2012

O leitor preguiçoso

por Francisco Bosco

Resumo

Os textos de vanguarda costumam oferecer resistência. Interferem no ritmo da leitura, exigindo seu retardamento, afetando, portanto, a temporalidade da leitura, obrigando-a a um ritmo lento, minucioso, concentrado.

Uma das diferenças em que se baseia a tipologia desenvolvida por Barthes, distinguindo “textos de prazer” e “textos de gozo”, situa-se justamente na temporalidade da leitura: os textos de prazer – também ditos “clássicos”, ou “legíveis” – não oferecem resistência, proporcionam uma leitura fluente, desimpedida, convidam mesmo a pular passagens, sem perda de entendimento; já os textos de gozo – igualmente chamados de “modernos”, ou “escrevíveis” – exigem uma leitura “aplicada”, sob pena de, ao não-obedecimento dessa exigência, punir o leitor com a preguiça, a improdutividade e, finalmente, a capitulação: abandona-se o texto. Não respeitar as temporalidades respectivas pode, assim, causar aborrecimento.

Na literatura moderna, notadamente a partir de meados do século XIX, encontram-se procedimentos textuais que, alterando a temporalidade da leitura e exigindo uma alta produtividade do leitor, engendram um leitor preguiçoso, isto é, um leitor que desanima frente às exigências de temporalidade e esforço próprias ao texto moderno. Para além de gostos pessoais, idiossincrasias irredutíveis e legítimas, trata-se de compreender a relação entre economias textuais e modos de leitura, em cujo desencontro se pode perceber a causa do leitor preguiçoso, entediado, logo demissionário.


A pertinência do tema proposto para o ciclo Mutações deste ano — Elogio à preguiça — é evidente. Sob a égide do capitalismo desenfreado (se é que pode haver um capitalismo moderado, questão controversa), a ética do trabalho inoculou-se com tal eficácia que o ócio, para nós, tornou-se algo como a natureza para os românticos, e a preguiça, excluída como o sexo na era vitoriana. Alguns dos filósofos convidados para este ciclo dedicaram-se a investigar como se formou, historicamente, a ideia do trabalho como valor, bem como a compreender suas inflexões mais recentes e, sobretudo, a distinguir entre o trabalho alienado, que rebaixa e submete o sujeito, e o trabalho como autorrealização, que o engrandece e liberta. Trata-se, nessa perspectiva, de afirmar a preguiça como valor, contrapondo-a à noção de trabalho alienado. A preguiça aparece, então, como uma recusa plena, afirmativa, a uma ação degradante.

Há contextos existenciais, entretanto, em que desponta a forma negativa da preguiça. Aí, ela não se revela uma recusa plena à ação, mas a impossibilidade de agir plenamente. Um desses contextos é o da experiência da leitura, atividade de autorrealização por excelência. Na cena, por exemplo, da recusa diante das obrigações escolares de leitura, encontramos essa modalidade infeliz da preguiça, que ativa alguns dos significados de sua etimologia: em latim, pigritia vem de piger, “relutante”, “de má vontade”, “indolente”, “moroso”. Pode-se objetar que os deveres escolares se mostram habitualmente como uma forma de trabalho alienado, cuja dimensão de autorrealização a criança ou o adolescente não compreende. Mas a cena da preguiça, do tédio diante da leitura, reaparece, na vida adulta, em atividades libertas de qualquer coerção. A questão de que tratarei começa aqui: por que pode ser tediosa a experiência da leitura?

Enunciada assim, a questão é, claro, demasiadamente ampla e encerra uma dimensão singularizante imponderável. O tédio da leitura pode acometer um leitor de vasto repertório filosófico diante de um livro de autoajuda; outro leitor, de diverso repertório, pode entusiasmar-se com o mesmo livro. E a recíproca é verdadeira: um leitor sem formação em textos teóricos desanimará rapidamente em face de um texto filosófico que para um professor de filosofia será estimulante. Como só se pode tratar de recepções atuais, e não das virtuais, essa dimensão da questão é, por natureza, inabordável. Há, entretanto, uma dimensão imanente no problema: determinados procedimentos textuais, certas práticas de linguagem, obstruem, transtornam, dificultam a produção de sentidos por parte do leitor, exigindo dele um esforço, uma intensa atividade, ante a qual, dependendo de sua postura — de sua velocidade, como procurarei mostrar —, abater-se-ão sobre ele a preguiça, o desânimo, o tédio e logo a desistência da leitura.

Pois bem, minha proposta aqui é a de identificar e descrever quais são esses procedimentos que tornam o texto resistente à leitura, obstacularizando a sua fluência; delimitar historicamente o surgimento, ou pelo menos a radicalização e o uso extenso desses procedimentos, bem como indicar suas possíveis causas históricas; e, finalmente, argumentar a favor da necessidade de um ajuste da temporalidade da leitura, a fim de que a recusa preguiçosa possa dar lugar ao trabalho criativo da produção de sentidos e ampliação subjetiva.

***

Há alguns anos, o site da Amazon Books continha uma ferramenta cujo propósito era medir a dificuldade de um livro. Segundo os critérios adotados pelo site, um livro de Saramago deve ser considerado mais difícil do que o Ulisses, de Joyce, assim como Paulo Coelho mais árduo do que Hemingway. A coisa era de uma singeleza comovente: os livros serão considerados tanto mais difíceis quanto maiores forem suas frases e suas palavras, de forma que a Amazon jamais venderá um único exemplar da Recherche, e Proust se transforma no Clóvis Bornay da literatura: hors-concours da dificuldade. Diante de tal simplificação, cabe colocar-se a pergunta: o que torna difícil um livro? Por que meios a linguagem se faz resistente à leitura? Entre muitas outras características possíveis, e que envolvem variáveis instáveis — como a evolução semântica e morfológica das línguas, a transformação dos contextos culturais e o repertório singular de cada leitor —, procurarei identificar alguns procedimentos que tornam o texto resistente à produção de sentidos, em maior ou menor grau, por qualquer leitor. Serão três os procedimentos descritos, atuantes, respectivamente, em âmbitos diversos da linguagem: (1) na sintaxe e até na morfologia; (2) nas técnicas narrativas; e (3) no fluxo semântico.

