Os marionetes, o papagaio eletrônico e os astros indomáveis
por Fábio Landa
Resumo
Se todo ser humano deseja a felicidade, por que temos de aguentar tanto sofrimento e dor? Desde o nascimento, o outro lado do desejo é o terror – terror da criança repentinamente separada da mãe e lançada numa solidão brutal, submetida a procedimentos de assepsia e de controle que, na verdade, significam seu rapto pela sociedade. Segundo Wilhem Reich, nesse Não, dito com o corpo inteiro da criança ao nascer, engendram-se as reações defensivas que ficarão impressas no fundo de sua vida para sempre, tem início a couraça muscular do caráter. Além do amálgama entre o social e o biológico, Reich aponta na existência uma luta eterna entre o racional e o irracional: o primeiro a favor do desejo fundamental da matéria viva que é o prazer (o orgon, ele dirá); o segundo buscando manter e reproduzir sua couraça. São os processos vitais bloqueados pela irracionalidade social que geram as neuroses, das quais nem a Psicanálise nem mesmo Freud escaparam. Resignação, manifestação do poder de um sobre o outro, educação repressiva, violência, drogas… Neurose é a miséria afetiva e emocional das grandes massas, sempre tentadas ao totalitarismo. E estamos todos mergulhados no fascismo porque há um abismo entre o que se deseja e o que nossas estruturas encouraçadas nos permitem fazer. Reich desloca toda a questão política para o terreno prático do cotidiano e diz que o que importa, afinal, é amar e ser amado. Eis aí algo simples que todos podem entender, mas que continua sendo visto como utópico. Por quê?
Estou cansado de cavalgar o cavalo da vaidade, ainda nem sequer cheguei a ser um ser humano…
Elias Canetti
Recebi a carta de uma socióloga, amiga minha, sensível e competente, em que ela diz o seguinte:
Há, hoje, um campo aberto para a Psicanálise, muitos estão dispostos a incorporá-la, mas porque consideram o inconsciente e o desejo enquanto libertação, o desejo como transgressão e abertura para o que é novo e por isso revolucionário. Ninguém quer ouvir falar desta casquinha frágil que é o eu, ninguém quer ouvir falar de sofrimento e muito menos do sofrimento que nos constitui. Em suma, a Psicanálise torna-se digestível pela via de prazer, mas não pela via da “pulsão” de morte.
Mais à frente:
Alguns insistem que quem quiser ouvir falar em desejo deve aceitar enfrentar a dor, mas não uma dor abstrata, a dor dos outros, mas a nossa dor, a dor de cada um, aquela que marca nossa carne e, muito compreensivelmente, fugimos e graças a essa fuga insensata continuamos a produzir campos de concentração e de morte.
Essas linhas algo pessimistas não deixam de ser relativamente realistas. Quando nos colocamos a questão do desejo em Psicanálise, precisamos admitir que não trataremos de meras miudezas. Alguns psicanalistas, em debates célebres — e pretendo aqui citar um deles, as discussões entre Reich e Freud —, tocaram nas questões às quais tratamos de escapar. Eles não escaparam e se perguntaram a respeito da felicidade humana: por que temos de agüentar tanto sofrimento e dor? Por que o mundo é como é e, afinal de contas, temos ou não temos nada mais a fazer a não ser empurrar esta coisa toda com a barriga?[1]
Gostaria de citar rigorosamente alguns trechos de Freud para nos localizarmos diretamente sobre a definição do desejo do ponto de vista psicanalítico; suas palavras nos retiram do campo do exclusivamente digestível pelo prazer e nos levam a descobrir que o prazer é não só muito mais importante que um mero diletantismo, como talvez seja necessário para a sobrevivência de nós, humanos. Em A interpretação dos sonhos, num determinado trecho Freud afirma:
(…) a criança faminta chorará ou se debaterá inerme e essa situação permanecerá imutável, pois a excitação que parte da necessidade interna não corresponde a uma força que golpeia de maneira momentânea, senão a uma força que atua continuamente. Só pode ocorrer uma mudança quando por algum caminho e, no caso dessa criança, pelo cuidado de alguém, se faz a experiência da vivência de satisfação, que cancela o estímulo interno. Um componente essencial desta vivência é a aparição de certa percepção, a nutrição, no nosso exemplo, cuja imagem mnêmica fica de aí em diante associada à marca que deixou na memória a excitação produzida pela necessidade. A próxima vez que a necessidade ocorra, graças ao enlace assim estabelecido ocorrerá uma moção psíquica, que quererá investir de novo a imagem mnêmica daquela percepção e produzir outra vez a percepção mesma, quer dizer, em verdade, restabelecer a situação da satisfação primeira. Uma moção desta índole é o que chamamos desejo.
