O sujeito e a norma
por Gerd Bornheim
Resumo
A ética tradicional fundamentava-se em conceitos universais estáveis. As normas, fundamentadas no elemento divino, pretendiam instituir-se enquanto exigências universais. Essa estabilidade derivava da existência do próprio Deus. A religião era um grande fator de união desindividualizante. Os universais informavam todos os planos da realidade, não apenas o ético: o filosófico, o científico, o artístico e o político. Com o advento da sociedade burguesa os universais entram em crise em todos os saberes indicados. O relacionamento que caracterizava o comportamento humano em face dos universais inverte o seu sentido: os universais passam a ser interpretados como meros conceitos, vazios de qualquer conteúdo, e o indivíduo passa a ser considerado a realidade por excelência.
O sujeito passa a exercer a autonomia que nos caracteriza, faz do trabalho um modo de realização pessoal, cria a propriedade privada, cria o capitalismo com banco e moedas, entende o conhecimento como forma de domínio e reduz a liberdade ao livre arbítrio. O individualismo burguês e o abandono do absoluto devem ser interpretados como correlatos. A crise da ética em nosso tempo se traduz essencialmente como uma crise da normatividade, toda ela endereçada para a firmação do indivíduo.
Na medida exata em que o homem passa a organizar a sua vida socialmente, desenvolve-se também a dicotomia das relações entre o sujeito e a norma. E, de saída, a dicotomia assume as feições de uma contraposição que, percebe-se logo, não deixa de ser a própria razão de ser da dicotomia. De fato, o exame das relações entre o sujeito e a norma esbarra, desde os seus primeiros passos, numa primeira constatação, a de que os dois termos constituem-se, na relação, como dois polos antitéticos, e que compete à tessitura das forças sociais convencionar entre ambos alguma forma de equilíbrio; ou então, por vezes, reconhecer que o equilíbrio se faz difícil e mesmo impossível. Esta última alternativa parece impor-se principalmente em certos períodos ditos de transição, ou de crise, e até de decadência — termos estes difíceis de serem delimitados.
Seja como for, a contraposição entre sujeito e norma está no ponto de partida ineludível de nosso tema. Realmente, estabelecidos os dois termos, delineia-se o contraste entre o universal e o singular. Pois toda norma pretende instituir-se enquanto exigência universal — a universalidade pertence ao próprio estatuto originário da norma; sem a possibilidade de definir-se como universal desvanece o próprio projeto da normatividade. Daí conseguir a norma fixar-se com certa estabilidade, como se o seu reino transcendesse as limitações históricas do espaço e do tempo. Compreende-se, por aí, que até mesmo em suas origens a questão do estabelecimento da norma enrede-se imediatamente não apenas no problema de sua fundamentação, mas, desde logo, também na resposta que se empreste a tal fundamentação — e já no ato inaugural o fundamento reside no elemento divino. Digamos, então, que o universal abstrato que define toda formulação do dever-ser da norma encontra o seu respaldo no universal concreto que é a própria realidade divina.
É no espaço de uma certa distância entre o universal e o indivíduo humano que, em todo o passado, constitui-se a vigência e a legitimidade da norma. E é também na intimidade dessa distância que pode surgir — pense-se aqui na riqueza inédita do pensamento grego em relação à normatividade e à justiça — a norma enquanto problema a ser discutido. Essa problematização deve até ser considerada como um dos esteios da evolução da cultura ocidental. Porquanto, já na Grécia clássica, nem faltam as cabeças filosóficas que, adestradas na dialética questionadora, chegam à conclusão em tudo inquietante de que a norma não passaria de mera convenção social. Tal ponto de vista aparece, no curso da história, de modo sem dúvida excepcional, porque o que caracteriza a vigência da norma na sociedade humana está justamente na sempre renovada crença no fundamento divino da norma: são os deuses que falam e tudo garantem. Já por aí pode-se aceder à compreensão da impressionante estabilidade que oferecem, através dos tempos, as normas e os valores morais de modo geral. As mudanças indubitavelmente existem, mas sempre no encalço de reiteradas formas de consolidação; e, contra todas as aparências, são valores que terminam durando muito mais do que a maioria dos entes que configuram o mundo humano e o próprio homem.
Já o sujeito pertence, evidentemente, a este mundo humano, o dos entes que povoam o cosmos. O sujeito é simplesmente uma realidade singular, datada no espaço e no tempo, que não dura muito mais do que as promessas de uma manhã. E se a norma, até mesmo em sua estabilidade, não consegue superar o seu estatuto radicalmente histórico, é no plano do indivíduo que tal historicidade ostenta a sua presença avassaladora. Em verdade, de uma ou de outra forma, tudo é histórico, e já nem se percebem as vantagens da defesa de uma meta-historicidade. No que concerne ao indivíduo, ele se faz histórico de ponta a ponta, e de tal modo que, em suas origens, é só impropriamente que se pode falar em sujeito. Demos razão a Marx: nos inícios, nem cabe pretender a existência da dicotomia sujeito-objeto; anteriormente a qualquer bipolaridade, tudo se deixa explicar no elemento anônimo e silencioso do trabalho, da práxis instauradora. É ela que termina por constituir o objeto, é pelo trabalho originário que as coisas se fazem presentes ao homem, e ele vai aos poucos construindo o seu mundo. E bem mais tarde é que se vai constituindo também o sujeito. A filosofia grega não poderia deixar de impor-se como um momento privilegiado da aurora desse despertar da subjetividade, logo secundado pela importância em tudo decisiva da lenta contribuição do cristianismo. Mas é só no fim da Idade Média e nos primeiros tempos da modernidade que o sujeito passa a desenvolver a autonomia que ainda hoje nos caracteriza — autonomia que levou não poucos autores a falar em antropocentrismo, contraposto ao teocentrismo de toda a cultura anterior. Realmente, agora, já nem basta falar em indivíduo: o que tem início com a proposta do projeto burguês é essa aventura em tudo inédita do individualismo, através da qual um homem novo é arrancado de suas raízes multimilenárias. O tributo ao passado, quando presente, insere-se agora em coordenadas surpreendentemente revolucionárias.
