O corpo da liberdade
por Renaud Barbaras
Resumo
As concepções clássicas da liberdade privilegiam ou a necessidade ou a vontade, ou a causalidade da natureza ou a causalidade da razão. Essa dualidade está presente na oposição sartriana entre para-si e em-si, consciência e realidade. Para Sartre, a ideia de graus de liberdade não faz sentido. A consciência é absolutamente livre porque é condição da liberdade, porque através dela podemos dar nosso assentimento a um destino (o que se aproxima da posição dos estoicos ou da equivalência entre intenção e ato em Kant). Mas essa posição, segundo Merleau-Ponty, é abstrata ou pelo menos unilateral. Ela não leva em conta a situação concreta do sujeito, pois afinal é o corpo, são nossas percepções que possibilitam uma relação singular com o mundo. Não tenho um corpo, ele diz, sou um corpo. Cada gesto é uma intenção encarnada, não há experiência passiva. Se minha situação no mundo é que orienta meu projeto, meu projeto é que dá sentido à situação. Assim não existe uma “pura liberdade”, como tampouco uma circunstância completamente determinante. Merleau-Ponty chama essa concepção da liberdade de “transcendência ativa” e a compara com a criação artística. Um ato livre é um ato de expressão. A vida nos dá o tema geral das situações e cabe a nós interpretar esse tema. Mais do que atores, somos os intérpretes de nossa vida. Mas isso não resolve todos os problemas. Permanece aberta a questão de conciliar, em cada situação ou circunstância, essa concepção existencial com uma concepção moral ou política da liberdade.
A questão mais comum com respeito à liberdade é a seguinte: somos livres ou não? Esta questão remete à uma alternativa fundamental, que divide as concepções clássicas da liberdade. Umas defendem o fato de que o princípio de causalidade aplica-se à vida psíquica e aos nossos atos, de modo que não podemos romper o curso necessário da natureza. Não há diferença entre um ato humano e um evento natural e, portanto, a experiência da liberdade como poder de começar algo, de iniciar uma nova série de atos é uma ilusão. O nosso poder de resistir a um desejo, de agir por motivos racionais num sentido contrário ao das nossas paixões repousaria, na realidade, sobre a presença de uma outra paixão, tão forte como a primeira mas de sentido oposto. Nessa perspectiva, todas as nossas ações inserem-se na necessidade universal. A essa posição opõem-se os defensores do livre-arbítrio e da autonomia da vontade. Eles põem em evidência o fato de que há algo no ser humano que o distingue dos seres naturais e que o torna capaz de escapar à coação das causalidades.Temos a capacidade de resistir a um desejo ou a uma dor, de acabar com um mau hábito, de iniciar um novo ciclo de vida — em resumo, de dizer não necessidade — só porque o decidimos. Nossa vontade é infinita no sentido em que ela situa-se além de qualquer coação e pode assim resistir a qualquer força: é por isso que é possível ficar calado sob tortura. Nessa perspectiva, que remonta ao menos aos estóicos e se desenvolve na filosofia clássica até Kant, somos livres enquanto temos essa aptidão, cujo nome mais comum é vontade, a resistir ao curso da natureza, isto é, a opor à causalidade natural uma outra forma de causalidade, a causalidade da razão, que determina aquilo que deve ser feito.
No entanto, é difícil negar que essa alternativa não corresponde à experiência que temos da ação. É uma dualidade abstrata — que nos submete à alternativa radical entre uma forma de escravidão, submissão completa às circunstâncias, e uma liberdade total, sem nenhuma dependência para com as circunstâncias — pois, afinal de contas, ela depende da pergunta: somos livres ou não? Ora, não é óbvio que a pergunta, relevante com respeito à liberdade, seja essa. Já podemos reparar que a liberdade não é uma característica adquirida de uma vez por todas — pois nesse caso já não teria sentido o problema da liberdade — mas, antes, uma característica de certos atos, uma certa exigência e, às vezes, uma certa experiência. Portanto, a pergunta certa não é: somos livres ou não? mas, antes: em que consiste a liberdade?, o que significa ser livre? Temos certa experiência, ou ao menos uma noção da liberdade, já que usamos a palavra, e trata-se portanto de compreender o sentido dessa experiência em vez de contestá-la de início como ilusão humana, como fazem os defensores da necessidade, ou de fundá-la numa faculdade específica, o que também equivale a não entendê-la.
