2015

Os homens que amam a guerra

por Marcelo Jasmin

Resumo

A Primeira Guerra Mundial representou para muitos contemporâneos do conflito a quebra da “ilusão do progresso”. O projeto iluminista, que apostou intensamente nos valores civilizacionais, não havia sido inteiramente esquecido pelas gerações românticas. O século XIX continuou a alimentar, por outros meios – como o das doutrinas positivistas –, a utopia de um processo progressivo e contínuo no sentido de um aperfeiçoamento da conduta moral e de um melhor convívio entre os homens. Essa ilusão, acalentada por tanto tempo, caiu por terra em seu auge, quando o sonho da belle époque transformou-se no pesadelo europeu da guerra total de 1914. Em 1915, Freud escreveu as “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, um texto que expressa surpresa e decepção a partir do fracasso da civilização ocidental com a deflagração de uma guerra mais letal do que todas as anteriores. Freud não excluía a possibilidade de conflito no mundo civilizado, mas acreditava que ele se daria “num contexto de respeito às regras do direito internacional”, o que não aconteceu. Apesar disso, sabia mais do que qualquer pessoa que se o nosso inconsciente não fosse reprimido pela cultura, estaríamos sempre prontos a matar por ninharias. Justamente, uma das coisas que define toda guerra é a suspensão das restrições comumente impostas pelas sociedades aos seus membros. Discordamos aqui de Clausewitz; a guerra não seria uma continuação da política por outros meios; pensamos nela antes como falência da política. Para Ernst Jünger, escritor e ex-combatente alemão, “a guerra é também sempre a mesma e sempre outra”. Uma vez suspensas as restrições sociais, o soldado passa por uma iniciação “associada com a morte e o matar”. Ele é invadido por paixões sombrias a partir de experiências “não ordinárias”, o que inclui “a excitação ou o frêmito de matar”, sendo movido pelo toque suave e sedutor do gatilho. Essas paixões e sentimentos incomuns, que escapam totalmente aos civis, foram descritas com espantosa franqueza pelo primeiro-tenente William Broyles Jr., a partir de sua experiência no Vietnã entre 1969 e 1971. A rotina das guerras do século XX foi terrível com o uso de armas de destruição em massa. Apesar dos relatos de combatentes da Primeira Grande Guerra sobre breves e valiosas tréguas que possibilitaram o contato com a humanidade do inimigo, essas pequenas quebras logo se evanesciam e retornava-se ao cotidiano de violência bárbara.


1.

A associação entre guerra e violência é tão imediata que poucas vezes precisamos problematizá-la. Também associamos, sem maiores dificuldades, guerra e horror, apesar dos esforços contemporâneos de divulgação dos novos artefatos assépticos para uma guerra que parece ser travada a distância, embora só o seja em parte e, no mais das vezes, por uma das partes envolvidas. Com menos frequência, contudo, temos associado hoje violência e horror e, ainda que estejamos atentos a tal vínculo em situações definidas – os campos de concentração, os massacres genocidas etc. –, alguns de nós têm se permitido elaborar condições de legitimidade ou razoabilidade para o recurso à violência nas quais o nexo com o horror se atenua ou se perde.

Por mais que sejam conhecidas as motivações psicológicas e as explicações sociológicas das várias formas históricas do recurso à violência, e por mais que saibamos que a violência é parte integrante da vida humana, prefiro manter ativa uma desconfiança em relação às justificações e à adesão normativa às práticas deliberadas da violência. Ao afrouxarem os vínculos entre violência e horror, tais justificações desprezam o quanto fins eticamente justos são contaminados, quando não negados ou dissipados, pelos meios através dos quais a violência deliberada se exerce, ainda que evocada como necessária ou legítima. Penso que a violência perpetrada por um ser humano contra outro, para não falar de outras formas da violência humana, é um limite externo da política, no sentido de que a presença de uma exclui necessariamente a outra. E, ao contrário do conhecido dito clausewitziano, penso que a guerra não é a continuação da política por outros meios; pelo contrário, a guerra é a falência da política e a sua substituição pela pura instrumentalidade da força.

Temos também, com frequência, aproximado a violência produzida pelos seres humanos com as variadas formas da erupção de forças telúricas e catástrofes naturais, como se não houvesse qualquer distância entre elas. A linguagem comum, aliás, acomoda o desprezo pela diferença humana. Falamos da violência de um terremoto ou de uma porta que se fecha com a força do vento; dizemos que a natureza é violenta quando assistimos aos documentários sobre a vida animal ou sobre a destruição dos corpos celestes que precede o surgimento de novas galáxias, ou quando nos referimos à virulência de certas doenças etc. Que a destruição e a morte sejam condições do nascimento de vida nova no cosmos parece-nos algo estabelecido racional e documentalmente, mas algo bem mais problemático se insinua quando essa certeza se confunde com uma naturalização da violência que prescinde da diferença entre os mecanismos que não controlamos e o que decidimos fazer com nossos atos, como se os chifres de girafas machos em luta por suas fêmeas fossem da mesma natureza das mãos humanas.

Ao mesmo tempo, o tema das paixões nos impõe a instabilidade dos termos até aqui mobilizados: intenção, mecanismo, erupção… O passional é da ordem do furor e do incontrolável, exatamente daquilo que assalta a autonomia racional, que a domina e a anula. Talvez a conduta mais prudente para este ensaio fosse suspender o juízo e explorar, com maior afastamento, as dimensões históricas da emergência passional da violência sem pretender uma rejeição do violento. Mas esse não foi um caminho possível para mim. Quis manter ativa, mesmo correndo o risco do uso tradicional de termos instáveis e em questão, a recusa ética da violência humana, isto é, daquilo que nos é possível rejeitar, pois, como sabemos, sobre o que é inexorável não há o que decidir.

Dito assim, rápida e sucintamente, a recusa da violência parece ingênua. Mas penso, por vezes, que certa ingenuidade talvez seja necessária para que possamos sair, mesmo que por um instante, do envoltório brutal em que se transformou o nosso cotidiano, de modo a admitir que algo distinto possa ser imaginado no campo das relações contemporâneas. A banalização da violência e da perpetração da morte assumiu tal naturalidade nas relações políticas, nas instituições estatais, na manutenção da ordem pública, nas relações internacionais, nos movimentos de massa do século XX, que não parece impróprio chamar a atenção para os riscos de sua legitimação.

* * *

Bem antes que o século XIX desenvolvesse sofisticadas explicações psicológicas e sociológicas para a emergência da violência entre os seres humanos, a guerra foi um expediente constante da resolução (como também da continuidade) de conflitos. Onipresente no século XX, quando foi turbinada por um inédito desenvolvimento tecnológico de destruição em massa, a guerra ainda parece representar, contemporaneamente, o paroxismo da violência perpetrada contra outros seres humanos, sob justificativas as mais diversas.

Ao longo da história, os relatos dos atos de bravura e da heroicidade deste ou daquele personagem em combate serviram de exemplos vívidos do que os seres humanos são capazes de suportar e de realizar, assim como da astúcia e da inteligência estratégica dos membros da espécie. Ainda que muitas vezes denunciada e condenada, a guerra triunfou na história humana por sua eficácia na determinação da superioridade entre contendores e na saciação de anseios menos nobres da vontade de poder. Gerações românticas apreciaram a guerra a partir de noções como as de grandeza e de glória nacionais, e certos círculos entediados com o cotidiano das sociedades burguesas do século XIX conceberam e viveram a guerra como uma aventura e uma oportunidade de engrandecimento pessoal. Como fenômeno extremo da luta pela sobrevivência, a guerra recebeu elogios modernos quando se tornou evidente o seu potencial para a descoberta de soluções engenhosas de problemas diversos e para o incremento da invenção científica e tecnológica. Quando observamos nossos hábitos contemporâneos, não há dúvidas de que a parafernália de aparelhos que utilizamos todo dia, e as funções que nos disponibilizam, não estaria entre nós, pelo menos tão cedo, se não fossem os imensos esforços concentrados da inteligência nos períodos de guerra.