Pretendo, nas páginas seguintes, traçar um mapeamento, ainda que incipiente, dos pontos marcantes desse itinerário, através do qual se estabelece o referido projeto burguês em suas linhas básicas de evolução. *
Trata-se, portanto, de demarcar as fronteiras em que se move o projeto burguês. E, num inventário inicial, passo a arrolar, à maneira de um itinerário a ser desenvolvido, algumas características que se revelam essenciais. Certamente há outras mais; limito-me, entretanto, às que se me impõem, visivelmente, como mais importantes.
A primeira e mais decisiva está no caráter de autonomia que passa a ostentar o indivíduo moderno. A construção dessa autonomia atravessa inúmeros aspectos do processo social burguês já em seus momentos iniciais. Baste lembrar aqui apenas dois tópicos, altamente ilustrativos. Um primeiro exemplo está na evolução da arte do retrato; se a arte anterior praticamente se limitava a retratar os universais considerados concretos, como deuses, santos, heróis, reis e assemelhados, o retrato passa agora a reproduzir a imagem do homem comum, destituído de qualquer nome ou atributo de realce, como, por exemplo, a figura do comerciante tal como pode ser vista na pintura flamenga tardia; o novo cometimento condena o retrato do universal concreto a um lento processo de deterioração. Outro exemplo está na transformação por que passa paulatinamente a biografia e a autobiografia. As Confissões de um santo Agostinho estão na exata antípoda do que se vê ocorrer na literatura biográfica moderna. Para o bispo de Hipona seria ocioso e desinteressante (ao menos) prender-se às peripécias de uma vida enquanto descrição de acontecimentos interessantes ou mais ou menos inusitados; o que Agostinho nos relata deve ser encarado em outra perspectiva: a do itinerário de uma alma singular em seus avanços de aproximação da realidade divina. Mais uma vez, o que está em causa concentra-se integralmente na pedagogia inerente ao universal concreto. Já para os modernos, a biografia passa a desvincular-se desse plano dos universais, prende-se à unicidade do singular, até alcançar a epidemia de biografias de que já fala Nietzsche.
Mas o alcance maior da questão da autonomia pode sem dúvida ser examinado através do pensamento cartesiano. Pela primeira vez, a experiência do cogito, longe de restringir-se a um argumento destinado a desmontar a falácia cética, ao modo de santo Agostinho, passa a desempenhar o papel completamente inovador de constituir o ponto de partida de todo o pensamento racional. O cogito impõe-se como a primeira experiência absoluta — anterior à experiência do Absoluto —, que faz o homem concentrar-se agora na própria realidade do pensamento, dispensando, enquanto experiência primeira, qualquer arrimo que lhe seja exterior. A nova verdade absoluta permite que se entenda que o individualismo não configura apenas uma consequência extrema de um processo histórico dentro do qual estamos ainda hoje situados; antes disso, o individualismo funciona como uma espécie de a priori, como pressuposto maior que oxigenaria todo o projeto burguês. Realmente, o advento da burguesia representa uma revolução profunda, comparável talvez tão somente à primeira grande revolução na história do homem, a que inaugura o período neolítico, justamente quando surge a doutrina dos dois mundos, o meramente humano e sensível contraposto ao dos deuses, hierarquizados como o inferior e o superior. O burguês aparece como o grande artífice do desmoronamento dessa doutrina através do denodado estabelecimento do homem neste mundo, prestamente destituído de qualquer forma de dependência em relação a um suposto mundo superior.
Em segundo lugar, como nova característica, inicia-se o processo de valorização do trabalho. De fato, a inferiorização do trabalho, tanto no contexto do pensamento platônico-aristotélico quanto na longa tradição hebraico-cristã, passa a ser substituída por sua crescente valorização. A ambiguidade de Lutero, que realçava o trabalho enquanto vinculado à oração, cede aos poucos o seu lugar a uma concepção que vê no labor humano um meio de desenvolvimento da personalidade. A afirmação filosófica inicial dessa nova postura está na dialética hegeliana do mestre e do escravo. Em verdade, os caminhos sociais revelar‑se-iam bem mais complicados e mesmo problemáticos, mormente a partir da implantação do proletariado. Observe-se que, com a revolução industrial, surge a figura do engenheiro, esse ser duplo que associa a destreza das mãos artesanais ao apurado cálculo da nova ciência da natureza; não há exagero em afirmar que o advento do engenheiro constitui o primeiro grande golpe que sofre a antiga e dominadora definição do homem, introduzida pelos gregos — o animal racional —, e que repousa na dissociação, peculiar a toda a cultura ocidental, entre a teoria e a práxis, entre o homem de pensamento e o artesão. Reforça-se, por aí, aquela autonomia instauradora do homem burguês.