Algumas páginas adiante:
[…] investiguemos a contraparte da vivência primária de satisfação, a vivência de terror a algo exterior. Suponhamos que sobre o aparato primitivo atua um estímulo perceptivo que é a fonte de uma excitação dolorosa, então ocorrerão prolongadas e desordenadas exteriorizações motrizes, até que por uma delas o aparelho se retire da percepção e ao mesmo tempo da dor, e cada vez que reapareça a percepção, este movimento se repetirá imediatamente, algo assim como um movimento de fuga, até que a percepção volte a desaparecer. Mas neste caso não ficará inclinação alguma a reinvestir por via alucinatória, ou de outra maneira, a percepção da fonte de dor. Melhor, subsistirá no aparelho primário a inclinação a abandonar de novo a imagem mnêmica penosa, tão logo ela seja evocada de algum modo e isso porque a passagem de sua excitação até a percepção provocaria desprazer, mais precisamente: começaria a provocá-lo. O estranhamento a respeito da recordação, que não faz senão repetir o primitivo intento de fuga frente à percepção, é facilitado também pelo fato de que a recordação, diferentemente da percepção, não possui qualidade suficiente para excitar a consciência e atrair deste modo sobre si uma nova investidura. Esse estranhamento que o aparelho psíquico realiza facilmente e de maneira regular a respeito da recordação do que uma vez foi penoso, proporciona-nos um modelo e o primeiro exemplo da repressão psíquica. É de todos conhecido quanto deste estranhamento a respeito do penoso, da tática da avestruz, pode ras-trear-se na vida anímica normal do adulto.
Então, de partida, ao falar de desejo não podemos mais eludir o fato de que o outro lado do desejo é nada menos que o terror. Agora trata-se de saber de que terror se está falando. É um terror de quem, ou o terror do quê?
Queria fazer uma digressão que nos aproxima tanto do pensamento freudiano quanto, em alguma medida, daquilo que são alguns desdobramentos, e finalmente uma ruptura, reichianos. Não se pense que Reich, na sua simplicidade, tenha alguma coisa de simplório. Isso não nos ocorrerá se pudermos apreender o que esses homens nos deixaram através de um senso estético para além das meras palavras, que nos permitamos um pouco sentir o sentimento ou a referência do que eles estavam falando. Algo de emoção e de amor pode passar entre estas pessoas e nós, principalmente porque nos fizeram o grande favor de abrir o campo em que enxergamos — se quisermos — a articulação intrínseca entre desejo e terror.