Jakobson dizia que, “na combinação de unidades linguísticas, há uma escala ascendente de liberdade”[1]. Ou seja, na sua estrutura mais básica, a formação de fonemas, a liberdade do falante é zero. Na combinação de fonemas a fim de formar palavras, a liberdade é também muito restrita, pois as palavras já são transmitidas ao falante, e cabe a ele empregá-las. O caso de criação de palavras por um falante (um escritor) é incomum, e causador ele mesmo de dificuldades de compreensão, já que se está transgredindo um acordo básico da comunicação (é o que fazem, por exemplo, Lewis Carroll, James Joyce e Guimarães Rosa). A margem de manobra do falante aumenta nas combinações sintáticas. Mas em geral as línguas estabelecem padrões de ordem sintática, determinadas sequências cuja inversão causa estranhamento e desconforto ao receptor.

Um procedimento, portanto, causador de dificuldades de leitura é aquele que atinge a ordem sintática habitual. Como se sabe, inversões sintáticas são muito recorrentes em poesia, sobretudo em versos metrificados, que obrigam o escritor a jogar com as diversas possibilidades de combinação entre as palavras para adequá-las à medida estabelecida. Tal operação não é exclusiva da literatura moderna, mas avançar no sentido de transgredir a própria morfologia, não apenas inventando palavras novas, como desfigurando suas formas, isso me parece que é propriamente moderno. É o que encontramos, por exemplo, na poesia de Ferreira Gullar.

Como já narrou diversas vezes o próprio poeta, no ano de 1953, quando escrevia o que viria a ser seu livro A luta corporal, ele estava então em busca da “poesia essencial”. Tratava-se, para Gullar, de rejeitar as técnicas poéticas estabelecidas, pois estas lhe pareciam exteriores a si próprio, e procurar uma expressão poética que pudesse ser “uma sabedoria do corpo”[2]. Sem entrar no mérito da pertinência teórica de suas formulações, acompanhemos o processo a que essa busca o levou. De início, surgiu uma poesia autorreferente, um poema sem anterioridade (expressiva, psicológica, social), contemporâneo de si mesmo: “Cerne claro, cousa/ aberta, / na paz da tarde ateia, branco, / o seu incêndio”. Gullar queria que nessa poesia “a linguagem não existisse antes do poema: a feitura do poema seria a invenção da própria linguagem, que nasceria com ele, nova, sem passado”. Evidentemente, contudo, a linguagem, com toda a anterioridade que lhe é constitutiva, permanecia existindo antes do poema e determinando-o. O poeta suspeita, então, que “a dificuldade residia na própria estrutura discursiva da linguagem” e arrisca uma escrita que atinge a sintaxe, não apenas invertendo sua ordem habitual, mas interrompendo-a, esburacando-a, como se, destruindo o discurso, lograsse, “com isso, revelar o que ele oculta”: “há os trabalhos e (há) um sono inicial, há os trabalhos/ e um sono inicial/ SONO/ há os trabalhos e um sono inicial, HÁ,/ os trabalhos se há um sono inicial / / cristais da/ ORDEM / tresmalham / / não te pergunto: espio/ máquina extrema!”.

Insatisfeito ainda, o passo seguinte do processo é o conhecido “Roçzeiral”, um poema-limite, que acabaria levando a escrita de Gullar a um beco sem saída: “UILÁN/ UILÁN, / lavram z’olhares, flamas!/ CRESPITAM GÂNGLES RÔMASUAF / Rrha”. Aqui, é a morfologia que é violentada, desfigurada. Chega-se ao limite, pois se está transgredindo, como explica Jakobson, as unidades mais básicas das combinações linguísticas. A dificuldade de produção de sentido é aqui a mais intensa — pois a unidade semântica básica, que é a palavra, está comprometida — ou, talvez, contrariamente, a menor possível, se se considerar que, atingida desse modo a morfologia, a linguagem perde seu estatuto simbólico e passa ao domínio da pura materialidade. Seja como for, o processo de Gullar em busca da “poesia essencial só poderia levá-lo, como levou, a um fracasso. A poesia nunca poderá ser essencial, pois a linguagem é constitutivamente impura, de certo modo fracassada ela mesma, uma vez que tensionada ao real que ela a um tempo faz aparecer e desaparecer, representa e produz, é e não é. A destruição do que há de anterioridade e transmissão cultural na linguagem não revela o que por detrás dela supostamente se oculta. Não há, como viria a dizer o filósofo, fora da linguagem. Toda experiência de linguagem que procura solucionar a sua tensão irredutível acaba não conquistando o real, mas perdendo a realidade.

O escritor alemão W.G. Sebald disse, certa vez, a um critico literário: “Para mim, a literatura que não admite a incerteza do narrador é uma forma de impostura muito, muito difícil de tolerar. Acho meio inaceitável qualquer forma de escrita em que o narrador se estabelece como operário, diretor, juiz e testamenteiro”[3]. Com efeito, o narrador chamado onisciente, típico dos grandes romances realistas do século XIX, foi cedendo lugar a um narrador inseguro, que tende a se fundir com seu(s) personagens(s), fazendo aflorar no texto a voz da consciência, com a velocidade elíptica que lhe é própria, sem que explicações externas venham elucidá-la ao leitor. Tal narrador é, sem dúvida, mais coerente com as transformações epistemológicas por que passou o Ocidente na modernidade, com a perda de sustentação do discurso religioso, a desestabilização total dos parâmetros morais, o surgimento da psicanálise e sua postulação do inconsciente etc. Como explica Auerbach: “O alargamento do horizonte do ser humano e o enriquecimento em experiências, conhecimentos e possibilidades de vida, que começara no século XVI, avança no decurso do século XIX em ritmo sempre crescente, e desde o princípio do século XX o faz com uma aceleração tão violenta que a cada instante tanto produz ensaios de interpretação sintático-objetivos como os derruba”[4].