Tal é a abordagem de Merleau-Ponty. Como fenomenólogó, o que ele quer é “retornar as coisas mesmas”, ou seja, à maneira como a liberdade manifesta-se concretamente. A liberdade já não é considerada uma essência ou uma faculdade, mas sim uma determinação concreta de certos atos, que requer uma descrição. Assim, contra a abordagem abstrata, Merleau-Ponty quer dar corpo à liberdade ao descrevê-la nas suas formas efetivas. Mas, além disso, ele mostra que não é possível entender o sentido da liberdade sem levar em conta a nossa encarnação essencial, isto é, o fato de que qualquer ato, mesmo o mais abstrato ou o mais intelectual, é um ato do corpo. O corpo é o verdadeiro sujeito da liberdade e é ao entender um pouco mais adiante o sentido desse corpo que poderemos dar sentido a uma liberdade concreta.
No entanto, para entender a especificidade da perspectiva que queremos desenvolver, é preciso levar a sério a ideia de que escapamos completamente à causalidade externa. Essa posição foi desenvolvida de maneira radical por Sartre, a quem se dirige a crítica merleau-pontiana. Sartre enfatiza a diferença de essência entre a consciência e a realidade, entre o Por-si e o Em-si. Trata-se de dois modos de ser que não têm nada a velum com o outro: o primeiro é caracterizado pela não-coincidência consigo mesmo, pela aptidão a se projetar no futuro, pela transcendência ativa, o segundo é caracterizado pela coincidência ou a identidade consigo mesmo e, portanto, pela ausência de negatividade e de temporalidade. A consequência disso é que, como consciência, somos absolutamente livres, ou seja, para além de qualquer determinação: com efeito, “para que algo pudesse determinar-me do exterior (nos dois sentidos da palavra determinar) seria preciso que eu fosse uma coisa[1]. Isso significa que se sou livre, o sou de uma vez por todas e não posso deixar de sê-lo. Isso também significa que a ideia de graus de liberdade não faz sentido uma vez que ela supõe modos de ação do mundo sobre a consciência, o que é impossível: devemos renunciar não apenas à ideia de causalidade mas ainda à de motivação.
Nada pode agir sobre uma consciência na medida em que ela não é uma coisa mas a fonte absoluta das coisas, aquilo pelo que as coisas e o mundo podem existir. Por conseguinte, tudo quanto pode aparecer como exterior à consciência e, portanto, suscetível de ter um efeito sobre ela, é constituído, na realidade, pela consciência e é, nesse sentido, interno. Tudo quanto parece ter uma incidência sobre a liberdade advém da consciência, portanto da liberdade. Assim, a ideia de uma determinação racional da liberdade, ou seja, de um motivo, mostra ser irrelevante e, inclusive, não corresponde à experiência que temos da decisão: “Na realidade, a deliberação decorre da decisão, é minha decisão secreta que faz os motivos aparecerem e nem mesmo se conceberia o que pode ser a força de um motivo sem uma decisão que ele confirma ou contraria. Quando renunciei a um projeto, repentinamente os motivos que eu acreditava ter para mantê-lo tornam a cair sem força”.[2]
Do mesmo modo, a ideia de obstáculo à liberdade é desprovida de sentido: os supostos obstáculos são desdobrados por ela. Por exemplo, um rochedo intransponível, grande ou pequeno: isso só tem sentido para alguém que se proponha a transpô-lo, para um sujeito cujos projetos recortem essas determinações na massa uniforme do em-si e o sentido do mesmo rochedo pode mudar, ele pode deixar de ser intransponível para transformar-se num abrigo sombroso ou numa proteção contra os inimigos conforme os meus projetos, de repouso ou de guerra. Em resumo, nessa perspectiva, “não há nada que possa limitar a liberdade, senão aquilo que ela mesma determinou como limite por suas iniciativas, e o sujeito só tem o exterior que ele se dá”.[3]
Por mais que essa perspectiva seja convincente e corresponda a uma certa experiência da nossa liberdade, cabe reconhecer que ela é indefensável. Com efeito, se todo o mundo é livre, ninguém é livre, ou antes, a liberdade torna-se desprovida de sentido, se todos os nossos atos são igualmente livres, a liberdade, como característica de certos atos, perde todo o seu sentido. Em outras palavras, nessa perspectiva, a liberdade torna-se um atributo definitivo, uma natureza ou uma essência: somos livres, nas iniciativas como nas paixões, na escravidão como na cidadania. Como somos radicalmente diferentes das coisas do mundo, “de nós ao mundo nada pode passar”, as nossas iniciativas não podem se exprimir na exterioridade, que é o reino da necessidade, e a ideia de ação, como realização de uma intenção ou de uma decisão, desaparece pura e simplesmente. Afinal, diz Merleau-Ponty, “estamos muito próximos à ideia kantiana de uma intenção que equivale ao ato”;[4] mas eu acho que, na realidade, estamos mais próximos ainda da posição estóica, segundo a qual a liberdade consiste na pura vontade, no fato de dar o nosso assentimento a um destino, de querer os acontecimentos que não dependem de nós, uma vez que não podemos transformar o curso desses acontecimentos — liberdade de escravo, como Hegel dizia. Nesse sentido, a posição sartriana de uma pura liberdade como determinação essencial do homem reverte-se numa forma de submissão aos acontecimentos.