Queria agora descrever sumariamente um nascimento. Muito se tem dito e qualquer revista de divulgação corriqueira fala a respeito do trauma do nascimento, sobre o qual todos já estamos fartos de ouvir. Mas gostaria de repisar este assunto. Recentemente, acompanhei o parto de uma pessoa que não tinha maiores dificuldades financeiras e socorreu-se das melhores coisas que a nossa cultura pode proporcionar: bons médicos, bom hospital, boas enfermeiras e coisas desse tipo. Aqui repito a mesma pergunta que antes já se fez Reich: por que o nascimento precisa ser feito desta forma? O nascimento a que me refiro, feito em boas condições (imagine-se os que são feitos em más!), era uma vitrine de procedimentos bastante peculiares. Primeiro, esta criança nasceu numa noite fria. Enquanto o interior da barriga da mãe devia estar a uns 36° ou 37°, no exterior a temperatura ambiente estava entre 15° ou 20°, de tal maneira que esta criança nasce sob um choque térmico de 15°C. Imediatamente ao nascer, ela é separada da mãe e levada para outra sala; depois de nove meses, a primeira pessoa a tocar a criança não é a mãe que a albergou, mas uma enfermeira. A proteção de temperatura é retirada, graças ao hábito higiênico de deixar a criança limpinha. Ela, que estava envolta por mucosa, é embrulhada em macios e sedosos panos que sobre a pele da criança, acostumada tanto tempo a um meio líquido, devem ter tido o efeito de uma lixa a raspá-la. Logo em seguida, tem de ser pesada numa balança que poderia ser de museu, com um daqueles grandes pratos metálicos, e a criança se debatia e já não podia mais sequer chorar, com as costas no metal frio; minto, apenas separada por um acolchoadinho de um centímetro de espessura, enquanto uma enfermeira sonolenta tentava saber a significativa diferença entre três quilos e quatrocentos gramas, 450 gramas ou quinhentos gramas. Depois um pinguinho de nitrato de prata no olho, rebater isso com uma limpadinha no nariz e nos ouvidos, talvez uma sugadinha na boquinha, uma aspiradinha no ânus e aquela criança, que acabara de nascer, estava de olhos fechados; e estava de olhos fechados, eu creio, por muito boa causa: aquilo que ela tinha visto já era suficiente. Em seguida, há que se praticar algumas providências identificatórias; há que se tirar a impressão do pé. A impressão do pé é uma batalha, porque a criança agora já não deixa, ela está mexendo todos os seus membros, tentando inútil e impotentemente safar-se daquela situação. Obviamente seus esforços são completamente baldados, enquanto uma mastodonte qualquer a toma pelo pé, agarra-lhe a perna e tenta passar uma tinta preta para identificá-la, coisa de imprescindível valor, principalmente que, nesses primeiros momentos, uma pessoa daquilo que mais precisa é de ter suas impressões marcadas num papel para que não seja confundida com nenhuma outra, isto é decisivo para toda a vida futura e creio que todos nós estamos de acordo que é assim mesmo. Daí ocorre uma cena bonita: o pai desta criança, assistindo ao parto, comove-se e tenta de alguma maneira atravessar aquela barreira de procedimentos estereotipados, mecânicos, eficientes e conclusivos. Agarra a mão daquele pequeno ser, começa a falar, depois começa a cantar e eis que o pequeno ser abre o olho pela primeira vez e pela primeira vez em longos quinze minutos pára de chorar. As enfermeiras fizeram um comentário relativamente pouco aprazível, algo despectivo, do tipo que-palhaçada-é-esta; além do mais, deveriam ser seis e meia ou sete horas da manhã e aquilo não era hora para fazer cantoria nenhuma para recém-nascido nenhum ficar enchendo o saco. O problema é que não se trata em absoluto de sabermos se o trauma de nascimento é responsável por isso, aquilo ou aquilo outro. A pergunta que se encaminha é: qual o fundamento de cada um desses atos?
Digamos que nos colocássemos numa posição um tanto marginal ou então meio esquizofrênica, como Reich, que no fim de sua vida dizia: “mas serei eu um extraterrestre?”; e digamos que ainda tenhamos um resto, um resquício de coragem afetiva, curiosidade humana e vontade de saber; e digamos que, terminado o parto, nos perguntássemos e perguntássemos a esses senhores, os médicos, as enfermeiras, o neonatologista, que nos explicassem cada um desses seus atos; e digamos que nos propuséssemos estas perguntas: por que a mãe tem de ficar deitada, por que a criança é retirada e imediatamente lavada com esta eficiência e com esta rapidez, em menos de cinco minutos, por que ela é aspirada, por que pingar nitrato de prata no olho; por que depois colocar esta criança em observação no berçário, por que nas primeiras horas não se dar nada a ela e deixá-la em jejum, por que amarrar seus braços e pernas? Sem dúvida nenhuma, ao formular tais perguntas, impertinentes como mosquitos incômodos a zumbir ao redor dos ouvidos sábios desses senhores, todos vamos obter respostas absolutamente plausíveis. Diria mais, respostas um pouco assombradas, porque afinal de contas são respostas a perguntas que eventualmente nem deveriam ser feitas, pois se trata de procedimentos óbvios; é claro que a aspiração é para retirar aquelas porcarias todas da boca e do nariz da criança, porque senão lhe produziriam uma pneumonia de aspiração, é claro que se lava esta criança porque há que encaminhá-la ao berçário onde ela vai ficar em observação científica por algumas horas, para verificar se ela nasceu bem ou mal; é claro que o nitrato de prata, poucas horas depois de feito, se degrada em nitrito de prata e única coisa que promove nos olhos da criança não é um efeito outro que o de limão pingado no olho, mas é claro que esta inutilidade é contra alguma doença venérea, mesmo quando na mãe não há nenhum resquício, nenhum traço de qualquer doença venérea possível; é claro que a criança é separada da mãe porque esta deve estar muito cansada e precisa repousar, e é claro que é para a proteção da criança, porque muitas vezes a mãe não sabe cuidar dela e até pode maltratá-la.
