2017

Os intelectuais, entre o silêncio e a irrelevância

por Marcelo Coelho

Resumo

Quais seriam os limites autoimpostos pelos intelectuais no exercício de seu ofício quanto ao engajamento político? No século XX, Sartre compreendeu o ativismo político do intelectual como uma necessidade de estar no mundo. Em sua visão, posicionar-se sobre as questões sociais e políticas não deveria ser apanágio de pensadores como ele próprio. Todo cidadão que ultrapassasse o domínio restrito e técnico de sua profissão e que se metesse onde não foi chamado, estaria no caminho de uma postura intelectual. Mais do que um convite, tratava-se de uma exortação, comum a Sartre – um intelectual cujas múltiplas facetas e espírito provocador só se comparariam aos de Voltaire –, exigência eventualmente encontrada em Foucault. Mas Sartre serviu-se também do silêncio enquanto tática política. Outro intelectual do século XX, Julien Benda, foi mal compreendido, inclusive por Sartre, ao formular a expressão “a traição dos intelectuais”. Ao contrário do que se supõe, Benda não estaria na contramão de Sartre, ele não preconizou a separação total da atividade do intelectual com a política, a “traição” de que fala consistiria “na atitude de colocar o pensamento a serviço da razão de Estado”. Quando o intelectual é instado a pronunciar-se? Tão emblemática quanto corajosa foi a manifestação do pensador espanhol de origem basca Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca na época da Guerra Civil Espanhola. Unamuno alinhou-se inicialmente com a direita por crer que as forças de resistência da república de esquerda representavam a tirania. Logo se daria conta do contrário diante da brutalidade franquista contra várias regiões espanholas, incluindo o País Basco e a Catalunha. Na qualidade de reitor da Universidade, recebeu generais fascistas e outros militares e apoiadores numa cerimônia em 1936. Estes repetiam o bordão “Viva la muerte!”. Diante disso, Unamuno não pôde mais conter-se. Proferiu um discurso bombástico na ocasião em que repudiou o grito “necrófilo e insensato de ‘viva a morte’”. Unamuno abriu sua fala declarando que “Por vezes, ficar em silêncio equivale a mentir, porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência […]”. Levando em conta esses relatos, queremos considerar como o intelectual é visto na atualidade e também as pressões sociais que agem sobre ele. Diante do desprestígio atual das “grandes teorias”, muitos intelectuais hoje “globalizados” são pressionados por seus leitores e seguidores digitais a manifestarem-se constantemente e sobre os mais variados assuntos. Não são todos que aceitam tais condições, mas a fragmentação do pensamento é uma tendência incontornável. Não atender às expectativas de leitores e seguidores ou manifestar-se apenas sobre certas questões faz com que intelectuais sejam rotulados de omissos ou seletivos. Mas isso não deveria guiar, atuar como imperativo – e de fato não orienta o pensamento de muitos. Há situações que envolvem uma necessidade incontornável de pronunciar-se, como testemunhou Unamuno ao não admitir gritos fascistas de apologia ao extermínio na universidade que presidia.


Este volume, assim como o ciclo de conferências que o originou, marca os trinta anos da atuação de Adauto Novaes em favor da ampliação do debate intelectual dentro e fora das universidades. Desde as primeiras séries de conferências organizadas na década de 1980, levantando temas inusitados para a época – como “O desejo”, “Os sentidos da paixão”, ou “O olhar” –, poucos contribuíram tanto como Adauto Novaes para, digamos assim, tirar os intelectuais do seu silêncio.

O presente livro tem, portanto, um aspecto retrospectivo, com cada autor sendo convidado a revisitar um dos assuntos a que, em anos passados, Adauto Novaes dedicou uma série inteira de palestras. Coube-me, precisamente, o tema do “Silêncio dos intelectuais”, título de um ciclo realizado em 2005, ano do centenário de Sartre.

Divido minha intervenção em três partes. A primeira consiste em retomar as questões que estavam em jogo quando o ciclo foi feito, em 2005. A segunda dedica-se a atualizar brevemente o diagnóstico que se fazia naquele momento, enquanto a terceira parte tenta sugerir atitudes possíveis para os intelectuais hoje.

1

Em 2005, estavam em pauta discussões de natureza muito distinta. Em primeiro lugar, a memória de Sartre colocava em questão, como ainda hoje, as transformações ocorridas no papel e no prestígio dos intelectuais, desde os anos 1940-1960, quando o autor de O ser e o nada estava no auge de sua influência. Não parece haver intelectuais da mesma estatura nos dias de hoje, dizia-se. Cabia verificar por quê.