Um novo tópico, que vem como que embasar tudo o que foi dito, encontra-se na introdução da propriedade privada tal como foi convencionada pela burguesia. Abrevio o tema dizendo que o súdito medieval, o homem subordinado ao rei e ao papa, empenhava-se em construir as muralhas da cidade e mesmo as do império; o burguês, como que emoldurando os seus procedimentos de autoafirmação, despreocupa-se da cidade e limita-se à construção do muro que protege a sua própria casa.
Em quarto lugar, iluminando por assim dizer toda a edificação burguesa, forma-se o capitalismo. Já no século XVI, em Veneza, grande centro da navegação comercial da época, funda-se o primeiro banco. No século XVII, um alemão de Leipzig considera-se um dos maiores criadores da humanidade: ele inventa a contabilidade. O progresso econômico perpetra uma das maiores “perversões” da história: o dinheiro, essencialmente um meio para favorecer as trocas, é promovido à condição de fim em si mesmo. Percebe-se que tudo é feito para alicerçar da maneira mais sólida possível a autonomia do homem burguês.
Sublinhe-se, em quinto lugar, a nova maneira de entender o funcionamento e o sentido do conhecimento humano. Já no século xv, Francis Bacon, sem que pudesse sequer imaginar todas as implicações que sua afirmação exibiria com o advento da revolução industrial, entendia o conhecimento como uma forma de poder. E coube a Descartes a tarefa de estruturar, em seu ponto de partida, o funcionamento da mente humana de um modo profundamente inovador. Sabe-se do radicalismo com que o filósofo francês aplica a dúvida metódica. Seu racionalismo atinge principalmente a própria natureza do conhecimento sensível, já por não apresentar nenhum critério intrínseco de autojustificação; e a proliferação das filosofias, por exemplo, põe de manifesto a necessidade de duvidar também do conhecimento intelectual. A solução encontrada por Descartes consiste em submeter todos os dados passíveis de serem conhecidos a um procedimento de análise, de tal maneira que todo o observável seja reduzido aos seus elementos mais simples. O duplo e suspeito pressuposto da posição cartesiana está em crer não somente que tal simplicidade existe, mas também em aceitar que o elemento simples oferece uma evidência irrefutável. Tais elementos simples, postos à disposição da mente, autorizam que se passe ao processo de construção do objeto. Por aí, a coisa se transforma em objeto. A transformação implica dois aspectos em tudo decisivos. O primeiro está na intromissão do sujeito na construção do objeto — intromissão esta que será subsequentemente aprofundada, em especial pelas análises de Kant. E em segundo lugar está o fato fundador da moderna tecnologia: é que o objeto construído presta-se agora à manipulação por parte do homem. No pano de fundo, a soberania do cogito assiste a todo o espetáculo.
Uma sexta característica: acrescente-se a essa maneira revolucionária de interpretar o conhecimento a concepção cartesiana da liberdade. Realmente, no caso, pode-se traçar um estreito paralelo entre a análise do conhecimento e a da liberdade. Com Descartes, pelo conhecimento, o homem passa a ser senhor do objeto. Tal concepção é, digamos, complementada pela nova acepção da liberdade. Superando as interpretações antigas da liberdade, a grega e a medieval, Descartes comete o feito de restringir a liberdade ao livre-arbítrio. Não se trata mais de vencer o jugo dos tiranos e manter a plenitude da condição grega do cidadão, nem de dominar essa outra tirania, a da carne na acepção paulina, e sim de afirmar que o homem, pelo livre-arbítrio, promove-se à condição de senhor — senhor de sua escolha. Evidentemente, a história da liberdade revela-se muito complexa, pois ela se modifica sempre de acordo com o sentido da aventura humana; e seria até fácil traçar os antecedentes da concepção cartesiana da liberdade. Mas, agora, a novidade concentra-se toda num único ponto, verdadeiro pressuposto de toda a doutrina: o indivíduo humano entendido como realidade autônoma. O conhecimento e a liberdade, em suas novas acepções, emprestam à autonomia como que a sua transparência. A liberdade interpretada como autonomia, ou como independência, leva, ainda hoje, qualquer jovem a repetir desprevenidamente que a “minha liberdade começa onde termina a tua” — fórmula esta que nem de longe caberia dentro da cultura grega ou medieval, mas que poderia com toda tranquilidade ser abonada por Descartes.
O mapeamento feito, mesmo que seja incompleto, mostra‑se certamente suficiente para que se aceda ao sentido do homem novo que está na base do projeto burguês, ou da modernidade. Claro que, sobre cada um dos tópicos aventados, seria possível e mesmo necessário escrever ensaios longos e minudentes — trabalho este que, de resto, de uma ou outra forma, já conta com uma bibliografia considerável. Aqui, no entanto, interessa apenas traçar as linhas pontuais de um quadro geral. E é justamente este quadro que nos leva a entender uma nova problemática, que configura uma sétima e última característica. De fato, determinados os eixos em que se move a autonomia do homem burguês, abrem-se as portas para que se possa divisar uma nova questão, autêntico ponto de arrancada do que deve ser considerado o drama burguês. É precisamente a instituição da autonomia que vai equacionar toda densidade desse drama maior, verdadeiro contraponto da autonomia e que irá, em larga medida, pautar o seu desdobramento histórico. Penso aqui na intrincada questão do contrato social.