Esse estado de complexidade e incerteza engendraria um novo narrador, tão ignorante em terceira pessoa como é o narrador em primeira pessoa. Perdida de vez a confiança no conhecimento, em sua estabilidade e capacidade de totalização, a realidade objetiva não pode mais ser abordada de uma única perspectiva, mas de várias, e sem esperança de que de tal mosaico resulte uma síntese. Assim, “o que é essencial para o processo e para o estilo” desses escritores “é que não se trata apenas de um sujeito, cujas impressões conscientes são reproduzidas, mas de muitos sujeitos, amiúde cambiantes”[5].

O estilo indireto livre, ou terceira pessoa íntima, que caracteriza essa técnica de narração abrange modos diversos de efetivação. Nos casos mais radicais, não só a voz do narrador em terceira pessoa desliza para, ou mesmo se funde com, a do personagem, como a narração muda sucessivamente de perspectiva, sem nenhum tipo de sinalização, gramatical ou tipográfica, para avisar o leitor dessa transição. Assim, o estilo indireto livre tanto pode ser fluente, de modo que o leitor compreende a transição, sem necessariamente dar-se conta dela, como, ao contrário, pode ser árduo, fazendo com que o leitor subitamente se veja fora do trilho, tendo que retomar seus passos para ver onde se desgarrou.

Vejamos este trecho de To the lighthouse, de Virginia Woolf: “Escutou. A porta da sala estava aberta; a porta do hallestava aberta; parecia que as portas dos quartos estavam abertas; e certamente a janela do patamar estava aberta, pois essa ela mesma a abrira. Que as janelas devem ficar abertas e as portas fechadas por mais simples que fosse, ninguém podia lembrar?”[6]. Sabemos com certeza, pela pessoa verbal, que a primeira palavra-frase do trecho é dita pelo narrador. Pelo tempo verbal, pretérito imperfeito, sabemos que ele continua falando na frase seguinte. Mas a última frase parece fundir a voz do narrador com a do personagem: “que as janelas devem ficar abertas” é um modo irritado de pensar, mesma irritação que se ouve na queixa final: “ninguém podia lembrar?”, onde o pretérito imperfeito e o tom irritadiço parecem situar a frase como uma mistura indissolúvel de narrador e personagem. Nesse caso, o leitor sente essa fusão e compreende sem dificuldades o trecho.

Agora vejamos esta passagem do Ulisses, de Joyce: “Stephen inclinou a cabeça para a frente e examinou o espelho, fendido por uma rachadura tortuosa, estendido para ele. Cabelo em pé. Como ele e outros me veem. Quem escolheu esse rosto para mim? Este corpo de cão que tem de se livrar de vermes”[7]. Aqui, a terceira pessoa não se funde com a primeira, antes essa última assume a narração a partir de “Cabelo em pé”. Mas a transição é clara, e sinalizada pelo pronome oblíquo da frase seguinte (“me veem”). Há ainda uma relação de continuidade entre o que a terceira pessoa dizia e o que a primeira passa a dizer (o examinar-se no espelho e o interrogar-se sobre o próprio rosto).

Há, entretanto, diversas passagens em To the lighthouse e Ulisses que se afiguram enigmáticas, indeterminadas, tanto pela transição, sem aviso, de perspectiva, como pela técnica interna do stream of consciousness (em geral os dois procedimentos andam juntos). Nesse último caso, frequentemente o leitor desconhece o que a própria consciência sabe e pensa, e não conta, aquele, com o narrador em terceira pessoa para vir em seu auxilio decifrando aquela. Como na seguinte passagem de Ulisses, escolhida entre inúmeras outras possíveis: “Ele continuou a andar, esperando que lhe fosse dirigida a palavra, arrastando sua bengala a seu lado. Sua ponteira seguia ligeiramente pelo caminho, chiando em seus calcanhares. Meu espírito-bruxo, atrás de mim, me chamando, Steeeeeeeeephen! Uma linha oscilante ao longo do caminho. Eles vão caminhar por ele de noite, vindo aqui no escuro. Ele quer a chave, ela é minha. Eu paguei o aluguel. Agora eu como seu pão salgado. Dê-lhe a chave também. Tudo. Ele vai pedi-la. Isso estava claro em seus olhos”[8]. É nítida a transição de perspectiva a partir de “Meu espírito-bruxo”, mas tudo o que a consciência pensa é bastante obscuro. Por que Stephen se sente perseguido por seu “espírito-bruxo”? Que caminho é esse? Quem são “eles”, da frase seguinte?

A técnica narrativa do monólogo interior cria dois níveis de dificuldade, que obrigam o leitor a retardar a velocidade da leitura. Primeiramente, como dito acima, a reprodução do modo de pensar da consciência, radicalmente elíptico, muitas vezes indeterminado, faz com que o leitor se veja com frequência em uma espécie de túnel escuro, onde procura dirigir mais lentamente, na esperança de a sua visão acostumar-se com o ambiente. Junto a isso, o monólogo interior sempre entrelaça pelo menos uma ação externa e um fluxo interno, fazendo com que aquela, que leva apenas alguns segundos na experiência da realidade, se condense e se avolume, tendo sua temporalidade intensamente expandida. Conforme escreve Auerbach, sobre um longo trecho de Virginia Woolf: “Neste episódio totalmente carente de importância são entretecidos constantemente outros elementos, os quais, sem interromper o seu prosseguimento, requerem muito mais tempo para serem contados do que ele duraria na realidade”[9]. Com efeito, a leitura de livros como To the lighthouse, de Woolf, ou Ulisses, de Joyce, mobiliza uma experiência de tempo dilatado. A linguagem verbal já produz, por si, essa experiência, pois uma mesma cena que o cinema poderia narrar em poucos segundos por meio da imagem pode levar toda uma página e alguns minutos em um livro. Essa lentidão é intensificada pela técnica do monólogo interior.