Há, portanto, muitos registros nos quais a guerra tornou-se historicamente louvável ou, pelo menos, aceita como parte do progresso da vida humana. No entanto, parece haver algo distinto na apreciação dos usos da violência na guerra quando adentramos as décadas iniciais do século XX, e é nesse período que, me parece, encontramos indícios eloquentes da banalização da violência que se difunde nos dias de hoje.

O que eu gostaria de fazer neste ensaio é, ao falar de homens que amam a guerra, vislumbrar algo dessa diferença contemporânea. Não me interessa recuperar o romantismo das noções de honra, grandeza e glória, nem lembrar o espírito de heroísmo ou de aventura que desde sempre animou indivíduos a viajarem milhares de quilômetros em busca de seus dias de Alexandre. Embora a história escrita tenha preenchido infindáveis volumes que nos lembram que a guerra está por todo lado, penso que sinais desse algo peculiar ao século XX podem ser encontrados quando homens comuns, a princípio não avariados em sua capacidade de expressão e de pensamento, declaram, sem maiores pudores, que entre os prazeres vividos na guerra estão, por exemplo, a emoção da destruição, a satisfação diante da morte do inimigo e ainda, mesmo que de modo mais acanhado, o prazer de matar. Interessa notar em tais testemunhos paixões, sentimentos e prazeres que nada têm a ver com os valores tradicionais da vitória, da pátria e de outros associados a eles. Pelo contrário, penso que as declarações que me interessam só foram passíveis de vir a público, sem qualquer mal-estar, a partir do momento em que a experiência da guerra transfigurou noções como as de honra e de glória tornando-as coisas obscenas, para parafrasearmos um personagem de Ernst Hemingway, em seu livro Adeus às armas, cuja narrativa é ambientada nas campanhas italianas da Primeira Guerra Mundial.

2.

Um exemplo notável dessa nova maneira de amar a guerra encontra-

-se no artigo publicado pelo ex-soldado norte-americano William Broyles Jr., no ano de 1984, na revista masculina Esquire, justamente com o título de “Why men love war” (Por que os homens amam a guerra)[1]. Broyles foi recrutado em 1968 para o Marine Corps e ascendeu à patente de primeiro-tenente durante seu serviço no Vietnã entre 1969 e 1971. Após uma carreira como jornalista, tornou-se roteirista de séries de tv e de cinema em Hollywood. Não importam aqui detalhes da vida do ex-soldado, senão para dizer que se trata de um cidadão plenamente integrado à vida civil, ao trabalho, à família etc. Em seu artigo, Broyles reconhece que “nenhuma guerra em nosso passado bárbaro chega perto da brutalidade das guerras geradas neste século [XX], na bela, ordeira e civilizada paisagem da Europa, onde todos são letrados e a música clássica toca em cada café” e, recusando qualquer associação com o romantismo das gerações que se inspiraram em Walter Scott, diz que seu objetivo é compreender “por que homens ponderados e amáveis [como ele próprio supõe sê-lo] podem amar a guerra mesmo quando a conhecem e a detestam”.

Para o ex-tenente, existem inúmeras razões, algumas respeitáveis e outras nem tanto, que ajudam a compreender o amor à guerra. Dentre aquelas que considera respeitáveis, a primeira está na oportunidade oferecida pela guerra para o olhar atento às coisas não ordinárias do mundo. Lembrando o que no texto bíblico era condenado pela expressão concupiscência ou luxúria dos olhos, em geral associada ao interesse mundano pelos bens materiais e pela sensualidade da carne, Broyles reporta-se ao estranho deleite proveniente da experiência rebatizada pelos soldados com a expressão “eye fucking”, menos vinculada aos temas bíblicos e mais à curiosidade infinita do olhar humano para todas as coisas, o prazer de presenciar cenas fora do comum, mórbidas ou não, que se sucedem nas intermináveis vivências exóticas propiciadas pela imersão na luta[2]. A guerra é uma oportunidade de observar de perto o extraordinário, o que é frequentemente proibido, o que é censurado pela moralidade e pelos meios de comunicação.

Outra razão está na intensificação da liberdade individual gerada pela suspensão temporária dos laços sociais que mantêm homens e mulheres em obrigação nas responsabilidades na vida cotidiana – laços de família, de trabalho, de comunidade etc. Na guerra, tais vínculos desaparecem e, se é verdade que observamos um receio generalizado entre os indivíduos quando se encontram tão completamente livres de seus encargos cotidianos, “a guerra suspende esse temor”. Por isso mesmo, a guerra potencializa a exploração de “regiões da alma” que para a maioria dos civis permanecem encobertas e desconhecidas por toda a vida.

Ao mesmo tempo, por mais brutal que seja a guerra, ela foi vivida por muitos combatentes como uma espécie de jogo que, embora mortal, traz consigo muitas das características lúdicas. A atividade cotidiana dos soldados exige que saibam manejar com perícia os seus instrumentos segundo certos procedimentos e que se lancem à sorte do embate sem a certeza da vitória, mesmo quando há alguma segurança de sua superioridade – o que são características dos jogos. Além disso, como nos jogos, sabe-se com clareza quem é o amigo e quem é o inimigo, o que confere uma “soturna, mas serena clareza” aos movimentos dos combatentes que não se pode encontrar nas “áreas cinzentas e difíceis” que constituem o corriqueiro da vida ordinária nas ruas, nos empregos, na comunidade. E, se os homens adoram os jogos em geral, parecem apreciar ainda mais aqueles que lhes permitem uma “consciência profunda de seus limites físicos e emocionais”, e esse é o caso da guerra. Como se vê, segundo Broyles (e, de fato, segundo vários depoimentos de ex-soldados), a guerra é uma via extrema para o autoconhecimento, para se entrar em contato com uma espécie de eu profundo, tido como mais verdadeiro, um eu que nos dias ordinários de paz, na família e no trabalho, permanece oculto sob a restrição das convenções sociais.

Finalmente, entre as razões ditas respeitáveis, encontramos o tema mais frequente entre os soldados que buscam relatar algo de positivo na sua experiência da guerra: a camaradagem, uma espécie de emoção duradoura que acompanha as tropas em ação de guerra, mesmo quando tudo o mais parece desfazer-se à sua volta. É um tipo de laço singular que, como lembrou o escritor Philip Caputo, também ex-fuzileiro naval no Vietnã, diferentemente de outros laços, como o casamento, “não pode ser dissolvido nem por uma palavra, pelo tédio ou pelo divórcio nem por nenhuma outra coisa senão pela morte”[3]. Para esse tipo de laço foi cunha-da a difundida expressão irmãos em armas (“brothers in arms”), que marca um compartilhamento de experiências raras e de grande intensidade, nas quais a companhia torna-se a única referência ou, no dizer de Broyles, uma vivência em que o grupo é tudo, e o indivíduo, nada. Mesmo as posses e as vantagens individuais anteriores à guerra parecem não servir para nada na hora em que o combate se apresenta. O que cada um tem de seu acaba compartilhado entre os companheiros de armas. E não se trata de uma seleção de amigos ou de afinidades especiais, ainda que estas existam. Broyles descreve esse laço como “um amor que não precisa de razões, que transcende a raça, a personalidade e a educação – todas essas coisas que fazem a diferença na paz. É, simplesmente, um amor fraterno”. Não à toa o maior medo do soldado em batalha é a solidão, o isolamento: “sentir-se só em combate é parar de funcionar; é o prelúdio aterrorizador da solidão final da morte”.

Mas o que chama maior atenção para o que queremos tratar aqui é um segundo conjunto de razões, mais problemáticas como admite o autor, aquelas das quais pouco se fala, pelo menos fora do círculo dos que estiveram em combate. Broyles teoriza: “O amor à guerra brota da união profunda, no cerne de nosso ser, entre o sexo e a destruição, entre a beleza e o horror, o amor e a morte. A guerra pode ser o único caminho através do qual a maior parte dos homens toca o domínio mítico da alma”, a “iniciação no poder da vida e da morte”. É esse elemento iniciático, associado à convivência com a morte e o matar, que torna opaca a comunicação entre os que estiveram em combate e os que nunca se encontraram lá. E é por isso, diz o tenente, que a maior parte das histórias de guerra que encontramos publicadas é falsa e mentirosa. “Quanto melhor o relato de guerra, menos provável de ser verdadeiro.”