O problema deixa-se delimitar com simplicidade: se cada indivíduo vem resguardado em sua própria autonomia, em que bases se pode estabelecer a vida social? Como conciliar o individualismo com as exigências inexoráveis da existência comunitária? Onde fincar a dimensão gregária do homem? Ou onde vislumbrar os princípios de sua religação? Sabe-se das inúmeras polêmicas, guardadas em extensa biblioteca, que tais questões souberam suscitar. Limito-me a lembrar apenas duas posições opostas, a de Hobbes e a de Locke, distantes mais de um século uma da outra. Já essa distância no tempo revela-se significativa. Hobbes habita os inícios, e pode ser interpretado como um crítico radical do projeto burguês. A sua frase mais famosa assevera que o homem é o lobo do homem, ou seja, a dramática percepção que o filósofo teve do surto do individualismo tornaria a sociedade inviável, fazendo-se imperioso ancorar o homem em valores tradicionais — justamente em muitos daqueles que serão destruídos pela burguesia. Já com Locke, as coisas se mostram mais serenas, o projeto burguês começa a dar os seus frutos, e o equilíbrio social parece enfim concretizar-se em suas novas bases. Fez-se então possível que os homens se sentassem em torno de uma mesa e discutissem os princípios gerais que devem nortear os indivíduos dentro da sociedade. A constituinte pretende, pois, chamar os homens à sua responsabilidade social. E, no fundo, o que a carta magna deve garantir gira apenas em torno da exequibilidade daquela meia dúzia de tópicos enunciados acima, isto é, quer tão somente proteger a autonomia do indivíduo e de tudo o que a torna possível.
Estamos em vésperas já do surgimento do Século das Luzes, em que o otimismo do melhor dos mundos possíveis e o mito do progresso perpétuo da humanidade apresentam-se como ideias a merecer amplamente o aplauso dos pensadores. Logo mais, Goethe escreveria a sua autobiografia, Verdade e poesia, obra que representa talvez o momento de maior equilíbrio da evolução do homem burguês: nesse maduro ensaio, a ideia renascentista que faz do homem um microcosmo alcança a sua excelência; o homem só atinge a sua verdade se for interpretado como um microcosmo que reflete em si o macrocosmo, o pequeno e o grande mundo se pertencem e a verdade de um está no outro. Na época, fala-se muito em História Universal, e o próprio Goethe, inspirado na leitura de um romance chinês, cunha a expressão, que fará fortuna, de literatura universal. Pois acontece que a burguesia — e é a primeira vez que isto se verifica na história do homem — pretende impor-se como classe universal; destituída a monarquia e longe ainda das inquietantes esferas inferiores do proletariado que seriam criadas pela revolução industrial, o burguês vive a possibilidade de dar plena expansão a todo o seu ideário. Um dos maiores trunfos da burguesia reside justamente neste ponto: ela reformula toda a questão da universalidade e até mesmo dos universais. Se pensarmos no caráter profundamente regional da pólis grega, em que até os deuses eram exclusivos de uma determinada cidade, e se atentarmos para a soberana superioridade do Sacro Império medieval, que levava a ignorar todo o outro que não o cristão, podemos entrever o notável avanço realizado nesse ponto pela cultura burguesa.
Entretanto, todo o otimismo que caracteriza a segunda metade do século xviii acoberta um emaranhado de problemas que acabarão por manifestar a inteireza da densidade do drama burguês, drama que pode ser aquilatado se se pensar não apenas na consecução do contrato social, mas principalmente nos pressupostos a partir dos quais esse contrato se quer viabilizar. De certo modo, toda a questão pode ser reduzida a um dado novo que constitui a alma do contrato na sua acepção burguesa — refiro-me ao ateísmo. Claro que as constituições desenvolvem o seu discurso invocando, já na primeira página, o nome de Deus — ainda hoje isso é frequente. Mas a verdade é que, sem o ateísmo, faz-se impossível perceber toda a problemática inerente à nova acepção do contrato social.
Em verdade, o ateísmo, ainda que latente, e o individualismo se pressupõem; digamos que o problema de um está no outro. E é exatamente esse problema que não existia na Antiguidade ou na Idade Média; então, o indivíduo, além de não sobressair como realidade autônoma, estava religado a partir da presença do divino, a religião era o grande fator de unificação desindividualizante. A partir do momento em que Deus desaparece do cenário, ou em que a sua atuação desfalece ou torna-se mais longínqua e artificial, surge a questão do individualismo enquanto problema. De fato, o tema sequer tarda em ser colocado: a partir de que elemento pode-se manter a coesão interna da sociedade, onde se encontra a garantia que permite assegurar a harmonia fundamental da coletividade individualista? A contradição patenteia-se com uma força nunca vista. A questão nem é simplesmente moral, ela abarca o todo do próprio sentido da nova sociedade e apresenta por isso um caráter ontológico; em vez de egoísmo, seria mais condizente empregar a palavra egotismo, a exemplo de George Santayana.
