O olhar dos viajantes (do etnólogo)
por Sérgio Cardoso
Resumo
Ver e olhar configuram campos de significação distintos. Um conota espontaneidade ou passividade, como no espelho, o outro remete à atividade, à espessura do sujeito (mesmo quando se fala de um “olhar vago”). Ou ainda: ver supõe um mundo pleno, enquanto olhar se enreda no descontínuo. O olhar procura, fixa, escava, é a visão feita interrogação. De maneira análoga, a crença supõe a identidade do mundo e o sonho a identidade do sujeito (embora aquela seja intolerante e este absolutamente tolerante nas suas associações possíveis). Pode-se dizer que o olhar é vigilante como a crença e aberto como o sonho. E que proximidade e distância também o configuram, conforme experimentamos nas viagens. Mas qual a relação entre espaço e tempo quando nos deslocamos? O movimento assinala fragmentos e lacunas na totalidade. Se não se pré-vê o trajeto, não se pode representá-lo com exatidão. Se não se sabe o que se procura, como procurá-lo? – já diziam os sofistas a Sócrates. Merleau-Ponty contorna essa dificuldade interpretando a temporalidade não mais como deslocamento, mas como um “campo de presença” que articula passado e futuro, e que só encontra seu sentido na abertura e no inacabamento. Os dicionários se equivocam ao vincular as viagens ao espaço, quando elas são (ou deveriam ser) empreitadas no tempo e experiências de estranhamento. Tocamos o outro dentro de nós mesmos pagando o preço de nossa própria transformação. E isso vale especialmente para o olhar viajante dos etnólogos.
Em homenagem a Pierre Clastres —
nos dez anos de sua morte.
COMPOSIÇÃO I: O OLHAR[*]
Nossa certeza mais primitiva é mesmo a de ver o mundo. Assenta-se na “fé perceptiva”, conforme a expressão certeira e cerrada de Maurice Merleau-Ponty para designar nossa crença tácita — e espontânea — na existência do mundo. Mundo aí, postado fora de nós, em si mesmo, e absolutamente apto à apreensão de nossos sentidos. Porém, esta convicção imediata carrega uma ambivalência que, no caso da visão, a língua prontamente acusa e comenta na oposição que governa nosso recurso habitual aos verbos ver e olhar. Não é, de fato, o mesmo, na nossa fala corrente, dizer que vimos algo ou alguém ou que os olhamos. E podemos verificar, sem dificuldade, que esta distinção usual traduz a oscilação inerente à “fé perceptiva” que faz continuamente hesitar o homem comum — que todos somos — quanto aos papéis desempenhados pelo sujeito e o mundo da produção do conhecimento.
É verdade que a distinção destes verbos parece, de imediato, pautar-se apenas por uma questão de proporção, de dosagem dos elementos neles concorrentes. Diríamos que o bom emprego de um ou outro se recomenda consoante a maior ou menor intervenção e responsabilidade do sujeito no acontecimento da visão, que se guia pela razão da atividade é da passividade do vidente no seu encontro com o mundo. E, neste sentido, concluiríamos que, entre o ver e o olhar, transitamos numa escala, que evoluímos de um ao outro numa mesma linha, por gradação. Logo, no entanto, compreendemos que não é isto o que se passa — se observarmos bem. Pois, ao abandonarmos o registro rarefeito das ordens e medidas por aquele mais espesso da experiência, as progressões de quantidade apontam sempre, em cada uma de suas direções, para qualidades diversas; o que ocorre também aqui: o ver e o olhar, na sua oposição, configuram campos de significação distintos; assinalam em cada extremidade do nosso fio justamente “sentidos” diversos.
O ver, em geral, conota no vidente uma certa discrição e passividade ou, ao menos, alguma reserva. Nele um olho dócil, quase desatento, parece deslizar sobre as coisas; e as espelha e registra, reflete e grava. Diríamos mesmo que aí o olho se turva e se embaça, concentrando sua vida na película lustrosa da superfície, para fazer-se espelho… Como se renunciasse a sua própria espessura e profundidade para reduzir-se a esta membrana sensível em que o mundo imprime seus relevos. Com o olhar é diferente. Ele remete, de imediato, à atividade e às virtudes do sujeito, e atesta a cada passo nesta ação a espessura da sua interioridade. Ele perscruta e investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre da necessidade de “ver de novo” (ou ver o novo), como intento de “olhar bem”. Por isso é sempre direcionado e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiridor… Como se irrompesse sempre da profundidade aquosa e misteriosa do olho para interrogar e iluminar as dobras da paisagem (mesmo quando “vago” ou “ausente” deixa ainda adivinhar esta atividade, o foco que rastreia uma paisagem interior)que, frequentemente, parece representar um mero ponto de apoio de sua própria reflexão.
Ora, como a visão nos parece produzir-se pela conjunção de um espectador e de algo visível, nos parece exigir o engate de um sujeito e um objeto, tudo se passa, então, como se encarregássemos cada um destes verbos de assinalar o poder de um destes pólos, fazendo-os capitalizar as virtudes de um ou outro no talhe de seu feitio semântico particular. Assim, de seu lado, o ver conota ingenuidade no vidente, evoca espontaneidade, desprevenção, sugerindo contração ou rarefação da subjetividade.., como para atestar as imposições do mundo, realçar o poder das coisas, sua jurisdição sobre o conhecimento. De outro lado, no olhar — que deixa sempre aflorar uma certa intenção, trai sempre um certo urdimento, algum cálculo ou malícia — as marcas do artifício sublinham a atuação e poderes do sujeito. Logo, portanto, reservamos — é o que fazemos habitualmente — um para a visão involuntária, e outro para o ver deliberado — premeditado ou simplesmente intencional —, deixando derrapar a perspectiva da gradação e romper-se o fio da sua continuidade. Segmentam-se, sub-repticiamente, os polos da visão e, entre eles, hesita seu sentido; pois dobra-se de um lado a percepção à soberania do mundo e, de outro, tudo se concede aos poderes do sujeito.
Podemos, no entanto, explorar ainda um pouco o terreno demarcado por estes verbos, seguindo as indicações de Merleau-Ponty. Não encontraremos entre eles somente combinações diversas dos mesmos elementos constantemente atuantes na “química” da visão, nem mesmo apenas um desempenho diferenciado do olho — que progrediria no sentido de um mínimo a um máximo da atividade e intervenção no mundo que defronta. Na verdade, entre o ver e o olhar é a própria configuração do mundo que se transforma. Testemunhamos a metamorfose “alquímica” da sua natureza, visto que duas versões — irreconciliáveis — da realidade neles estão presentes, bem como versões diversas da conjunção do vidente e do visível.