Algumas das melhores histórias de guerra foram, segundo ele, compiladas no livro Dispatches (que quer dizer missiva, despacho, mas também ato de matar e pronta execução), do ex-correspondente de guerra e também roteirista Michael Herr. Uma delas, narrada ao autor do livro por um experiente soldado, membro das admiradas patrulhas de reconhecimento de longa distância[4], dizia assim: “A patrulha subiu a montanha. Um homem voltou. Ele morreu antes de poder contar o que aconteceu”[5]. Herr nos diz que esperou, por algum tempo, o soldado lhe contar o resto da história, mas, como este permanecia em silêncio, perguntou-lhe o que acontecera em seguida. A reação do soldado foi olhar para o jornalista como se sentisse pena dele, com a cara de quem estava bastante aborrecido por ter perdido o seu tempo com alguém tão tapado quanto ele, Herr. Sintomaticamente, diz Broyles, uma estória parecida com a do Lurp no Vietnã poderia ser ouvida dos participantes da batalha de Gettysburg, ocorrida em julho de 1863, a maior em número de vítimas durante a guerra civil dos Estados Unidos. Uma delas conta o seguinte: “Fomos todos para Gettysburg no verão de 1963. E alguns de nós voltamos de lá. E isso é tudo, exceto detalhes”. A linguagem talvez seja outra, mas a estrutura da narrativa é a mesma, pois, como afirma o ex-tenente, tem os mesmos objetivos: o “seu propósito não é esclarecer [o que se passou], mas excluir [o ouvinte]; a sua mensagem dissipa o conteúdo, mas põe o ouvinte em seu [devido] lugar. [O relato diz:] Eu sofri, eu estava lá. E você não. E apenas esses fatos importam. Tudo o mais está além das palavras que narram”.

Histórias de guerra são histórias sobre a morte e por isso parecem habitar o reino do mito. Com frequência, os relatos históricos e os documentos militares referem-se ao número de baixas e de mortos numa batalha, mas não há qualquer menção ao número de assassinos ou perpetradores dessas mortes. Pois os soldados não se veem nem são vistos, socialmente, como tal. Eles estão no cumprimento de uma missão, justificados e legitimados em sua violência. Mas sabemos que não há mortes numa guerra sem agentes que as executem. Broyles, certamente, sabe disso e considera que entre as mais problemáticas razões que levam homens a amar a guerra está o amor pela destruição, a excitação ou o frêmito de

matar (“the thrill of killing”).

Meu pelotão e eu atravessamos o Vietnã queimando “hooches” (notem como a linguagem nos liberta – nós não queimávamos casas e atirávamos em pessoas: queimávamos “hooches” e atirávamos em “gooks”), matando cães e porcos e galinhas, destruindo, porque, como diz meu amigo Hiers, “nós achávamos isso divertido naquela época”. Como qualquer um que atirou com uma bazuca ou uma metralhadora m-60 deve saber, há algo especial nesse poder do seu dedo, o toque suave e sedutor do gatilho. É como uma espada mágica, uma Excalibur que grunhe: tudo o que você faz é mover aquele dedo tão imperceptivelmente como um desejo que faísca pela sua mente como uma sombra, não é sequer uma sinapse cerebral completa, e eu desfaço (“puf!”), numa rajada de som, energia e luz, um caminhão ou uma casa ou mesmo pessoas que desaparecem, tudo voando pelos ares e voltando ao pó.

Aqui se enuncia o prazer do jogo dos sobreviventes, o regozijo de estar vivo, que não se diferencia da alegria de ver o outro morto. No combate, a “linha entre a vida e a morte é extremamente tênue; há prazer. Prazer verdadeiro de estar vivo quando tantos à sua volta não estão mais. E do prazer de estar vivo na presença da morte ao prazer de causar a morte não há, infelizmente, uma grande distância”.

O texto publicado pela Esquire é um manancial de elementos justificadores desse amor macabro pela guerra, assumidamente problemático. Eu gostaria de me ater, ainda, a dois dentre eles. O primeiro é apresentado por Broyles como uma estética da guerra, uma estética “divorciada daquela qualidade crucial da empatia que nos permite sentir o sofrimento alheio”. A “elegância mecânica de uma metralhadora m-60” que é tudo aquilo que ela deve ser, um exemplo real e perfeito da sua forma, faz lembrar a excelência da fundição das espadas e das armaduras medievais que, no passado, vincularam a arte com a guerra. Os rastilhos luminosos e vermelhos das balas na escuridão fazem o soldado imaginar uma escrita no céu com uma caneta de luz e, com a resposta dos traços verdes das balas dos ak-47, formam um tecido luminoso com desenhos que parecem gravados na noite.

Nessa estética desprovida de empatia, há homens que amam o napalm pelo seu poder silencioso de fazer explodir casas e árvores como se queimassem por combustão espontânea. Mas o ex-tenente declara a sua predileção pela elegância repugnante do fósforo branco que explode abraçando o seu alvo com uma fumaça branca, intensa e ondulante, lançando ao ar cometas ardentes e vermelhos. E, embora a sua preferência por essa arma também se justifique pela sua excelência no exercício de sua função de destruir e de matar, Broyles insiste que “a sedução da guerra está em proporcionar tal beleza intensa, divorciada de todos os valores civilizados, mas ainda assim bela”.

Finalmente, a guerra intensificaria a sexualidade num nível desconhecido aos civis pacíficos, familiares e trabalhadores. “A guerra é, para ser breve, uma ligação sexual [‘sexual turn on’] […] a intensidade que a guerra traz para o sexo, o ‘vamos nos amar agora porque pode não haver amanhã’, baseia-se na morte”. “A guerra te lança no poço da solidão, com a morte respirando na tua orelha. E o sexo é um gancho que te tira de lá, acaba com o isolamento, te traz para a vida novamente.” Por isso mesmo, poucas vezes na vida civil os homens que combateram puderam experimentar uma sexualidade tão intensificada quanto aquela vivida durante a guerra.

A guerra intensifica todos os nossos apetites. Eu mal posso descrever a ânsia pelos doces, pelo sabor. Eu desejava uma barra de [chocolate] Mars mais do que qualquer outra coisa na vida. E essa fome só era mais fraca do que aquela que me empurrava em direção às mulheres, quaisquer mulheres: mulheres para as quais nem sequer olharíamos em tempos de paz flutuavam pelas nossas fantasias e ali se instalavam. Muitas vezes tornávamos nossas fantasias reais, só para nos frustrar e aumentar a nossa fome. As prostitutas mais medonhas, especializadas em negócios com grupos, passavam pela mão de muitos homens e mesmo de esquadrões inteiros, quase em comunhão, um compartilhamento mais que sexual. No sexo, ainda mais do que no ato de matar, eu podia ver a besta agachada e babando nas suas ancas, e podia vê-la zombando de mim por minhas fraquezas, sabendo que eu me odiava por elas, que eu nunca teria o bastante e que voltaria novamente, sem parar.

3.

Poderíamos nos perguntar o que está sendo liberado em tais experiências e analisar a apreciação dessa conexão de sexo, excremento e morte, para usar os termos de Broyles. Mas interrompo a reprodução dessas lembranças macabras e elogiosas das experiências da guerra, da violência, da destruição e da vontade de matar, para perguntar se há espanto genuíno quando ouvimos tais testemunhos hoje. Parece-me que estamos tão acostumados com a morte violenta, o assassinato e a destruição que afirmações como as de Broyles nos soam familiares ou, pelo menos, não tão distantes de uma intensificação do cotidiano ordinário. Será que ainda há algum estranhamento verdadeiro entre nós?