Em segundo lugar, o ciclo se relacionava com uma forte preocupação da parte de Adauto Novaes, que só veio a acentuar-se desde então. Para Novaes, vivemos num período que não pode ser mais considerado como de uma simples crise – política, econômica, cultural –, uma vez que quem fala em crise pensa em superação, distinguindo alguma perspectiva de futuro. Seria o caso, em seu modo de ver, de falar não em crise apenas, mas sim de um período de mutação, em que o avanço tecnológico parece acelerar-se sem que nenhuma nova concepção de mundo, nenhum horizonte de pensamento, nenhuma ideia de futuro esteja sendo formulada. O silêncio dos intelectuais corresponderia, assim, a uma espécie de domínio absoluto da materialidade tecnológica, que se impõe sobre o corpo, o comportamento, a moral e a sociedade humanos, sem que nenhuma atividade do espírito dê conta do que ocorre.

Em terceiro lugar, o tema sofreu uma coincidência infeliz naquele ano. Dava-se a primeira grande revelação dos deslizes éticos do PT: naquela época, a confissão (hoje banal) de que o partido recorrera a expedientes de caixa dois em suas despesas de campanha provocava lágrimas em muitos militantes. A perplexidade diante das práticas petistas teria produzido, naqueles tempos, um “silêncio” por parte dos intelectuais próximos ao partido, os quais, até pouco tempo antes, insistiam especialmente no efeito de diferenciação que o projeto do PT poderia trazer sobre a ética pública e o modo de fazer política no país.

Minha participação naquele ciclo se concentrou na análise do pensamento do francês Julien Benda, autor de um clássico sobre o tema, intitulado A traição dos intelectuais, de 1926. Minha ideia era contestar a visão que normalmente se tem desse autor. A saber, a de que seria um defensor do não engajamento, uma espécie de “anti-Sartre”, um adepto da torre de marfim, defensor da concepção de que não cabe aos intelectuais misturar-se com disputas políticas, mantendo-se apenas como cultores de ideais abstratos. O próprio Sartre critica Julien Benda com base nesse tipo de interpretação, que a meu ver não se sustenta[1].

O que Julien Benda chama de traição dos intelectuais não é a participação do intelectual no debate público; ele próprio foi um reconhecido e veemente adversário do antissemitismo e do militarismo, durante o caso Dreyfus. Sustentei que, para Benda, a traição dos intelectuais consiste na atitude de colocar o pensamento a serviço da razão de Estado; na atitude de agir como propagandista e ideólogo em benefício daqueles que defendem o uso da força, e não do pensamento, do debate, da persuasão, para se sustentarem no poder. Eram os intelectuais de direita, principalmente os abertamente fascistas, que para Julien Benda traíam sua função ao fazer o elogio da guerra, da intimidação, da força bruta, abandonando o primado da razão e do pensamento, e subordinando a busca da verdade à consecução de objetivos nacionais e partidários.

Naturalmente, também na esquerda predominou, e predomina, a ideia de que falar a verdade pode ser contraproducente para a “causa”, e que por uma questão de tática política, isto é, por razões de Estado, é preciso silenciar, mentir, distorcer os fatos. Grandes intelectuais, como o próprio Sartre, recaíram mais de uma vez nesse tipo de traição, em nome do que eu considero uma ideia equivocada de engajamento. O engajamento é necessário, como ocorreu no caso Dreyfus, quando princípios básicos como verdade e justiça estão em jogo. O engajamento é uma farsa quando o intelectual se reduz a obedecer a raciocínios de tática política.

2

Dito isso, faço uma atualização breve daqueles três problemas que cercavam a questão do silêncio dos intelectuais há pouco mais de dez anos. Em primeiro lugar, num plano muito factual, não há propriamente silêncio dos intelectuais no cenário contemporâneo.

No Brasil, o grau de exacerbação das discussões políticas se mostra extremamente intenso, e não encontramos os defensores do PT e de Lula tão perplexos como estavam em 2005. Ao contrário, o impeachment suscitou uma rápida produção de textos, e mesmo livros, discutindo todo o processo[2]; temos várias mostras de intervenção intelectual, ou de intelectuais, por mais partidárias que me pareçam ser por momentos. No campo oposto, mais do que nunca a direita está intelectualmente produtiva, publicando textos e divulgando obras de seus mestres, através de editoras e revistas. O debate assume tom pobre e caricato em alguns casos, mas ninguém precisa esperar que intelectuais sejam sempre inteligentes; estamos apenas notando que não estão em silêncio.