A visão — a simples visão —, ainda que modestamente ciente de seus limites e alcance circunscrito, supõe um mundo pleno, inteiro e maciço, e crê no seu acabamento e totalidade. Toma-o como conjunto dos corpos ou coisas extensas que preenchem o espaço, e apóia nas qualidades deste a certeza da sua continuidade. Tudo se compõe, então, numa coesão compacta e lisa, indefectível.., como aquela que deparamos na crença ou no sonho — pois, como ela, desconhece lacunas e incoerência e, como ele, tudo acolhe e integra com naturalidade. Opera por soma, acumulação e envolvimento; busca o espraiamento, a abrangência, a horizontalidade; e projeta, assim, um mundo contínuo e coerente, e acredita fruir e restituir — ainda que por prestações parcelares — a sua integralidade.
Já o universo do olhar tem outra consistência. O olhar não descansa sobre a paisagem contínua de um espaço inteiramente articulado, mas se enreda nos interstícios de extensões descontínuas, desconcertadas pelo estranhamento. Aqui o olho defronta constantemente com limites, lacunas, divisões e alteridade, conforma-se a um espaço aberto, fragmentado e lacerado. Assim, trinca e se rompe a superfície lisa e luminosa antes oferecida à visão, dando lugar a um lusco-fusco de zonas claras e escuras, que se apresentam e se esquivam à totalização. E o impulso inquiridor do olho nasce justamente desta descontinuidade, deste inacabamento do mundo: o logro das aparências, a magia das perspectivas, a opacidade das sombras, os enigmas das falhas, enfim, as vacilações das significações, ou as resistências que encontra a articulação plena da sua totalidade. Por isso o olhar não acumula e não abarca, mas procura; não deriva sobre uma superfície plana, mas escava, fixa e fura, mirando as frestas deste mundo instável e deslizante que instiga e provoca a cada instante sua empresa de inspecção e interrogação. Ao invés, pois, da dispersão horizontal da visão, o direcionamento e a concentração focal do olho da investigação, orientado na verticalidade. É com Merleau-Ponty que talvez possamos compreender o cerne desta oposição. Ela, a simples visão, supõe e expõe um campo de significações, ele, o olhar — necessitado, inquieto e inquiridor — as deseja e procura, seguindo a trilha do sentido. O olhar pensa; é a visão feita interrogação.
Assim, a configuração deste mundo implicado na atividade do olhar nos obriga a reconsiderar também o estatuto que, talvez, até aqui tenhamos ingenuamente guardado para a conjunção que nela se opera ente o vidente e o visível. Não podemos pensá-la como no registro da visão. No ver a integridade e suficiência do mundo, bem como sua sólida e rija consistência, rejeitam o vidente para o domínio de uma total exterioridade em relação a si, fazem o visível dublar-se de um outro absolutamente separado — que, como subjetividade ou substância pensante, o envolve e reflete na sua atividade de representação e conhecimento (e este sujeito, como espírito retraído do mundo, parece encontrar, então, na película delgada e brilhante do olho, a única evocação mundana da sua potência de iluminação). No universo do olhar, no entanto, deparamos outra forma de articulação. Nele, vidente e visível misturam-se e confundem-se em cada modulação do mundo, em cada nó da sua tecelagem, mostram-se imbricados em cada ponto de sua indecisa extensão. E se a realidade os entrelaça, é porque o mundo visível não se dá mais como conjunto de “coisas” , rígidas e íntegras, positivas (como também não é matéria inerte nem caos que um sujeito, como demiurgo, molda e informa), mas como o contorno de um campo em que o sentido ora se adensa e se aglutina, ora se difunde e dilui numa existência rarefeita, sempre vazado de lacunas e indeterminação. Como tão bem nos soube mostrar Merleau-Ponty, o visível enreda em si o vidente por apresentar-se como abertura e passagem, por só fazer sentido como linha de força e fuga, penetrado portanto de latência e interrogação. Deste modo a conjunção entre eles se faz por participação, incrustação recíproca, por comunidade, aderência e confusão, como indica o filósofo; enquanto no ver, que se alicerça na “fé perceptiva” o encontro se dá por contato, justaposição e envolvimento, guardando pois cada pólo sua autonomia e suficiência, sua intransigente identidade.
Dizíamos há pouco que o olhar pensa, que testemunha a visão como interrogação. Mas esta formulação arrisca ainda sugerir a segmentação ingênua dos pólos da visão. Devemos, então, corrigi-la e livrá-la desta suspeita, pois compreendemos que não é o olhar que põe questões ao mundo (comprometendo seu continuum — caótico ou ordenado — pela interrogação), como não é o mundo que na sua positiva finitude e descontinuidade as impõe ao olhar. Talvez devêssemos dizer que “o mundo se pensa”, se compreendemos que ele é sempre internamente aerado e fermentado pelo pensamento, constantemente escavado — como região do sentido — pela penetração do olhar.
Não há continuidade entre o ver e o olhar. E a passagem entre eles não se faz por gradação; requer um salto. Passamos da segmentação e exterioridade entre o sujeito e o mundo supostas na “fé perceptiva”, para sua inextrincável conjunção na constituição do sentido. A operação de “aproximar” ou “focalizar” que se observa no movimento do olhar, ao invés de “ampliar” e precisar o alcance da visão, permite, na verdade, saltar do espaço das significações estabelecidas e mergulhar no mundo temporal do sentido.