Talvez não haja mais lugar para tal nos dias de hoje, mas devemos reconhecer que nem sempre foi assim. Minha hipótese é a de que até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, apesar de todos os horrores da história conhecida, ainda se fazia hegemônica a crença de que a humanidade, dados os seus desenvolvimentos até ali, poderia alcançar um patamar superior de convivência entre cidadãos de uma nação ou entre países. Até o início do século XX, ainda que pudéssemos encontrar dúvidas dispersas aqui e ali, pelo menos no centro da Europa vigiam versões de genuíno estranhamento em relação à manifestação de maus instintos em cidadãos tidos como civilizados. Pela mesma hipótese, foi no contexto da matança generalizada e da luta encarniçada entre nações europeias que iniciou a Primeira Guerra que tal estranhamento perdeu o seu vigor e que a elaboração de teorias alternativas àquelas que sustentavam o progresso da civilização ocidental passaram gradualmente a dominar, primeiro o cenário intelectual e, em seguida, a consciência difusa. Não há como desenvolver tal hipótese aqui, mas gostaria de apresentar dois textos fundamentais para o reconhecimento dessa virada na autoconsciência europeia acerca das capacidades humanas e das possibilidades da convivência social desprovida de violência[6].

O primeiro deles, um dos documentos mais interessantes a esse respeito, nos chega pela pena de Sigmund Freud, num texto intitulado “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”[7], publicado no ano de 1915, meses após o início daquele conflito. O texto de Freud é especialmente precioso em nosso contexto, dado que parte justamente do reconhecimento da crença que predominava no mundo europeu acerca da impossibilidade de um conflito de grandes proporções entre países que eram considerados os portadores do mais alto grau de civilização. A pergunta que Freud se fazia então continua ressonando: por que, afinal, após séculos de aparente avanço civilizador, nos quais a cultura letrada e artística alcançou um alto grau de sofisticação, a ciência avançou enormemente e o mundo europeu pareceu caminhar, finalmente, para o progresso pleno da moral e da perfeição humanas, instaurou-se, justamente no seio das nações tidas por mais civilizadas, um conflito cuja brutalidade e barbárie não deixam a desejar em relação a nenhum antecedente? O que aconteceu ao homem europeu em inícios do século XX para que caísse na lama das trincheiras e prolongasse o conflito – embora Freud ainda não soubesse disso – por tantos anos seguidos?

A caracterização do contexto em que a pergunta se punha para Freud parece tão interessante e esclarecedora quanto as suas respostas. Freud parte daquilo que poderíamos chamar a ilusão do progresso:

Esperávamos das nações de raça branca que dominam o mundo, às quais coube a condução do gênero humano, sabidamente empenhadas no cultivo de interesses mundiais e cujas criações incluem tanto os progressos técnicos no domínio da natureza como os valores culturais artísticos e científicos, desses povos esperávamos que soubessem resolver por outras vias as desinteligências e os conflitos de interesses.

Para essa consciência europeia de início do século XX, a guerra e a política não mantinham continuidade. Admitia-se a possibilidade do conflito entre povos civilizados e não civilizados, assim como, eventualmente, disputas localizadas em função de conflitos de fronteiras ou interesses locais, mas não participava do horizonte de expectativas europeu uma guerra generalizada entre nações tidas por civilizadas entre si[8].

Na eventualidade remota de uma guerra entre tais nações, continua Freud, ela se daria num contexto de respeito às regras do direito internacional e de circunscrição do conflito à determinação da superioridade militar. Mas o que se percebia com clareza já em 1915 era decepcionante para essa autorreferência civilizada, pois já estava claro que se tratava de uma guerra “mais sangrenta e devastadora do que as guerras anteriores, devido ao poderoso aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa”, e de uma contenda “tão cruel, amargurada e impiedosa quanto qualquer uma que a precedeu”. Já era possível àquela altura do conflito escrever:

Ela transgride todos os limites que nos impusemos em tempos de paz, que havíamos chamado de Direito Internacional, não reconhece as prerrogativas dos feridos e dos médicos, a distinção entre a parte pacífica e a parte lutadora da população, nem os direitos de propriedade. Ela derruba o que se interpõe em seu caminho, em fúria enceguecida, como se depois dela não devesse existir nem futuro nem paz entre os homens.

Noutra passagem desse texto de extraordinária clareza, ganhamos uma perspectiva ainda melhor acerca daquilo que se acreditara ter sido conquistado entre as nações civilizadas: a própria ideia de uma Europa como uma pátria nova e maior. Supunha-se ser possível andar

de uma sala a outra desse museu [europeu], [no qual se] podiam verificar imparcialmente os diversos tipos de perfeição que a história, a miscigenação e as peculiaridades da mãe Terra haviam produzido com seus novos compatriotas. Aqui [numa parte desse mundo então civilizado] se desenvolvera ao máximo a fria, inflexível energia; ali, [noutra ponta] a arte graciosa de embelezar a vida; acolá, o sentido da ordem e da lei ou alguma outra das características que fizeram do homem o senhor da Terra.

O mundo da belle époque desmoronava sob a virulência de um acontecimento perverso, assustador e inesperado que destruía os bens preciosos da humanidade e degradava radicalmente o que era elevado.

A tese central de Freud a respeito desse cenário não deve ter sido menos chocante a boa parte da opinião pública ilustrada na época. Ela se formulou pela afirmação de que a referida decepção, a rigor, não era justificada, pois a autorreferência civilizada daquela belle époque, vista pela ótica da psicanálise, era ilusória. A suposição de que o processo civilizador, pela via da educação e do ambiente cultural, pudesse substituir as más inclinações do ser humano – aí incluído o uso da violência para a resolução de divergências – por outras inclinações voltadas para o bem estava equivocada. Na mesma direção, a esperança da extirpação do mal era denunciada por sua falsidade e impossibilidade. Para o texto de 1915, importava salientar que os seres humanos são portadores de “impulsos instintuais de natureza elementar”, que “são iguais em todos os indivíduos e […] [que] objetivam a satisfação de certas necessidades originais”. Tais impulsos não são, em si mesmos, bons ou ruins. Essa classificação adviria da relação de seus efeitos com “as necessidades e exigências da sociedade humana”. Para aquela sociedade que se via como civilizada, impulsos primitivos – como os egoístas e cruéis – eram proibidos como maus em função de suas possíveis consequências.

A decepção iludiu-se, em última análise, com a própria imagem da civilização.

A civilização foi adquirida pela renúncia à satisfação instintual e exige de cada “recém-chegado” essa mesma renúncia […] é lícito supor que toda coação interna que se faz notar no desenvolvimento do ser humano era originalmente, ou seja, na história da humanidade, apenas coação externa.

O que a civilização europeia teria conquistado fora um alto grau de obediência cultural, especialmente em função de mecanismos de recompensa e castigo que impõem a coação externa aos indivíduos. Muito mais do que com seres verdadeiramente civilizados, as sociedades europeias contavam com um grande número de hipócritas – termo usado sem conotação moral, para referir-se àqueles indivíduos que são obrigados a reagir “continuamente segundo preceitos que não são expressão de seus pendores instintuais”, obrigados a viver “acima de seus meios, psicologicamente falando”. O sucesso inicial da sociedade civilizada moderna encorajou-a a elevar esses padrões morais, produzindo um distanciamento ainda maior, pela via da repressão, em relação aos impulsos instintuais primários.

Bastante interessante, nesse contexto de início de século XX, ainda dominado ideologicamente pela noção de progresso como progressão cumulativa e irreversível, é a teoria freudiana dos desenvolvimentos psíquicos. Diferentemente de outras formas evolutivas e temporais, no âmbito psíquico,

todo estágio de desenvolvimento anterior permanece conservado junto àquele posterior, que se fez a partir dele; a sucessão também envolve uma coexistência […]. O estado anímico anterior pode não ter se manifestado durante anos, mas continua tão presente que um dia pode novamente se tornar a forma de expressão das forças anímicas, a única mesmo, como se todos os desenvolvimentos posteriores tivessem sido anulados, desfeitos.

Tal é a possibilidade da regressão pelo restabelecimento de estados primitivos, pois, segundo Freud, “o que é primitivo na alma é imperecível no mais pleno sentido”.

Por isso mesmo, ao analisar o inconsciente dos civilizados, Freud denunciará a presença latente do desejo primitivo de matar. Numa análise extremamente crítica de perspectivas religiosas ou piedosas, o pai da psicanálise recusará qualquer impulso de bondade na proibição do assassinato, cuja fórmula civilizatória maior se encontra no mandamento “Não matarás!”. Em seu enunciado absoluto e imperativo, o mandamento só poderia expressar a necessidade de conter um impulso igualmente poderoso. “O que nenhuma alma humana cobiça não é necessário proibir, exclui-se por si mesmo.” Isso também quer dizer que os impulsos assassinos permanecem ativos, embora reprimidos, no inconsciente civilizado.

