contrariamente ao adivinho, que deve, no mais das vezes, responder a preocupações concernentes ao porvir, a atividade do poeta se orienta quase exclusivamente para o passado, não o passado individual, mas o “tempo antigo” com suas qualidades próprias, a época heróica ou, para além dela, a idade primordial, o tempo original […] procura alcançar o fundo do ser, descobrir o original, a realidade primordial de onde saiu o cosmo e que permite compreender o devir no seu conjunto […] Mnemosyne (a musa Memória) canta uma história que é deciframento do invisível, geografia do sobrenatural.[21]

Evocar é viver; esquecer, morrer.

Desse contraponto entre vida e morte, parte Detienne na análise da Alétheia. Na origem, escreve ele, visão e palavra eram inseparáveis, pois Alétheia é palavra do visionário ou do oráculo, vindo a inscrever-se num quadro rigoroso de oposições fundamentais:

Lethé                                      Alétheia

noite                                       luz

silêncio                                   palavra de louvor

esquecimento                          memória

morte                                      imortalidade

A palavra visionária do poeta e, depois dele, a dos “mestres da verdade” conferem imortalidade através do louvor que glorifica e seu silêncio, lançando algo ou alguém no esquecimento, é morte. Alétheia é o verdadeiro não por demonstração, não por conformidade às coisas e aos fatos, não por adequação, mas por asserção e eficácia. A visão-palavra da Alétheia é afirmação eficaz porque mágica: faz ser o que é dito e põe no visível o que a palavra enuncia. Por isso, tirando do esquecimento, tira do oculto, recorda e manifesta, realiza e imortaliza o que é dito-visto. É palavra religiosa e palavra do poder, pois o visionário, falando, torna visível o invisível, fazendo-o ser.

Ora, ao lado dessa palavra mágico-poderosa, surge, na Grécia, uma outra, laica e igualitária: aquela compartilhada nas assembleias dos guerreiros e, depois, nas assembleias políticas. Essa palavra laica e compartilhada é o diálogo entre os iguais, diferindo da palavra mágico-religiosa porque qualquer um tem o direito de proferi-la e todos os iguais têm direito a ela. Sua eficácia não decorre de uma visão superior, mas de outra fonte, a persuasão. A filosofia nascente podia, então, percorrer duas vias, como de fato percorreu: a primeira, da Alétheia mágico-religiosa, foi escolhida por Pitágoras, Heráclito e Parmênides; a segunda, da palavra persuasiva, pelos sofistas. A primeira funda-se na visão silenciosa, da qual Parmênides de Eléia é exemplar; a segunda, na palavra como medida do homem, de que Protágoras de Abdera é o paradigma.

Na confluência da Alétheia mágico-religiosa e da Peithô retórica instalam-se Platão e Aristóteles. Eis por que, para o primeiro, a dialética será o instrumento primordial do conhecimento, mas este será visão intectual sob a luz do Bem. A dialética como diálogo é apaideia, a pedagogia para a conversão do olhar que deverá desprender-se do sensível (o corpo e as imagens das coisas) para alçar-se ao inteligível, na pura contemplação do eidós. Justamente porque a linguagem se faz condição do olhar espiritual, compreendemos por que, no diálogo Fedro, após a chegada à visão da ideia do belo pela alma purificada e capaz de memória, Platão narra o mito de Thot sobre o nascimento da escrita, suas relações com a fala, sua necessidade para o conhecimento e seus perigos, chamando-a de pharmakós, vocábulo que significa remédio, veneno e máscara (maquiagem).” Compreendemos também por que, no Timeu, ao examinar as verdadeiras causas pelas quais os deuses nos deram a vista e a audição, afirme que graças à primeira e somente a ela é possível “nosso discurso sobre o cosmo”, pois nada poderíamos dizer sobre ele se “não tivéssemos visto as estrelas, o sol e o firmamento”. Graças à visão, podemos conceber o tempo, pois com ela distinguimos dia e noite, meses e anos e, por essa distinção, a vista ajudou-nos a conceber o número. Com ela, foi dado aos mortais o precioso dom da filosofia. A audição também é dom dos deuses e, com ela, chegamos à música, ciência da harmonia. E é aqui, no reconhecimento da harmonia, que vemos passar a diferença platônica entre ver e ouvir:

A harmonia, cujos movimentos são parentes das revoluções da alma que se encontra dentro de nós, foi dada pelas Musas àquele que com elas se relaciona guiado pela inteligência e como aliada contra a discórdia interior, que revolve a alma, para trazê-la à ordem e colocá-la em consonância consigo mesma.[22]

Ver, lança-nos para fora. Ouvir, volta-nos para dentro. Porém, mais importante do que essa diferença é a afirmação platônica de que a verdadeira causa pela qual recebemos a vista e a audição é estarmos destinados ao conhecimento. Voltando-se para o interior, a audição nos faz começar ali onde todo saber deve começar, interpretação socrática do oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”.

Por sua vez, Aristóteles, que dissera ser a vista o sentido que mais nos agrada e o mais apto para o discernimento, que dedica quase todo o Sobre a Alma à visão e à teoria da luz, não só escreverá uma lógica, uma retórica e uma poética, distinguindo a palavra científico-filosófica da palavra retórico-dialética, mas ainda nos diz, no Sobre a Sensação:

Dos dois últimos sentidos mencionados [vista e audição] a vista, considerada como suplemento para as necessidades primeiras da vida e nos seus efeitos diretos, é o sentido superior. Mas para o desenvolvimento da inteligência e suas consequências indiretas, a audição tem precedência. A faculdade da vista, graças ao fato de que todos os corpos são coloridos, traz novidades de multidões de qualidades distintivas de todo tipo, motivo pelo qual é através desse sentido, especialmente, que percebemos os sensíveis comuns, isto é, figura, movimento, grandeza e número. Em contrapartida, a audição anuncia apenas as qualidades distintivas do som e, para alguns animais, também as da voz. Indiretamente, porém, é a audição que mais contribui para o crescimento da inteligência, pois o discurso racional é a causa da instrução porque esta é audível, mas não diretamente e sim indiretamente, pois é composta de palavras e cada palavra é um símbolo-pensamento. Consequentemente, das pessoas destituídas de nascença de um desses sentidos, o cego é mais inteligente do que o surdo-mudo.[23]

O desenvolvimento da inteligência se faz pela memória e pela experiência e ambas articulam-se à palavra porque esta pode ser transmitida e conservada, enquanto a visão é intransferível e efêmera, ainda que privilegiada para o momento da aquisição do conhecimento.

Ora, se a dessacralização da verdade, graças ao discurso liberado do olhar dos “mestres da verdade”, coloca o olhar sob o signo da individualidade irredutível ao conhecimento e se a suspensão do interdito aristotélico quanto a uma ciência do individual foi realizada com o nascimento da clínica e se, finalmente, a filosofia contemporânea, privilegiando a linguagem, parece liberar-nos da metafísica da presença, fundada na transparência do olhar interior, pelo qual a consciência se vê a si mesma e, nessa reflexão, se põe a si mesma, como explicar, então, o que nos diz Foucault, nas páginas de O Nascimento da Clínica:

[…] paira o mito de um puro Olhar que seria Linguagem pura: olho que falaria […] O olho que fala seria o servidor das coisas e o mestre da verdade. Compreende-se como, à volta desses temas, um certo esoterismo médico pode reconstruir-se após o sonho revolucionário de uma ciência e de uma prática absolutamente abertas: doravante, só se vê o visível porque se conhece a linguagem; as coisas são oferecidas apenas àquele que penetrou no mundo fechado das palavras e se tais palavras se comunicam com as coisas é porque lhes obedecem a gramática. Esse novo esoterismo é diverso daquele dos médicos de Molière que falavam o latim, pois, ali, se tratava de manter escondidos os segredos de uma corporação„ Agora, procura-se adquirir maestria operatória sobre as coisas por um justo uso sintático e pela difícil familiaridade semântica da linguagem. A descrição não pretende colocar o escondido ou o invisível ao alcance dos que não têm acesso a ele, mas fazer falar aquilo que todo mundo olha sem ver e fazê-lo falar apenas aos que estão iniciados à palavra.[24]

Como explicar a “recaída” da linguagem sob o poder sacralizado do olhar? Mais: como explicar que o olhar profano, liberado pela clínica, fosse subjugado pela palavra de novos “mestres da verdade”? Como explicar, afinal, esse paradoxal retorno a Heráclito, o Obscuro, que dissera:

É sábio escutar não a mim, mas ao verbo (lógos) que em mim fala […] os olhos e os ouvidos são maus testemunhos para os- homens, se tiverem uma alma que não lhes compreenda a linguagem.[25]

É a Platão, e sobretudo ao Platão que chega à Renascença por intermédio da interpretação de Plotino, que devemos retornar, se quiseremos obter alguma resposta a essas indagações.