Do ponto de vista filosófico, a questão deixa-se equacionar através deste importantíssimo movimento, que começa a tomar forma já em fins da Idade Média — o nominalismo. Lembro apenas os termos que levam ao entendimento do tema. Na tradição instaurada pela metafísica grega empresta-se relevo ao mundo das essências, e isso em detrimento da existência concreta do indivíduo. A realidade, no sentido primeiro e forte da palavra, concentra-se nas essências, nas Ideias divinas, ou naquilo que deve ser chamado de universal concreto, e o indivíduo fica relegado ao mundo das aparências, daquilo que não tem consistência própria; no século xii, santo Anselmo não representava exceção ao afirmar que o indivíduo est accidens. Com o advento do nominalismo — e destaque-se numa história cheia de nuanças e variações o nome de Guilherme de Ockham —, a perspectiva começa a inverter-se e passa a ser possível afirmar que a existência precede a essência, pois o que conta agora é realmente o indivíduo concreto: João, Maria. E no correr da filosofia moderna, numa história plena de oposições radicais — o último grande antinominalista foi o último grande metafísico: Hegel —, o nominalismo ganha sempre mais terreno.
Observe-se que a questão não é abstratamente filosófica. Deve-se até avançar que a vitória do nominalismo se evidencia de modo bem mais claro e convincente fora do âmbito da filosofia, ou seja, o tema se torna patente em todas as esferas que compõem o conjunto dos fatores sociais e culturais. Pois acontece que os universais concretos começam, com total obviedade, a perder o seu lastro de realidade fundante e pedagógica: os universais concretos começam a ser destituídos de qualquer função dentro do complexo social. Na política, se se decepa a cabeça de um rei, não se destrói mais apenas a existência de um indivíduo ainda que privilegiado — anula-se a própria ideia de monarquia, o que configura uma experiência inédita. O mesmo se verifica nas ciências da natureza; a presença de Deus se torna suspeita e até prejudicial ao bom andamento da pesquisa. Se se afirma que a água é um composto traduzível por certa fórmula, essa fórmula não vai além de um mero signo referencial, ela não esconde mais a realidade absoluta de uma Ideia divina; agora, o que se verifica é precisamente o contrário: o importante está exatamente no fato de que H2O não existe, em que a fórmula em si mesma seja despida de qualquer tipo de realidade. A mesma evolução acompanha também as artes, e de modo até abrupto: o barroco retrata o último período da história da arte constitutivamente religioso; depois, a temática religiosa simplesmente desaparece, não se constata mais a presença do estilo religioso no sentido da “substância objetiva” hegeliana. Mas não é apenas a representação do elemento religioso que se faz ausente: é a representação de toda a gama dos universais concretos que entra numa crise sem precedentes: deuses e heróis, reis e santos. O florescimento da alegoria mostra apenas a tibieza com que os universais ainda conseguem disfarçar-se. E contraposto, em forte contraste, a esse cenário de ruínas sobressai impávido o perfil dessa criatura nova, que é o homem burguês. E quem é, realmente, a “mulher de trinta anos”?
Esvaziados os universais e assegurado o indivíduo, certas inquietações não tardam em fazer-se sentir. O sucesso da filosofia de Kant não faz mais do que consagrar todo esse panorama, pois ele foi, no sentido bem preciso do nosso tema, um “destruidor de mundos”, ou melhor, do mundo dos universais. E é na ética kantiana que os problemas se tornam sempre mais transparentes. Realmente, sabe-se que o autor da Crítica da razão prática esvaziou a normatividade ética de qualquer conteúdo, reduzindo-a a postulados puramente formais. Em verdade, o cometimento kantiano apenas acerta o passo com os novos tempos. Mas, como já acentuei, tudo se dá dentro de contradições fundamentais. Porquanto, de um lado, na medida em que se continua prolongando o pensamento antigo, o fundamento está no divino, tudo de certo modo é divino; eis a posição de Hegel: em definitivo, e exacerbadamente, há uma única norma, que é a própria Ideia divina. Mas, de outro lado, o pensamento e o estado geral da política deixam‑se atravessar pela ideia da morte de Deus. O modo radical como essa contradição medular se manifesta atesta bem a extrema gravidade da transformação que provoca a irreversível revolução burguesa. E, em última análise, o feito maior da burguesia, relativamente ao passado, está na progressiva — e rápida — destituição do fundamento real ou da figura da norma — a Justiça já não habita os palcos.