Seja como for, primeiro, essa identificação da liberdade com a autonomia ontológica da consciência não abrange toda a nossa experiência da liberdade. Talvez seja verdade que a intenção equivale ao ato, mas o fato é que, como dizia Scheler, “o enfermo que quisesse salvar um afogado e o bom nadador que efetivamente o salva não têm a mesma experiência da liberdade”.[5] Se é verdade que a intenção basta para qualificar o ato como moral, não é suficiente para definir a liberdade: é nesse sentido que liberdade e moralidade não são equivalentes. Além disso, pensando bem, essa posição filosófica, que identifica liberdade e autonomia da consciência, é contraditória. Com efeito, a liberdade diz respeito a uma ação, ela não é uma aquisição mas uma realização. Ora, como ação, ela supõe uma situação, uma realidade na qual ela se inscreve, que resiste, e que, por essa razão, ela vai tentar transformar. Na verdade, a decisão diz respeito ao caráter insatisfatório, inaceitável ou insuportável da situação e, portanto, à necessidade de “fazer alguma coisa”, como se diz. Mas, mesmo que ela exija essa tomada de consciência e essa decisão ou resolução, a liberdade qualifica o próprio ato, como embate com a realidade, como negação, ou seja, trabalho no sentido hegeliano. Em outras palavras, o próprio conceito da liberdade, no que diz respeito a um ato, envolve uma relação com a realidade externa, com aquilo que não depende da consciência. Nesse sentido, toda liberdade é rigorosamente liberação, ela implica uma relação com um fundo de realidade previamente dado que, ao mesmo tempo, solicita o ato e lhe resiste: a liberdade não é uma natureza adquirida de uma vez por todas mas uma modalidade do fazer. É justamente esse fundo de realidade, regido pelas relações de causalidade e sobre o qual os atos destacam-se, que enseja reconhecer uma ação livre como transformando o curso dos acontecimentos naturais e distinguir graus de liberdade em função do seu modo de transformação dessa realidade. Assim, para além do poder irredutível de dar um sentido e de projetar um futuro, poder que caracteriza a consciência, a liberdade concreta consiste num ato e, portanto, na comunicação efetiva que esse ato estabelece entre o sujeito e o mundo.
Em resumo, a teoria sartriana da liberdade não é tão falsa quanto insuficiente ou unilateral. Ela vale negativamente, pelo que ele critica: é verdade que se nós nos reduzíssemos a meras coisas inseridas no curso dos eventos naturais, não haveria liberdade e, nesse sentido, a liberdade implica um poder de romper com esse curso, de sair da necessidade, poder que se enraíza na consciência enquanto ela nos distingue das coisas. Mas isto define uma condição de possibilidade, não uma condição de realidade. Que a consciência seja, sem dúvida, aquilo sem o que não haveria liberdade não significa que ela seja aquilo pelo que há liberdade, ou seja, que a consciência baste para definir a liberdade. Na verdade, o que está em jogo não é a necessidade de supor uma subjetividade, diferente das coisas, para dar conta da experiência da liberdade, é, antes, a caracterização adequada dessa subjetividade. A questão, que nossa análise levanta, é a seguinte: como conceber a subjetividade e, de modo mais geral, a existência humana, de maneira a dar conta da liberdade concreta como transformação, comunicação efetiva com o mundo?