Nosso inconsciente não executa o assassinato, apenas o imagina e deseja. Não seria justo, porém, subestimar tão completamente essa realidade psíquica, em comparação à fática […]. Em nossos impulsos inconscientes eliminamos, a todo dia e momento, todos os que nos estorvam o caminho, que nos ofenderam e prejudicaram […]. Sim, o nosso inconsciente mata por ninharias […] e isso com certa coerência, pois cada ofensa ao nosso todo-poderoso e soberano Eu é no fundo um crimen laesae majestatis. […] De modo que também nós, [tidos por civilizados,] se formos julgados por nossos desejos inconscientes, somos um bando de assassinos, tal como os homens primitivos.

A emergência desses impulsos primários na guerra recebe a sua explicação pela relação entre a ação dos Estados nacionais e a conduta de seus súditos. Quando os Estados, responsáveis pela manutenção da ordem dos impulsos instintuais pela via do medo social, afrouxam as relações morais entre si, a “comunidade suspende a recriminação, [e] também cessa a repressão dos apetites maus, e as pessoas cometem atos de crueldade, perfídia, traição e rudeza que pareciam impossíveis, devido à incompatibilidade com seu grau de civilização”. A guerra nos “despe das camadas de cultura posteriormente acrescidas e faz de novo aparecer o homem primitivo em nós”.

É nesse sentido que vemos na teoria de Freud acerca dos impulsos instintuais e transhistóricos dos membros da espécie um caminho que, simultaneamente, desfaz a ilusão progressista das filosofias da história e compreende a emergência da boçalidade daquela guerra. Temos aqui um instrumento rico para compreender o relato apaixonado do tenente Broyles.

4.

O segundo documento intelectual que apresento como significativo é o ensaio “A mobilização total”, publicado em 1930, por Ernst Jünger. Logo na abertura Jünger comparou a experiência das guerras com aquela da erupção dos vulcões. “Participar de uma guerra não é sem analogia com o fato de se encontrar na zona ameaçadora de uma dessas montanhas que vomitam fogo.”[9] Assim como os vulcões cospem sempre a mesma lava, mas as regiões em que ocorrem essas erupções telúricas são muito diferentes, a guerra é também sempre a mesma e sempre outra. Conforme nos aproximamos da boca ardente da cratera, diz Jünger, “lá onde irrompe a paixão em sentido próprio […], na luta imediata e simples pela vida, é acessório conhecer a data do combate, as ideias que o justificam, ou o tipo de armas utilizadas”. No entanto, quando olhamos a paisagem mais ampla da destruição, não há como desconhecer que o Hekla da Islândia permanece bastante distinto do Vesúvio que domina a baía de Nápoles. Ainda que pudéssemos imaginar uma forma pura ou um tipo ideal de guerra, sua realização no mundo é dependente das variações da geografia e da história humanas, e definitivamente marcada por elas, e não seria possível, neste registro, nos restringirmos ao que é comum aos seres humanos ou a todas as guerras. Faz-se, portanto, necessário conhecer o “caráter específico dessa grande catástrofe [que] consiste, sem dúvida, [na] estreita aliança entre o gênio da guerra e o espírito do progresso”.

Se em Freud o progresso fora denunciado como ilusão, em Jünger ele aparece no centro da explicação da Primeira Guerra Mundial. Foi justamente o maior ou menor grau de progresso de cada contendor o elemento decisivo que determinou vencedores e perdedores. Mas temos que ter cuidado com os termos aqui e fazer um esforço suplementar de compreensão dessas afirmações de Jünger. Pois a natureza do que essa noção de progresso encobre se distingue do que foi imaginado comumente pelo século XIX. Para o autor, o progresso não se confunde com a progressão em direção a uma moralidade mais alta ou uma civilização mais refinada. A máscara da razão com a qual aparece na percepção tradicional dissimula o seu sentido verdadeiro. E isso pode ser observado pela frequência com que os movimentos do próprio progresso produzem resultados contrários aos efeitos intencionados – como é o caso da própria guerra mundial –, o que faz pressentir que há outras fontes, mais secretas, de progresso. Para Jünger, não se trata do aperfeiçoamento da razão, pois somente

uma força cultual, […] uma fé poderia ter a audácia necessária de abrir sobre o infinito a perspectiva finalista da utilidade […]. E então quem poderia duvidar que o progresso seja a maior igreja popular do século XIX – a única que se pode gabar de uma autoridade real e de um credo [imune a] toda crítica?

Para compreender a natureza do que constituiu o verdadeiro progresso sob a máscara da razão, Jünger formula o conceito de mobilização total. Mobilização total refere-se ao fato de que, ao contrário da guerra tradicional que podia ser deliberada pelos príncipes, financiada por seus cofres e travada pelo seu exército regular, a guerra contemporânea exige uma imensa mobilização de recursos sociais de todo tipo. A nova guerra não é apenas mais um movimento armado; ela só pode ser compreendida com a “imagem amplificada de um gigantesco processo de trabalho”. Ao lado dos exércitos que se entrechocam nos campos de batalha, surgem os novos tipos de exército: o do trânsito, o da alimentação, o da indústria armamentista – o exército do trabalho em geral. Na última fase, que já se insinuava por volta do fim desta última guerra, não ocorreu mais nenhum movimento – mesmo o de uma dona de casa junto à sua máquina de costura – no qual não residisse ao menos uma função mediatamente bélica.

A guerra contemporânea reivindica energias de tal grandeza que

não basta mais armar o braço que carrega a espada; é preciso uma armação até a medula, até o mais fino nervo da vida. Realizá-la é a tarefa da mobilização total, de uma ação através da qual a rede elétrica da vida moderna, amplamente ramificada e cheia de dutos, é canalizada, por meio de uma única chave na caixa de luz, para a corrente da energia bélica.

E o que a máscara da razão do progresso escondia era exatamente esse desenvolvimento extraordinário do “talento humano para a organização [que] celebra o seu triunfo sanguinário”. Note-se que o lado técnico da mobilização total, embora relevante, não é o decisivo. O que importa, mais que tudo, é a prontidão para a mobilização, a capacidade de rapidamente fazer com que toda a sociedade trabalhe em uníssono numa mesma direção, o que só é possível pela via da ideologia. Jünger não utiliza esse termo para se referir à mobilização que descreve e prescreve, mas deixa claro que não há explicações econômicas ou tecnológicas que possam dar conta do fenômeno. Este só pode ser explicado pela via de sua dimensão cultual.

Nessa captação absoluta da energia potencial, que transformou os Estados industriais beligerantes em vulcânicas oficinas siderúrgicas, anuncia-se, talvez do modo mais evidente, o despontar da era do trabalho – essa captação faz da guerra mundial um fenômeno histórico cujo significado é muito mais importante que o da Revolução Francesa.

Aqui se inaugura uma nova era, a era das massas, do trabalho, da cooperação entre a indústria e as Forças Armadas, da qual os planos quinquenais soviéticos aparecem como exemplares da negação de qualquer coisa que não seja uma engrenagem do Estado. Sem dúvida, o fascínio de Jünger por esse mundo novo aponta para a construção dos totalitarismos do século XX, com elogios ao que se passa na Rússia soviética e na Itália de Mussolini. Mas o exemplo dos Estados Unidos é sempre presente e determinante em sua análise.

Se alguém estudar a correspondência diplomática que precedeu a entrada da América na guerra, nela encontrará um princípio de “liberdade dos mares” que oferece um bom exemplo da maneira como, num momento como esse, deve ser emprestado ao próprio interesse particular o valor de um postulado humanitário, de uma questão universal, que toca toda a humanidade.

Esse é o fenômeno ideológico por excelência, a capacidade de subsumir a categorias gerais e mobilizadoras os interesses particulares em questão. E em nenhum outro lugar a integração entre estrutura produtiva e Forças Armadas foi tão eficiente como nos Estados Unidos da América.