Isso tudo é claríssimo, mas para o pensamento impertinente e a visão indagativa de Reich isso não é tão claro assim. Reich perguntaria, então, o que se pode supor do contato, do primeiro contato, do contato imediato da criança com o mundo, se o que ela tinha antes, à altíssima temperatura de 38°C, era um contato quente, apaixonado, intenso com outro corpo e dele foi repentinamente separada, remetida a uma solidão brutal e principalmente condenada a um jejum involuntário; o que será dessa criança? Reich tem uma teoria e como todas as teorias de Reich, e mesmo as de Freud, há que se desconfiar muito, porque Reich não terminou muito bem a vida; acabou sozinho, malfalado, sob a suspeita de ser um esquizofrênico ou, no mínimo, um masoquista provocador infernal; ninguém conseguia passar por ele sem lhe dar uma bolacha. Freud também não terminou muito bem a vida, quase virou churrasco nas mãos dos nazistas e sofreu trinta anos com um câncer atrozmente doloroso. Portanto, todas as teorias desses homens há que serem vistas com extrema desconfiança.
Com toda essa nossa desconfiança, contudo, Reich ainda diria que ocorre um rapto; ao nascer, o ser humano é raptado pela sociedade, de maneira que todo ser humano é um pouco de energia que a sociedade toma e modela. Aí temos o primeiro amalgamento, desde o primeiro dia, desde o primeiro momento, entre o social e o biológico; amálgama que passa a fazer parte do próprio núcleo vivo de cada ser humano. Desde o primeiro momento de vida, o social o trata assim.
Deixemos provisoriamente no ar se esses procedimentos constituem um sadismo gratuito, inerente a nossa cultura, ou procedimentos culturais sádicos que imobilizam uma pessoa a fim de que ela possa ser moldada, não à sua própria imagem e semelhança, mas à imagem e semelhança daqueles que a antecedem e também foram tratados dessa maneira. Deixaremos essa questão em aberto, para tomarmos o que, para um público leigo, possa parecer um mero detalhe, mas para o psicanalista representa um problema nuclear. Freud descreveu a reação terapêutica negativa: apesar de todos os esforços, parecia que no fundo uma pessoa não se queria curar; quanto mais as pessoas se aproximavam de melhorar sua vida, mais elas se agarravam às suas pequenas vantagens enfermiças secundárias e menos desejavam dar um passo decisivo. Aqui Reich, numa de suas muitas declarações de amor a Freud, elogia o faro terapêutico do mestre e anuncia a descoberta da causa da reação terapêutica negativa: este extraordinário Não, dito com o corpo inteiro, que fica impresso no fundo da nossa vida para sempre, em completo acordo com o que falava Freud sobre o terror intrínseco à definição de desejo; este Não vindo de um procedimento que é apenas o primeiro entre muitos procedimentos decisivos e intempestivos que a cultura pratica sobre os seus seres. Procedimentos inquestionáveis e que marcam para sempre uma atitude, uma disposição e o início da couraça muscular do caráter, um caráter de defesa elaborado, como vimos, com muita justa causa diante dessas condutas. Parece que só fazemos o que fazemos com a mãe e a criança porque nos atribuímos, arrogantemente, um saber que na verdade não temos. A mãe, ao longo de nove meses, alterou seu corpo e reestruturou sua fisiologia e suas emoções em função do bebê, a ponto de ser possível perguntar quem será que depende mais um do outro, o bebê de sua mãe ou a mãe de seu bebê; e é bem provável que dê empate.
Ao fim de seus esforços, a mãe está privada de seu triunfo. A mãe jura que não está ressentida. A criança que não se lembra, mas de qualquer maneira perdoou. Ou será o início de uma guerra e ressentimentos infinitos?