A posição sartriana, que é uma forma de realização e de radicalização da perspectiva cartesiana, decorre de um pressuposto ontológico de natureza dualística. Há só dois modos de ser, o por-si e o em-si, a consciência e o objeto. Em consequência, na medida em que o ser em-si é caracterizado pela necessidade, a liberdade não pode deixar de depender do por-si: ela é a característica essencial da consciência, como consciência constitutiva do mundo. Contudo, o problema é saber se essa imagem da realidade é plenamente satisfatória. Será que podemos descrever o sentido de ser da realidade por meio da dualidade entre, de um lado, um ser que é pura coincidência consigo e, portanto, não tem nada a ver com á consciência e, do outro, uma consciência que dá sentido a tudo e, por conseguinte, não depende de nada? Na realidade, as dificuldades dessa concepção da liberdade remetem à insuficiência do contexto ontológico no qual ela se enraíza, de modo que a única maneira de dar conta da liberdade concreta é superar a dualidade do em-si e do por-si. Tal é o projeto de Merleau-Ponty, desde o início da sua obra. Trata-se, para ele, “de compreender as relações entre a consciência e a natureza, entre o interior e o exterior”. Ou, ainda, “de unir a perspectiva idealista, segundo a qual nada é senão como objeto para a consciência, e a perspectiva realista, segundo a qual as consciências estão inseridas no tecido do mundo objetivo e dos acontecimentos em si”.[6] Essa necessidade teórica decorre do fato de que Merleau-Ponty leva em consideração a situação concreta da subjetividade, ou seja, todas as dimensões da existência. De um lado, é incontestável que fazemos parte do mundo, que existimos em meio ao mundo e somos submetidos à ação dos eventos externos, mas, por outro lado, é igualmente inegável que não existimos como uma coisa qualquer, uma vez que fazemos a experiência do mundo e que, na verdade, não haveria nenhum mundo se não houvesse um sujeito pelo qual o mundo aparece. Em outras palavras, mesmo que façamos parte do mundo, temos o poder de nos destacar dele, de tomar uma distância em relação a ele e, assim, de lhe dar um sentido. Cabe reparar que essa situação dupla ou ambígua da nossa subjetividade é a condição de possibilidade da percepção e, na realidade, é por querer dar conta da percepção e fazer uma fenomenologia da percepção que Merleau-Ponty é conduzido a levar em consideração a complexidade da nossa situação ontológica. Com efeito, perceber significa fazer a experiência de algo como existente, entrar em relação com uma realidade externa mas de tal modo que ela se dê como a coisa que ela é. Ora, um sujeito que estivesse inserido no curso da natureza como uma coisa qualquer não poderia perceber, ter consciência de algo, mas, por outro lado, um sujeito puro, que não existisse dentro do mundo, que não tivesse uma comunicação com o mundo, também não perceberia, ou seja, não atingiria a existência da coisa, por falta de proximidade ou de parentesco ontológico.