Faz-se, no entanto, necessária uma última observação. Para compreendermos bem esta passagem, e bem avaliarmos esse “salto”, não podemos confinar o mundo da visão — este espaço das significações pressupostas que se apóia na “fé perceptiva” — apenas no registro da “crença”, que é tão-somente um dos modos — fundamentais — da sua operação e realidade. Assim procedendo, arriscamo-nos a ignorar (por negligenciar ou confundir) a diferença da descontinuidade e abertura temporal do mundo do olhar, com a “fragmentação” (a = temporal, referida à extensão) do universo dos “sonhos”. Ora, devemos observar que o sonho (para o sonhador, e não para o homem desperto que examina seus sonhos) opera, como a crença, sempre no contínuo; supõe sempre identidade e totalização , não permitindo, pois, confundir seu tecido liso e compacto com o mundo lacunar que o olhar vigilante experimenta na sua investigação. Entretanto, se o sonho — como a crença — supõe o contínuo (alinhando-se, também ele, do lado da visão que, portanto, não crê apenas, pois pode sonhar), não deixa de apresentar face a ela uma diferença essencial (que justamente dá conta da sua “fragmentação”): a crença busca seu suporte na unidade do mundo, ele na unidade do sujeito. O que garante a unidade dos elementos do sonho é, fundamentalmente, a identidade pressuposta do sonhador. O sujeito, na sua identidade, é o princípio (formal) da unidade das “associações” de fato condensadas no sonho (desde que, evidentemente, este não seja tomado como um universo caótico e sem sentido, ou interpretado “religiosamente”, isto é, como simples veículo de uma significação, ou mensagem, exterior e estranha no sonhador) — pois os elementos descontínuos pertencem a um mesmo sonho apenas, ou essencialmente, por serem sonhados por ele. Já na crença a unidade é fiada pela continuidade do mundo, aparecendo com o descontínuo e fragmentado (pois se engana, ignora, oscila) polo de sujeito. No sonho são, pois, seus dementos ou as “associações” de fato, dadas, que medem e determinam o campo da totalização possível (garantida de antemão pela unidade do sujeito); enquanto na crença é uma totalidade atual — mesmo quando apenas pressuposta — que mede e predetermina as associações possíveis. Enfim: do mesmo modo que a crença supõe a identidade do mundo, o sonho supõe a (crê na) identidade do sujeito.
Ora, este princípio pressuposto (oculto, “inconsciente”) da unidade do sonho (que envolve seus elementos fragmentados — heteróclitos —, inscrevendo neles um sentido latente) está na origem de sua absoluta tolerância: nenhuma associação é impossível, ou nenhum elemento lhe é “estranho”, e votado, assim, a ser excluído da malha cerrada de um mesmo sonho, ou do “mundo” que lhe projeta (tanto que, numa psicanálise — se a assentamos no exercício do sonho —, não há resíduo, resto, tudo cativo, tudo integra seu percurso). Na crença, por outro lado, a unidade — suposta, “revelada”, ou apreendida por sinais — é o princípio de uma absoluta intolerância; pois o que escapa à totalização prévia (pré-vista) do mundo aparece como “sonho” ou alucinação — o que faz o vidente sempre perseguido pela figura do visionário, sonhador. Portanto, no sonho, não só “o mundo é o que eu vejo”, como ocorre em toda “fé perceptiva” — mas ainda “tudo o que vejo é mundo” (o que cai na rede é peixe, como se costuma dizer), constitui a totalidade, pois se impregna, de imediato, da identidade do sujeito. Já a crença, por seu lado, parece condenada a separar, sem descanso “o joio do trigo” (precisa sempre separar seus peixes), dublada que é, constitutivamente, pela ameaça do engano e da ilusão. (Por isso as religiões são vigilantes, combativas e inquisitoriais. Devem sempre, como um juiz em função, distinguir o verdadeiro do falso, separar o real do ilusório, o bem do mal. E exigem disciplina, pois seu reino não é imediato, e o reconhecimento da unidade do todo passa necessariamente pela exclusão. Já a psicanálise, quando reivindica o terreno do sonho, toma o sentido oposto (e simétrico) ao da religião, procurando deste modo, no seu exercício, imediatez e espontaneidade. Assim, odeia as disciplinas e censuras, os atos sedimentados, os modelos e regras, e mesmo a congruência das significações… mas tem que exorcizar continuamente o perigo da complacência ou da aventura, se não da irresponsabilidade.)
Ora, vigilante como a crença e aberto como o sonho, o olhar, que não crê, também não sonha. Não pressupõe qualquer unidade, afasta toda identidade prévia, seja do mundo ou do sujeito. Por isso nos enreda no tempo (o Mundo não nos é dado), e nos desperta do nosso sonho mais primitivo, aquele de “ver o mundo” (em que, afinal, antes de tudo sonhamos — verdadeiro Kindertraum! — nossa própria identidade).
COMPOSIÇÃO II: VIAGENS
Viajar, sabemos, não é dado a todos.
Há homens acomodados, caseiros e sedentários, que parecem ignorar as divisões do espaço e pouco prezam a geografia. São quase naturalmente alheios às viagens. Se se deslocam (visto que não renunciam aos trânsitos, pois isto seria impossível), concebem seus movimentos no interior de um espaço ordenado, compacto e pouco acidentado, que tudo acomoda nos desdobramentos de sua extensão concertada e contínua. Assim, a sólida unidade deste mundo parece ofuscar os cortes de horizonte, neutralizar os relevos e desníveis, como que sombreando as barreiras e suturando as fendas que parecem se impor com tanta nitidez à topografia. O desdém de tais homens pelas divisas e fronteiras faz muitas vezes — como entre os nômades — que seu movimento se desvencilhe, pois tudo envolvem num halo de proximidade. Assim, chegam mesmo a riscar o espaço com grande desembaraço (como os geômetras), e podem percorrer toda a terra… No entanto, nunca viajam. Pois as direções se tornam indiferentes (é isótropo, lembremo-nos, o espaço geométrico), e as distâncias quase desprezíveis, quando se está por toda parte em casa.
Mas há também homens inquietos — curiosos ou insatisfeitos — aos quais o ponto cego do horizonte obseda, constantemente fustiga e desafia. Desdenham o homogêneo e o contínuo, e mostram-se extremamente sensíveis às diferenças e atentos aos limites. A cada ponto divisam algo adiante, em cada plano outro lado, e por toda parte medem distâncias, pois tudo duplicam cá e lá. Sua compleição e disposição de geógrafos — seduzidos que são pelos elementos da topologia — quase sempre os impelem para o espaço aberto, e os levam a afrontar montanhas e areias, obstáculos e vazios. Assim, dificilmente param em casa (se chegam a ter uma), e sua atração pelas fronteiras parece torná-los, quase inevitavelmente viajantes. Porém, como frequentemente se desgarram pelo mundo e perdem de vista as balizas das rotas, o ponto de partida e a orientação de um caminho devemos nos perguntar se, propriamente, viajam. Pois as direções e os sentidos também parecem tornar-se indiferentes quando dilui-se o desejo (no qual, sabemos, a prospecção da atração quase nunca se desata inteiramente de uma certa retrospecção da nostalgia) de um lugar de aconchego — se não de um bom porto, de uma estação hospitaleira —, ou quando, no percurso, se ignoram os sinais do contínuo e se desdenha no mundo qualquer identidade.