Tendo formulado a origem do ódio que é este grande Não a partir do momento do nascimento, em que o bebê imediatamente parte para ser moldado pela sociedade, Reich, além de revelar este amalgamento entre o social e o biológico já desde o primeiro instante, extrai outra conclusão, que é a existência de uma luta eterna entre o racional e o irracional.[2] E, finalmente, o que é racional e irracional para Reich? Racional é o que vai a favor do desejo fundamental da matéria viva, que não é mais que o exercício do seu funcionamento; é aquilo que está a favor da vida, e vida, para ele, constitui um conceito unitário que desemboca por fim no orgon, a energia viva que existe dentro e fora dos seres humanos e em todo o universo; e na sua antítese, que dela nasce, produto de todos os procedimentos irracionais que violentam o livre fluxo dessa energia e acabam por transformá-la em seu contrário. Isso quer dizer que o amor decepcionado imediatamente se transforma no seu contrário, que é o ódio; e esse passa a ser o fundamento do funcionamento do caráter.
Reich, fiel à definição de desejo enunciada por Freud, que é esta moção que arranca do desprazer ao prazer, do terror à realização da vida, passa a rastrear o irracional em pelo menos dois outros momentos cruciais: primeiro, na puberdade, e, segundo, na época do matrimônio. Na puberdade, Reich sem mais delongas conclui que toda educação está baseada num único fato, a submissão dos filhos; tudo aquilo que os pais fazem aos filhos, em última análise, tem a ver com seu próprio conforto e com a submissão dos filhos à sua comodidade; isso traz no seu âmago uma outra questão, a inveja que os pais sentem das possibilidades que já não têm mais e cuja plena existência os filhos representam. No matrimônio, interagem duas forças, o amor e as demandas econômicas — dinheiro, posição, poder, situação —, em seres que partem do nascimento nas condições descritas, fraturados, com o seu contato com o mundo altamente debilitado, pois, desde o primeiro momento, tiveram de erigir fortíssimas defesas, primeiro contra o mundo externo que os tratou daquela maneira, segundo, contra o mundo interno, agora marcado por experiências que nunca mais devem chegar à memória, porque impregnadas de angústia. A couraça, construída como uma barreira contra essas profundas angústias dadas desde o nascimento e mais as defesas contra o mundo interno e seus procedimentos sádicos, representa um conceito central em Reich. Ele inaugura o seu livro, Análise de caráter, dizendo que todo caráter é uma função de defesa narcísica do ego; todo caráter é erigido para proteger esse farrapo salvo de tal massacre. Os seres que chegam então ao matrimônio, tendo passado por esse nascimento e por toda necessidade de adaptar-se, acomodar-se, submeter-se, tendo engolido e reprimido sistematicamente o seu protesto e o seu ódio, não têm outra alternativa a não ser reproduzir, com seus próprios filhos, o mesmo esquema de funcionamento.
A couraça engloba dois aspectos: primeiro, é uma estrutura; segundo, uma estrutura que se mantém e reproduz a si mesma e demanda enormes quantidades de esforços para isso. Afinal, os indivíduos vivem uma vida que eles sabem e uma vida que vivem apesar de si mesmos; acham que falam, na verdade são falados; acham que vivem, mas na verdade são vividos. A couraça sendo este encastelamento do eu sob severo sítio, seja do mundo externo, seja do mundo interno, Reich perpetra que, afinal de contas, somos todos neuróticos e vivemos imersos num mundo neurótico; a neurose deixa de ser uma entidade nosográfica, médica ou psicanalítica, e sua representante, a couraça, que nada tem de imóvel, mas é uma ativa reprodutora dessas condições de vida, passa a ser vista como um fenômeno universal e a base de todo comportamento irracional.
Para Reich, o irracional é um trauma e torna-se uma obsessão; sistematicamente, desentranha o irracional nos mais insuspeitados recônditos.