* * *

Se a linguagem é via de acesso à visão do eidós, preparar-se para ver é dizer por onde se deve começar a olhar:

Sócrates: Que coisa haveremos de olhar para que nos vejamos a nós mesmos?

Alcibíades: Certamente um espelho.

S: Dizes bem. Mas nos olhos com que vemos não há algo semelhante?

A: Sem dúvida.

S: Não notaste que, quando olhamos o olho de alguém que está diante de nós, nosso rosto se torna visível nele, como num espelho, naquilo que é a melhor parte do olho e a que chamamos pupila, refletindo, assim, a imagem de quem olha?

A: Exatamente.

S: Desse modo, o olho, ao considerar e olhar outro olho, na sua melhor parte, assim como a vê também vê a si mesmo.

A: Assim parece.

S:[…] portanto, se o olho quiser ver-se a si mesmo terá que dirigir o olhar para um outro olho e precisamente para aquela parte do olho onde se encontra a faculdade perceptiva. Essa faculdade, chamamos visão [ …] pois bem, se a alma desejar conhecer-se a si mesma deve olhar para uma óutra alma em sua melhor parte e ali onde se encontra a faculdade própria da alma, a inteligência ou algo que lhe assemelhe [.. .] haveria nela parte mais divina do que aquela onde se encontram intelecto e razão?

A: Não.

S: Essa parte é realmente divina e quem a olha descobre o sobrehumano, o divino, e, assim, conhece melhor a si mesmo […] Assim como os espelhos reais são mais claros, mais puros e luminosos do que o espelho de nossos olhos, assim também a divindade é mais pura e luminosa do que a parte superior de nossa alma […] Olhando a divindade, nos servimos do melhor espelho e nele nos vendo conhecemo-nos melhor j…] E conhecer-se a si mesmo, não é o que chamamos de sabedoria?[26]

Com Platão, inaugura-se não só a separação entre o corpo e a alma (e, no interior desta última, a separação entre o que a faz participar do corpóreo e o que a distingue dele, fazendo-a participar do incorpóreo divino), mas reafirma-se também e com maior intensidade a desconfiança eleata com relação aos sentidos. Efetuada pela dialética, a paidéia platônica do olhar pedia que a descoberta dos enganos e das ilusões da visão corporal (por que os olhos do corpo vêem apenas sombras e simulacros) ensinasse o caminho da verdadeira visão, aquela de que só é capaz o intelecto (único que reconhece o verdadeiro ao contemplar as ideias, formas reais do real, invisíveis para o corpo). Aceitar essa diferença era o primeiro passo na via do autoconhecimento e da ciência. Com Plotino, entretanto, a exigência é maior. Agora, o saber verdadeiro — imersão da alma no belo e no bem primordiais – exige que nos desprendamos inteiramente de nosso corpo, que se fechem nossos olhos carnais (dados à nossa alma enquanto prisioneira do devir e do corpo) para que possa abrir-se o olho do espírito e que a alma, abandonando sua própria forma, receba a iluminação fuscante do verdadeiro e, imersa na pura luz do sem forma originário, perca a consciência do seu corpo, do mundo e de si mesma na fusão extática de uma visão indisível, cumprimento de todo desejo, saciedade plena.

Não surpreende, então, que essa tradição neoplatônica fosse captada e capturada pelo cristianismo e que teólogos e filósofos, como santo Agostinho e Malebranche, aspirassem pela visão em Deus, certos de que somente os santos chegariam ao êxtase da visão de Deus, descrita por Plotino. Não surpreende também que, herdeiros dessa tradição, esperassem da luz sobrenatural a libertação dos malefícios da luz natural. E que, na versão latina da Epístola aos Tessalonicenses, são Paulo lançasse um interdito sobre a luz natural, o célebre Noli altum sapere, sed time, “não queiras saber o alto, mas teme”, pois, como escrevera na Primeira Epístola aos Coríntios (1 Cor 13:12): “agora vemos através de um cristal, por entre as trevas, mas depois veremos face a face; agora conheço uma parte, mas depois conhecerei do mesmo modo que sou conhecido”.

Todavia, além da separação entre corpo e alma e da desconfiança para com tudo que participe do corporal e dos sentidos, algo mais se anuncia com Plotino e que estará na abertura de uma outra tradição do olhar:

Qual é, pois, essa peculiar visão? Que caminhos haverá de seguir? Pois como se poderá ver essa indescritível beleza que permanece no interior do santuário, mas não dá um só passo para fora a fim de que os profanos não gozem de sua contemplação? Será preciso que quem possa fazê-lo vá até ela e a descubra em sua intimidade: que abandone a visão de seus olhos e não volte a vista para o brilho corpóreo que antes tomava. Porque é necessário que quem veja as belezas corporais não se apresse em correr atrás delas. Deverá persuadir-se de que são imagens, sombras, ondas, fugir dessa beleza que representam. Se alguém corresse atrás delas, lhe aconteceria o que nos conta a fábula do homem que, atraído por sua bela imagem refletida nas águas, submergiu na corrente profunda e nela desapareceu. Coisa semelhante ocorre com quem se prende à beleza dos corpos e não é capaz de abandoná-la. Não será seu corpo, mas sua alma que submergirá nos abismos obscuros e funestos para o intelecto, levando a alma a uma cega convivência com as sombras, na região do Hades. Fujamos, pois, rumo à nossa pátria natal. Nenhuma será melhor do que ela […] Que é o olho interior?”.[27]

Doravante, trata-se de desencarnar os olhos para buscar uma visão que não esteja sob o signo da carência e dos limites do olhar carnal. Consuma-se a passagem dos olhos (do corpo) ao olho (do espírito).

O que é o olho interior, indagava Plotino? A resposta, conciliando o Alcibíades com a teoria aristotélica do conhecimento, nos é dada durante a Renascença por Charles de Bovelles:

É da natureza do espelho perfeito possuir integridade, unidade, uniformidade, solidez, continuidade, transparência e sensibilidade à luz, de sorte que o olho, mantendo-se no ex¬terior do espelho, absorva, esgote, contemple todas as formas que aí se encontram em ato. E para que se produza a visão perfeita, a intuição, é preciso que o olho esteja voltado e tendido para o espelho […] e que nenhum corpo venha, com sua opacidade, isolar, separar, desunir o ato e a potência, o olho e o espelho. O melhor caso é aquele em que o olho, tão próximo do espelho, forme com ele uma só substância, um vínculo que nada possa separar […] Aprende com essa analogia a captar e distinguir o que é o pensamento do Sábio. Embora o espírito do Sábio seja unidade indivisível, entretanto, uma de suas partes é semelhante ao olho e a outra, ao espelho […] Chama, pois, de olho do espírito ao intelecto agente e, ao intelecto possível, de espelho do espírito. Assim, olho e espelho aproximam-se tanto que acabam por formar a substância de um espírito único e sem partes, mutuamente presentes um ao outro que nenhum intermediário opaco interpõe-se entre eles […] A primeira imagem que está destinada a ser recolhida pelo espelho é a imagem da forma do olho (…) Eis por que a visão mais viva e verdadeira é a do próprio olho Da mesma maneira deves, agora, falar da contemplação do Sábio, que não é senão a intuição contínua de si mesmo (…) A primeira forma que brilha no espelho do espírito é a própria forma do olho do espírito.[28]

A Renascença, porém, seja ela aristotélica ou neoplatônica, hermética ou humanista, está banhada pela ideia da dignidade do homem, miraculum magnum, dissera Pico della Mirandola, e essa dignidade ainda é um último esforço para que o movimento as-cencional da visão rumo ao olho do espírito e, deste, rumo ao inteligivel não se faça com o sacrifício do olhar corporal que, por isso mesmo, será profundamente espiritualizado. Que diz Bruno?