Quando consideramos estas estirpes diversas de homens — uns tendendo a tudo assimilar e costurar num todo, outros projetando diferenças e divisões por toda parte — somos, certamente, levados a repensar um pouco o sentido que habitualmente atribuímos às viagens. Pois a definição que a nossa linguagem mais usual contorna para o vocábulo pouco nos ajuda, ao que parece, na detecção das suas contrafações. De fato! Acreditamos que as viagens indicam sempre movimentos locais, ainda que não se prestem a designá-los todos, que não cubram todos os trânsitos. Mesmo os dicionários — que procuram cercar os usos correntes das palavras, mas que também os normalizam, fazendo-os prescritivos — buscam circunscrevê-las deste modo. Apresentam-nas todos como deslocamentos (o que as abrigaria em um gênero), acrescentando, porém, como restrição propriamente definidora, a exigência de que envolvam lugares afastados. Ou seja: mudança de lugar, mas entre lugares distantes. Ora, podemos observar que esta definição não só nos dá precária retaguarda para a investigação e denúncia dos simulacros como nos enreda em pendências mais intrincadas. Pois, ao indicar a “distância” como sua marca distintiva, nos confina em um terreno em que os litígios parecem insolúveis, e qualquer acordo impossível. Nada mais controverso — como todos sabemos — que os juízos que qualificam grandezas, medidas, intensidades: sobre o grande e o pequeno, o pesado e o leve, forte-fraco, longe-perto, as querelas parecem tão intermináveis quanto ociosas. Devemos, então, acusar a imprecisão do léxico ou admitir a existência de uma hesitação intrínseca (pois denunciada no seu atributo mais específico) à constituição do conceito? Antes de responder a esta questão de maneira intempestiva, tentemos, porém, examinar melhor a significação da distância, averiguar mais de perto este ponto impreciso (por sempre indeciso), pois talvez se trate aqui, ainda uma vez, de uma questão de “olhar bem”.
O que é o “distante”? Onde pisar terra firma nos domínios de sua atribuição? A direção que o termo sinaliza opõe-se, certamente, à da “proximidade”. Ora, próximo, diríamos, é o que está perto, nas cercanias, sua acepção corrente indica vizinhança e imediação. Assim, podemos observar que a palavra sugere um certo horizonte de inclusão e envolvimento, que confina cada elemento assinalado e os que lhe estão próximos, no interior de um mesmo campo, nos limites de um certo espaço que contorna entre eles alguma comunicação ou passagem, e demarca os “arredores” de cada um. Ou seja: este atributo remete à configuração de um todo — ou, ao menos, ao contorno de um certo horizonte — que compreende os pontos envolvidos e possibilita sua apreensão simultânea, sem a qual parece impossível tal predicação. Portanto, o “próximo” sinaliza essencialmente um espaço, uma grandeza local, ou, mais precisamente — se quisermos —, um contínuo simultâneo, já que a extensão parece espelhar-se sempre na permanência de uma duração. E a proximidade — dois pontos ou elementos ditos próximos — contorna, então, um horizonte e uma presença (pois, juntando-os ou envolvendo-os, se espraia e persiste, se estende e dura), demarca uma ordem de coexistências articuladas: um domínio de conjunções e comunicação, inclusão e interioridade.
Ora, se a distância toma o sentido oposto ao da proximidade, como compreendê-la? Devemos dizer, ao que parece, que supõe descontinuidade, que predica extensões diversas. E, também, que estas extensões, enquanto diversas, não nos são dadas simultaneamente mas numa sucessão; pois sua apreensão exigiria a passagem de uma a outra, implicaria movimento. Mas devemos observar ainda que, assim pensada — envolvendo extensões descontínuas — a distância, como relação, supõe também alguma comunicação ou “passagem”, parece exigir o suporte de alguma continuidade (pois, caso fosse absoluta a descontinuidade, já não teríamos entre elas diferença, mas completa indiferença, já não haveria distância e movimento, mas puro isolamento destas extensões). É nesse sentido que a predicação da distância — o afastado ou distante — envolveria, segundo se admite quase sempre, a representação do tempo, cujo modo específico de existência seria justamente a sucessão. Pois se diz também tradicionalmente (“classicamente” mesmo), que o tempo é um contínuo sucessivo (como o espaço é um contínuo simultâneo) — um contínuo que existe sucessivamente em cada uma de suas partes, por exclusão das outras —, de modo que ele, como contínuo, poderia fiar a passagem ou o movimento implicado naquela predicação. Podemos perceber que, nesta perspectiva, a. distância encontraria seu estofo no movimento e no tempo envolvidos na conexão de extensões descontínuas; de maneira que compreendê-la implicaria compreender a possibilidade da sucessão, a natureza mesma deste modo especifíco de continuidade e inclusão. Abreviando: a relação de distância envolveria extensões descontínuas unificadas pelo movimento sucessivo do tempo, e nos caberia, pois, tentar apreender o modo de existência da unidade deste movimento, ou pensar as condições de possibilidade da continuidade desta sucessão.
Sabemos que o périplo da filosofia em torno desta questão é longo e intrincado, pois, de um modo ou de outro, acompanha toda sua história (ao menos desde o momento em que Aristóteles estabelece esta estreita relação entre o tempo e o movimento, tornando-os correspondentes e interdefiníveis). Não vamos, evidentemente, tentar balizá-lo aqui. E, na verdade, ao invés de buscar as diversas investigações que remetem a este problema, não nos parece inútil considerar um pouco mais detidamente sua própria formulação, tentar reexaminar os termos mesmos da questão. E podemos lembrar que, nesta direção, a obra de Merleau-Ponty, mais uma vez, sugere e mapeia um caminho original e audacioso, permitindo-nos — segundo acreditamos — pisar um terreno menos escorregadio que aquele demarcado pela tradição.
Ora, se aceitarmos as indicações deste filósofo, com certeza começaremos por indagar se não há neste legado algum vício de origem, e se este vício não estaria justamente na focalização da temporalidade em termos de “sucessão”. Pois, a sucessão envolveria um vínculo congênito com a representação do espaço, manteria uma referência originária à extensão, decalcando, então, sobre uma totalidade sempre pressuposta e imaginária (assentada na “fé perceptiva”) a “continuidade” do tempo (mantendo, assim, o registro da proximidade e perdendo a distância, inviabilizando sua compreensão).