Podemos identificar na literatura moderna outro procedimento, que proponho chamar de erosão do sentido, causador de transtornos na temporalidade da leitura. Para os fins limitados do interesse desta análise, entendo por sentido o fluxo ideacional que tem como regulador a proximidade (a coerência) semântica: assim, se eu disser “a casa é amarela”, trata-se de uma frase que “faz sentido”, pois uma das possibilidades paradigmáticas da casa é ter a cor amarela. Se, entretanto, eu disser que “um cão ladrou à porta barbuda em mangas de camisa e uma lanterna bicor mostrou os iluminados na entrada da parede”, o fluxo de sentido é perturbado, já que as ideias de “porta” e “barbuda” não são semanticamente próximas e coerentes segundo a organização habitual de nossa experiência da realidade; o mesmo vale para as “mangas de camisa” em relação ao “cão” e para o oxímoro “entrada da parede”. Essa perturbação do fluxo de sentido, sua erosão, teve largo emprego na literatura moderna a partir, pelo menos, de Rimbaud. Transformou-se mesmo em procedimento programático no surrealismo, através da conhecida definição da imagem poética por Pierre Réverdy: “A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes. Quanto mais as relações das duas realidades aproximadas forem longínquas e corretas, mais a imagem será forte — mais poder emotivo e realidade poética ela terá”[10].

A imagem poética do surrealismo deve, portanto, emancipar-se dos modos de organização da realidade, tornando-se uma “criação pura do espírito”. Para isso, em vez de ela se formar por meio de uma “comparação” — que respeitaria o princípio de composição da realidade —, ela deve, contrariamente, combinar elementos que na realidade nunca se apresentam associados. Quanto mais distante for a relação desses elementos na realidade, maior será a intensidade da imagem poética pura. Aqui o Surrealismo revela toda sua filiação a Rimbaud. Pois, como mostrou Marjorie Perloff em seu excelente estudo da poesia moderna, The poetics of indeterminacy, o precoce poeta francês, em suas Illuminations, evoca ‘cidades’ que são, desde o início, impossíveis de serem localizadas no espaço ‘real”’[11]. Esse conjunto de poemas de Rimbaud inaugura uma tradição da poesia moderna, uma linguagem que não mais se organiza ao modo da realidade, que não mais se reporta a ela, ainda que cripticamente (como faz a tradição simbolista de Mallarmé e Eliot), mas que produz breves fulgurações cujo brilho, como bem soube ver Réverdy, ressai de sua transgressão mesma da realidade. Se admitirmos, como estou propondo, que nossa produção habitual de sentido se funda na nossa experiência habitual da realidade, a desconstrução, o embaralhamento das formas de combinação da realidade no texto literário perturba e transtorna a produção de sentido na leitura.

“Na floresta incendiada/ os leões eram frescos”[12], escreverá Breton. Note-se que esse procedimento, que proponho chamar “desassociativo”, é decisivamente diferente da figura da metáfora. Jakobson diz, com razão, que o Surrealismo é metafórico, mas é preciso entender com justeza essa colocação. O linguista de Praga refere-se ao fato de que a metáfora é uma figura vinculada ao eixo da seleção linguística (assim como a metonímia é uma figura ligada ao eixo da combinação). Com efeito, prevalece nas obras surrealistas a operação inovadora de seleção dos elementos — palavras, no caso de textos, ou imagens, nos quadros —, e não tanto a ordem em que esses elementos são colocados. Para Magritte, interessa,pintar uma chuva de homens, ou uma imensa rocha flutuando sobre o mar; é daí, da escolha desses elementos segundo um princípio irreal, ou surreal, que vem a sua força. É claro que, conforme define Réverdy, esses elementos devem ser aproximados, mas não se trata propriamente de uma organização sintática, como ocorre no Cubismo, metonímico por excelência, pois nele a força poética resulta de uma combinação de partes de um mesmo elemento segundo uma ordem tal — uma justaposição de ângulos diversos do mesmo objeto — que a percepção humana é incapaz de fazer. É nesse sentido que o Cubismo é metonímico, como o Surrealismo é metafórico, pois a metáfora pertence ao eixo da seleção. Contudo, de que modo opera a seleção no Surrealismo? Aqui entra a diferença, pois o procedimento que chamo de desassociativo é decisivamente diverso da figura da metáfora.

A metáfora é uma economia de linguagem que opera com a dialética identidade/diferença, enquanto o procedimento desassociativo intenta anular a dimensão da identidade e radicalizar a da diferença. É a dimensão da identidade na metáfora que justifica a aproximação de palavras, em princípio, distantes na experiência da realidade. Vejamos esta metáfora do fogo, por D.H. Lawrence: “Aquele buquê impetuoso de novas chamas na lareira”[13]. A eficácia da metáfora reside na descoberta da semelhança imprevista entre a forma de um buquê impetuoso e as chamas da lareira. Nessa esplêndida metáfora, tanto a semelhança é insuspeitada, como a diferença é intensificada, pois um buquê é fresco e delicado, enquanto chamas são agressivas e incandescentes. É dessedouble-bind que resulta uma metáfora poderosa.

Assim, a metáfora não quebra o fluxo de sentido, salvaguardado pelo princípio de identidade, apenas lhe acrescenta sua contraparte, a diferença, que provoca o efeito poético. A erosão do sentido, contudo, é um procedimento qualitativamente distinto, pois procura suprimir a identidade, realizando-se somente na diferença.