A própria consciência burguesa chega a colocar com toda a clareza a novidade da questão e o seu caráter problemático. Penso aqui na obra de um discípulo de Kant, o poeta Frederico Schiller, em especial em suas Cartas sobre a educação estética do homem (ou da humanidade, ou, mais adequadamente, do burguês). A preocupação básica de Schiller pode ser interpretada da seguinte maneira: se a norma foi esvaziada de qualquer dimensão material concreta, como pode tal norma, abstrata que passou a ser, educar o homem e em especial o jovem? Por aí, é todo o problema da educação que começa a ser ventilado justamente à luz do esvaziamento dos universais concretos. A constituição passa a ser como que o depósito que resguarda os universais sem conteúdo. Como pode o universal abstrato preservar em si a suficiente força persuasiva indispensável ao projeto pedagógico? A resposta do poeta é negativa: não se percebe como o universal desconcretizado possa educar. Ou melhor: só haveria um caminho, que consistiria em atribuir de algum modo o caráter de concreticidade ao universal abstrato. E esse caminho é a arte, e mais especificamente o teatro. É dentro desse contexto que se passa a emprestar um realce privilegiado à categoria da particularidade, tão amplamente discutida pela estética marxista de Lukács, mas que deriva por inteiro das discussões de Goethe e Schiller. E o êxito da empreitada pode ser encontrado no teatro do classicismo alemão, a começar pelo Don Carlos, do próprio Schiller. Trata-se aqui de educar para a liberdade; se, de um lado, dispomos de um conceito abstrato da liberdade, de outro, topamos com a figura singular de Carlos, que, a seu modo, também revela-se abstrata. A particularidade surge como a ponte pedagógica entre os dois polos abstratos da universalidade e da singularidade: através das peripécias do personagem, o espectador está em condições de assimilar de maneira concreta o que possa ser a liberdade; o personagem concretiza a liberdade através da realização da particularidade. Entre nós, há um belo e claro exemplo do emprego desse tipo de expediente, que, a par de mostrar o quanto esse recurso estético já pertence de modo até espontâneo à dramaturgia burguesa, transmite ao público o sentido e o alcance da justiça social — penso na peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam black-tie. Uma observação se impõe: a prescrição de Schiller não pode ser estendida para toda a arte, nem mesmo para toda a dramaturgia burguesa.
As análises feitas permitem compreender que aquelas características do homem burguês apontadas inicialmente de fato integram um processo histórico no qual se combinam a rapidez e a convulsão. Pois tudo se transforma como que empurrado pelos ditames de uma urgência que desnorteia as profecias. Só a cultura burguesa criou realmente utopias, ou melhor, a especificidade da utopia burguesa termina encontrando o fundamento de seu espaço de possibilidade no ateísmo. E essas utopias, através da evolução de atos e fatos, são aos poucos como que diluídas, desmancham-se os sonhos dos inícios, a ponto de fazer surgir, também pela primeira vez, as utopias por assim dizer negativas que povoam a literatura de nosso século — o admirável mundo novo inaugural transmuta-se até em ironia. Realmente, ter-se-ia de perguntar o que é feito hoje daquela quase dezena de características aventadas, em que se veste e reveste em nossos dias aquela esplêndida autonomia. Porque o trabalho se robotiza, o capitalismo se batiza de selvagem, a liberdade tropeça em seu próprio absurdo, e por aí afora.
Frente a um mundo em face de tão violenta e necessária transformação torna-se fácil entender que o seu contraponto, ou qualquer pretensão à estabilidade da norma, também não poderia deixar de apresentar um panorama ao menos confuso. Se se fala, e tanto, em crise da metafísica, acentue-se evidentemente a palavra crise, mas não se esqueça o seu referencial imediato: se a crise é da metafísica, isso significa que, mesmo em estado de crise, a metafísica continua oferecendo certa vigência, ou certa força de resistência, mesmo se, ao que tudo indica, tal vigência apresente o caráter de um estertor nem tão prolongado. Mas, seja como for, pode-se detectar três tipos diversos de abordagem da questão ética.
A primeira prende-se visceralmente à tradição onto-teo-lógica. Um caso típico é o do neotomista Jacques Maritain, que cito aqui porque o seu livro As grandes linhas da filosofia moral encontra-se à venda nas livrarias do país. Essa posição parte do endosso de um mundo de normas estáveis, fundamentado em uma hierarquia de valores absolutos, inerentes à própria realidade divina. Por essa via, a simples menção de um tema como o da constituição do homem burguês não passaria de um lamentável equívoco; ou melhor, o mundo burguês se deixaria explicar a partir de um grande desvio, perfeitamente contornável, e que acabou suscitando, a partir do movimento romântico, a nostalgia da Idade Média. Berdiaef e o já citado Maritain escreveram livros clássicos sobre o tema, em que foram seguidos por um largo contingente de intelectuais, nomeadamente católicos. Vale dizer que, segundo tal tese, qualquer modalidade de análise histórica revela-se necessariamente expressão de um mundo desfigurado e apresenta caráter ao menos acidental. Ignora-se, pois, a positividade da crise e só se enxerga na revolução burguesa a manifestação de algum mal maior.
Já a segunda posição fala em ética provisória, ou seja, posto que nossa época está em crise faz-se impossível que se viabilize a estabilização de valores fundamentais de modo ao menos relativamente adequado à análise — seria cedo demais para que se possa construir uma ética condizente com as exigências dos novos tempos. Aceite-se então, ainda que provisoriamente, a ética preconizada pela tradição, na certeza de que logo hão de surgir condições propícias à elaboração de uma nova ética. Parece claro que tal posicionamento revela ao menos certo grau de tibieza, porquanto, de um lado, os seus defensores mais importantes recusam-se a pensar a moral em situação de crise, e isso porque, de outro lado, parece não conseguirem desvencilhar-se do fantasma de uma normatividade estável. Não deixa de ser desalentador que o pai da filosofia moderna, Descartes, atento à crise de seu século, tenha adotado tal tese da provisoriedade. E também não espanta que, com a exacerbação da crise, a mesma posição volte a ser defendida em nosso tempo; aqui reside talvez o aspecto mais decepcionante do pensamento de Heidegger: a crise não transfere a premência dos problemas.