É essa situação que Merleau-Ponty, na esteira de Heidegger, designa pela expressão “ser-no-mundo” (être-au-monde). Ela significa que, se fazemos parte do mundo, não pode ser como uma coisa qualquer, submetida às leis da natureza, isto é, temos uma relação ativa com o mundo, o mundo existe para nós, não como representação mas sim como mundo, de tal maneira que essa experiência do mundo confunde-se com a nossa ação no seu seio. Assim, ser-no-mundo significa ao mesmo tempo ser dentro do mundo e ser para o mundo. Ora, essas determinações remetem, em última análise, à nossa situação originária que é caracterizada pela encarnação: o corpo é que possibilita essa relação singular com o mundo, ele é “o veículo do ser-no-mundo”. Primeiro, cabe sublinhar que o corpo escapa às dualidades tradicionais da filosofia. Ele é uma coisa, um “corpo”, mas uma coisa à qual não posso dar a volta: não posso destacar-me do meu corpo como dos outros corpos do mundo e, se eu pudesse fazê-lo, significaria que tenho um outro corpo, diferente daquele. Além disso, quando toco minha mão esquerda com minha mão direita, sinto-a como um objeto dotado de certas propriedades objetivas mas, ao mesmo tempo, a mão sentida, a mão-objeto torna-se capaz de sentir a mão pela qual está sendo tocada, de manifestar uma sensibilidade. Assim, contrariamente aos outros objetos do mundo, meu corpo é um objeto sensível em cada um dos pontos da sua superfície. Como Descartes o reparou, não estou no meu corpo como um piloto no seu navio; não percebo uma ferida na minha perna do lado de fora como um piloto constatando um dano no casco do barco: sinto a dor na ferida, é a ferida que se manifesta na dor, é o meu corpo que se sente a ele mesmo. Estou como que misturado com ele, imerso nele. Da mesma maneira, meu corpo não é como um instrumento de que eu disporia de maneira permanente e que eu usaria para realizar as minhas intenções, por exemplo: agarrar um objeto. No gesto, a intenção não antecede a realização: o gesto é a intenção como encarnada e, muitas vezes, é pelos meus gestos que descubro as minhas próprias intenções. Entre mim e o meu corpo não há relação de causalidade ou de contiguidade mas sim de identidade: não tenho um corpo, sou o meu corpo. Nese sentido, o corpo é como o rosto da minha existência, a própria existência enquanto ela aparece no mundo, a existência encarnada. Ora, é esse corpo, enquanto situado no mundo e sensível ao mesmo tempo, que me põe em relação com o mundo e me torna capaz de apreendê-lo. É nesse sentido que Merleau-Ponty pode escrever que “a consciência é o ser para a coisa por intermédio do corpo”.[7] Em outras palavras, o corpo, como corpo próprio, ou seja, tal como o vivemos e não tal como é para o médico, é o verdadeiro sujeito da experiência.
Esta conclusão propicia uma nova determinação da nossa relação com o mundo e, portanto, uma nova abordagem da questão da liberdade. Como sujeito sensível, o corpo já não é uma mera coisa mas sim a condição de possibilidade da aparição do mundo, da experiência. Por outro lado, uma vez que sou o meu corpo, que o sujeito é necessariamente encarnado, essa experiência não pode ser reduzida a uma pura relação intelectual, a um ato de conhecimento; ela confunde-se com o desdobramento de uma ação corporal dentro do mundo. A nossa relação com o mundo é ao mesmo tempo e indistinguivelmente uma apreensão e uma ação. Na realidade, nas mais das vezes, é ao relacionar-me ativamente com uma situação que a compreendo, é ao agir que consigo entender. Assim, por exemplo, ver não consiste em receber conteúdos sensíveis como numa chapa fotográfica, não é um evento mecânico ocorrendo dentro do mundo: a visão é uma compreensão, ela exige uma subjetividade. Mas, por outro lado, ver não é pensar, não é o ato de uma consciência alheia ao mundo: eu vejo, literalmente, com os meus olhos, portanto com o meu corpo, na medida em que a visão exige que eu tome uma certa postura, que eu vire a cabeça, que eu movimente os olhos, que eu feche ligeiramente as pálpebras etc. Qual é a consequência dessa análise quanto ao sentido da ação? Em nenhuma ação ou experiência’ posso reduzir-me a uma mera coisa reagindo mecanicamente às circunstâncias externas: enquanto o meu corpo é meu corpo, ou seja, corpo de um sujeito, ele tem o poder de ultrapassar as situações, de romper com a necessidade, de dar um sentido ao que ele encontra ou o que lhe acontece. Mas, por outro lado, enquanto o sujeito é essencialmente encarnado e portanto inserido no mundo, em momento nenhum ele pode escapar completamente às circunstâncias e tornar-se uma pura consciência indiferente ao que acontece no mundo: como corpo, o sujeito fica aberto e portanto sujeitado aos eventos do mundo exterior. Pensando bem, longe de serem contraditórias, essas duas dimensões são dependentes uma da outra. Com efeito, o movimento de superação das determinações objetivas, de doação de sentido, que caracteriza a existência como encarnada, precisa de uma matéria, ou seja, de uma situação previamente dada para poder realizar-se. Se a consciência não se defrontasse com uma exterioridade, ela desapareceria como consciência ativa, do mesmo modo que o sol não iluminaria nada se não houvesse corpos opacos para lhe refletir a luz. Em outras palavras, justamente porque ela é transcendência, a existência não ultrapassa nada definitivamente, pois então a tensão que a define desapareceria.