***

Foi a partir da segunda metade do século XIX, tal como mostram os exemplos escolhidos, que a literatura começou a apresentar sistematicamente esses procedimentos textuais que dificultam a produção de sentidos pelo leitor e interferem na experiência temporal da leitura, retardando-a. Tais procedimentos tornam o texto resistente ao leitor, de quem doravante a literatura exigiria muito mais do que a capacidade de conhecer os códigos da língua e da cultura em que ela está escrita. O “leitor ideal” da literatura moderna é aquele que se deixa entrever pela dedicatória de Igitur: “À inteligência do leitor”. Mallarmé não está sozinho. Pouco antes dele, como vimos, Rimbaud instaurara a possibilidade de as palavras se emanciparem do mundo concreto a que a linguagem está, constitutivamente, tensionada, deixando o leitor de seus poemas, de suas Iluminações, sem a referência da realidade. O leitor ideal de Joyce, por sua vez, pelo menos a partir de Ulisses, deve conhecer múltiplos códigos eruditos, da teologia à filosofia, passando pelas diversas línguas, vivas e mortas, que o escritor disponibiliza na formação de seus portemanteaux. O texto de Joyce, empregando ainda a técnica narrativa do stream of consciousness, com sua representação do modo de pensar radicalmente elíptico da consciência, “exige muito do leitor”, nas palavras de Auerbach, “quanto à formação e paciência”[14]. À medida que as formas explodem e as vanguardas, já no início do século XX, vão rompendo sucessivamente com a tradição e o passado imediato, o leitor exigido pela literatura moderna passa a ser aquele que conhece o código da própria literatura moderna, que assim se autonomiza como uma espécie de língua dentro da lingua, uma “distância aberta no interior da linguagem”, na formulação de Foucault[15], ou ainda uma “tradição da ruptura, na expressão consagrada de Octavio Paz[16].

Em linhas gerais, parece-me que antes desse período qualquer leitor com bom domínio do código de sua cultura e de sua própria língua estaria apto, em princípio, a ler os textos literários escritos nessa língua. Sendo um romance paródico, o Quixote não demanda do leitor que conheça a tradição parodiada — no caso, a dos romances de cavalaria — para que compreenda as desventuras do Cavaleiro da Triste Figura. Um membro da comunidade linguística do italiano, com bom conhecimento do código de sua língua, estava, no século my, apto a ler os sonetos de Petrarca, bem como os membros da comunidade de língua portuguesa em relação aos poemas satíricos do Boca do Inferno, os francófonos quanto a Racine, Stendhal ou Balzac, os anglófonos em relação a Hawthorne, Wordsworth ou mesmo Whitman, e assim por diante. É claro que há economias textuais muito diferentes nessa série aleatória; que a sintaxe de Gregório de Matos pode ser de difícil compreensão; que As ilusões perdidas não é exatamente um texto de entretenimento; que Shakespeare apresenta uma densidade semântica inexcedível. Em suma, que toda literatura digna do nome estabelece uma diferença quanto aos modos de escrita ou de representação do mundo em sua época, requerendo portanto um leitor produtivo, uma leitura ativa, uma ampliação do repertório. Mas não parece menos claro que a literatura moderna propõe radicalizar ao extremo a produtividade do leitor, que essa (des)medida configura uma economia textual sem precedentes na história da literatura e transforma a experiência da leitura, conferindo-lhe traços particulares. É essa a hipótese que tentarei defender aqui. Venho chamando de literatura moderna, portanto, o conjunto de textos, produzidos notadamente a partir de meados do século XIX, que partilha de uma economia regulada por procedimentos causadores de grande resistência à produção de sentidos.

Apresentarei agora duas visões do processo histórico que teria levado a isso. A primeira é de Foucault; a outra, de Peter Burger, em seu conhecido Teoria da vanguarda. Em uma conferência intitulada “Linguagem e literatura”, Foucault diz que a literatura começa, em sentido estrito, entre o final do século XVIII e o início do XIX, época em que ocorre o colapso da “palavra-modelo”, que garantia a comunicação e fazia da “literatura” uma ilustração da verdade. Essa palavra-modelo, a palavra de Deus, da verdade, da moral, em suma, das grandes molduras do mundo, entra em crise e retira da “literatura” seu fundamento: é precisamente aí, na perda de seu fundamento, que começa a literatura, tal qual hoje a conhecemos. Embora nós, modernos, chamemos de literatura as obras de Eurípedes, Dante ou Cervantes, não é certo, para Foucault, que elas sejam consideradas literatura relativamente às suas próprias culturas: “Parece-me possível dizer que, na época clássica, de todo modo antes do final do século XVIII, toda obra de linguagem existia em função de uma determinada linguagem muda e primitiva, que a obra seria encarregada de restituir. Essa linguagem muda era, de certo modo, o fundo inicial, o fundo absoluto sobre o qual toda obra vinha, em seguida, se destacar e se alojar. Essa linguagem muda, linguagem anterior às linguagens, era a palavra de Deus, dos antigos, a verdade, o modelo, a Bíblia, dando a essa palavra seu sentido absoluto, isto é, seu sentido comum”[17]. Tal linguagem anterior fazia com que as obras “literárias” fossem uma espécie de atualização, concreta, de seu sentido transcendental, que era compartilhado culturalmente.

Para Foucault, havia assim um continuum de linguagem, ou melhor, de sentido, entre as obras literárias pré-modernas e a totalidade das demais manifestações de linguagem. A retórica é compreendida como o conjunto de “sinais manifestos e visíveis de que se trata de literatura”[18]. Se toda palavra era atualização de uma palavra transcendental, logo muda, oculta, era a retórica que, por meio de suas figuras, marcava certas obras como literárias. Ora, a retórica desaparece junto com o desaparecimento das linguagens-modelo, em meio à crise dos fundamentos que define a experiência moderna. Doravante, a literatura estará “encarregada de definir os signos e os jogos pelos quais ela vai ser, precisamente, literatura”[19]. A perda do fundamento a obriga a defrontar-se com a questão de sua identidade: “o que é a literatura?”, como interroga repetidamente Blanchot, passa a ser a pergunta por onde ela recomeçará, a cada vez, sem que nunca possa deixar de reiniciar repetindo esse vazio inaugural (a propósito, Barthes também escreveria: “Cada escritor que nasce abre em si o processo da Literatura”). É desse vazio, quando a literatura deixa de “representar uma linguagem já pronta”[20], que surgiriam os novos procedimentos textuais de que tratarei adiante. No meu modo de ver, no esteio da interpretação foucaultiana, o conjunto de poemas que formam as Illuminations, de Rimbaud, é a consequência mais radical do desligamento da literatura dos códigos tradicionais morais, religiosos ou formais. Já Sade, o romantismo em geral e Baudelaire haviam transgredido esses códigos, mas em Rimbaud abre-se uma espécie de novo mundo para a linguagem: se “a obra clássica é apenas uma representação”[21], é possível ver na obra de Rimbaud, a primeira a romper com a ideia de representação, um marco inaugural radical da obra moderna.