[Expliquemo-nos[†]: A extensão — já vimos — é totalizadora e abrangente, unifica e ofusca na sua totalidade suas divisões. Pois o todo, ao compreendê-las, parece despojá-las também de uma identidade própria, concedendo-lhes apenas a existência virtual de “partes”, já que sua atualização e determinação comprometeriam a continuidade, a identidade própria da extensão. Ora, tudo se passa, então, quase sempre, como se, para pensarmos a distância e a diferença implicadas no tempo e no movimento, devêssemos partir da totalidade de uma grandeza (uma extensão, assumida na sua realidade imediata e exterior) e, então, atualizar a determinação de suas partes, pensando a existência de cada uma à exclusão das outras, como extensões ou lugares diversos e, portanto, descontínuos. Ou seja, toma-las-íamos não na continuidade simultânea do todo, mas apenas como uma série de elementos consecutivos, descontínuos mas simultâneos (pois se mantêm referidos à totalidade da extensão, que funcionaria como princípio de distribuição destes elementos no interior da série). Ora, é a consecutividade destes elementos ou destes lugares — tomada frequentemente como sua “posição objetiva” no espaço que, como veremos, vem alicerçar (numa tradição calcada na matriz aristotélica) a possibilidade do movimento; pois este, “conformando-se” a ela, dela receberia a ordem do seu desenvolvimento ou o sentido do seu Percurso.
Devemos observar que, evidentemente, quando tomadas no registro do movimento, as “partes” desta série de elementos consecutivos são visadas não mais simultaneamente (como ocorre quando visamos a série como simples relação de ordem), mas uma depois das outras (pois o movimento passa de uma a outra), ou seja, no modo da suces-S50. E compreendemos, portanto, que a continuidade que se estabelece agora entre estes elementos não deriva mais, neste registro, da unidade da série (ou da simples relação de ordem entre eles), mas vem da unidade do próprio movimento (que passa de um a outro continuamente — sem parar). Por outro lado, compreendemos também que a unidade deste movimento supõe a identidade do móvel ou do sujeito que se desloca no interior da série, de modo que, fundamentalmente — segundo se afirma —, a unidade entre os elementos (anteriormente reunidos pela ordem da série) é agora produzida pelo móvel que, passando por eles, produz a sucessão pelo seu movimento.
Tudo isto parece certo, como podemos admitir. Porém, devemos também observar que dificilmente se explicaria a própria unidade do movimento (responsável pela unificação em um trajeto daqueles diversos elementos ou lugares, no modo da sucessão) sem a pressuposição da série ou da sequência dos elementos ou lugares consecutivos, que “projeta, e como que “prepara”, a trajetória ou movimento efetivo do móvel (sabemos que, na verdade, o movimento não se identifica à série dos lugares que indicam sua trajetória já que, tratando-se de uma sequência de pontos imóveis, ele deixaria de ser movimento; porém, estando, como movimento, sempre entre dois destes pontos, se deixaria “ordenar” por eles, segundo o antes e o depois). Pois se o movimento de um móvel se desenvolve sempre entre um ponto de partida e um ponto de chegada, ou se, enquanto movimento, sua unidade é sempre virtual (ela nunca está, por definição, completamente totalizada, pois fosse plenamente atual ele já não seria movimento; o móvel não estaria movendo-se de um ponto a outro, não estaria entre um e outro, entre as extremidades da extensão que percorre — de modo que, neste sentido, segundo se observa, “estar em movimento” indica ou configura a “potência de estar em algum lugar”), ele carrega sempre, nesta virtualidade, alguma projeção ou prospecção da unidade do trajeto. Ou seja, ele procura sempre na série pressuposta dos consecutivos os elementos ou lugares que o determinam potencialmente, e encontra nela — “conformando-se a ela” — o contorno da sua unidade, sempre virtual. Assim, pois, a continuidade simultânea da extensão se infiltra na continuidade sucessiva do movimento (e do tempo) e a sustenta, como condição necessária da unidade virtual do movimento efetivo do móvel ou do sujeito (é justamente para pensar a conjunção desta existência efetiva e unidade virtual do movimento que os escolásticos forjam a noção de “ato imperfeito”). De modo que se explica a sucessão (do movimento e do tempo), retendo-se de um lado a pressuposição da unidade de um espaço, e supondo-se, de outro, a unidade e identidade do móvel que produz o movimento. Ou seja, as condições de possibilidade do contínuo sucessivo estão, finalmente, em duas unidades pressupostas: e da extensão e a do sujeito.
Portanto não parece difícil detectar o estratagema de que se vale esta explicação do caráter “sucessivo” do tempo. Seu ardil está justamente na pressuposição da totalidade que distribuiria a série dos pontos consecutivos percorridos pelo móvel, já que sem ela parece impossível compreender a possibilidade da sucessão. De modo que, ao atentarmos bem, observamos que esta totalidade é afastada com uma mão (ao se destituir, como vimos, a continuidade da extensão pela atualização de suas “partes” — que justamente faz emergir a descontinuidade que requer o movimento) e reposta com a outra (na pressuposição de que estes elementos descontínuos constituam uma série positiva de consecutivos, dispostos numa determinada relação de ordem e proximidade), sustentando-se, pois, por esta destra prestidigitação, a possibilidade de “ordenar” a sucessão e “determinar” o movimento. Ou seja, no momento mesmo em que se é levado a postular a divisão e descontinuidade dos lugares pressupostos pelo movimento (pois ele se inicia em um ponto e termina noutro, vai sempre daqui para ali) mantém-se sub-repticiamente a sua unidade e continuidade pela projeção da série dos “pontos de referência” que ordenam (segundo o anterior e o posterior) as “etapas” do movimento, cujos limites “reais” se determinariam por seus termos extremos. Ora, como manter a relação todo/partes — ainda que purificada e sutilizada numa simples relação de ordem —, quando a descontinuidade que exige o movimento justamente assinala nesta “totalidade” fragmentação e lacunas e, portanto, abertura e indeterminação?
De fato! Quando dizemos que o tempo é um contínuo sucessivo (uma totalidade cujas “partes” nunca existem simultaneamente — juntas —, mas umas depois das outras) referimos seu movimento contínuo a uma sequência de agoras (de onde, como mostra Merleau-Ponty, a convenção de representar esta série de agoras por pontos sobre uma linha) e o conformamos à interpretação mais imediata do movimento, o deslocamento de um móvel de um lugar para um outro, de uma “coisa” extensa a uma outra, como é pensado usualmente o movimento. Ora, não é difícil perceber que, assim tomado, o movimento implica uma referência inevitável à totalidade de uma extensão (percorrida por um sujeito); e não nos damos conta que, da continuidade imediata (positiva e imaginária) desta à articulação constituinte do tempo, há mudança de registro ou, como diria o mestre Aristóteles, métabasis eís állo genos”.