Segue-se daí que a nossa existência escapa às categorias através das quais o problema da liberdade é tradicionalmente definido. Como Merleau-Ponty escreve na Fenomenologia da percepção,
no homem, tudo é natural e tudo é fabricado, como se quiser, no sentido em que não há uma só palavra, uma só conduta que não deva algo ao ser simplesmente biológico — e que ao mesmo tempo não se furte à simplicidade da vida animal, não desvie as condutas vitais de sua direção, por uma espécie de escapamento e por um gênio do equívoco que poderiam servir para definir o homem.[8]
Se eu sou transcendência, projeto desde meu nascimento, a própria distinção entre o que é dado e o que é criado perde o sentido: é impossível apontar um só gesto que seja inato, que não seja espontâneo, mas, por outro lado, não há um só gesto que seja absolutamente novo em relação à minha maneira de ser no mundo, que me define desde o começo. Assim, se abordamos a questão da liberdade a partir de uma descrição concreta da nossa existência como existência encarnada, a alternativa entre decisão e determinação, vontade ou livre-arbítrio e necessidade aparece como uma alternativa abstrata e portanto falsa. Enquanto sou existência, ou seja, transcendência ativa ou projeto, é claro que nenhum de meus atos é meramente mecânico e que, nesse sentido, escapo à necessidade natural: tal é a verdade incontestável recolhida pelas teorias idealistas da liberdade — mas, infelizmente, de uma maneira exclusiva ou unilateral. Com efeito, como a minha existência é encarnada (deveria-se dizer: é corpo), estou necessariamente imerso numa situação da qual dependo e que também me constitui: é nesse sentido que um ato de liberdade é sempre um ato de liberação. Enquanto tenho um corpo, nasci com determinações físicas que não escolhi, com certas aptidões, com uma situação geográfica e, portanto, histórica, com certos laços familiares e um meio social etc. Todas essas determinações não me determinam ou me coagem como uma natureza, no sentido em que minha vida não é a produção ou a consequência desses dados primitivos, eu tenho, e até eu sou, o poder de transcender essas determinações, de lhes dar um sentido, e é nesse sentido que não tenho nenhuma natureza. Mas nem por isso é possível passar por cima delas, resolver negá-las, pois elas não são exteriores à minha identidade, elas são aquilo que tenho que levar em conta, de que não posso prescindir, a minha situação. Em outras palavras, elas não me determinam mas também não posso fazer o que eu quiser em relação a elas: elas constituem uma motivação, no sentido em que são aquilo que orienta a minha ação, o ponto de apoio dos meus projetos, mas também aquilo que resiste e que devo superai, ao mesmo tempo fonte e obstáculo para minha transcendência. A liberdade não é senão essa transcendência enraizada provindo da minha encarnação: ela consiste, como escreve Merleau-Ponty em vários textos, “em assumir uma situação de fato, atribuindo-lhe um sentido figurado para além do seu sentido próprio”.[9]
A primeira consequência dessa caracterização é que é impossível, por princípio, delimitar a parte da situação e a parte da liberdade: é a situação que orienta o projeto mas é o projeto que dá sentido à situação. Deparamo-nos com uma circularidade que trai simplesmente a inadequação das categorias. Não existe um ato de “pura liberdade”, que não deva nada às circunstâncias, mas, da mesma maneira, não existe uma circunstância que seja completamente determinante e não possa ser superada e transformada.