Outra perspectiva iluminadora dessas experiências artísticas modernas a causar profundo estranhamento e incompreensão é dada por Peter Burger no livro Teoria da vanguarda[22]Nele, o autor argumenta que as vanguardas caracterizam-se decisivamente por constituírem um movimento de “autocrítica da arte”. Por esse conceito, pretende designar uma crítica radical da “instituição arte”, e não apenas uma ruptura com uma estética imediatamente anterior (o que seria uma “crítica imanente” da arte, isto é, uma diferenciação no interior de uma tradição sem que, contudo, essa própria tradição fosse posta em questão). A “autocrítica da arte” é, portanto, um pôr-em-crise radical, pela própria arte, da “instituição arte”. A “instituição arte” é o modo estrutural, determinado pela função social da arte em uma sociedade, como se dá a relação entre a obra de arte e seu produtor e a obra de arte e seu receptor numa determinada sociedade. Esse modo determina, por sua vez, a forma como cada obra singular será recebida, no sentido de sua função social, qualquer que seja seu conteúdo específico. É, desse modo, a função social da arte, o lugar ocupado por ela numa sociedade burguesa regida pela racionalidade e utilidade dos fins, que as vanguardas põem radicalmente em xeque. Vejamos isso mais de perto.

A “instituição arte”, no contexto da sociedade burguesa, é marcada fundamentalmente pelo conceito de “autonomia”. A “autonomia” da arte é consequência da separação entre a arte e a praxis vital. Burger propõe, grosso modo, a seguinte periodização para esse processo:

  • Na Alta Idade Média, a arte sacra servia como objeto de culto, estando portanto integrada à instituição social da religião (logo a uma praxis vital).
  • No começo da época moderna, a arte da corte também se integrava a uma prática social: era objeto de representação, servia à glorificação. do príncipe e como autorretrato da sociedade cortesã. A arte da corte era assim “parte da praxis vital da sociedade cortesã, como a arte sacra o era da praxis vital dos crentes”[23].
  • Já na sociedade burguesa, cuja divisão progressiva do trabalho exclui a arte da praxis vital, destituindo-a de função social, a arte passa a ser, no dizer de Habermas, “a satisfação de necessidades residuais, isto é, necessidades excluídas da praxis vital da sociedade burguesa”[24].

A autonomia da arte é um processo que, iniciado pela separação entre a arte e o sagrado, agrava-se à proporção da consolidação da burguesia. já no século XVIII trata-se de algo perfeitamente consolidado: a teoria de l’art pour l’art, a noção central de “desinteresse” na Crítica do juízo, de Kant, e o papel atribuído à arte em A educação estética do homem, de Schiller, indiciam a avançada separação entre a arte e qualquer finalidade (religiosa, política, moral, pedagógica etc.). Mas, para Burger, há diferenças cruciais no interior desse processo: pois, no contexto de l’art pour l’art, a arte ainda tematizava o mundo, sendo uma representação voltada à autocompreensão da burguesia. É precisamente isso, para Burger, o Realismo: a perda de função social da arte já determinava o esvaziamento da finalidade social das obras, mas estas, em seu conteúdo singular, ainda tematizavam a sociedade. É já na segunda metade do século XIX, com o “esteticismo”, que, por um gesto de internalização da perda de sua função social, a arte faz coincidirem o conteúdo específico das obras e a “instituição arte”, isto é, a autonomia da arte passa a ser o próprio objeto de representação desta. Assim, o esteticismo assume e radicaliza a “retirada do mundo” da arte, evidenciando aquilo que o Realismo ainda atenuava. As vanguardas, para Burger, representam, dessa perspectiva, uma descontinuidade fundamental com relação ao esteticismo: ao passo que este radicaliza e internaliza a autonomia da arte, aquelas pretendem restabelecer o nexo entre a arte e a praxis vital[25]. Se incorporarmos à noção de esteticismo escritores contemporâneos das vanguardas, mas não alistados em seus movimentos coletivos, como Joyce, Beckett, Kafka e Eliot, a perspectiva de Burger ilumina as causas históricas dos procedimentos que descrevi mais acima. Resta agora colocar-se o seguinte problema: o que fazer diante de tais textualidades? Em outras palavras, como ler os árduos textos modernos?

***

A conhecida tipologia de Barthes, distinguindo “textos de prazer” e “textos de gozo”, é uma formulação decisiva para nosso problema. Barthes começa por admitir certa confusão terminológica, causada pela própria ambivalência da ideia de prazer. Ao longo do livro (O prazer do texto), ele empregará a palavra “prazer” em um sentido mais geral, quando estiver se referindo à experiência que um texto literário pode propiciar, para além das funções sociais, utilitárias da linguagem comum; e em um sentido mais específico, que designa contentamento, euforia, conforto, ao contrário do “gozo”, que se refere à dissolução, à perda de identidade, a certo desconforto. Assim, tanto o prazer do texto pode conter em si os textos de gozo, como pode se lhes opor: “Sou constrangido a essa ambiguidade porque não posso depurar a palavra prazer de sentidos que eventualmente não desejo”[26].