O diagnóstico jüngeriano sobre as causas da derrota alemã é preciso nesse sentido. Se olharmos para a geografia dos vencidos e dos vencedores, veremos como uma espécie de automatismo darwinista operou a seleção e fez prevalecer aqueles países que tinham melhores relações com o progresso assim redefinido. Daí porque, por exemplo, os Estados Unidos, com a sua Constituição democrática, puderam declarar a mobilização com medidas cujo rigor seria impensável num Estado militar, como na Prússia. Não importa que não seja um Estado militar; o fundamental é sua capacidade de se mobilizar totalmente. Já a mobilização apenas parcial das energias sociais aparece como o motivo da derrota alemã, mesmo que o país contasse com armas excelentes. “A Alemanha estaria destinada a perder a guerra mesmo que tivesse ganhado a batalha

de Marne e a guerra submarina.”

Há aqui a recusa definitiva do heroísmo e a sua substituição por algo que, segundo o autor, se aproxima da “precisa operação de uma turbina alimentada a sangue” própria à “marca dura de uma época cujo elemento fundamental é a guerra”, e uma guerra em que se experimenta a democratização radical da morte.

A época do tiro mirado, com efeito, já ficou para trás. O chefe de esquadra que, altas horas da noite, dá a ordem de ataque de bombas não conhece mais diferença alguma entre combatentes e não combatentes, e a nuvem de gás letal avança […] sobre tudo que é vivo [com a indiferença de um fenômeno meteorológico].

Um novo mundo é anunciado por Jünger, o mundo da organização industrial, a era do trabalhador, dos sistemas políticos baseados na coação das liberdades individuais e na mobilização ideológica das massas, capazes de racionalizar a cadeia de energias para um objetivo único: a guerra. “Por trás de toda solução salvadora em que esteja desenhado o símbolo da felicidade, espreitam a dor e a morte. Bem-aventurado quem entra armado nesses espaços.”

5.

Quando lemos essa literatura que tem origem na decepção civilizatória causada pela violência da Primeira Guerra Mundial, percebemos com clareza a derrocada da ideia iluminista de progresso, da noção de que a história universal teria alcançado um ritmo de elevação e que não se cairia mais nas trevas e na barbárie. Freud e Jünger, cada um a seu modo, denunciam essa ilusão do progresso e buscam explicações naquilo que subjaz ora no homem como espécie, ora na constituição de uma sociedade contemporânea que desenvolveu forças extraordinárias de organização e produção a despeito das intenções humanas em concretizá-las.

Se perguntássemos a Freud se “não seria melhor dar à morte o lugar que lhe cabe, na realidade e em nossos pensamentos, e pôr um pouco mais à mostra nossa atitude inconsciente ante a morte, que até agora reprimimos cuidadosamente”, a resposta seria: “Isso não parece uma realização maior, seria antes um passo atrás em vários aspectos, uma regressão, mas tem a vantagem de levar mais em conta a verdade e tornar a vida novamente suportável. Suportar a vida continua a ser o primeiro dever dos vivos. A ilusão perde o valor se nos atrapalha nisso”. O conhecimento da natureza instintual das pulsões humanas não deveria servir à destruição da civilização, mas ao seu aperfeiçoamento, à tarefa de conduzir os Estados a uma clareza maior acerca de suas responsabilidades políticas e as sociedades à sua maior autocompreensão.

Se perguntássemos a Jünger o que fazer com essa turbina da morte, ele responderia: aperfeiçoá-la. Se a Alemanha perdeu a guerra por sua incapacidade de mobilização total, ela sai do conflito purificada, conhecendo melhor a si mesma e, portanto, pronta para entrar na nova era demandada pelo tempo.

O alemão conduziu a guerra com a ambição, demasiado barata para ele, de ser um bom europeu. Porém, uma vez que a Europa guerreou contra a Europa, quem poderia, senão a Europa, ser o vencedor? Entretanto, essa Europa, cujas superfícies ganharam, doravante, uma extensão planetária, tornou-se muito delgada, quase só verniz – ao seu ganho espacial corresponde uma perda em força persuasiva. Novos poderes emanarão dela.

Podemos nos perguntar até onde Jünger aderiu ao nascente nazismo, mas não temos dúvida de quanto o nazismo aderiu à mobilização total de Jünger[10].

6.

Após expor esse quadro sucinto da descrença no homem civilizado, que se expressa no pensamento e na literatura da Primeira Guerra, e reconhecer o quanto de verdade ele nos trouxe acerca do que viriam a ser as décadas seguintes do século XX, gostaria de encerrar o ensaio com a apresentação de dois momentos em que brechas nesse quadro, embora estreitíssimas, puderam se dar.

O primeiro deles se constitui de duas breves histórias narradas por soldados que viveram momentos de trégua espontânea no primeiro dezembro da guerra, em 1914. Tréguas breves e informais entre os contendores não foram infrequentes em setores particulares das trincheiras durante a Primeira Guerra. E há várias histórias extraordinárias que narram a interrupção momentânea da boçalidade da guerra, permitindo que respiremos na presença de outras pulsões e outras fontes passionais.

Uma das histórias, narrada por um capitão dos Royal Irish Fusiliers e da qual não tenho a referência precisa de data e local[11], conta que, no front ocupado pela sua companhia, entre a trincheira irlandesa e a alemã, encontrava-se um soldado ferido, contorcendo-se de dor, clamando por socorro numa voz cheia de angústia. Ele fora ferido num ataque às trincheiras alemãs na noite anterior.

As súplicas do soldado tornaram-se insuportáveis para os ouvidos de seus companheiros nas trincheiras e alguns fuzileiros foram ao capitão dizer-lhe que iriam resgatar o ferido mesmo sob o risco do fogo inimigo na terra de ninguém.

Nesse mesmo momento, um pequeno cachorro que transitava livremente entre as trincheiras, que fizera amigos e recebia comida tanto de alemães como de irlandeses, chegou à linha irlandesa em busca dos afagos. O capitão decidiu fazer do cão um mensageiro e amarrou no seu rabo uma mensagem aos inimigos, perguntando, em inglês (pois não sabia alemão), se poderia retirar o soldado ferido. O cão seguiu para a fronteira alemã e retornou com uma reposta, também escrita em inglês, que dizia aos irlandeses que eles teriam cinco minutos para retirarem o homem. O capitão e mais um soldado saíram da trincheira com uma maca em direção à terra de ninguém e trouxeram o ferido para as linhas irlandesas.

Com o soldado recolhido à trincheira irlandesa, o capitão, em pé no topo do parapeito, tirou o chapéu e ordenou aos seus soldados que dessem três vivas calorosos aos alemães. A resposta foi a mais entusiástica. Com os vivas ouviram-se gritos de “os Gerrys não são caras tão maus” e outras frases como “que o céu seja o leito daqueles que venhamos a matar”. O incidente trouxe lágrimas para muitos olhos do lado irlandês; e talvez, diz o narrador, também para os alemães que responderam com vivas às saudações.

* * *

As mais famosas histórias dessas tréguas espontâneas contam o que se passou no Natal de 1914, o primeiro vivido por soldados entrincheirados nos campos de batalhas. Há várias narrativas em diversos pontos dessa linha que se espalhou do mar do Norte aos Alpes, por centenas de quilômetros[12]. Escolho aqui uma delas, narrada por Henry Williamson, soldado da London Rifle Brigade, após a primeira batalha de Ypres[13].

Na véspera de Natal, um grupo de soldados recebeu a perigosa missão de montar uma cerca na chamada terra de ninguém, entre as trincheiras, na direção da linha alemã. O medo era grande, pois a noite estava enluarada e eles precisariam chegar a 40 jardas do inimigo para bater as estacas da cerca, o que atrairia os tiros dos snipers. Mas as ordens tinham de ser cumpridas e, saindo dos bosques e se expondo à luz da lua, as tarefas se iniciaram sem que houvesse qualquer tiro alemão.