O movimento local parece exigir, como sua condição, a projeção de um trajeto. Pois, se se move — segundo acreditamos — de alguma coisa para outra, e se está sempre, enquanto movimento, entre seu ponto de partida e um ponto de chegada, torna-se impossível pensá-lo se não se detém, de algum modo, a unidade do percurso que o determina, se não se “conhece” o ponto de chegada (é isto que permite, por exemplo, afirmar que estar em movimento de um lugar para outro é estar “virtualmente” neste outro lugar). Se, portanto, não se pré-vê o trajeto e, nele, a estação final do movimento, não podemos representá-lo exatamente como naqueles casos em que não sabendo alguém para onde ir, revela-se impossível seu movimento: não vai, permanece parado (os sofistas já fustigavam o velho Sócrates com um problema semelhante relativo ao conhecimento: se não se sabe o que se procura, como procurá-lo? Este paradoxo, que tenta dissuadir de qualquer pretensão de buscar o conhecimento, parece justamente induzir o platonismo a colocar, num determinado momento, o postulado da reminiscência, já que o conhecimento pareceria supor alguma pré-visão, alguma virtualidade ou pré-disposição no sujeito, anterior ao momento da sua efetividade). Então, como falar em descontinuidade e alteridade quando tudo se compõe na extensão ordenada de um trajeto, no seio de uma mesma totalidade?
Merleau-Ponty, de seu lado, vai contornar esta dificuldade interpretando a temporalidade não mais pelo modelo do deslocamento — balizado por uma série de pontos ou momentos —, mas como dimensão constitutiva de um mesmo “campo de transcendência” ou “campo de presença”, trabalhando por uma diferenciação interna permanente, por uma alteração constante. Não mais, portanto, passagem de um ponto a outro, ou de um agora a um outro, mas autodiferenciação como modo de existência — temporal — do presente; mudança ou metamorfose de um “campo” ou de um “mundo”, em permanente transformação (passagem de si a si ou, como diz o filósofo, “escoamento” de si para si mesmo). É esta, indica-nos ele, a estrutura do tempo: articulação e diferenciação latente do passado e do futuro no campo do presente, pois este guarda os traços de suas configurações passadas e evoca em si mesmo outras possíveis. Por isso não encontramos a temporalidade na sucessão (de diferentes momentos ou instantes) mas na simultaneidade desta presença espessa, movediça, permeada pelas marcas de um aquém e projetada para adiante pelos sinais do ausente inscritos nas suas dobras. Ao referir-se à espessura ou profundidade do presente, Merleau-Ponty nos lembra, pois, que ele não é “um segmento de tempo de contornos definidos”, uma duração determinada e contínua — como um indivíduo espaço-temporal —, mas um “campo.”, aberto e “poroso”, indeciso e lacunar, em cujo inacabamento e indeterminação se encontra justamente sua abertura para o outro, para o ausente, ou ainda — para usar sua expressão mais cara — para o “invsível” , esta “contrapartida secreta do visível… inscrita [permanentemente] nele, em filigrana” . Esta “abertura” (inscrita no presente) é o elemento do tempo, pois é o motor da sua contínua diferenciação.
Compreendemos, então, que a temporalidade não se constitui por extensão ou agregação, acumulação ou envolvimento, mas — por ser o presente inacabado, indeciso e lacunar — se faz por alteração, quebra e transformação, estilhaçamento e reorganização de um mesmo “campo”, por desintegração e reconstituição (sempre “aberta”) do seu sentido. Se há passagem, ela é, portanto, de uma configuração a outra do sentido.
[Sua forma emblemática a encontramos certamente naquela experiência — tão sensivelmente descrita e analisada em O visível e o invisível da “desilusão”, ou da quebra de uma certeza, uma significação estabelecida ou alguma aglutinação de sentido. Pois, quando exploramos suas zonas opacas, ou interrogamos suas lacunas (esse fundo constitutivo de ausência de todo “visível”), ela se “estilhaça”, dando lugar a uma outra, que absorve os traços da primeira numa forma mais aglutinadora e congruente. Como naqueles casos em que, tendo visto algo, e logo tentados a “olhar bem” — levados certamente por alguma discrepância, obscuridade ou lacuna que nos “chama a atenção” —, aquilo mesmo que víramos se revela outra coisa, que vem desclassificar nossa experiência anterior como um “engano” ou ‘ilusão”. Do mesmo modo experimentamos o tempo: o passado não é um momento que deixamos para trás, mas uma configuração perdida do sentido, excluída, pois vertida e vazada no presente, passada nele, e apenas existente nas dobras desta nova evidência, nos traços de uma outra configuração. E o futuro não é algo positivo que se tem pela frente, mas já se delineia no horizonte do presente — nas frestas abertas de sua indeterminação —, como outro possível deste mesmo mundo. A temporalidade, pois, sempre a encontramos nas linhas do presente, no devir constitutivo de seu próprio sentido.]
Ora, se a representação do tempo como sucessão, decalcado no “movimento local” — e, pois, inevitavelmente referida à extensão compreensiva e envolvente de um campo de proximidade — excluía a distância, torna-se possível agora pensar sua constituição, pois ela encontra na dimensão temporal do presente as condições de sua articulação. A distância se produz pelo afastamento — como passagem para um outro —; mas este só se revela verdadeiro enquanto movimento de uma configuração a outra do sentido. Pois, de outro modo, o movimento parece neutralizar-se pelo confinamento na continuidade de uma grandeza, de uma totalidade, ou, então, tornar-se impensável pelo isolamento e completa indiferença das extensões que balizariam seu trajeto. Assim, a condição de possibilidade da distância que vemos articular-se num verdadeiro movimento está na temporalidade, ou na abertura constitutiva de um presente; pois o distanciamento que a engendra nada mais é que a temporalização do seu sentido. Na verdade, podemos verificar que tempo e distância se entredefinem, produzidos que são, ambos, exclusivamente por este afastamento de si, pela diferenciação interna de um campo de sentido. Enfim, a extensão é o reino da proximidade — sempre devedora da imaginação —, a distância é um “produto” do tempo (que é distanciamento). Mas só compreendemos o alcance desta afirmação quando poupamos inteiramente o tempo dos constrangimentos da totalidade (quando não mais consideramos que ele “conforma-se à grandeza”, para pensá-lo na sua abertura para o ausente, para o novo ou o seu “outro”.