No ambiente internacional, certamente seria difícil encontrar, agora ou em qualquer época, uma figura como a de Sartre – ao mesmo tempo filósofo, romancista, dramaturgo, ensaísta e polemista. Teríamos de retornar a Voltaire para apontar alguém de sua estatura, e sempre se poderá dizer que “não existem mais intelectuais” se adotarmos Sartre como modelo. Em diversos campos, todavia, figuras cujas opiniões são respeitadas e ouvidas têm-se mostrado prontas a intervir no debate público, com diferentes graus, é claro, de qualidade. De Noam Chomsky a Perry Anderson, de Slavoj ŽiŽek a Peter Sloterdijk, de Giorgio Agamben a Jürgen Habermas e Joseph Ratzinger, de J. M. Coetzee a George Steiner, de Mario Vargas Llosa a Alain Badiou, de Michel Serres ao onipresente Zygmunt Bauman, a lista é extensa.

A menção a tantos nomes não dissipa, contudo, a impressão de que algo ainda está faltando. É possível apontar várias carências, vários problemas estruturais que vão diminuindo o impacto, a relevância e o papel de intelectuais como esses hoje em dia.

Em primeiro lugar, deu-se com a internet, e com o declínio dos antigos meios de comunicação de massa e da palavra impressa, uma crescente fragmentação do espaço público. Ao lado de clássicas discussões e temas que ainda mobilizam a grande maioria da sociedade e da opinião pública, como eleições, crises políticas, declarações de guerra, referendos populares ou qualquer outro evento de grande impacto, crescem os focos de interesse particularizado, capazes de suscitar manifestações pela internet entre tribos específicas, mas sem alcançar aquele campo próprio das inquietações intelectuais propriamente ditas, que em tese incidiriam de forma mais direta nas questões universais da humanidade. Também do lado do público, e não somente em função da desagregação dos próprios órgãos gerais de informação e debate, o tempo e a atenção que se gastam em torno da vida íntima, das relações pessoais, dos planos de consumo, da gastronomia e da busca de parceiros sexuais parecem comparativamente maiores do que os dedicados a problemas gerais.

Associado a esse fenômeno, tem ocorrido, ademais, algo que poderíamos chamar de uma privatização do circuito das ideias: intelectuais e filósofos são chamados a intervir, não numa esfera comum de discussão, mas em eventos fechados, muitas vezes financiados por empresas, para as quais funcionam, conforme o caso, como mestres de autoajuda sofisticada, como provedores de entretenimento ilustrado, ou como ratificadores de opinião. Surgem figuras paralelas à do intelectual clássico, como por exemplo o palestrante de luxo e o formador de opinião[3], para nada dizer, nos países desenvolvidos, do consultor especializado a serviço de think tanks de direita ou, menos frequentemente, de esquerda moderada.

Naturalmente, nada disso impede que o intelectual continue intervindo no espaço público mais amplo; a permanência desse espaço é, de resto, crucial para que se obtenha a visibilidade necessária a uma posterior contratação por instituições privadas.

Seria de indagar, de resto, se o antigo “espaço público” burguês não era, afinal de contas, o efeito residual de uma atividade que, se não privada, sempre foi restrita – a dos salons do Iluminismo, e a das universidades posteriormente.

Seja como for, o intelectual dispunha, antes do século XXI, de um palco unificado para sua atuação. Os grandes jornais, as pequenas revistas, e mesmo o rádio e a TV, em países como França e Inglaterra, não se esfacelavam numa miríade de sites e páginas pessoais na internet. As disputas políticas da Guerra Fria ou dos tempos da Internacional Socialista não empolgavam apenas o público leitor – certamente mais restrito, numericamente, do que agora – mas largas parcelas da população hoje menos interessadas em qualquer coisa que não seja seu conforto pessoal.

Essa privatização do espaço público se vê acompanhada, ademais, do fenômeno paralelo de uma hiperampliação desse mesmo espaço. Surge o que poderíamos chamar de intelectual globalizado – algo diferente do que conhecíamos antes como intelectual de fama internacional. Por maior que fosse a influência de um Sartre ou de um Bertrand Russell no cenário mundial, é inegável que suas referências, seus adversários, sua tradição de pensamento se davam dentro de limites nacionais. Um caso como o da condenação de Dreyfus caracterizava-se por ser eminentemente francês, e só a partir desse dado passaria a ganhar conotação e relevância universais. Atualmente, vê-se a presença de intelectuais globalizados, em especial vencedores do Prêmio Nobel, como Vargas Llosa ou J. M. Coetzee, opinando sobre questões contemporâneas de um ponto de vista, por assim dizer, imediatamente “universal”, um pouco “para todos e para ninguém”, se quisermos abusar da frase nietzschiana; alguma banalidade será, sem dúvida, o preço de tal situação.