E há uma terceira posição, bem mais presente hoje do que possa parecer à primeira vista, que invade grandes parcelas do pensamento pós-hegeliano e que deveria merecer um ensaio à parte. Aliás, ela invade principalmente — o que é muito mais importante — o próprio comportamento do homem contemporâneo: veja-se, por exemplo, a radical transformação do conceito de família, ou da moral da sexualidade. Agora, trata-se de suspender, e definitivamente, o próprio sentido da ética tradicional, e isso em nome de um dado novo e onipresente: o da liberação do homem. Limito-me aqui a chamar a atenção para um dos campeões maiores dessa nova diretiva, Jean-Paul Sartre. Sabe-se que o existencialista foi antes de tudo um obcecado pela questão da moral, integrando-se nesse ponto à grande tradição francesa dos moralistas. E, no entanto, Sartre não chegou a escrever um tratado de moral que pudesse dar conta do problema — ele foi sem dúvida o primeiro a dar-se conta das constrangedoras aporias da questão ética. Mas Sartre faz duas coisas: ele discute longamente a situação da moralidade enquanto problema, e por esse caminho procede a um verdadeiro desmantelamento da ética tradicional; sua tese de base está em afirmar que aquela ética revela-se essencialmente imoral, por ser incompatível com o próprio estatuto da condição humana. E, em segundo lugar, Sartre não mede esforços para examinar de modo tão exaustivo quanto possível o que considera o ponto de partida de toda ética: a liberdade. Nem se poderia exagerar a importância do pensamento sartriano nesse aspecto em tudo essencial. Entretanto, permito-me chamar a atenção para um detalhe que me parece ser da mais alta significação. É que o humanismo de Sartre, segundo entendo, é plenamente compatível com a interpretação do homem presente no projeto burguês, a começar por aquela autonomia salientada mais acima. De fato, o pensamento sartriano deve ser entendido como uma espécie de coroamento da compreensão burguesa do homem; a sua concepção da liberdade, por exemplo, não faz mais do que radicalizar a tese cartesiana. Isso, longe de diminuir a filosofia de Sartre, mostra a extensão da gravidade da crise dentro da qual nos movemos. E, ao que tudo indica, a saída só pode estar na superação dos impasses sartrianos.
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Concluo estas análises com uma observação sobre a sempre momentosa questão dos universais. Para evitar equívocos, convém sublinhar que o que realmente se verifica não está na pura e simples supressão do universal. O que vem se constatando ao longo dos últimos séculos, e com intensidade crescente, sem que se perceba o menor indício de reversão neste quadro, está na destituição de um tipo de valor, de uma família bem determinada de universais concretos, e que podem ser classificados sob o rótulo geral de valores político-religiosos, todos centrados na esfera onto-teo-lógica. Mas não faria sentido disso inferir que o próprio conceito de universal esteja destinado a desaparecer, ou que passe agora a ser suficiente a sua caracterização puramente formal, como ocorre com as ciências da natureza e com as constituições políticas. Nem se poderia imaginar uma cultura despida do cultivo dos universais, pois deles depende toda a educação; a inteireza das tarefas pedagógicas como que se esgota na presentificação dos universais. O que cabe avançar é que, em nosso tempo burguês, vem sucedendo uma transmutação radicalíssima no próprio sentido dos universais concretos. E é preciso ficar bem atento a essa questão.
Tento mostrar a extensão do problema através da referência a um único autor, Shakespeare, e limito o tema, assim, à sua manifestação originária. Observe-se preliminarmente que as duas grandes modalidades de teatro antigo, a grega e a medieval, encenavam formas de celebração, de comemoração dos mitos, ou seja, eram espetáculos cuja função pedagógica esgotava-se na apresentação das verdades religiosas. A tragédia grega torna-se ininteligível se o herói não for rei, se a deusa Justiça não exercer os seus ofícios reparadores; e o mesmo pode ser dito em relação ao tratamento das figuras religiosas nos mistérios medievais. Mas isso tudo tem muito pouco a ver com o moderno teatro burguês, tão pouco que nem é muito prudente etiquetar toda a experiência ocidental do teatro sob uma mesma palavra: o teatro como nós, modernos, o entendemos é outra coisa. E essa modificação do sentido do teatro tem tudo a ver com a nossa problemática — e com Shakespeare.
Pois Shakespeare é um dramaturgo que ainda hoje espanta por sua modernidade — ele deve mesmo ser considerado um dos grandes fundadores da cultura moderna. Não se esqueça, porém, que o teatro elisabetano mergulha as suas raízes, e visceralmente, no teatro medieval, a ponto de se poder dizer que a cena medieval e a dos elisabetanos partem dos mesmos pressupostos. Evidentemente, não há aqui, como também não havia na Grécia, nenhuma poética teórica preestabelecida, tudo se processa no elemento da prática teatral, e de uma prática, como não poderia deixar de ser, que se transforma — a continuidade no modo de efetuar o espetáculo nem seria compatível com uma rigidez imutável. Cabe até lembrar que a primeira tentativa importante de fixar melhor as práticas do teatro medieval aconteceram justamente nos dias em que Shakespeare estava vivo, através da edificação de prédios específicos — e o nosso bardo foi dos primeiros, como se sabe, não só em utilizá-los, mas também em explorá-los na condição de proprietário.