Em suas próprias palavras:
[…] o primeiro contato com a irracionalidade humana foi para mim um choque tremendo. Parece incrível que tenha sobrevivido sem tornar-me um doente mental. Como se, repentinamente, percebesse a nulidade científica, o absurdo biológico e o caráter socialmente nocivo das ideias e instituições que até o momento pareciam completamente naturais e evidentes. Trata-se de uma espécie de experiência de “fim de mundo” que é muito frequente nos esquizofrênicos. Gosto de pensar que a esquizofrenia vai geralmente acompanhada por um relâmpago de lucidez a respeito da irracionalidade dos processos sociais e políticos e sobretudo da educação das crianças.
Reencontra esse relâmpago de lucidez em Pestalozzi e Nietzsche e cita expressamente “as visões racionais que invadiram a sensibilidade de milhões de pessoas na Revolução Francesa e na Russa”.
Como é possível que milhões de pessoas morram de fome enquanto outras estão soterradas na abundância? Como é possível que milhões de trabalhadores sejam oprimidos por um punhado de feitores? Como é possível que indivíduos conscientes, lúcidos e acordados se deixem dirigir por indivíduos cuja incompetência, imbecilidade e maldade são evidentes? O sociológico desde o início bloqueia, ofende o funcionamento autônomo biológico. Os processos vitais simples estão bloqueados pela irracionalidade social, que, produzida por seres doentes, está ancorada no caráter de todos. Isso produz uma energia sexual obrigada a permanecer inerte (estase), a regredir no seu desenvolvimento (fixações e fantasmas), a buscar compensações ou disfarces (formações reativas) ou a tornar-se tortuosa e complicada (neuroses).
Reich, pouco diplomático, fala de todos e cada um, inclusive dos psicanalistas: somos todos neuróticos. Com essas inquietações, dirige-se a uma reunião na casa de Freud, com o texto “A profilaxia das neuroses”, imbuído de amor, respeito e fidelidade a Freud. Tentava levar às últimas consequências, e não mais do que isso, a teoria da etiologia sexual das neuroses, a teoria da libido, essa força que Freud separara de todas as demais e afirmava estar subjacente a todo comportamento humano, e o conceito de desejo. Dirige-se à reunião, sabendo que a Psicanálise já tinha se tornado um movimento de escala mundial, que sofria as inevitáveis tentativas de diluição, edulcoramento e corria o risco de perder os dentes e as garras. Traz consigo algumas questões: quais as conclusões inevitáveis da teoria e terapêutica psicanalíticas? É possível continuar limitando o tratamento às neuroses dos indivíduos, tal como acontece na prática privada? Se as neuroses são uma epidemia de massas que se propaga constantemente; se a humanidade está psiquicamente enferma, qual é o verdadeiro lugar da teoria psicanalítica no sistema social? Por que produz, a sociedade, neuroses em massa? Reich, em “A profilaxia das neuroses”, propõe simplesmente que, se nosso modo de vida produz isso, altere-se então este nosso chamado modo de vida. A conclusão lhe parece irrefutável: o anseio humano de vida e prazer não é escamoteável. Mas a regulação social da vida sexual, essa sim pode ser mudada. E que alteração seria essa? Entroniza o orgasmo. Se em todos os casos de neurose há uma perturbação da sexualidade genital, há que saber o que ocorre exatamente com essa sexualidade, como está constituída, como funciona, para que funciona. Essas indagações estão longe de poder ser reduzidas às conjecturas dos sociólogos, filósofos, biólogos e políticos. Para sempre, Reich passa a investigar a sexualidade. Da descrição do orgasmo feita por ele em seu A função do orgasmo, dois eventos sobressaem: o obscurecimento da consciência e o refluxo completo da excitação a todo o corpo. O orgasmo é o encontro de dois: só aí dois se fertilizam, perdem e readquirem uma identidade. A sexualidade genital, portanto, não é sublimável; já é sublime. O resto é nada.