Talvez possamos agora, finalmente, compreender nossas dificuldades iniciais referentes à predicação da distância e à definição das viagens. Pois, se a atribuição da primeira nos parecia derrapar inevitavelmente no terreno da controvérsia, isto acontecia por não á distinguirmos da proximidade, por a confundirmos como determinações de um mesmo gênero — relativas ambas à grandeza —, pelo qual transitaríamos por escala, comparação e gradação. Ora, ao verificarmos agora que não há entre elas passagem contínua, mas mudança de registro, salto para outra ordem (pois uma se refere à coesão de um todo, ou à unidade de uma extensão, outra à quebra ou desintegração das ordenações e configurações estabelecidas em que se investe o tempo), também compreendemos o engano em que incorrem os dicionários na consideração das viagens. É verdade que, ao defini-las pela distância — assinalando-as, pois, como distanciamentos, por oposição aos simples deslocamentos —, parecem entrever sua determinação fundamental. Porém, mostram-se incapazes de pensá-la (tomam, já vimos, o distanciamento como modalidade do movimento local, como se fosse possível acedermos ao distante, passarmos a um “outro”, por um trajeto contínuo, sem quebras ou ruptura, sem experimentarmos a vertigem do tempo). Os dicionários não se equivocam, pois, ao indicar as viagens como distanciamentos, enganam-se quando as vinculam ao espaço, quando ingenuamente representam esses movimentos como mudanças de lugar no interior de um mesmo mundo. Não permitem compreender que o viajante se distancia porque se diferencia e transforma seu mundo; que as viagens são sempre empreitadas no tempo.
Não esqueçamos, porém, que há homens que — segundo crêem — apenas transitam no interior de um mundo enrijecido na consonância da sua unidade; que, em relação ao próprio tempo, imaginam-se percorrendo uma linha de instantes de antemão dados e ordenados. E que há outros que, por seus deslocamentos, somam acidentes e aventuras, derivam e erram por um universo disperso e fragmentado. E o segmento de tempo que delimita suas vidas parece fiar-se na linha tênue que amarra suas estórias, reunidas (ou narradas) sempre sem ordem ou sequência estabelecida, por associação, contaminação ou contiguidade de algum de seus elementos… como nos sonhos. Tais homens, uns e outros, tudo aproximam; desconhecem as distâncias. Locomovem-se por uma superfície achatada, por um mundo plano e pleno de coisas — lugares, momentos, eventos, ordenados ou sem ordem —, ignorando sua abertura e profundidade. Assim não viajam. Pois, é na indeterminação desta “abertura” que se enreda o distanciamento; só nela se aloja o tempo. (Por isso a bem poucos — como dizíamos — é dado viajar.)
COMPOSIÇÃO III: O OLHAR VIAJANTE (DO ETNÓLOGO)
Deixemos de lado as viagens interessadas que alimentam a significação mais prosaica do vocábulo e nos induzem a defini-lo como simples mudança de lugar (pois quase sempre encontramos suas razões nas finalidades externas que as movem, e determinamos seu movimento pelas estações que as limitam). Busquemos aquelas que, tendo seus objetivos menos nítidos, permitem-nos concentrar sua significação no ato mesmo de viajar. Verificaremos então que, assim tomadas, as viagens revelam inequívoco parentesco com a atividade do olhar. E também que esta afinidade não lhes vem apenas de certos traços de sua operação, ou da economia de seu funcionamento, mas que, umas e outro, revelam-se, finalmente, expressões diversas de uma mesma experiência do tempo. As viagens, na verdade, parecem ampliar — intensificar e prolongar — o mesmo movimento que cotidianamente verificamos no exercício do olhar… Como se, em ocasiões privilegiadas, os olhos arrebatassem todo o corpo na sua empresa de exploração da alteridade, no seu intuito de investigar e compreender, no seu desejo de “olhar bem”.
O olhar, sabemos, não descansa sobre o plano amplo e espraiado que define um horizonte, mas procura barreiras e limites, perscruta suas diferenças e vazios. Trata-se de algo bem conhecido: que qualquer relevo ou sinuosidade, falha ou obscuridade destõe da unidade pré-vista da paisagem familiar, que um ponto de descontinuidade ou incongruência se manifeste, qualquer sinal de ruptura, inesperado ou imprevisto.., e a visão inocente — distendida ou distraída — vacila, estaca e atende, convoca o olhar; contrai-se no foco vertical da atenção, no impulso de envolver o novo e — quase sempre — na tentativa vã de devolver à paisagem sua integridade. Assim, o olhar se embrenha pelas frestas do mundo da investigação dos obstáculos ou lacunas que constantemente comprometem a unidade hesitante das significações (quando ele próprio não lhes escava o terreno, abrindo fendas nas aglomerações custosamente sedimentadas na duração): Da mesma forma as viagens. Também elas — como exercícios do olhar — têm origem nas brechas do sentido. Se o viajante fura o horizonte da proximidade e transpõe os limites de seu mundo para fixar a atenção mais além — no que não se deixa ver mas apenas advinhar ou entrever —, é sempre pelos vãos do próprio mundo que ele penetra, na medida em que surgem brechas na sua evidência, abrindo passagens na paisagem ou contornando desníveis e vazios. A viagem, então, como olhar, vazando por esses poros, temporaliza a realidade reempreendendo a busca de seu sentido. Assim, manifesta-se nela a abertura ou indeterminação do mundo, e nesta — para usarmos a expressão de Merleau-Ponty —mescoamento inesgotável do tempo.
Compreendemos, portanto, que as viagens sejam sempre experiências de estranhamento. E podemos mesmo observar que está, talvez, neste efeito de distanciamento, no sentimento de dépaysement (termo forjado com tanta felicidade pela língua francesa, cuja significação se aproximaria do nosso termo “desterro”, se o tomássemos num registro exclusivamente psicológico e simbólico) que, de um modo ou de outro, sempre envolve o viajante (que não se mostre inabalavelmente frívolo), o seu núcleo essencial e sua expressão mais íntima. Ora, esta experiência é frequentemente atribuída à simples estranheza do entorno que localiza o viajante, à sua posição em um meio adverso, cuja oposição, separação e “distância” relativamente ao seu universo próprio o fariam sentir-se “deslocado” ou “fora do lugar”. Esta oposição se encarregaria, então, de explicar o estreitamento de seu mundo (a redução da extensão das conexões da proximidade que o definem) e, com ele, a erosão da sua própria corporeidade (pois contrai-se, afinal, a própria extensão do sujeito, visto que se imbrica e se confunde na grandeza do mundo), fazendo-o pousar como sombra num mundo alheio e exterior. Esta interpretação, no entanto, certamente dissimula o sentido mais profundo desta experiência; pois, encontra suas balizas na consideração da extensão, esquecendo-se de que as viagens são, essencialmente, empreitadas no tempo. Mas como compreendê-la, então? O que nos revela, na verdade, esta experiência?