Essa luz total está mais presente, clara e exposta para nossa inteligência do que a luz do sol exposta aos olhos exteriores, pois a luz do dia sai e se põe e nem sempre que a ela nos dirigimos está presente, enquanto a outra está tão presente para nós quanto nós a nós mesmos, tão presente à nossa mente que é nossa própria mente. Queres, então, que te diga por que são tão poucos os que a apreendem? Por que julgamos que a luz está distante, quando tão presente para nós num céu tão imenso? Porque o olho vê todas as coisas, mas não se vê a si mesmo. Porém, qual é o olho que além de ver todas as coisas ainda se vê a si mesmo? Aquele que vê todas as coisas e é todas as coisas. Seríamos semelhantes ao Ser Excelso se pudéssemos ver a substância de nossa espécie e se nosso olho visse a si mesmo e nossa mente a si mesma […] Porém, assim como nosso olho pode ver-se a si mesmo num espelho, assim também a mente, não podendo ver a si mesma, vê-se na semelhança com os signos, simulacros e imagens exteriores, pois só especulamos com imagens […] Não divaguemos fora do espelho, não saiamos do espelho […] A Natureza dá a si mesma um espelho: as artes.[29]

A reflexão do olhar é o espelho; a da alma, a Natureza; e a da Natureza, as artes. Essas reflexões são possíveis porque mundo, homem e arte são feitos do mesmo estofo, dos quatro elementos (terra, água, ar e fogo ou suas qualidades, seco, úmido, frio e quente) e dos quatro humores (sangue, fleugma, bílis amarela e bílis negra), a relação sendo especular e especulativa, porque tudo participa em tudo e tudo se relaciona com tudo, segundo as leis necessárias da simpatia e da antipatia. Matéria, alma do mundo, espírito do mundo, firmamento e divindade estão intrincadamente vinculados, pois vincular é o ato primordial de cada ser, e cada ação, a magia, as artes, a memória e a ciência não são senão o poder para fazer vínculos. “Não divaguemos fora do espelho, não saiamos do espelho.” A alma especula com os olhos, entoa Leonardo.

Teólogo e filósofo, médico e mago, Marcílio Ficino, tradutor de Platão, de Plotino e do Corpus Hermeticus, toma ao pé da letra o texto do Fedro sobre a visão, a passagem do olho sensual ao olho espiritual e o retorno do olho do espírito aos olhos do corpo:

Mas a beleza brilha luminosa no mundo superior e aqui também ainda resplandece mais claramente porque o sentido pelo qual é apreendida por nós é nosso sentido mais claro, pois a vista é o mais aguçado de nossos sentidos físicos […] Que amor mais poderoso o conhecimento nos inspiraria, se pudesse trazer uma imagem de si aos nossos olhos? [.. .] Mas as coisas sendo como são, somente a formosura tem o privilégio de ser tanto mais discernida quanto mais amada […] Aquele que passou pela iniciação, que teve plena visão celestial, quando contempla uma face assemelhada à divindade ou uma forma física que verdadeiramente reflete a formosura ideal, primeiro estremece e sente algo do pavor que a próprià visão lhe inspirou, depois, contempla fixamente e adora o que vê como se fosse um deus. E, se não temer ser tido por louco, sacrificará ao amado como à imagem da divindade.[30]

A Natureza, “único animal” cujas partes estão vinculadas pela alma do mundo e pelo espírito do mundo, é regida pelo amor, Eros, que une os semelhantes e produz a atração e repulsão dos contrários. A magia, diz Ficino, é arte dos vínculos e do amor, e a Natureza, porque vínculo universal, é maga. Quatro são os amores, furores divinos: o poético, sob o signo das Musas: o profético, sob o signo de Apoio; o místico, sob o signo de Dionísio; o intelectual, sob o signo de Vênus. E todo amor começa pelo olhar:

Mas o olho e o espírito, que são como espelhos, podem receber as imagens somente na presença dos corpos e as perdem quando eles se ausentam precisando, por isso, da presença contínua de um corpo formoso… Quando a figura de algum corpo formoso encontra o olho e através dos olhos penetra no espírito, em decorrência de sua preparação na matéria, essa imagem se assemelha à ideia na mente divina e imediatamente agrada a alma, que dela se enamora [.. I Assim, todo amor começa pelo olhar […] O amor é mago, pois todo poder da magia reside no amor [.. .] E a obra do amor é feitiço e encantamento pelo olhar.[31]

O que amam os olhos? Rigorosamente, a formosura — a forma e figura do belo. O que olham os olhos? A formosura física, a astral (envoltório delicado e diáfano com que os deuses protegem a alma para sua entrada no corpo), a espiritual (ou angélica), e a divina. Por que podem vê-las? À formosura física, vêem por que são de mesma natureza que ela, e às outras, vêem através dela, porque o mundo é imagem e vestígio do astral, do espiritual e do divino. Como podem vê-las? Como aprendem a ver a formosura nos vestígios e nas imagens? Aprendendo o segredo que as produziu. os astros de que dependem, as cores que as espelham, os minerais que as retêm, os odores que as exprimem, o elemento e humor que as temperam. Quem os ensina a vê-las? A magia natural, através dos talismãs, que mantêm presente a formosura do corpo ausente.

O talismã é “figura do mundo”. É, simultaneamente, ícone, ídolo, signo, símbolo, encarnação das qualidades do mundo, miniatura do todo, conjugando pedras, metais, ervas, líquidos, cores, essências astrais, angélicas e espirituais e, entrando em harmonia com nossos olhos, é iniciação ao mistério do mundo e proteção contra o mais terrível dos males d’alma, a melancolia. É preciso oferecer aos olhos talismãs que os protejam contra malévolos sortilégios, eflúvios e encantamentos, assim como é preciso oferecer-lhes talimãs que os façam ver o invisível, a formosura total do universo. Dentre os inúmeros talismãs elaborados por Ficino, talvez o mais formoso seja aquele que encomendou para seu discípulo, Lorenzo de Medici, para protegê-lo dos eflúvios melancólicos de Saturno: a Primavera, de Botticcelli.[32]

São esses olhos dos furores, dos Eroici Furori de Bruno, que se apagarão, fechados pelo novo olhar construído pela óptica e pela dióptrica modernas, passando da simpatia universal à metafísica da representação e da evidência intelectual.

Dessa passagem, dois sinais são oferecidos, ainda na Renascença. O primeiro deles, é trazido pela Astronomia Nova, de Kepler, onde a distinção milenar entre lux e lumen é desfeita pela primeira vez. A nova óptica, rumando para a dióptrica, unifica sob o conceito geral de luz tanto lux quanto lumen, a velha diferença entre ambos sendo considerada irrelevante para o estudo da visão e dos fenômenos luminosos, uma vez que a análise geométrica da luz é indiferente à distinção entre luminoso e iluminado. Essa mudança científica acarreta duas outras de grande alcance. Em primeiro lugar, o universo, obra de Deus, resulta, agora, de um cálculo geométrico da luz; a obra da criação é operação da geometria divina. Em segundo lugar, Deus implantou a geometria em nosso intelecto e por isso não só podemos conhecê-lo tal como Deus o conhece; nossa visão (intelectual) e a de Deus, finalmente coincidem: o lumen naturale é capaz do mesmo conhecimento que a lux divina. Assim, escreve Kepler, há no mundo três luzes (luces), Deus, o sol e a alma humana, “lâmpada escondida no coração” que é faculdade vital mantida pelo azeite (o sangue), pela ventilação (o sopro dos pulmões) e pela expulsão da fumaça (veias e artérias):

A alma é parente da luz (lux), são filhas uma da outra, são da mesma linhagem.[33]

O segundo sinal é oferecido por BoveIles, ao distinguir os olhos do corpo e o olho do espírito. Os primeiros — a que chama de olhos mundanos — são esferas perfeitas que “não podem ver toda a superfície da esfera”, excitados pela luz e pela cor apenas “em metade de sua esfera, aquela voltada para o mundo”, mas “cegos por natureza em sua outra metade, aquela presa no interior da cabeça”.. A Natureza, “após haver começado a criar o homem, deixou-o inacabado e imperfeito”, pois não lhe deu a visão interior, “abriu-lhe os olhos mundanos, fechou-lhe o olho humano interior”. Assim o fez porque deixou ao homem, sozinho e segundo suas próprias forças, que se tornasse capaz de visão interior, aquela do “olho humano”. Se o homem ganhou o primeiro olhar, deve conquistar o segundo, através da sabedoria ou ciência de si mesmo:

O sábio explora o mundo com seu olho mundial, mas com seu olho humano perscruta tanto quanto tem sob a pele e carrega consigo as chaves do mundo […] O conhecimento pelos sentidos é semelhante ao olho mundial, o intelecto, porém, é semelhante ao olho humano […] Enquanto preso aos sentidos, é semicego e semividente, vê as coisas do mundo, mas não as que estão no interior do homem. Imaginai, porém, o olho carnal liberado de sua inserção natural na cabeça, arrancado do corpo, livre como se flutuasse no ar. Esse olho hololâmpada é o símbolo do intelecto perfeito, capaz de contemplar as coisas externas e .as internas, pois escapou da servidão dos sentidos e compreende todas coisas livremente e por si mesmo, referindo-se apenas a si e fundando-se em si.[34]

O intelecto, “esse olho hololâmpada”, globo inteiramente luminoso e iluminado, fonte e receptáculo de luz, onividente e onipresente, é Kosmotheóros que flutua livremente no ar, portador das “chaves do mundo”. Esse olho, insiste Bovelles, é puramente humano, pois ao deixar o homem incompleto, a Natureza o forçou a conquistar sozinho a plena visão, isto é, a “referir-se apenas a si” e “fundar-se em si”. Esse olho, que se vê a si mesmo graças a si mesmo, anuncia que foi levantado o interdito paulino — noli al-turn sap ere — surgindo em seu lugar o lema criado pela iconografia e a emblemática do século )(VII: Sapere aude! (Ousa saber!), que seria retomado por Kant como símbolo maior da Aufkliirung, do Iluminismo.

Esse olho humano auto-iluminado se faz critério e medida de toda visibilidade, a externa e a interna, libera-se da luz sobrenatural e, fazendo-se plenamente presente a si mesmo, se põe a si mesmo como consciência de si reflexiva. Intelecto, olho hololâmpada que “escapou da servidão dos sentidos”, onde encontrá-lo em sua luminosa plenitude senão nas Meditações?

Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais ou, pelo menos, uma vez que mal se pode fazê-lo, reputá-las-ei vãs e falsas; e assim, entretendo-me apenas comigo mesmo e considerando meu interior, empreenderei tornar-me pouco a pouco mais conhecido e mais familiar a mim mesmo. Sou uma coisa que pensa […][35]

O olho interior de Plotino encontrou, finalmente, sua “pátria natal” e, não por acaso, na História da Filosofia, referindo-se à modernidade, Hegel dirá que, com os modernos, podemos começar a gritar, do alto da gávea: “terra á vista!” e que a razão começa a sentir-se em casa (bei sich).

* * *

Como Leonardo, Descartes também entoa um hino aos olhos:

 

O olho, pelo qual a beleza do universo é revelada à nossa contemplação, é de tal excelência que todo aquele que se resignasse à sua perda privar-se-ia de conhecer todas as obras da No-tureza cuja vista faz a alma ficar feliz na prisão do corpo, graças aos olhos que lhe representam a infinita variedade da criação.[36]

No entanto, é bem conhecida a passagem do Discurso do Método em que Descartes descreve a impressão desagradável que lhe causa a vista de antigas cidades que, de pequenos burgos, tornaram-se grandes centros, “tão mal compassadas”, os edifícios dispostos de maneira “tão desarranjada”, ruas tortas e desiguais, que “dir-se-ia que foi mais o acaso do que a vontade de alguns homens usando a razão que’ assim os dispôs”. A essa desordem visual, o Discurso contrapõe “praças regulares, traçadas por um engenheiro, segundo sua fantasia, numa planície”. Entre o acaso e a razão metódica também se inicia a Dióptrica, lamentando que uma peça tão importante como a luneta pudesse ter sido descoberta casualmente, em brincadeiras com vidros e espelhos, com que se comprazia “um tal de Jacques Metius, homem sem estudo e instrução”. Coisa tanto mais lamentável quanto mais consideramos que “toda a conduta de nossa vida depende de nossos sentidos e, entre estes, o da vista sendo o mais universal e o mais nobre, sem dúvida as invenções que servem para aumentar-lhe a potência são as mais úteis que possa haver”.[37]

Para corrigir a desordem reinante nos conhecimentos, como reinava no urbanismo e na legislação, é preciso que o intelecto, qual único engenheiro e único legislador, se encarregue de ordená-los segundo um método que produza evidência, ideias claras e distintas conformes ao rigor das demonstrações matemáticas. É preciso não só prima philosophia, mas também tecnologia, saber rigoroso das artes mecânicas que lhes antecede o exercício técnico. A experiência de ver só poderá servir à arte de ver se passar pelo crivo de uma teoria físico-matemática da luz e uma fisiologia da visão, baseadas nos princípios da nova mecânica. Eis a tarefa da Dióptrica. Tarefa assim resumida por Merleau-Ponty: tentativa para exorcizar os espectros e fantasmas da visão, fazendo-os ilusões perceptivas sem objeto num mundo límpido e sem equívocos. A Dióptrica é o “breviário de um pensamento que não mais quer assediar o visível e decide reconstruí-lo”, em conformidade com um modelo que dele o pensamento proporciona. Pergunta como a visão se faz e quais os instrumentos que podem corrigi-la.

Não que, antes, o. olhar não houvesse sido submetido às exigências do conhecimento intelectual. Para confirmá-lo, é suficiente a leitura do Tratado da Pintura, de Leonardo, nos tópicos destinados à anatomia e à fisiologia da visão, à teoria da luz e à teoria da perspectiva (natural, aérea, cromática) e à definição leonardiana da pintura como cosa mentale. Todavia, não é Leonardo, com sua teoria da luz como “mar radiante” e do “esfumado” como expressão da biologia visual, a quem nos devemos referir para compreendermos o projeto cartesiano, mas a Galileu e ao perspicillum.[38]

As discussões de Galileu com seus adversários aristotélicos anunciam a mutação que sobrevirá ao tratamento do olhar. O conflito entre o que é visto a olho nu e o que é mostrado pelo telescópio leva os aristotélicos, apostando no primeiro, a afirmar a inadequação do perspicillum para o conhecimento astronômico e a negar qualquer verdade aos resultados obtidos por Galileu, resultados perigosos para antigos postulados teológico-metafísicos (a perfeição esférica dos céus é destruída pela observação de crateras e manchas lunares, fases de Vênus, mutabilidade dos cometas) e postulados episte-mológicos (a distinção entre cores reais e aparentes ou entre essenciais e acidentais cai por terra com a mecânica celeste e a nova teoria da luz por ela exigida, na qual não há lugar para o translúcido aristotélico). Mas não só isso. O telescópio tem a intrigante propriedade de fazer ver o que não existe (porque o olho nu não o vê), e de deixar de ver o que existe (porque o olho nu o vê), isto é, modifica distâncias, luminosidades, movimentos, grandezas. A argumentação de Galileu érevolucionária: o perspicillum não é mero auxílio para aumentar o tamanho dos objetos aumentando o poder do olhar, mas um instrumento para corrigir a visão. A verdadeira visão é aquela proporcionada pela geometria da luz e das lentes, de sorte que o telescópio prova que nossos olhos não sabem ver, além de não poderem ver:

Essas coisas só podem ser compreendidas através do sentido ,da vista, que a Natureza não nos deu perfeita a ponto de nos permitir discernir tamanhas diferenças. Antes, o próprio instrumento da visão, o olho, introduz estorvos e obstáculos que lhe são próprios.[39]

Os olhos estorvam a visão. Iludem-nos, mentem-nos e, graças à geometria que preside o telescópio, onde a experiência é guiada pela razão, confirmam o verso da La Fontaine: com o socorro da razão, “meus olhos nunca me enganam, mentindo-me sempre”. O telescópio, objeto tecnológico (mais do que simplesmente técnico), é a razão corrigindo o olhar, ensinando-o a ver, liberando-o de si mesmo ao mostrar-lhe que a umidade dos olhos, refletindo e refratando a luz, modifica os raios luminosos, deforma os objetos e incapacita o olho para a boa visão. Assim, a imagem visual será objetivamente verdadeira quando e somente quando o telescópio corrigir a imagem subjetiva ilusória, isto é, aquilo que nossos olhos não equipados vêem. O essencial no telescópio não é que aproxime ou aumente objetos, mas que transforme o próprio ato de ver, fazendo-o resultar do ato de conhecer, depositado no instrumento. O perspicillum cria o olhar perspicaz, separando os olhos e a visão, fazendo desta o modelo intelectual daqueles.