Soma-se a isso o visível declínio – e nisso os próprios intelectuais têm parcela de culpa – de conceitos como verdade, universalidade, ou interesse público. A hegemonia das chamadas políticas da identidade, ao lado de um visível desprestígio do universal e das grandes teorias, têm feito do relativismo uma espécie de vício profissional da maioria dos intelectuais, conduzindo-os talvez aos umbrais da autofagia. Para voltar a um tema caro ao organizador deste volume, a cientifização do próprio saber psicológico, moral e humanístico, com o impressionante prestígio das teorias neodarwinianas da natureza humana, impôs como que uma colonização das ciências humanas pela ciência experimental, corroendo no mínimo a autossuficiência do homem de letras clássico nos debates gerais.

Nesses últimos problemas está colocado, de qualquer modo, um desafio que sempre foi permanente para todo filósofo, todo intelectual, todo escritor, poeta, homem de letras ou pensador “não especializado”. Trata-se de recorrer à crítica, aos instrumentos clássicos do humanismo, à literatura, para valorizar aquilo que é da ordem não só da experiência humana imediata, mas também da ordem do sentido, do significado da vida. Questões como essas continuam e sempre continuarão colocadas, qualquer que seja o progresso científico e a possibilidade que se tenha de controlar para o bem ou para o mal o comportamento humano. Nada faz crer que tais temas deixem de ter interesse – embora a anestesia psicológica imposta pela indústria do entretenimento, e a degradação das soluções apresentadas pela literatura de espiritualidade e de autoajuda, sejam fatores como sempre poderosos.

3

Qualquer menção ao silêncio dos intelectuais não poderia deixar de citar um episódio histórico especialmente admirável, protagonizado pelo pensador espanhol de origem basca Miguel de Unamuno, em pleno fragor da Guerra Civil. Corrijo a omissão que cometi no meu texto anterior sobre o tema, rememorando o famoso discurso que fez na Universidade de Salamanca, há oitenta anos.

Unamuno já estava no fim da vida quando eclodiu o levante de Francisco Franco contra o regime constitucional republicano na Espanha; ao contrário de muitos outros intelectuais, tomou partido a favor das forças direitistas. Considerava que os militares rebelados contra a república de esquerda representavam a luta da “civilização contra a tirania”. Não tinha ideia, sem dúvida, do grau de radicalismo com que se pretendia esmagar todo tipo de organização sindical e todos os movimentos pela reforma agrária e pela separação entre Igreja e Estado. Como reitor da Universidade de Salamanca, recebeu os generais fascistas numa cerimônia oficial, no dia 12 de outubro de 1936. Um dos generais, Millán-Astray, perdera um braço nas guerras coloniais contra o Marrocos, em 1924, e, dois anos depois, um olho – ganhando com isso a alcunha de “El Glorioso Mutilado”. Seu discurso naquela ocasião pôs-se a invectivar, com característica brutalidade, a Catalunha e o País Basco, focos de resistência à investida de Franco. Tratava-se, diz o general, de “dois cânceres no corpo da nação”. “O fascismo, que trará a saúde à Espanha, saberá como exterminar ambos, cortando na carne viva e saudável como um cirurgião decidido, livre de sentimentalismos falsos.” Em seguida, alguém no público pronunciou o famoso brado de guerra de Millán-Astray, “Viva la muerte!”.

Miguel de Unamuno respondeu em termos que merecem citação mais extensa.

Vocês estão esperando minhas palavras. Conhecem-me bem, e sabem que sou incapaz de permanecer em silêncio. Por vezes, ficar calado equivale a mentir, porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência […]. Eu mesmo, como todos sabem, nasci em Bilbao [no país basco] e o bispo de Salamanca [que estava ao seu lado], queira ou não queira, é catalão, nasceu em Barcelona. Mas agora acabo de ouvir o necrófilo e insensato grito de “viva a morte”, e eu, que passei a vida elaborando paradoxos que suscitavam a ira dos que não os entendiam, devo dizer-lhes, como especialista na matéria, que esse paradoxo me parece ridículo e repelente. O general Millán-Astray é um inválido. Não é preciso que baixemos a voz para dizer isso. É um inválido de guerra. Cervantes também o foi. Mas desgraçadamente temos na Espanha mutilados em excesso, e, se Deus não nos ajudar, teremos muitíssimos mais. Atormenta-me pensar que o general Millán-Astray possa ditar as normas da psicologia das massas. De um mutilado a quem falta a grandeza espiritual de Cervantes é de esperar que encontre um alívio terrível vendo como se multiplicam os mutilados à sua volta.