Após um tempo em que se tornara ordinário o trabalho, o soldado viu o que parecia uma grande luz branca no topo de uma paliçada nas linhas alemãs e ouviu alguns vivas vindos dali. Rapidamente, os britânicos retrocederam e se agacharam com as mãos nos rifles, preparados para atirar. Após alguns minutos de silêncio, narra Williamson,

nos levantamos e ficamos ali, em pequenos grupos, comentando aquilo. E outros vivas vieram da escuridão da terra de ninguém. Avistamos figuras tênues no parapeito inimigo, mais luzes; e com espanto vimos que uma árvore de Natal estava sendo montada ali, e em volta dela os alemães conversavam e riam.

Ouviram novos vivas seguidos de um brinde.

O comandante do pelotão avisou que eram 11h e que em uma hora estariam de volta às trincheiras. Deram-se conta de que, pela hora de Berlim, era meia-noite, e Williamson desejou um feliz Natal para os alemães, enquanto uma voz de barítono entoava uma canção que ele lembrava ser cantada por sua babá alemã: “Noite tranquila, noite sagrada”[14].

Na manhã seguinte, após receber o correio e um pacote de presentes da princesa real, um soldado dirigiu-se a Williamson, alarmado, porque havia centenas de alemães fora das trincheiras. Seguindo pelo bosque, cujas árvores estavam marcadas por balas que reconhecia terem vindo das armas inimigas, Williamson encontrou-se, face a face, com o inimigo. Alguns sorriram e falaram em inglês. Havia homens altos, mais calados, logo identificados como prussianos, e outros mais baixos e conversadores, que reconheceram como saxões. Um desses saxões, quieto num canto fumando seu cachimbo, “me viu olhando-o e tirando o cachimbo da boca disse com uma satisfação tranquila: ‘Bom camarada’”, em alemão, referindo-se ao príncipe que enviara os cachimbos de presente aos alemães.

Homens cavavam uma cova para enterrar os cadáveres enrijecidos dispostos no chão.

[Com o túmulo cheio,] um oficial leu algo de um livro de orações, enquanto os homens permaneciam de pé, a sua volta, com seus chapéus cinza na mão esquerda. Vi-me em posição de sentido, com minha balaclava na mão. Quando o túmulo foi fechado, alguém escreveu a lápis, [em alemão,] na cruz feita com madeira das caixas de ração: “Aqui descansa em Deus um herói alemão desconhecido”. Vi-me traduzindo e pensando como eram parecidas com as cruzes inglesas do pequeno cemitério na clareira dentro do bosque.

Soldados de ambos os lados conversaram, e os ingleses então perceberam como os alemães estavam enganados sobre a potência das armas e o número de soldados ingleses. Alguns trocaram endereços, prometendo escreverem e se visitarem após a guerra.

Nesse ponto das trincheiras, sob o cume da montanha de Messines, a trégua durou vários dias. O relato prossegue:

No último dia de 1914, numa tarde, chegou uma mensagem pela terra de ninguém, trazida por um cabo saxão muito educado. Dizia que os oficiais de seu regimento viriam à meia-noite às suas linhas e que eles teriam de começar a atirar […], mas que iriam mirar no alto, bem acima de nossas cabeças. E que nós fizéssemos o favor de nos manter cobertos para evitar acidentes indesejados.

Às 11h da noite, meia-noite no horário de Berlim, viram o clarão das metralhadoras Spandau bem acima da terra de ninguém.

Williamson termina o seu relato reconhecendo que suas esperanças sobre as possibilidades da paz naquele momento, eivadas de certo tom religioso, eram, de fato, ingênuas e que a volta do conflito sanguinário as levou embora sob o som das rajadas e das explosões que se seguiram pelos próximos anos.

7.

Para encerrar, quero trazer uma última história breve, uma representação da capacidade humana de se emocionar em meio à barbárie da guerra, capacidade que não podemos esquecer sob o risco de perder qualquer laço com o que já houve de belo na história humana. A história vem do cinema, encenada no filme Paths of Glory (traduzido como Glória feita de sangue no Brasil), dirigido por Stanley Kubrick e lançado em 1957, certamente um dos melhores filmes já produzidos sobre a Primeira Guerra e sobre a guerra em geral. Vale lembrar que, de tão extraordinário, o filme ficou impedido de ser projetado na democrática França até o ano de 1975, em função de suas denúncias da barbárie do conflito e da hipocrisia e indiferença meteorológica (para usarmos a expressão de Jünger) com a qual os escalões superiores franceses enviavam seus soldados à morte.

A história se passa no ano de 1916, na frente francesa, onde uma divisão ocupa uma trincheira numa posição em relação à qual os alemães, localizados alguns metros adiante, encontravam-se mais bem protegidos por ocuparem um monte chamado Anthill (Formigueiro). Não muito longe dali, no quartel-general instalado em um grande e confortável palácio, o general Broulard, do Comando Maior, chegado de Paris com novas ordens, convoca o seu subordinado local, também general, Mireau, para informar-lhe da decisão superior de uma grande ofensiva para tomar Anthill. Mireau imediatamente reage dizendo da impossibilidade das tropas disponíveis executarem aquela ação, mas Broulard diz que essas são as ordens, que há um cálculo de baixas em torno de 55% das tropas e que o ataque será feito. Ao mesmo tempo, acena cinicamente com uma promoção ao subordinado, que, tomado por sua ambição, decide que o ataque é viável.

Em inspeção às trincheiras, Mireau encontra o coronel Dax, o herói da trama encenado por Kirk Douglas, e lhe transmite as ordens. Após relutar frente ao absurdo militar da ordem, o coronel acaba por ceder, pois não tem outra saída: lutar ou abandonar o comando.

A partir daí a trama se desenvolve de maneira magistral, mas aqui tem de ser drasticamente resumida. O ataque é desferido, nenhum homem consegue chegar às linhas inimigas, pois morrem metralhados na terra de ninguém, e alguns poucos retornam às trincheiras – uma das companhias sequer sai delas, dada a notória impossibilidade de vencer. O general subordinado, frente ao recuo dos soldados, dá a ordem estapafúrdia de que a sua própria artilharia atire no setor das fronteiras francesas em que se encontra a companhia, para obrigá-la a avançar. O capitão encarregado da artilharia, com medo de ser responsabilizado pela morte de soldados franceses, se recusa a cumprir a ordem e só concordará em executá-la se vier por escrito, ainda que o general Mireau o ameace com a corte marcial.

O ataque é um fracasso. Numa reunião entre os dois generais e o coronel Dax, Mireau acusa o Regimento 701 de covardia e exige o fuzilamento exemplar de cem homens para garantir a futura obediência às ordens superiores, considerando ainda que essa seria a melhor maneira de manter alto o moral das tropas. Diante da resistência de Dax, Broulard decide que cada uma das três companhias do regimento deve escolher um homem para ser levado à corte marcial e julgado por covardia. O coronel Dax, advogado por formação, se prontifica a fazer a defesa dos seus soldados, o que produz a ira de Mireau.

Cada companhia faz a escolha dos soldados segundo critérios diferentes. Na primeira, um recruta é escolhido por sorteio; na segunda, um cabo é escolhido pelo tenente da companhia por ter presenciado, durante a patrulha na noite anterior ao ataque, o lançamento pelo tenente de uma granada que matou um dos soldados da própria patrulha francesa; e, na terceira, um recruta é escolhido por seu comandante, pois o considerava um degenerado social. Vale lembrar que há vários relatos verídicos de fuzilamento por escolhas tão aleatórias quanto essas ao longo da Primeira Guerra.

A corte marcial é retratada como uma farsa jurídica, e os três escolhidos são condenados sumariamente. Após as extraordinárias cenas da espera da execução e do fuzilamento, ocorre uma nova reunião entre os dois generais e o coronel, na qual Broulard informa ao subordinado Mireau de que há acusações documentadas sobre a sua ordem à artilharia de atirar por trás nas próprias tropas e que ele terá o direito de se defender no inquérito que se seguirá. Mireau se retira indignado e Broulard parabeniza o coronel Dax pela sua argúcia, oferecendo-lhe o comando agora vago de Mireau, como se ele, desde o início, tivesse agido para conseguir o posto. Dax responde com uma raiva que desaponta o general, que só ali percebe que o coronel agira, todo o tempo, por convicção e não por interesse. Após palavras duras que não devem ser ditas a um superior hierárquico, Dax se retira da sala e volta para a sede do seu regimento.