Eis a causa do entusiasmo de Leibniz diante do microscópio de Leeuwenkoek, pois o biólogo lhe oferece um instrumento para generalizar matematicamente sua metafísica das mônadas e da harmonia pré-estabelecida, revelando a densidade, continuidade, pluralidade e organicidade do infinitamente pequeno como microcosmo. Noutro contexto metafísico, o mesmo entusiasmo é experimentado por Berkeley quando supõe animalículos dotados de visão, vendo numa escala ainda menor do que a nossa e confirmando a tese metafísica do esse percipi est, animalículos que os Três Diálogos concebem como “microscópios do microscópio”.

Como assinala M. Serres, referindo-se a Leibniz, o microscópio põe em movimento duas velhas ideias: de um lado, o ideal do conhecimento como adequação do intelecto à coisa, mas de outro, a visão como melhor modelo da função de conhecer:

Que Leeuwenkoek seja a testemunha ocular de Leibniz, isto já ultrapassa o testemunho experimental, em virtude da ligação tradicional entre o ver e o conhecer: isto, agora, vai às raias da prova. Que um veja o que o outro pensa significa que o primeiro dá ao segundo um modelo do conhecimento verdadeiro. Essa transferência da visão ao saber, em Leibniz, não se cumpre, porém, de maneira ingênua, pelo contrário, é uma relação científica e trabalhada. Não se reduz à situação do vidente face ao espetáculo, mas é utilização rigorosa dos princípios da perspectiva geométrica de Desargues, da teoria das sombras, da decomposição óptica das cores, da ideia de situs e ponto de vista.[40]

Metafísica, óptica, teoria do conhecimento, dióptrica podem manter o paradigma da visão para o saber, porém o modelo oferecido já não é o do olhar propriamente dito e sim o de uma teoria sobre o olhar que serve, de um lado, como suporte para o conhecimento enquanto representação ou expressão regulada (em Descartes, a ideia evidente será dita ideia-quadro, em Leibniz, espelho do universo) e, de outro lado, como correção intelectual das ilusões visuais para que o visto possa ser aproveitado e trabalhado pelo intelecto. A percepção é purificada ao extremo para pôr-se a serviço das operações intelectuais e o olho se torna operário obediente do pensamento.

Os textos modernos sobre a visão são curiosos. Esquadrinham o olho, o sentido da vista, as coisas visíveis com o intuito de separar em cada um deles o subjetivo (ou ilusório) e o objetivo (ou verdadeiro), decompondo-os em qualidades e propriedades a serem reunidas pela síntese do pensamento. Porque referidos ao mundo como realidade em si — a Natureza como ens realissimum — e porque nosso corpo é uma coisa natural entre as demais coisas naturais, intriga-os que ele não tenha acesso a elas e, pior que isto, enganando-se sobre elas, introduza a desordem no real. A Natureza, objetivada nas representações da geometria, da álgebra e da mecânica, é forma, figura, massa, volume e movimento, propriedades reguladas pelo princípio da causalidade. Porém, sobre a superfície das coisas em si começam a depositar-se fantasmas e simulacros — cores, odores, sabores, texturas — e são justamente estes que nosso corpo percebe, tomando-os pela realidade. Nasce aqui a célebre distinção lockeana entre qualidades primárias e secundárias, objetivas as primeiras, subjetivas as segundas.

Poderíamos supor que para um idealista, como Berkeley, a situação seria diversa, uma vez que o ens realissimum não é matéria e sim espírito e que todo esse est percipi. No entanto, não é o caso. Agora, a ilusão visual consiste justamente em tomar as propriedades oferecidas pela mecânica, pela óptica e pela dióptrica, tanto quanto os simulacros captados pelos olhos, como predicados de um sujeito, a substância material. Assim, na perspectiva realista, os olhos não vêem a res extensa e, na idealista, imaginam que ela exista realmente. Uma das ilusões visuais a provocar o interesse de Berkeley é a percepção da distância. Esta, afirma ele, não é um dado visual e sim táctil e, nessa condição, não é um predicado geométrico das coisas, mas uma função de nosso corpo, cabendo decompô-lo para compreender por que a percebe e por que a imagina como visual e propriedade em si das coisas. Por sua vez, Descartes se interessa por uma outra ilusão, a das cores. Estas não estão nas coisas e nem são coisas mas resultam da atividade de nossos olhos que, não vendo a realidade, enxergam os resultados subjetivos de causalidades reais invisíveis. A cor, que, desde Aristóteles, sabíamos ser o próprio do visível, não é qualidade objetiva senão como ausência de cor, isto é, como quantidade mensurável dos raios luminosos nos fenômenos da reflexão e da refração da luz. A separação entre o olho e o espírito é tão grande que Descartes, após a descrição geométrica e mecânica do ato visual e da fisiologia do olho, indaga: mas, quem vê quando o olho olha? Quem vê o olho visto pelo pensamento? Quem vê na visão? Quem é o sujeito do olhar?

É a cisão entre o olhar e a visão correta-corrigida pelo pensamento que Merleau-Ponty desentranha em O olho e o espírito. O que o intriga, inicialmente, é o ponto de partida da Dióptrica cartesiana, isto é, que Descartes inicie a teoria da luz e da visão tomando como modelo a caminhada à noite no escuro com ajuda de um bastão. Em outras palavras, que o modelo de Descartes seja oferecido pelo tacto dos cegos, daqueles, escreve Descartes, “que nascendo cegos e usando sempre um bastão, nos levariam quase a dizer que vêem com as mãos”. Justamente porque parte da escuridão e da cegueira, Descartes pouco se refere à pintura e, quando o faz, sua preferência se dirige para os talhos-doces e para o desenho:

A pintura não é para ele uma operação central que contribua para definir nosso acesso ao ser, mas é uma variante do pensamento, canônicamente definido pela posse intelectual e pela evidência […j O que lhe agrada nos talhos-doces é conservarem a forma dos objetos ou, pelo menos, dela nos oferecerem sinais suficientes, pois não nos dão uma apresentação do objeto pelo seu exterior ou invólucro.[41]

Preferência que não é nova. Encontra-se, no século xv, nos escritos de Alberti e, no século XVI, nos de Vasari e nas teorias do di segno interno. Preferência que não terminará com Descartes, pois a reencontramos em Kant que, por exemplo, no parágrafo 14 da Crítica da Faculdade de Julgar, referindo-se às belas-artes no campo visual, afirma ser o desenho o essencial e o fundamento do gosto porque não concerne à sensação nem à emoção, mas ao juízo e, portanto, à forma. A cor é atrativo, adorno, parerga, mas não c) que confere nobreza e dignidade ao objeto estético, apenas o que “anima a representação porque desperta a atenção pelo objeto”.

Que aconteceria, indaga Merleau-Ponty, se os filósofos, em lugar de passar da percepção ao juízo, ou melhor, em vez de substituir a percepção pelo juízo, houvessem considerado “essa outra e mais profunda abertura às coisas proporcionada pelas ‘qualidades segundas’, particularmente a cor”? Ter-se-iam achado diante de um problema insolúvel para o empirismo e o intelectualismo, isto é, diante de “uma universalidade sem conceito” e seriam obrigados a indagar “como o múrmurio indeciso das cores pode oferecer-nos coisas, florestas, tempestades, enfim, o mundo”. Talvez, assim fazendo, chegassem a integrar o desenho e a perspectiva como casos particulares “de um poder ontológico mais amplo”. Seja na filosofia dogmática, que crê no espaço em si, seja no idealismo crítico, que reduz o espaço à forma a priori da sensibilidade, o espaço é sempre homogêneo, definido euclideanamente por relações geométricas reguladas e todo o restante faz parte da confusa e obscura região do sentimento — das relações entre corpo e alma, no cartesianismo, das emoções em sua mera condição empírica ou psicológica, no idealismo crítico —, região excluída tanto da dignidade do conhecimento (Descartes a coloca sob o signo do “uso da vida”) quanto da dignidade do juízo estético (Kant a coloca sob o signo dos parerga).

pergunta “quem é o sujeito do olhar?”, modernos e idealistas responderão, sem titubear: o intelecto, o entendimento, a consciência como poder constituinte do objeto enquanto significação. O que vê o olho intelectual? Ideias, conceitos, essências. Como os vê? Como universalidades existentes desde todo o sempre e em parte alguma do visível, contrapostas à individualidade empírica dos entes, existentes em algum ponto do tempo e do espaço. Que é o olho intelectual? Puro sujeito da observação, puro espectador absoluto que supõe ou que, no idealismo, põe uma multiplicidade plana onde universalidades e individualidades se distribuem, completamente determinadas, cada uma delas formando duas ordens que se cortam transversalmente, a ordem das essências sem local e sem data e a ordem dos fatos datados e localizados.