Segundo alguns relatos, o público reagiu a esse discurso com mais gritos: “Morte à inteligência, viva a morte”. Unamuno prosseguiu, com típica altivez: “Este é o templo da inteligência, e eu sou seu sumo sacerdote. Vocês estão profanando seu sagrado recinto. Vencerão, porque possuem força bruta de sobra. Mas não convencerão. Para convencer é preciso persuadir, e para persuadir precisarão de algo que lhes falta: a razão e o direito no combate. Inútil pedir-lhes que pensem, e que pensem na Espanha. Tenho dito”. Retirou-se da sala, sendo em seguida condenado à prisão domiciliar; morreria no final daquele ano[4].

Eis um caso em que, com grande coragem, um intelectual se recusou ao silêncio. Seria, como ele próprio diz, uma forma de cumplicidade. Dois aspectos merecem destaque nessa recusa de Unamuno a manter silêncio. O primeiro é que, como vimos, Unamuno nada tinha de “engajado”, nem nutria alguma solidariedade especial pelas classes oprimidas, pelo grande contingente dos “sem-voz”, dos que não são representados. De resto, naquele momento os oprimidos e os sem-voz estavam plenamente ativos, com fuzis na mão, criando conselhos revolucionários e modelos de autogestão.

Se Unamuno mostra inconformidade diante do “Viva la muerte!” e da promessa de esmagar catalães e bascos, é porque, sobretudo, sente-se imbuído de um papel específico: o de representante da razão. Aquele discurso e as ações dos fascistas eram sintomas de um completo enlouquecimento coletivo. Evidentemente, um intelectual pode fazer muito pouco em situações como essas, exceto a de testemunhar sua própria humanidade, a capacidade que alguém tenha de não enlouquecer com os demais. É o que fizeram Montaigne, em meio às conflagrações religiosas na França de seu tempo, ou Bertrand Russell, durante a Primeira Guerra Mundial[5].

Um segundo aspecto nessa recusa ao silêncio nos leva a considerações talvez menos idealizantes do que as que acabo de fazer. Repetindo a frase de Unamuno, “por vezes, ficar calado equivale a mentir, porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência”. Para entender bem a questão do silêncio dos intelectuais, é necessário definir melhor em que situações concretas o silêncio é aquiescência.

Será que ficar calado sempre equivale a consentir? Acredito que não. Para que o silêncio seja interpretado como consentimento, é preciso, no mínimo, que cumpra uma condição – a da presença física do intelectual no momento em que algo foi dito, a de algum sinal implícito, mas inconfundível, de que em princípio concorda com o que acontece. Não é o silêncio, em si, que equivale ao consentimento. A concordância se pressupunha, estava implícita, no ato de presença de Unamuno naquela cerimônia. Por estar presente, ele “consentia”. Se se mantivesse calado, estaria continuando a consentir; por isso mesmo, não podia ficar calado.

Muito diferente é a expectativa, comum nos dias de hoje, de que o intelectual se pronuncie a respeito de qualquer questão. Se não fez uma declaração condenando a violência chinesa no Tibete, seu silêncio é considerado culpado; se condena abusos contra os negros cometidos pela polícia americana, haverá quem o critique por silenciar a respeito de outros abusos ocorridos em Cuba. Se critica o partido A, sempre existirá quem o condene por manifestar uma atitude seletiva, isto é, de não ter também criticado o partido B pela mesma razão. Não apenas na Guerra Fria esse tipo de armadilha se faz contra os intelectuais. É certo que, entre os anos de 1945 e 1989, não faltaram exemplos de intelectuais que, criticando o capitalismo, silenciaram quanto aos crimes de Stalin – ou vice-versa: especialistas em criticar a falta de democracia na União Soviética que fizeram vista grossa aos crimes de Pinochet. Tornou-se muito fácil, hoje em dia, apontar omissões desse tipo. A simples omissão não significa, entretanto, apoio explícito a ditaduras – como de fato aconteceu, infelizmente, com nomes célebres na esquerda, como Sartre em relação à União Soviética, em determinada época, e à China, em outra, e como Foucault nos primeiros tempos da revolução iraniana.

Entre o apoio a uma ditadura e o simples silêncio há, contudo, um conjunto de diferenças inegáveis, que ainda hoje se insiste em apagar. Cria-se uma espécie de totalitarismo contra os intelectuais, numa exigência de que “confessem”, de que “admitam”, de que “digam” o que não querem dizer. Desse modo, para nos atermos a um exemplo atual, quem critica os black blocs pode ser facilmente acusado de estar do lado da polícia militar, e vice-versa.

Chegamos com isso a uma dificuldade em toda a questão do engajamento do intelectual. O número de causas, de protestos, de críticas em que um intelectual pode engajar-se no mundo haverá de ser imenso – e sabemos de que modo Sartre, no final da vida, assinava todo tipo de manifesto, sem se preocupar muito com o que ele estava apoiando. O paradoxo é que a famosa “responsabilidade” dos intelectuais se transforma dialeticamente em seu contrário: torna-se pura irresponsabilidade – quando, por exemplo, nossa antipatia por um regime autoritário se traduz em ignorância perante a barbárie dos que pretendem derrubá-lo. Melhor o silêncio, pois o silêncio não significa sempre um consentimento.