Quando consideramos o caráter temporal das viagens, compreendemos que o dépaysement não testemuha a exterioridade e estranheza do mundo circundante, ou mesmo a intersecção ou sobreposição imaginária de extensões diversas (sobreposição fantasmagórica já que — segundo se diz — “dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço”), mas assinala sempre desarranjos internos ao próprio território do viajante, advindos das fissuras e fendas que permeiam sua identidade. Pois, as viagens, na verdade, nunca transladam o viajante a um meio completamente estranho, nunca o atiram em plena e adversa exterioridade (mesmo porque ele não se encontra “dentro do espaço”, como uma coisa, nem “fora dele”, como um espírito, como a cada passo insiste em lembrar Merleau-Ponty); mas, marcadas pela interioridade do tempo, alteram e diferenciam seu próprio mundo, tornam-no estranho para si mesmo. Assim, neste sentimento de estranheza, de “alheamento” e distância, seu mundo não se estreita, se abre; não se bloqueia, mas experimenta a vertigem da desestruturação (sempre, em alguma medida, marcada pela perda e a morte) que lhe impõem as alterações do tempo. É desta natureza o estranhamento das viagens: não é nunca relativo a um outro, mas sempre ao próprio viajante; afasta-o de si mesmo, deflagra-se sempre na extensão circunscrita de sua frágil familiaridade, no interior dele próprio. O distanciamento das viagens não desenraíza o sujeito, apenas diferencia seu mundo… quando, é verdade, ele não se mostra demasiadamente compacto — e defendido — para deixar penetrar o tempo.
Mas procuremos atentar ainda para um ensinamento mais amplo trazido por esta experiência. O que ela nos faz mais profundamente compreender é que, o “outro”, só o alcançamos em nós mesmos, que o “estranho” — quando não é absoluta exterioridade e não-sentido — está prefigurado no sentido aberto do nosso próprio mundo, inscrito no fluxo e no movimento da sua temporalidade. Compreendemos por ela que o “estrangeiro” está sempre já delineado — latente e invisível — nas brechas da nossa identidade, na trilha aberta por nossa própria indeterminação. Não podemos apanhá-lo fora, só o tocamos dentro (de nós mesmos), pagando o preço da nossa própria transformação. Pois o “outro”, enfim — para parafrasear uma observação tornada emblemática da obra de Merleau-Ponty —, é sempre (e apenas) o que exige de nós distanciamento (de nós para nós mesmos, não é demais insistir) para que dele tenhamos experiência.
Não é difícil perceber que estas observações nos encaminham diretamente para o terreno da etnologia. Pois, se já vislumbramos nelas que o verdadeiro viajante é sempre virtualmente etnólogo, devemos considerar também, converso itinere, o vínculo desta ciência com a armação temporal das viagens, já que só ela abre passagem para a verdadeira alteridade. Se a temporalidade é o solo da comunicação com o outro, só nela é que alcançamos o fundamento deste saber alargado do homem a que pretende a etnologia.
Sabemos, no entanto, que não foi este (ao menos até o momento) o caminho buscado por ela para pensar o problema desta comunicação. A etnologia sempre tentou distribuir a diversidade do humano em alguma extensão (que coincide, afinal, com os contornos da própria ciência), procurou, a cada passo, costurá-la com os fios de alguma continuidade, visou sempre, enfim, a sua totalização. Podemos observá-lo nas suas formulações mais díspares, pois procede deste modo seja quando pressupõe uma sucessão das diversas “etapas” da cultura — buscando na evolução o princípio de ordenação ou distribuição do diverso —, seja quando toma uma certa forma de integração (quer seja seu todo concebido como uma ordem de distribuições funcionais ou estruturais, seja tomado como modelo ou delimitado pelo conjunto das propriedades formais das suas relações, ou mesmo ainda visto como simples esquema orientador da observação, constrangida a tomar como parâmetro de suas colheitas instituições da cultura do observador) como pivô das equivalências que lhe permitem transitar entre as diversas sociedades. É sempre, pois, segundo o modelo do espaço que ela compreende sua própria articulação, pois busca, ininterruptamente, envolver o “outro” em algum horizonte de proximidade, na continuidade de uma mesma extensão. Por isso está sempre às voltas com “partes”, “etapas”, “modelos”, “homologias”, ou “grupos de transformação” que nos remetem à totalidade, como terreno de comunicação e inclusão:
Ora, justamente esta constante projeção da proximidade veda à etnologia o acesso à “distância”, ao afastamento que trama o tempo e nos permite alcançar o novo e o outro (que é sempre — já pudemos observar — o novo de nós mesmos). Ela, que guarda um vínculo umbilical com as viagens, tem, portanto, muito a apreender delas.., desde que renuncie, porém, a instrumentalizá-las, a tomá-las como mera condição do contato, ganga a ser abandonada e esquecida (ou lembrada sempre com algum pejo, à margem da ciência) como o advento do conhecimento, a reconstituição de uma outra — externa — realidade.., desde, pois, que esqueça por um momento suas viagens interessadas, e que procure aquelas que, tendo seus objetivos menos nítidos, lhe permitam concentrar-se no sentido do ato mesmo de viajar.
Notas
[*] Devemos advertir o leitor para que não espere aqui uma reflexão mais sustentada e rigorosa; e para que, neste sentido, não o despiste as referências aos autores, temas e vocabulário da filosofia. Deixamos de lado o texto apresentado no curso (fundamentalmente um comentário sobre as condições de etnografia, a partir do Diário de B. Malinowski e de passagens da obra de Lévi-Strauss) para tentar aqui uma empresa um tanto vaga – extravagante – : a de compor e misturar retalhos de interrogações e observações que nos ocorreram ao longo – e à margem – da confecção daquele trabalho, e que lhe serviram ora de sugestão, ora de suporte, tocando, porém, apenas lateralmente o seu percurso. Juntamo-las em três “composições”(e que se tome aqui essa palavra no sentido escolar) independentes; ligadas. é verdade, por um certo fio comum – a referência merleau-pontyana. Que o leitor, portanto, nos perdoe – além das imprecisões ou incorreções – naqueles momentos em que as costuras parecerem um tanto artificiais ou em que prevalecer o viés de alguma preocupação pedagógica. Expressamos também, aqui, nosso reconhecimento aos colegas do departamento de Sociologia da USP – Irene Cradoso, José Carlos Bruni, Maria Helena Augusto, entre outros – cujo interesse pela questão do tempo repercutiu, por outras vias nesse texto
[†] Destacamos do texto (pelos colchetes) estas observações por não desejarmos impor ao leitor questões mais especializadas (e que, afinal, mereceriam um tratamento mais adequado). Àqueles, pois, que se aborrecem com “muitas explicações” (ou que não suportam ver tratados ligeiramente temas que já possuem um enquadramento bem definido), recomendamos que as saltem; pois o farão — acreditamos sem prejuízo da continuidade da leitura.