Que aconteceria se a filosofia, abandonando o espectador intelectual absoluto, regressasse ao vidente? Se regressasse àquela região abandonada pela modernidade, pelo idealismo e pelo positivismo? Se, em lugar de falar sobre as belas-artes, interrogasse o trabalho dos artistas trabalhando? Numa palavra, se após a longa jornada pelo interior do olho do espírito, interrogasse, ainda uma vez, a experiência de ver, o olhar?

O pintor traz seu corpo. Não vemos como um espírito poderia pintar.[42]

O corpo não é coisa. Não é feixe de nervos, músculos e sangue. Não é central de informação nem receptáculo de estímulos. Não é fisiologia de processos “em terceira pessoa” , descritos segundo princípios mecânicos e funcionais que o fazem simples exterioridade de partes extra partes. Não é recipiente passivo da atividade anímica, espiritual ou intelectual. Não é fato inspecionado pelo entendimento. Não é suporte empírico de formas a priori, nem coisa anatômica. Não é ideia clara e distinta, nem o “isto” abstrato da sensação a ser desenvolvido especulativamente pelo espírito. O corpo é um “sensível exemplar”.

A coisa não é objeto do conhecimento, representação evidente, nem fato observado, nem suporte de propriedades separáveis e ajuntáveis pelo intelecto. Não é múltiplb da sensação, nem a unidade do conceito. Não é mosaico, soma de partes exteriores um às outras ligadas por relações mecânicas de causa e efeito ou por relações funcionais e orgânicas. Não é ilusão subjetiva que os procedimentos experimentais e construtivistas corrigiriam, substituindo-a pela verdade objetiva. Não é representação, ideia clara e distinta, nem exemplar empírico de idealidades ou de essências inteligíveis. A coisa é “o sensível vindo a si e a nós”.

O sensível, carne do mundo, é interioridade e exterioridade, é laço que nos enlaça às coisas enlaçando nossa mobilidade à delas e nossa visibilidade à delas. É comunidade originária de onde nascemos por segregação e diferenciação. “0 que é o talismã da cor?” indaga Merleau-Ponty em O visível e o invisível. Por que Valéry falava num branco tão branco que “só o negrume do leite é mais branco”? ou Claudel, “num verde tão verde que somente o mar é mais azul”? Uma cor não é coisa, não é átomo colorido nem comprimento de onda luminosa, mas concreção de visibilidade, pura diferença e diferenciação entre cores. Quando o vermelho é tecido vermelho, pontua o campo dos vermelhos: a roupa dos cardeais, a bandeira da revolução, um fóssil de mundos perdidos, o cafezal antes da colheita, o vestígio da ação policial deixado pelas ruas. Cada vermelho é um mundo e há o mundo do vermelho entre as cores. É modulação do sensível, cristalização momentânea do colorido. As coisas são configurações abertas que se oferecem ao olhar por perfis e sob o modo do inacabamento, pois nunca nossos olhos verão de uma só vez todas as suas faces (totalidade visual que o olho do espírito imagina ver porque dela se apropria pelo conceito). As coisas são profundas, enlace de cor, volume, rugosidade ou lisura, dureza ou moleza, superfícies móveis- que se cruzam com odores, sabores, toques. Visíveis tecidas de invisibilidade: a profundidade não é terceira dimensão do espaço, é o invisível da visibilidade, aquilo sem o que não vemos e sem o que nada seria visível; as faces do cubo que não vemos são o invisível do cubo, aquilo pelo que ele se faz uma coisa visível. O invisível não é um negativo positivo que dublaria a positividade do visível, mas aquilo pelo que o visível é visível, seu avesso e estofo, uma de suas dimensões, uma ausência que conta no mundo. Oco e cavidade da abóboda; poro por onde transitam zonas claras e obscuras, sustentando a concordância e a conveniência entre as coisas, sua pura diferenciação. O invisível “é o forro que atapeta o visível”.

Entre as coisas, há uma, extraordinária, cuja peculiaridade está em ser sensível como as outras, em poder ser sentida como as outras, mas, diferentemente das outras, em ser também sensível para si: nosso corpo, “sensível exemplar” porque sensível para si, porque se sente ao sentir que sente. Corpo cognoscente e reflexivo, móvel, movido e mo vente, mas também se movente; tangível, tangido e tangente, mas também se tangente; audível, ouvido e ouvinte, mas também se ouvinte; visível e visto, mas também vidente que se vê a si mesmo vendo. Somos parte do mundo, contamos nele e para ele, e é nosso parentesco carnal com ele que nos faz ver.

O espelho aparece porque sou vidente-visível, porque há uma reflexividade do sensível; ele a traduz e reduplica. Graças a ele, meu exterior se completa, tudo que tenho de mais secreto passa a esse rosto, esse ser plano e fechado que meu reflexo na água já me fazia suspeitar […] O fantasma do espelho arrasta para fora minha carne e, no mesmo passo, todo o invisIvel de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante, meu corpo pode comportar segmentos extraídos uns dos outros como minha substância se transfere para eles: o homem ê espelho do homem. O espelho é .o instrumento de uma universal magia que transforma coisas em espetáculos, espetáculos em coisas, eu no outro, o outro em mim [… I Onde colocar, no mundo do intelecto, essas operações ocultas, os filtros e os ídolos que elas preparam? […] Essência e existência, imaginário e real, visível e invisível, a pintura baralha todas as nossas categorias ao desdobrar seu universo onírico de essências carnais, de semelhanças eficazes, de mudas significações […] Poder-se-ia procurar nos próprios quadros uma filosofia figurada da visão […][43]

Essa “filosofia figurada da visão” impede que concebamos o olhar como operação intelectual, pondo o mundo como representação ou conceito. Quando olho uma piscina, vejo ladrilhos ondulantes, a paisagem em torno habitando o espelho das águas que, quase aéreas, vão com seus reflexos pousar nas coisas mais ao longe. Como seria vista pelos filósofos empirista e intelectualista? A ouvi-los, descobrimos que julgam ver os ladrilhos, apesar das ondulações, dos espelhamentos e dos reflexos das águas. Visão paradoxal: separa o que os olhos vêem como um todo, distingue o que supõe ser essencial (a forma da piscina com seus ladrilhos) do que julga acidental (as águas) e do que considera estorvo (ondulações, reflexos, espelhamento). Esse olhar analítico desfaz a visão da piscina como piscina para reduzi-la a partes dispersas, como se fossem, de direito, separáveis. Não percebe a piscina, pois percebê-la é vê-la em seus ladrilhos graças às águas que os oferecem como ladrilhos-da-piscina, é ver a paisagem à volta imersa no líquido ondulante que a faz existir como paisagem-em-volta-da-piscina, é ver as águas nos reflexos pousados a brilhar sobre as coisas circundantes pelos quais elas existem como águas-da-piscina. O que é a peculiar visão analítica que purifica a promiscuidade do visível? O olhar de um. espírito desencarnado que só pode conhecer sob a condição expressa de não ver. Ver, assim como tocar ou mover-se, “não é uma decisão do espírito”, não nasce do “eu penso”, enunciado pela “coisa que pensa”, mas origina-se do corpo como um sensível que, silenciosamente, diz “eu posso”. A visão se faz no meio das coisas e não de fora delas. Ali onde um visível se põe a ver e se vê vendo, ali, “como a água mãe no cristal”, persiste a carne do mundo; a indivisão irredutível do sentiente e do sentido.

Por isso não nos engana nem nos mente nossa fé perceptiva quando experimenta a visão como espantosa reversibilidade entre nossos olhos e as coisas, a simultaneidade do ativo e do passivo, a visão fazendo-se das coisas para nós e de nós para elas. A pintura eleva à última potência o delírio da visão: o pintor “tem que admitir que as coisas entram nele ou que, consoante o dilema sarcástico proposto por Malebranche, o espírito lhe sai pelos olhos para ir pass» ear pelas coisas” e precisa confessar “que a visão é um espelho ou concentração do universo, ou, como diz um filósofo, o ídios kósmos abre-se, por meio dela, ao koinós kósmos” (o mundo privado abre-se para o mundo comum) e que, por conseguinte, é a mesma coisa que está lá, no coração do mundo, e cá, nos limites da tela.