Essa ambiguidade, entretanto, vai se desfazendo à medida que as noções se tornam nítidas. Para Barthes, o prazer do texto (no sentido geral) ressai de operações de escrita que subvertem, abalam os códigos da cultura, mas não rompem com eles. O lugar do prazer é sempre o entre, a tensão entre o conhecido e o desconhecido, o claro e o escuro. A perda dessa tensão compromete o prazer: “Nem a cultura nem sua destruição são eróticas: é a fenda entre uma e outra que se o torna”[27]. A metáfora precisa aqui é o decote, a parte do corpo que a um tempo é revelada e escondida, oferece e nega, promete e adia: “O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde a roupa se entreabre? […] é a intermitência, como bem disse a psicanálise, que é erótica: a pele que cintila entre duas peças (a calça e a meia), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação que seduz, ou ainda: o espetáculo de uma aparição-desaparição”[28].

Se o prazer do texto, no sentido geral, se situa nessa tensão, os textos de prazer e os textos de gozo podem ser entendidos como textos que pendem, cada um, para um de seus polos. Os textos de prazer são aqueles que apresentam referências reconhecíveis da realidade, operam a língua valendo-se das formas como habitualmente se a pratica (nos níveis morfológico, lexical e sintático), não transtornam brutalmente o fluxo semântico. Em suma, são textos que vêm da cultura, não rompem com ela. São textos que reforçam o eu; contentam, locupletam, euforizam; estão ligados a uma prática confortável da leitura. Já o texto de gozo, contrariamente, rasura os códigos culturais, isto é, os modos tradicionais de representação, os aspectos estruturais da língua, o repertório mais ou menos comum (ampliando-o intensamente), as combinações semânticas previstas dentro do contexto literário (já por si muito mais extensas do que aquelas previstas pela moeda de troca da fala cotidiana).

Admitindo-se que toda literatura digna de seu nome, ao menos para nós, modernos, deve apresentar um texto com algum grau de diferença em relação às práticas da cultura, e que portanto amplie a experiência do leitor, transformando-o; admitindo-se isso, os textos de prazer devem ser entendidos então como aqueles cuja diferença, cuja subversão da cultura, é feita sem solavancos, sem desconforto (exceto aquele, constitutivo de toda leitura, em sentido rigoroso, que consiste em ampliar-se, modificar-se, questionar suas ideias e assumir outras etc.), buscando preservar o prazer, sinalizando para uma art de vivre. Cena típica do texto de prazer: o leitor deitado, em sua cama, em postura de relaxamento, antes de dormir. Barthes vai adiante na composição da cena do texto de prazer: “[…] lugar e tempo de leitura: casa, província, almoço próximo, abajur, família onde deve estar, isto é, nem longe nem perto […] etc.”[29]. Para dar exemplos da arte brasileira, são obras de prazer os livros de Machado de Assis, inteligentes, irônicos, jogando com uma frase elegante, uma linguagem absolutamente respeitadora dos códigos culturais —para, por dentro, fazer passar, como que por contrabando, um retrato crítico agudo das estruturas sociais brasileiras, de seus autoritarismos, seus sistemas de humilhação e suas injustiças constitutivas. Ou, ainda, a obra de João Gilberto, sua economia interna de regularidade e irregularidade, redundância e novidade, sua revolução reverente à tradição, sua, em suma, contradição sem conflitos, como a definiu Walter Garcia.

Os textos de gozo, por sua vez, pendem na direção do polo oposto. Neles, a língua se encontra “em pedaços”, a cultura se encontra “em pedaços”. Eles atingem os códigos culturais, fazendo com que o leitor não os reconheça. Assim, não lhe oferecem um espelho plano, onde ele confirma sua identidade, mas uma superfície estranha, onde seus modos habituais de reconhecimento do mundo são desfeitos. Os textos de gozo não têm compromisso com as formas tradicionais, não têm compromisso nem mesmo çom o prazer.

Assim, porque respeitam em maior medida os modos habituais de produção de sentido e de reconhecimento da realidade, os textos de prazer propiciam uma temporalidade de leitura fluente, desimpedida. Tomemos os grandes romances realistas do século XIX, por exemplo, que são textos de prazer por excelência. Se leio Stendhal, ou Tolstoi, ou Dickens, não encontro maiores obstáculos na produção de sentidos, sou conduzido pela narrativa (esse ser-tomado-pela-mão é uma das características decisivas dos textos de prazer), posso até mesmo saltar passagens, movido pelo desejo de chegar rapidamente aos pontos de articulação da trama. Diante de textos de gozo, contudo, o regime de leitura é outro; neles, a operação decisiva não está na elaboração e resolução da trama; está naquilo que se passa na linguagem, integralmente, a cada trecho, e não na concatenação do discurso. Por isso, textos de gozo requerem ser lidos com atenção, com minúcia, sem pressa (neles não se trata de chegar a algum lugar adiante, mas de chegar ao lugar onde se está). É claro que nos textos de prazer dos grandes realistas o decisivo se passa por entre ou por sob a trama, jamais se reduzindo a ela. O arco cumprido, em Guerra e paz, pela relação entre a princesa Marie Bolkonski e seu velho pai, até a morte deste, nos faz desejar que os acontecimentos se desenvolvam rapidamente, mas sua grandeza literária está na densidade de significações que a trama encerra, sem explicitá-las. Ocorre que os textos de prazer mobilizam a trama para fazer passar as questões, jogam com a curiosidade do leitor (trazendo para o âmbito da tramq aquela mesma economia erótica de aparição-desaparição mencionada acima), enquanto os textos de gozo podem prescindir de tudo isto: da narrativa, da atração, em suma, do prazer.

Daí que outra temporalidade também é exigida, sob pena de o leitor perder a experiência propiciada pelo texto. “Ora”, diz Barthes, “paradoxalmente (tanto a opinião crê que basta ir rápido para não se entediar), essa segunda leitura, aplicada, em sentido próprio, é aquela que convém ao texto moderno, ao texto-limite. Leia lentamente, leia tudo, de um romance de Zola, o livro lhe cairá das mãos; leia rápido, aos saltos, um texto moderno, esse texto se torna opaco, forcluído a seu prazer”[30]. Daí que, numa frase que resume as consequências de não se ajustar as temporalidades diante dos respectivos tipos de texto, Barthes tenha dito: “O tédio não está distante do gozo: ele é o gozo visto das margens do prazer”[31].