Nossa mera existência no mundo não equivale a participar, em silêncio, de uma cerimônia como a da Universidade de Salamanca. A presença de Unamuno ali tinha significado. Minha simples presença no mundo, não.

A obrigação de pronunciar-se sobre tudo não está colocada, nem pode estar colocada, para um intelectual – por maior que seja sua fama no plano internacional.

Nada mais errôneo, a meu ver, do que o velho tema sartriano de que não tomar partido já é, por si, uma tomada de partido. Sim, mas a favor de quem? Contra quem? A favor de gregos e troianos, talvez. Contra ambos, mais provavelmente. Ou também impotência diante da necessidade de resolver determinado antagonismo.

Mas o intelectual – repete-se – tem de se pronunciar. Surge aqui outro tema, paralelo ao do engajamento, no pensamento de Sartre. A saber, a ideia de que o intelectual é aquele que se mete onde não é chamado. Vê-se bem a diferença entre essa atitude e a de Unamuno, que rompe o silêncio porque implicitamente convocado a rompê-lo, pelo simples motivo de que estava, de fato, num lugar que o chamava a fazê-lo.

Foi num sentido muito preciso que Jean-Paul Sartre se referiu ao intelectual como aquele que se mete onde não é chamado. Em suas conferências no Japão em 1965, ele apontava a contradição existente entre o saber particular, técnico, especializado, o de um estudioso ou cientista, e a ideologia de uma classe – a classe burguesa – que não podia se acomodar a valores como a verdade e o interesse universal. Desse modo, surgia para Sartre a alternativa: ou o especialista se conforma à busca da verdade em seu campo específico de atuação – e, restringindo-se a isso, orgulha-se de não ser um intelectual – ou nota o particularismo de sua ideologia, deixando o papel de simples “agente do saber prático” para se transformar num intelectual, aquele “que se mete no que é de sua conta (em exterioridade: princípios que guiam sua vida, e interioridade: seu lugar vivido na sociedade) e de quem os outros dizem que se mete no que não é de sua conta[6]”. Sartre dá o exemplo de um físico nuclear, que pode muito bem restringir-se à sua atividade científica e pode também assinar um manifesto contra a bomba atômica: passaria a assumir, neste último caso, o papel de intelectual.

Será? Em que medida o técnico “engajado” pode ser chamado de intelectual? A tomada de posição política sem dúvida incorpora uma atenção a valores e a visões das quais, em sua atividade cotidiana, o cientista está excluído. Sem dúvida, um especialista em física pode alertar sobre os riscos de confronto nuclear com um grau de informação, com uma autoridade e um detalhamento maiores do que os do cidadão comum. Mas do ponto de vista moral, filosófico e político sua opinião não é necessariamente mais refinada, complexa, original e interessante do que a de qualquer outro. Nesse campo de indagações, a autoridade real do saber técnico se transforma em autoridade postiça. O físico pode ser tão ingênuo, equivocado e simplista quanto qualquer outro.

O pressuposto de Sartre, em 1965, era o de que uma crítica mais ampla ao sistema social – e aos modos com que pode empregar o saber científico – trazia consigo um diagnóstico teórico mais sólido, mais amplo e mais verdadeiro do que a defesa ideológica do status quo, a qual impunha ao técnico a atitude de não se meter onde não era chamado. O mero fato de se preocupar com o que “não é de sua conta” carregaria, portanto, uma atitude intelectual – a de notar que sua atividade não é isolada de um conjunto, e que esse conjunto não visa ao interesse universal, sendo fundado nas falsas reivindicações de que o burguês é o homem, e de que a classe dominante é o equivalente de toda a humanidade. O técnico, o especialista, é assim sempre “silencioso”; quem “fala”, nesse sentido mais amplo, já se torna automaticamente “intelectual”, incorporando automaticamente esse ponto de vista mais amplo.

Verifica-se, em tempos mais recentes, uma perfeita inversão desse modelo sartriano. Mantém-se, por certo, a ideia de que o intelectual “se mete onde não é chamado”. Todavia, não está mais claro o pressuposto de que determinada crítica – à fabricação de bombas atômicas, por exemplo – acarreta por si só a condenação de todo o sistema social. A universalidade não está dada automaticamente pela adesão à nova classe universal do proletariado. Não se traduz imediatamente em crítica ao capitalismo monopolista, por exemplo, a defesa de reservas indígenas ou do casamento homoafetivo.