O que pedem as coisas ao olhar e, particularmente, ao olhar do pintor? Que desvele os meios visíveis pelos quais elas são visíveis aos nossos olhos. Que mostre como luz, iluminação, cor, sombra e reflexo só têm existência visual e, dirigindo-se ao pintor., que mostre como “elas se arranjam para fazer com que”, de luzes, reflexos, cores e sombras, “haja subitamente alguma coisa”. O olhar inspirado do pintor interroga o visível para. “compor o talismã do mundo, para nos fazer ver o visível”, ensinando-nos porque, afinal, há visível.

A pintura é “ruminação do olhar” e “inspiração, expiração, respiração no Ser”. Essas expressões merleaupontianàs não são metáforas e sim descrições rigorosas da pintura como filosofia figurada da visão. Longe dessa filosofia voltar a palmilhar o caminho que, de Platão, passando por Descartes, a Husserl, conduzia ao intelecto espectador de ideias, a pintura nos faz ver que, para ver, não podemos sair do recinto do visível: ruminação, inspiração, expiração, respiração no ser significam que olhar é ato de um vidente vendo o visível no interior do próprio visível (do mesmo modo que, para falar, não podemos sair para fora da linguagem). A pintura é transubstanciação do sensível, passagem da carne do mundo na carne do pintor para que dela se faça presente um novo visível, o quadro, visível do visível, feito por um vidente que participa da visibilidade. Entrelaço de visibilidade, mobilidade e tacto, o corpo operante do pintor é emblema do nosso quando este desperta para suas próprias operações no sensível. Se a pintura é filosofia figurada da visão é porque nos ensina algo que compartilhamos com o pintor, o simples olhar quando nossos olhos vêem:

Agora, talvez, se sinta melhor tudo o que essa palavrinha carrega: ver. A visão não é um certo modo do pensamento ou da presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser, ao término da qual, e só então, me fecho sobre mim.[44]

Não mais cisão do Ser, mas, doravante, fissão do Ser: no interior do sensível, um sensível se põe a ver outro sensível, vê-se vendo, e, se for pintor, transforma sua visão em novo visível que, então, nasceu para o mundo, pois o que é dar nascimento senão dar à luz?

Só ao término da visão — de minha ausência de mim mesma — fecho-me sobre mim. O que a filosofia da visão ensina à filosofia? Que ver não é pensar e pensar não é ver, mas que sem a visão não podemos pensar, que o pensamento nasce da sublimação do sensível no corpo glorioso da palavra que configura campos de sentido a que damos o nome de ideias. Que o pensamento não são enunciados, juízos, proposições, mas afastamentos determinados no interior do Ser. Que não é contacto invisível de si consigo, inte-rioridadè transparente e presença a si, mas excentricidade perante nós a partir de nós, “estrelas de Van Gogh” e espinhos em nossa carne. Que o conceito não é representação completamente determinada, mas “generalidade de horizonte” e a ideia não é essência, significação completa sem data e sem lugar, mas “eixo de equivalências”, constelação provisória e aberta do sentido. Ensina que, assim como o visível é atapetado pelo forro do invisível, também o pensado é habitado pelo impensado. Este não é o que não foi pensado por outrem, nem o que, pensado por ele, não foi por ele expresso. Não é o tácito, o implícito, a entrelinha. É o que, no pensamento de outrem, porque pensado por ele, nos dá a pensar o que ele nos deixou para pensar, pensar o que pensou. O olhar ensina um pensar generoso que, entrando em si, sai de si pelo pensamento de outrem que o apanha e o prossegue. O olhar, identidade do sair e do entrar em si, é a definição mesma do espírito.

Notas

[1] Santo Agostinho, Confissões, x, Coleção Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 230.

[2] Ibidem.

[3] P. Zobermann, “Voir, savoir, parler: la rhétorique et la vision au XVIIe. siècle”, XVIIe.Siècle, 33e. année, n. 131, 1981, p. 414.

[4] “A metáfora literária da janela produz uma extraordinária família de imagens, sobretudo entre os pintores nórdicos, flamengos e alemães que estabelecem uma convenção representativa, concernente à realização dos olhos nas pinturas. O pintor tende a representar com contornos nítidos uma janela, na parte anterior da córnea e da íris, uma janela que aparece como que refletida por um espelho convexo. Num primeiro momento, pode-se pensar numa representação ‘realista e ilusionista, os olhos refletindo uma janela real. No entanto, a pequena janela luminosa encontra-se em muitos contextos nos quais as personagens estão no exterior, ou muito longe de paredes e janelas […] Na verdade, os olhos se converteram em janelas da alma em sentido escrito e literal. Ou, então, são espelhos do mundo refletindo fatos e esperanças.” R. Pierantoni, El Ojo y la Idea, Barcelona, Paidós, 1984, p. 29.

“Contempla-te, contempla o que és e vê o mundo exterior com seu governo, vê o que ele é. E, então, te aperceberás com .teu espírito e teu ser exterior porque és o mundo exterior. És microcosmo tirado do macrocos-mo, tua luz exterior — teus olhos — é um germe do sol e das estrelas, pois de outro modo nada poderias ver da luz do sol. Na visão intelectual, as estrelas dão a ideia da diferenciação que conhece […] Tudo forma uma molécula única, única raiz de onde tudo provém […] sua origem é o vapor ou a fervura do Grande Mistério do Verbo manifesto cuja luz está em todos os lugares.” J. Boehme, Mysterium Magnum, Paris, Aubier Montaigne, 1978, t. I, p. 59-60.

“[…] esta pintura do mundo, que vemos toda nos anjos e nos homens, exprime-se mais inteiramente nos olhos. Neles está a figura de alguma Esfera, do Sol, da Lua, das Estrelas, dos Elementos, pedras, árvores e animais. Essas pinturas se chamam, nos anjos, exemplares e ideias, nas almas, razões e percepções, na matéria do mundo, imagens e formas. São claras no mundo, mais claras na alma e claríssimas no anjo. Num só lance, Deus reluz em três espelhos dispostos em ordem: no espelho do anjo, no espelho da alma e no espelho do corpo mundano.” Marsilio Ficino, De Amore, VI, Dallas, Spring Publications, 1985, p. 110. Veja-se um belo comentário do Livro vi em E. Garin, Medioevo e Rinascimento, Roma-Bari, Laterza, 1987, III, 2.

[5] Carlos Drummond de Andrade, “Procura da poesia”, Rosa do Povo.

[6] Leonardo da Vinci, Traité de la Peinture (ed. Chastel), Paris, Berger-Levrault 1987, p. 110.

[7] A filosofia pretende igualar o ver e o saber, tomar posse intelectual da visão, dizendo o que é ver e quem somos nós que vemos, como se nada soubéssemos do ver e de nós quando vemos. “A filosofia reflexiva metamorfoseia de golpe o mundo efetivo num campo transcendental, limita-se a repor-me na origem do espetáculo que só pude ter porque, contra minha vontade, era eu mesmo que o organizava E.. .1 recusa, pois, como desprovido de sentido, todo entrelaçamento do mundo com o espírito e do espírito como mundo. Para ela, está fora de questão que o mundo possa preexistir à minha consciência do mundo.” Merleau-Ponty, 0 visível e o invisível, São Paulo, Perspectiva, 1964, pp. 51 e 54.

[8] Aristóteles, Metafísica, A 980, 21-5.

[9] Santo Agostinho, op.cit., x, 35, p. 222.

[10] Fala do senhor C. J. S., 65 anos, a A. Rizzoli,O real e o imaginário na educação rural, tese de doutoramento, mimeo, São Paulo, USP, 1988, p. 159.

[11] Berkeley, Three Dialogues between Hylas and Philonous, Londres, Collier, Macmillan, 1969, pp. 223 e 225.

[12] Lucrécio, De Rerum Naturae, IV, 45.

[13] Empédocles, fragmento 177b em Ritter e Preller; fragmento 88 em Burnet. No Sobre a Sensação, Aristóteles o menciona em ii, 437b, 438a.

[14] Platão, Timeu, 45b.

[15] Plotino, Enéada, vi, 7, parte 1,1.

[16] Suares, Disputationes Metaphysicas, 1, secção VI, 12, Madri, Biblioteca Hispánica de Filosofia, 1960, t. 1, p. 338.