Antes de chegar, olha pela janela da taberna ao lado, onde vê os seus soldados bêbados, amontoados, gritando e batendo suas canecas de cerveja nas mesas, enquanto o taberneiro traz ao palco uma jovem loira, assustada, que, pelos comentários debochados do seu condutor, logo sabemos que é alemã. Após denunciar a falta de talento da moça para a língua francesa e louvar sua figura esbelta, ele a força a atuar no palco. Em meio a vaias e assovios ensurdecedores, a moça começa a cantar baixinho uma melodia que quase não se ouve, da canção folclórica alemã “O hussardo fiel”, que fala da morte da amada de um hussardo em seus braços; mas os soldados franceses não entendem a letra da canção. Em alguns segundos, a turba vai se calando e a voz da jovem, muito suave e bela, invade a sala da taberna. Kubrick foca alguns dos rostos dos soldados, jovens e velhos, alguns murmurando a melodia, outros se emocionando até as lágrimas frente à doçura, à delicadeza, à fragilidade daquela moça com voz trêmula, numa cena que faz o espectador esquecer por um instante as atrocidades, o cinismo, a violência a que acaba de assistir nas cenas anteriores do filme.

Como se a brutalidade fosse ali suspensa, como se alguma coisa emergisse espontaneamente e possibilitasse um contato imediato com uma humanidade comum, conhecida por todos, com um mundo querido e agora submerso pelas camadas da bestialidade desenvolvida na guerra, que lembrasse aos homens algo precioso que estavam perdendo. O que acontece nessa cena corresponde de algum modo àquela brecha mínima aberta pela trégua de Natal, rachadura que será logo fechada na sequência da estupidez da violência e da guerra.

A brevidade dessa suspensão logo se anuncia no filme. Um ordenança vem avisar ao coronel Dax, que assistia à cena pelo lado de fora da janela, que as ordens eram para voltar ao front. O coronel responde que sim e pede mais alguns minutos para que os homens pudessem usufruir daquele momento soberbo.

* * *

O que há nessas duas brechas, a da trégua de Natal e a da cena final do filme de Kubrick, é algo que não sei qualificar ou nomear. Talvez seja da ordem daquela ingenuidade que, no início deste texto, afirmei ser necessária ao pensamento de outra ordem não fundada na violência. Seria algo que poderíamos aproximar da utopia, mas que traz consigo marcas de delicadeza, inocência, singeleza, todas essas palavras que se tornaram obscenas no mundo da turbina alimentada a sangue de que nos falava Jünger. De fato, não sei dizer, mas imagino que, sem o contato com esse algo que pode emergir aqui e ali para romper a banalidade da violência num instante transitório, ainda que se oculte logo depois, estaremos definitivamente largados à barbárie.

Notas

  1. William Broyles Jr., “Why men love war”, Esquire, nov. 1984, pp. 54-65. Todas as citações a seguir foram livremente traduzidas por mim. Para uma exposição dos prazeres da guerra, veja-se, por exemplo, Joanna Bourke, An Intimate History of Killing: Face to Face Killing in 20th Century Warfare (Uma história íntima do matar: matar cara a cara no guerrear do século XX), New York: Basic Books, pp. 1-31.
  2. Não ameis o mundo/ nem o que há no mundo,/ não está nele o amor do Pai./ Porque tudo o que há no mundo/ – a concupiscência da carne,/ a concupiscência dos olhos e/ o orgulho da riqueza/ não vem do Pai/ mas do mundo” (1 João 2:15-16), na tradução de A Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Edições Paulinas, 1985). Vale lembrar que o termo luxúria dos olhos foi usado na mesma tradição cristã por Santo Agostinho, para condenar os esforços dos astrônomos para conhecer os céus. Ver Regina Schwartz, “Rethinking Voyeurism and Patriarchy: The Case of Paradise Lost” (Repensando o voyeurismo e o patriarcado: o caso do paraíso perdido), Representations, primavera de 1991, n. 34, pp. 85-103.
  3. Philip Caputo, A Rumour of War (Um rumor de guerra), London: Macmillan, 1977. [Tradução minha.]
  4. Os patrulheiros conhecidos como Lurps – palavra que pronuncia a sigla lrrp (Long-Range Reconnaissance Patrol) – eram admirados entre os soldados norte-americanos no Vietnã em função do risco que assumiam por terem a responsabilidade, praticamente diária, de adentrar as selvas para realizar emboscadas noturnas nos arredores das bases militares vietnamitas.
  5. Michael Herr, Dispatches, New York: Alfred Knopf, 1977. [Tradução minha.]
  6. Optei por apresentar extensamente os textos, dado que os tomo num caráter documental, o que justificou uma transcrição mais ampla do que a rotineira num ensaio como o que apresento aqui.
  7. Sigmund Freud, em: Introdução ao narcisismo: estudos de metapsicologia e outros textos (1914-1916), vol. 12, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 209-46 (Obras Completas). Todas as citações foram retiradas dessa edição.
  8. Embora difundida, essa crença não era compartilhada desse modo por integrantes de altos escalões políticos e militares, embora estes também acreditassem na brevidade de um eventual conflito.
  9. Ernst Jünger, L’État universel suivi de La mobilisation totale (O Estado universal seguido de A mobilização total). Paris: Gallimard, 1990, pp. 95-141. Todas as citações foram traduzidas por mim a partir dessa edição francesa. Utilizei como apoio a tradução brasileira de Vicente Sampaio: Ernst Jünger, “A mobilização total”, Natureza humana, jan.-jun. 2002, v. 4, n. 1, pp. 189-216.
  10. Esta última observação é uma interpretação daquilo que, numa conversa sobre Jünger e o nazismo, me disse o meu amigo Ricardo Benzaquen de Araújo.
  11. Essas informações foram colhidas na matéria “Romance in the Trenches” (Novela nas trincheiras), publicada no jornal The Auckland Star, 28 jul. 1917, vol. 48, n. 179. [Traduções minhas.]
  12. Sobre esse famoso episódio das tréguas de Natal de 1914, o que há de histórico ou de mítico, assim como a sua extensão e variedade entre as muitas tropas em conflito, ver Marc Ferro et al., Meetings in No Man’s Land: Christmas 1914 and Fraternization in the Great War (Encontros na terra de ninguém: Natal de 1914 e fraternidade na Grande Guerra), London: Constable & Robinson, 2007.
  13. Henry Williamson tinha 19 anos quando viveu o episódio da trégua de Natal enquanto servia na linha de frente perto de Ploegsteert Wood. O episódio marcou de tal modo a sua vida que ele reescreveu a história várias vezes. A primeira delas, de caráter mais documental, está na carta escrita das trincheiras para a sua mãe em 26 de dezembro de 1914 e apresenta um relato sucinto do que aconteceu. Partes da carta foram publicadas por seu pai no jornal Daily Express de 4 de janeiro de 1915. O fac-símile da carta pode ser consultado em: <www.henrywilliamson.co.uk/hw-and-the-first-world-war/57-uncategorised/158-henrywilliamson-and-the-christmas-truce>, acesso em: 20 jan. 2015. A versão que utilizo aqui, intitulada “The Christmas Truce” (A trégua de Natal), foi publicada em Barrie Pitt (org.), History of the First World War (História da Primeira Guerra Mundial), Paulton: Purnell, 1970, e traz uma memória posterior, retrabalhada pelo então escritor, com elementos que provavelmente não estavam na cena original presenciada pelo autor, mas que são encontrados em vários relatos imediatos da trégua. Essa versão está disponível em: <www. henrywilliamson.co.uk/hw-and-the-first-world-war/57-uncategorised/190-the-christmas-truce>, acesso em: 20 jan. 2015. [Traduções minhas.]
  14. Em alemão, “Stille Nacht! Heilige Nacht!”, traduzida por Williamson como: “Tranquil night! Holy night!”. Ao que tudo indica trata-se da famosa “Noite feliz”, conhecida em muitas línguas com a mesma melodia.

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