De certo modo pode-se então dizer que Shakespeare vem todo inteiro da Idade Média: é de lá que toma todos os seus recursos, sejam cênicos, como também, em certa medida, os dramatúrgicos. Entretanto, aconteceu que, neste grande débito para com o teatro medieval, Shakespeare “esquece” precisamente o elemento que estava na raiz daquele teatro, que constituía a sua própria razão de ser: refiro-me à fé religiosa e a seus corolários. Sem dúvida, o seu mundo está povoado de universais concretos à moda antiga: há muitas histórias de reis e príncipes. Mas, de outro lado, há ao menos uma forma de ateísmo prático em Shakespeare, no sentido de que inexiste em sua extensa obra a experiência religiosa: onde o personagem que representa a fé? De modo geral, os reis shakespearianos são simplesmente forças humanas e políticas, os religiosos chegam a ser apresentados como o ridículo e peçonhento frei Lourenço, em Romeu e Julieta, ou a visionária Joana d’Arc não vai além da francesa inimiga e de moral duvidosa, totalmente subordinada ao elemento político. Já nesse sentido, Shakespeare é profundamente moderno, ele encarna um novo tipo de homem e supera a Idade Média, os seus santos e os seus demônios.
E mais surpreendente ainda é que Shakespeare é o primeiro dramaturgo que efetivamente põe-se a viajar. Na Grécia e na Idade Média, o teatro apresentava um sentido digamos vertical; eram tipos de espetáculos radicalmente regionais, ligados a uma mitologia acentuadamente local, e exibiam ao mesmo tempo um caráter supra-histórico, destinados que eram à manifestação das coisas divinas; o tempo como que se encolhia para as dimensões da manifestação do instante absoluto. Na Inglaterra, isso tudo desaparece. E Shakespeare põe-se a viajar, no espaço e no tempo. É no século xii dinamarquês que ele vai desenterrar o seu príncipe Hamlet; da Itália do século xiv retoma o amor adolescente de Romeu e Julieta; um pouco mais longe, de Veneza, toma e põe pela primeira vez em cena a figura de um negro, Otelo; e o gosto de outros lugares e outros tempos vai bem mais longe: pense-se na galeria de personagens romanos, Júlio César, Coriolano, Troilo e Créssida; sua última peça bate um novo recorde, Timão de Atenas é um grego. Claro: estamos no tempo das grandes navegações. Mas, por outro lado, estamos também distantes do advento da consciência histórica: tudo acontece, a começar pela impressionante galeria dos reis ingleses, dentro das coordenadas da mentalidade elisabetana, tudo se passa como que filtrado pelas injunções sociais, políticas, culturais da época. Por mais que se alarguem o tempo e o espaço, o sentido do todo, o seu estilo, permanece elisabetano; nem se poderia exigir uma rigorosa pesquisa histórica na composição de um Júlio César, por exemplo — Júlio César é elisabetano.
Mas esta breve análise teve por escopo o esclarecimento daquela questão dos universais. Claro que, como foi dito, reis e príncipes continuam sendo universais concretos à maneira da tradição, ainda que a aura religiosa neles apareça ao menos esmaecida em seu vigor divino. Nem faria sentido esperar tudo de Shakespeare, como se lhe fosse possível arvorar-se sem mais num ateu sem compensações. De resto, pouco se sabe do ideário shakespeariano. O decisivo para o nosso tema está, porém, no seguinte. Com Shakespeare tem de certa maneira início, na perspectiva que lhe é peculiar, o processo de transmutação do sentido do universal. Evidentemente, cabe afirmar que o nosso poeta, mesmo que de modo insciente, está como que amparado pelo clima geral de sua época. Contudo, seja como for, observa‑se na obra shakespeariana um passo decisivo e possivelmente inaugural para a reinvenção daquela referida transmutação do sentido do universal concreto, reinvenção esta que tomaria corpo no evolver dos tempos modernos, e isso de modo cada vez mais definitivo. É que o universal concreto abandona o esteio nos valores religiosos, sempre tão exclusivos no passado, e passa a configurar um novo delineamento. O fato religioso — e é isto o que se faz claro na obra de Shakespeare — é substituído pelo espaço e pelo tempo, pela geografia e pela história. Uma das grandes conquistas da cultura burguesa consiste na evidência dessa virada. O homem se sabe agora situado num espaço bem definido em sua totalidade: o homem conhece sempre mais o seu hábitat como globalidade planetária, a geografia do globo terrestre, e o domina sempre mais. E pela primeira vez também o homem sabe situar-se dentro da totalidade da evolução histórica, ele consegue finalmente ver-se a si próprio, não apenas como partícipe de um momento político determinado ou como instante de uma cultura: ele se sabe agora pertencente à história da humanidade, do próprio evolver cósmico; e aqui também conjuga-se o avanço do conhecimento com as formas de dominação. Conformam-se, assim, as linhas mestras em função das quais os novos universais concretos passam a estruturar-se e a emprestar ao homem a completude do sentido em que se debate a única aventura realmente consentânea com a sua dimensão humana. Geografia e história constituem agora os limites últimos da realidade do homem.