As lutas sociais se particularizaram – e o intelectual que se engaja nelas, muitas vezes, se vê presa de uma fragilidade. “Mete-se onde não é chamado”, sem ser capaz entretanto de remeter a questão em debate para o campo mais geral da crítica ideológica em que poderia triunfar. Não é incomum que opine sobre assuntos eminentemente técnicos, sem dispor da segurança que o antigo acesso ao “interesse geral da humanidade” podia propiciar.

Ao mesmo tempo, ocorre com frequência uma situação em que escritores, artistas ou filósofos prestam sustentação a causas humanitárias e consensuais – o que é louvável, evidentemente –, mas sem ter como acrescentar novos ângulos ao que já foi dito. Entre a generalidade meritória e a falsa competência, como recuperar a credibilidade do discurso intelectual stricto sensu? Talvez o papel do intelectual, agora como antes, seja o de “ligar os pontos”, sem se impor como porta-voz da universalidade, mas sempre aspirando a uma visão mais articulada sobre o mundo.

Se esta é, digamos assim, uma definição satisfatória do que pode ser o esforço, a atividade intelectual, cabe entretanto acrescentar que não se esgota assim a função pública do intelectual.

Nisso o papel de Sartre no pós-guerra ganha, novamente, importância exemplar. Não se tratava, na França de 1945, de simplesmente condenar o nazismo, de assumir tal ou tal posição a favor ou contra de que escritores colaboracionistas fossem condenados à morte, ou de propor o socialismo. Como escritor, tanto quanto filósofo, a exposição de suas ideias e posicionamentos políticos tinha também uma função expressiva, representativa de seu tempo, e não apenas de sua opção particular nos antagonismos em que se debatia a sociedade francesa.

A esse respeito, um recente livro de Patrick Baert sobre a atuação de Sartre logo após a ocupação, apesar de defectivo em inúmeros aspectos, pode trazer sugestões interessantes[7]. Os artigos de Sartre publicados por volta de 1945 visavam sobretudo descrever e analisar o que se sentiu, o que se pensou e o que não se disse naquele momento, sem necessariamente pontificar sobre o que estava certo e errado, do ponto de vista ético ou intelectual, nas escolhas que se impuseram durante a invasão nazista.

Vale a pena citar uma longa passagem de “Paris sous l’occupation” [Paris sob a ocupação], artigo de Sartre escrito em 1945.

É preciso que nos livremos das imagens maniqueístas. Não, os alemães não percorriam as ruas de revólver em punho; não, eles não forçavam os civis a lhes dar passagem, a sair da calçada quando eles caminhavam; no metrô, ofereciam seu lugar às velhinhas, se encantavam com as crianças e lhes acariciavam o rosto; tinham recebido a ordem de ser corretos, e eles se mostravam assim, com timidez e aplicação, por disciplina; chegavam a manifestar uma boa vontade ingênua que terminava sem função. E não se imagine, por parte dos franceses, algum olhar que os esmagasse de desprezo. Sem dúvida, a imensa maioria da população se absteve de qualquer contato com o exército alemão. Mas não se pode esquecer que a ocupação foi cotidiana […].

Durante quatro anos, vivíamos – e os alemães viviam também, no meio de nós, submersos, afogados, na vida unânime da grande cidade. [Havia] um aspecto totalmente inofensivo naqueles soldados passeando na rua. A multidão se abria e se fechava sobre seus uniformes, cujo verde desbotado fazia uma mancha pálida e modesta, quase que esperada, no meio das vestimentas escuras dos civis. E depois, as mesmas necessidades cotidianas nos faziam relar neles […].

Sem dúvida nós os teríamos matado sem piedade, se a ordem fosse dada; sem dúvida mantínhamos a memória de nossa raiva e de nosso rancor; mas esses sentimentos tinham adquirido uma forma algo abstrata e com o passar do tempo tinha-se estabelecido uma espécie de solidariedade envergonhada e indefinível entre os parisienses e essa tropa tão semelhante, no fundo, à dos soldados franceses. Uma solidariedade que não se deixava acompanhar de nenhuma simpatia, que era feita basicamente de um acostumar-se biológico. No começo, doía tê-los sob nossas vistas, e depois, pouco a pouco, desaprendemos de vê-los; eles ganharam um caráter institucional.

O que acabava por torná-los inofensivos era sua ignorância de nosso idioma. Ouvi mil vezes, no café, parisienses conversando livremente sobre política a dois passos de um alemão solitário, numa mesa, com os olhos perdidos, à frente de um copo de limonada. Eles nos pareciam mais móveis do que homens.