***

Muito antes da literatura moderna, na periodização a que estou aqui me referindo, e sem nem sequer poder imaginar o que viria pela frente, Boileau, o autor neoclássico do influente tratado em versos A arte poética, prescrevia aos escritores de seu tempo: “Se o sentido dos versos que o senhor compôs tarda em fazer-se entender, logo meu espírito começa a distrair-se e, pronto a desprender-se de palavras vazias, não mais segue um autor que deve sempre ser procurado”[32]. Todo leitor já passou por isso: diante de um texto difícil, que não nos está atraindo, tendemos a andar mais rápido, na absurda esperança de que, assim, acabaremos por entendê-lo, ou no autoengano expiatório de que, afinal, o teremos lido, mesmo sem compreendê-lo. Mas não: o único modo de ser atraído por um texto dessa estirpe, texto de gozo, como quer Barthes, é atraí-lo para si, lendo-o lentamente, minuciosamente, sem desejar chegar ao fim.

Não se trata, aqui, necessariamente, de defender esses textos, de elogiar a experiência que eles oferecem. Para Borges, por exemplo, James Joyce, autor do texto dos textos de gozo que é o Ulisses (para não falar de Finnegans Wake, que talvez esteja mais além do gozo), era um escritor “fracassado”, pois “a literatura é também uma forma da alegria. Se lemos algo com dificuldade, o autor fracassou. Por isso considero que um escritor como Joyce fracassou essencialmente, porque sua obra requer esforço”[33]. O próprio Barthes, em seus últimos anos de vida, dizia ter “vontade de chegar a uma prática cada vez mais simples da língua”, e que achava que havia chegado, “talvez, o momento em que se deveria lutar menos, militar menos pelos textos, recuar um pouco […] desconstruir menos os textos, jogar mais com a legibilidade”[34]. Seja como for, diante de textos de gozo, se se quiser aproveitar-lhes a experiência, é requerida uma temporalidade lenta: é preciso “[…] reencontrar, para ler esses autores contemporâneos, o ócio de antigas leituras: ser leitores aristocráticos”.

Notas

  1. Roman Jakobson, “Two aspects of language and two types of aphasic disturbances”, Language in literature, Boston: Harvard University Press, 1996, p. 98. Tradução minha. 
  2. Ferreira Gullar, Indagações de hoje, Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, pp. 28-30 para essa citação e as seguintes. 
  3. Apud James Wood, Como funciona a ficção, São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 19. 
  4. Eric Auerbach, Mimesis, São Paulo: Perspectiva, p. 495. 
  5. Idem, ibidem, p. 483. 
  6. Apud Eric Auerbach, op. cit., p. 475 
  7. James Joyce, Ulisses, Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, p. 8. 
  8. Idem, ibidem, p. 22. 
  9. Eric Auerbach, op. cit., I/ 477. 
  10. Apud André Breton, Manifestos do Surrealismo, Lisboa: Moraes, 1985, p. 42. 
  11. Marjorie Perloff, The poetics of indeterminacy, Illinois: Northwestern University Press. Para uma compreensão detalhada do problema, ver o capítulo I do livro, “Unreal cities”. 
  12. André Breton, op. cit., p. 61. 
  13. Apud James Wood, op. cit., p. 77. 
  14. Eric Auerbach, O. cit., p. 490. 
  15. Michel Foucault, “Linguagem e literatura”, in Roberto Machado, Foucault: a filosofia e a literatura, Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 142. 
  16. Ver, por exemplo, Octavio Paz, Os filhos do barro, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 
  17. Michel Foucault, op. cit., p. 152. 
  18. Idem, ibidem, p. 147. 
  19. Idem, ibidem
  20. Idem, ibidem
  21. Idem, ibidem
  22. Peter Burger, Teoria da vanguarda, Lisboa: Vega, 1993. 
  23. Idem, ibidem, p. 88. 
  24. Apud Peter Burger, op. cit., p. 88. 
  25. A perspectiva histórico-social de Burger contradiz, portanto, a perspectiva formal, segundo a qual há uma evidente continuidade entre o esteticismo e as vanguardas: com efeito, Rimbaud antecipa o Surrealismo, Mallarmé antecipa o Futurismo e o Concretismo, Cézanne antecipa Picasso etc. É oportuno observar que Blanchot recusa, se não a pertinência, ao menos a primazia da interpretação de Burger. Para o escritor francês não há uma relação causal direta e explicativa entre o desenvolvimento formal da arte moderna e o contexto histórico de sua emergência. Falando sobre as experiências artísticas de Mallarmé e Cézanne, Blanchot defende que “essa transformação espantosa da arte moderna, que acontece no momento em que a história propõe ao homem tarefas e objetivos muito diferentes, poderia aparecer como uma reação contra essas tarefas e esses objetivos, um esforço vazio de afirmação e de justificação. Isso não é verdade, ou só é superficialmente”. Em outras palavras, Blanchot está dizendo que o “esteticismo” não é — ou não é principalmente — uma resposta à autonomia da arte, como quer Burger: “Essas circunstâncias não têm poder suficiente para explicar o sentido dessa busca”, arremata Blanchot. (Maurice Blanchot, O livro por vir, São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 288-289.) 
  26. Roland Barthes, Oeuvres complètes IV, Paris: Seuil, P. 230. 
  27. Idem, ibidem, p. 221. 
  28. Idem, ibidem, p. 223. 
  29. Idem, ibidem, p. 251. 
  30. Idem, ibidem, p. 225. 
  31. Idem, ibidem, p. 234. 
  32. Nicolas Boileau-Despréaux, A arte poética, São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 19. 
  33. Jorge Luis Borges, Obras completas IV, 4ª ed., Buenos Aires: Emecé, p. 169. 
  34. Roland Barthes, O grão da voz, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, pp. 361 e 362. 

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