[17] Giordano Bruno, “De la Causa, Princípio et Uno”, II, in Opere Latine (ed. Gentile), Ban, 1907, p. 88.

[18] Leonardo da Vinci, op. cit. p. 89, 90. E Giordano Bruno: “Os platônicos o chamam ferreiro do mundo […] Os Magos o dizem muito fecundo em sementes, ou Melhor, o semeador […] Orfeu o chama de olho do mundo porque vê o exterior e o interior de todas as coisas naturais […] Para nós, chama-se artista interno”. “De la Causa”, II, op. cit., p. 90.

[19] Paracelso, Selected Writings, New York, Princeton University Press, 1973, p. 63.

[20] M. Foucault, La Naissance de la clinique, Paris, Presses Universitaires de France, 1972, pp. IX, X.

[21] J. P. Vernant, Mythe et pensée chez les grec , Paris, Máspéro, 1969, pp. 53-54. O livro de M. Detienne que acompanharemos é Les Maitres de vérité dans la Grèce archaique, Paris, Maspépp, 1981.  (21a) Veja-se o ensaio de J. Derrida “La Pharmacie de Platon”, Tel Quel, 1968, n° 32 e 33.

[22] Platão, Timeu, 47b.

[23] Aristóteles, Sobre a Sensação, 437a, 5-15.

[24] M. Foucault, op. cit., pp. 115-6. Resultado que, de certa maneira, estava posto pela natureza do próprio olhar clínico: “0 olhar se cumprirá em sua verdade própria e terá acesso à verdade das coisas, se pousar em silêncio sobre elas, se tudo se calar à volta do que ele vê. O olhar clínico tem essa paradoxal propriedade de ouvir uma linguagem no momento em que percebe um espetáculo. Na clínica, o que se manifesta é originariamente aquilo que se fala. A oposição entre clínica e experimentação recobre exatamente a diferença entre uma linguagem que se ouve e, consequentemente, que se reconhece, e a questão que se põe, isto é, que se impõe. O observador lê a natureza; o experimentador a interroga”. Ibidem, p. 108.

[25] Heráclito, fragmentos 40 e 31 em Ritter e Preller; 50 e 1 em Diels; 1 e 4 em Burnet.

[26] Platão, Primeiro Alcibíades, 133a-c.

[27] Plotino, Enéada 1, 16, parte 1,8.

[28] Charles de Bovelles, Le Sage (ed. Cassirer), in Individu et cosmos dans la philosophie de la renaissance, Paris, Minuit, 1983, p. 330.

[29] Giordono Bruno, “De Imaginum Compositione”, op, cit., t. o, p. 117.

[30] Marsilio Ficino, De Amore, Vi, 8, op. cit, p. 119.

[31] Ibidem, IV, 6 e 7, p. 115, 116.

[32] A interpretação da Primavera como talismã é feita por Frances Yates em Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, Londres, Routledge and Kegan Paul, 1964 (há tradução brasileira pela Cultrix, São Paulo). A interpretação de Yates parte de uma carta de Ficino a Lorenzo de Medici, publicada em E. Gom-brich (Imágenes Simbólicas, Madri, Alianza Editorial, 1986, pp. 73-4), e que transcrevemos a seguir:

“Meu imenso amor por ti, excelente Lorenzo, moveu-me já há muito tempo a dar-te um imenso presente. Ao que contempla os céus, nada sobre o que pouse o olhar lhe parecerá imenso, a não ser o próprio céu. Se, portanto, der-te de presente os próprios céus, qual será seu preço? […] Por último, deves pousar os olhos na própria Vênus, isto é, na Humanidade (humanitas). Sirva-nos isto de exortação e lembrança: nada grande possuiremos nesta terra sem possuirmos os próprios homens, de cujo amparo nascem todas as coisas terrenas. Aos homens, ademais, nenhum vínculo pode prender senão o da Humanidade. Toma, pois, cuidado, não vás desprezá-la supondo que é de origem terrena. Pois a, Humanidade é uma ninfa de gentiliza excelente, nascida dos céus e amada mais do que todas as outras pelo Deus Todo-Poderoso. Sua alma e sua mente são o Amor e a Caridade; seus olhos, a Dignidade e a Magnanimidade; suas mãos, a Liberalidade e a Magnificência; seus pés, a Gentileza e a Modéstia. O conjunto é, portanto, Temperança, Retidão, Encanto e Esplendor. Oh! que rara beleza. Que formosa de se ver! Meu querido Lorenzo, foi posta em tuas mãos um a ninfa de tal nobreza. Se te unires a ela em matrimônio e a declarares tua, ela adoçará tua vida inteira e te dará filhos formosos. Em suma, se dispuseres dessa maneira os signos celestiais e os teus dotes sairás intacto de todas as perturbações da Fortuna e com proteção divina viverás feliz e livre de cuidados”.

[33] Kepler, Astronomia Nova (ed. Peyroux), Paris, A. Blanchard, 1979, “Dédicace au Souverain Rodolphe II”, p. XXI.

[34] Charles de Bovelles, op, cit., pp. 431-3. A construção do olho intelectual hololâmpada tem como ponto de partida a afirmação de que há três olhos, dos quais o segundo — o humano — terá que ser recriado pelo homem: “Portanto, desses três olhos criados, o olho angélico, o olho humano e o olho animal, a saber, c) intelectual, o racional e o sensível, os dois mais potentes estão admitidos à contemplação de Deus, o sol natural de cada um deles. Entretanto, o olhar angélico percebe Deus na luz, enquanto o olhar humano o percebe na sombra. Quanto ao último, aquele que é possuído pelos animais sem linguagem, é preciso declarar que não pode ver de modo algum seu sol e que contempla nas trevas”, p. 404.

[35] Descartes, Meditações, São Paulo, Difel, 1962, p. 136.

[36] Descartes, Principia Philosophi a e, ed. A. P. Tannery, t.        Paris, Vrin, p. 22.

[37] Descartes, La Dioptrique, ed. fac-simile, Paris, Fayard, 1987, p. 71.

[38] O título da Mensagem das Estrelas é, por si mesmo, uma apresentação e descrição do telescópio: Sidereus Nuncius — Magna, longe que admirabilia spetacula pandens, suspiciendaque proponens unicuique, praesertim vero philosophis, atque astronomis, quas à Galileo Galileo patritio florentino patavini gymnasij publico mathematic°, Perspicilli nuper à se reperti beneficio sunt observata in Luna facie, Fixis in numeris, Lacteo Circulo Stellis Nebulosis […] quos nemine in banc usque diem cognilos, novissime Author deprabendit primus, atque Medicea Sidera nuncupandus decrevit A mensagem das estrelas, novíssima, que fala de coisas até hoje nunca vistas e conhecidas, mostradas pelo patrício florentino Galileu, só é possível graças ao instrumento que permite ver, o perspicaum. O título é, por si mesmo, apresentação e elogio do prodigioso instrumento. Galileu, usando pandens (que Virgílio emprega no sentido de “ver afastando-se”) e suspicienda (que Cícero usa para significar “olhar com veneração”), cremos que já indicava o perspicillum antes de nomeá-lo diretamente porque os relatos galilaicos sobre as diferentes maneiras como o empregava sugerem os sentidos que apontamos nos usos de Virgílio e Cícero. E que o termo suspicienda possa ter sido escolhido para significar veneração ou respeito profundo que merece operspicillum ou a mensagem estelar por ele trazida, assim o sugere o versículo do profeta (em hebraico: nabi, mensageiro e intérprete) Isaías: “Attenuati sunt oculi mei sus-picientes in excelsum” (38:14 — grifo meu). Lamento que, quase cego, Galileu repetirá.

[39] Galileu, “Dialogo sopra i due Massimi Sistemi del Mondo Tolemaico e Copernicano”, in Opere di Galileo Galilei (ed. A. Favaro), Florença, 1890-1909, t. VII, p. 363.

[40] M. Serres, Le Système de” Leibniz et ses modeles mathématiques, Paris, Presses Universitaires de France, 1968, t. 1, pp. 335-6

[41] Merleau-Ponty, L’Oeil et l’esprit, Paris, Gallimard, 1964, pp. 42-3 (há tradução brasileira, por Pedro Morais Filho, na Coleção Pensadores).

[42] Ibidem, p. 16.

[43] Ibidem, p. 32.

[44] Ibidem, p. 81.

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