Quando eles nos paravam, com extrema educação, para nos perguntar sobre uma rua – para a maioria de nós essa era a única ocasião de falar com eles – nós nos sentíamos mais incomodados do que raivosos; na verdade, não estávamos sendo naturais. Rememorávamos a palavra de ordem que havíamos adotado definitivamente: nunca lhes dirigir a palavra. Mas, ao mesmo tempo, diante daqueles soldados perdidos, o antigo hábito do préstimo humanista despertava, uma outra palavra de ordem que remontava à nossa infância – e que nos impunha a não deixar um homem em dificuldades. Assim, decidíamos conforme o humor da ocasião, dizíamos “não sei” ou “pegue a segunda esquina à esquerda”, e, nos dois casos, afastávamo-nos descontentes com nós mesmos[8].

O que Sartre procura, num trecho como esse, é enxergar uma dificuldade, tratar dela honestamente, e distinguir entre o que há de hipócrita e de honesto numa atitude humana. A famosa questão sartriana da má-fé assim como toda a questão da ideologia e da mentira – exige não apenas uma visão analítica, científica do que se está estudando, mas, na medida em que é contemporânea e se endereça a outros leitores na mesma situação que nós, se mostra uma questão de consciência.

Por isso mesmo, a confiança estreita numa universalidade a ser obtida pelo método sociológico ou pela perspectiva universal dos interesses do proletariado não é a melhor resposta para o problema da função do intelectual – que, mesmo nos melhores tempos do marxismo, se confundiria então com a de um cientista social. A universalidade possível não surge de um cientificismo, embora não dispense a separação entre verdade e mentira. Surge da verdade com que podemos encarar a nós mesmos, e do modo, verdadeiro ou não, com que nos dirigimos a nossos semelhantes.

Pode parecer estranho aproximar dois pensadores tão diferentes quanto Sartre e Ralph Waldo Emerson, mas há um discurso desse pensador americano escrito em 1837, intitulado “The American Scholar” [O erudito americano], que representa a meu ver uma formulação memorável do papel do intelectual – que Sartre, falando da ocupação alemã em Paris, parece ter cumprido. Com esse trecho encerro minhas considerações.

Um instinto existe, e é firme, de dizer a nosso irmão o que pensamos. Aquele que vai fundo nos segredos de sua própria mente mergulhou nos segredos de todas as mentes. O poeta que, em completa solidão, relembra seus pensamentos espontâneos, e os registra, descobre que registrou aquilo que os homens na cidade populosa consideraram também verdadeiro para eles. O orador imagina, inicialmente, que são inadequadas as confissões que faz com franqueza, até perceber que vem complementar aqueles que o escutam – que eles bebem suas palavras porque satisfazem, para eles, a natureza que eles próprios têm; quanto mais se aprofunda em seus pressentimentos mais privados e secretos, percebe que são, para seu espanto, os mais aceitáveis, os mais públicos, os mais universalmente verdadeiros. As pessoas se felicitam com isso; a melhor parte de cada pessoa reflete: tal música é a minha, esse sou eu[9].

Notas

  1. Ver Adauto Novaes (org.), O silêncio dos intelectuais, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 99-ss. As críticas de Sartre a Benda estão em Jean-Paul Sartre, Que é a literatura?, São Paulo: Ática, 1989, pp. 188-94.
  2. Cf., por exemplo, Jessé Souza, A radiografia do golpe, São Paulo: Casa da Palavra/ Leya, 2016; Hebe Mattos; Tânia Bessone; Beatriz Mamigonian (orgs.) Historiadores pela democracia, São Paulo: Alameda, 2016; Renato Rovai (org.), Golpe 16, São Paulo: Publisher Brasil, 2016.
  3. Sobre esse último tema, cf. meu artigo “Crença e opinião”, in: Adauto Novaes (org.), A invenção das crenças, São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2011.
  4. Para a narrativa desse episódio da Guerra Civil Espanhola, cf. Hugh Thomas, The Spanish Civil War, Harmondsworth: Penguin Books, 1965, pp. 442-4.
  5. Cabe mencionar, no espírito retrospectivo que orienta este volume, minha contribuição “A guerra me- cânica”, in: Adauto Novaes (org.), Fontes passionais da violência, São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015.
  6. Jean-Paul Sarte, Em defesa dos intelectuais, São Paulo: Ática, 1994, p. 29.
  7. Patrick Baert, The Existentialist Moment: The Rise of Sartre as a Public Intelectual, Malden: The Polity Press, 2015.
  8. J.-P. Sartre, “Paris sous l’occupation”, in: J-P. Sartre, Situations iii, Paris: Gallimard, pp. 17-9. [Tradução minha.]
  9. R. W. Emerson, “The American Scholar”, in: George B. de Huszar (org.), The Intellectuals: A Controversial Portrait, Glencoe: The Free Press, 1960, p. 135.

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