Torturam um homem para fazê-lo falar. Se ele se recusa a dar os nomes e os endereços que querem arrancar-lhe, não é por uma decisão solitária e sem apoios; ele ainda se sente com seus camaradas e, engajado ainda na luta comum, está como que incapaz de falar […]. Esses motivos não anulam a liberdade, mas pelo menos fazem com que ela não esteja sem escoras no ser. Finalmente, não é uma consciência nua que resiste à dor, mas o prisioneiro com seus camaradas ou com aqueles que ele ama e sob cujo olhar ele vive […]. E sem dúvida é o indivíduo, em sua prisão, quem revivifica a cada dia esses fantasmas, eles lhe restituem a força que ele lhes deu, mas, reciprocamente, se ele se envolveu nessa ação, se ele ligou a estes camaradas ou aderiu a esta moral, é porque a situação histórica, os camaradas, o mundo ao seu redor, parecem esperar dele aquela conduta. Assim, poderíamos continuar sem fim a análise. Escolhemos nosso mundo e o mundo nos escolhe.[10]
A segunda consequência é que uma verdadeira ação, ou seja, uma ação suscetível de ser livre, não pode consistir numa negação da situação: ao contrário, é ao assumir uma situação que temos mais chances de superá-la. Toda negação maciça ou imediata é inevitavelmente urna repetição daquilo que foi negado, no sentido em que um operário que quer se tornar imediatamente um burguês, sem assumir a sua condição inicial, permanecerá a vida inteira um “operário que se tornou burguês” ou um novo-rico. Em outras palavras, é na situação de fato que podemos descobrir a força e os caminhos para superá-la, ao dar-lhe um sentido que ela não possuía previamente: a situação é sempre o seu próprio recurso.
Eu queria, à guisa de conclusão, fazer duas observações. Primeiro, essa concepção da liberdade como transcendência ativa, como ato pelo qual atribuo um sentido figurado a urna situação para além do seu sentido próprio, aparenta-se com urna descrição da criação artística. Desse ponto de vista, não é à toa que o texto de Merleau-Ponty sobre Cézanne seja provavelmente o mais esclarecedor de todos sobre a questão da liberdade. Com efeito, o trabalho do artista não consiste em realizar um projeto previamente concebido mas sim em transformar a matéria ao dar-lhe um sentido figurado. É um trabalho de expressão, e a expressão não é a tradução ou a comunicação de uma ideia ou de urna significação, mas o ato pelo qual desvenda-se o sentido que ficava implícito na matéria e que, a rigor, não existia verdadeiramente antes de ser manifestado e encarnado numa obra. Assim, a expressão também pode ser caracterizada pela circularidade que vimos acima a propósito da ação humana. Um ato livre é, portanto, um ato de expressão, uma vez que dá um sentido novo a uma matéria, urna situação, que o indicava ou, até, exigia sem possuí-lo positivamente. Assim, poderíamos dizer que Merleau-Ponty retorna e transforma a metáfora artística que os estóicos usavam para dar conta da liberdade. Diziam que a nossa vida é corno urna peça já escrita e que se trata de representá-la da melhor maneira possível. Para eles, a liberdade consiste numa coincidência com o destino: somos os atores da nossa própria vida. Diferentemente, para Merleau-Ponty, a vida nos dá o terna geral através das situações e nos incumbe interpretar o tema no sentido em que um artista qualquer inscreve-se numa tradição e trabalha também a partir de temas.
Mas a interpretação no sentido artístico é tudo menos repetição; ela é uma verdadeira criação e, na realidade, o tema não existe fora das interpretações que ele possibilita. Nesse sentido, na concepção merleau-pontiana da liberdade, não somos os atores mas sim os intérpretes, ou seja, os criadores da nossa vida.
A minha segunda observação resume-se numa questão, que eu queria me limitar a levantar com vista à discussão. Será que conseguimos, com essa concepção da liberdade, resolver todos os problemas colocados no início? Se a liberdade é definida como um poder de transcendência, que é sinônimo da existência, cabe concluir que, de certa forma, todo o mundo é livre. Mas como então distinguir um ato verdadeiramente livre? Como dar conta da nossa experiência da dependência para com as circunstâncias? Como dar conta da responsabilidade, enquanto ela remete à liberdade do ato? Será que devemos concluir pela impossibilidade de conciliar uma concepção existencial com uma concepção moral ou política da liberdade?
[1] M. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura, São Paulo: Martins Fontes, 19, p. 582.
[2] Idem, ibidem, p. 583.
[3] Idem, ibidem, p. 584.
[4] Idem, ibidem, p. 499.
[5] Idem, ibidem, p. 585.
[6] Idem, ibidem, p. 574.
[7] Idem, ibidem, p. 193.
[8] Idem, ibidem, p. 257. Tradução modificada.
[9] Idem, ibidem, p. 635.
[10] Idem, ibidem, p. 609.