Reich se volta imediatamente para o terreno prático, isto é, que se criem condições que permitam as emoções; que se alterem as condições de nascimento. Isso se verifica não ser tão fácil. Muitos anos depois de Reich, o Léboyer, na França, que descrevia o parto habitual como um calvário, propunha simplesmente procedimentos extremamente amenos e demorados com o recém-nascido e, sobretudo, nunca separar a mãe do filho; numa entrevista coletiva, uma jornalista se levanta e diz que não tem nenhuma pergunta, apenas quer fazer uma afirmação: “Doutor Léboyer, se um dia se fizer um auto-de-fé com seus livros, o senhor vai desaparecer na poeira do tempo, é o que espero”. De tal maneira que o passo seguinte também se verifica muito difícil: que se dê liberdade para as crianças, que se permita uma eleição livre, na puberdade, dos seus objetos sexuais e uma livre manifestação sexual dos jovens. Num livreto de Reich chamado A luta sexual dos jovens, ele se propõe a discutir cara a cara, praticamente, aquilo que os jovens querem ou deixam de querer. Isso também resulta pouco fácil; por exemplo, em 1968, numa conversa entre o chefe de polícia de Paris e o presidente da França, este pergunta: “Mas, afinal, o que é que eles querem?”. E o chefe, dando de ombros, responde que não tem a mínima ideia e manda baixar o cacete.
No matrimônio, é ainda menos fácil alterarem-se as estruturas, apesar de certa evolução em relação às primitivas coerções. Mas esbarramos num detalhe: entre aquilo que as pessoas acham que é bom, desejável, o que elas próprias almejam e aquilo que, encouraçadas, podem fazer, existe um abismo que inutiliza seus esforços. Potência orgástica, então, é nada mais nada menos que a capacidade de entregar-se ao amor, entregar-se no ápice da excitação sexual, com efetivo contato emocional; quer dizer, entrega emocional; e a sua contraposição é a impotência orgástica, que se radica na definição de caráter, enquanto função de defesa narcísica do ego. Como um ego sitiado por dentro e por fora, um farrapo resgatado do massacre vai ser capaz de ultrapassar todas as barreiras, que ele nem sabe que existem, para dissolver-se por um momento? O orgasmo passa a ser uma antítese do narcisismo e das defesas narcisistas e se constitui na capacidade de dar e receber amor; ou, em outro dizer, um contato efetivamente emocional, em que um perde a própria identidade por um momento que seja, para recuperar uma identidade já fertilizada no encontro com o outro e que jamais volta a ser a mesma de antes. O orgasmo se torna o pilar, o centro de uma regulação afetiva a contrapor-se a uma sociedade neurótica, baseada na irracionalidade e sobretudo em atitudes despóticas, a favor da preservação do narcisismo de um em detrimento do narcisismo de outrem; todas as hierarquias, toda manutenção de poder, todas as manifestações de poder de um sobre o outro não passam, afinal de contas, da realização de relações sadomasoquistas, em que por vezes um é sádico para no momento seguinte ser o masoquista. O orgasmo surge como essa regulação que não pode ser substituída por nada; no entanto, verificamos que inclusive o sexo se presta a este farfalhar de pseudo-alvos, pseudo-objetivos, em que se trata de substituir o contato de um com o outro pelo contato de um com alguma coisa, sabendo-se que o lugar do outro e o contato com ele são absolutamente insubstituíveis, ao mesmo tempo que muitas vezes inatingíveis. Se quisermos, podemos daqui rastrear a enorme indústria do sexo que é a pornografia e que vemos, hoje em dia, utilizar-se inclusive de crianças. Ou, então, a substituição do contato proporcionada pela disseminação das drogas.
No dizer de Freud, os narcóticos desempenharam, em todas as épocas, um papel importante na economia libidinal da humanidade. Reich aceita o apontamento de Freud e, por sua vez, formula o conceito de angústia de prazer, que é exatamente o medo à excitação, essa queda no abismo do desconhecido; eventualmente, é uma excitação prazerosa, mas carregada de terror, de barreiras defensivas e ansiedades prestes a retornar; a sua frustração promete dor ou sua transformação, como já vimos, numa raiva destrutiva.
As drogas parecem encaixar-se no anseio de prazer e felicidade e, ao mesmo tempo, entram como substituto desse outro inatingível, separado por uma multidão de fantasmas e cujo contato apenas desencadeia o surgimento de mais fantasmas, desgostos ou recordações extremamente desagradáveis; aí surgem as drogas, como leniente e arremedo.
Reich dá-se conta do inevitável: no próprio âmago da sociedade de Psicanálise, as pessoas a seu ver sexualmente transtornadas não podiam admitir suas proposições como conseqüência imediata, lógica e racional das teorias de Freud. Passa então a criticar severamente a política psicanalítica. Após quinze anos de solidão, Freud se teria deixado seduzir pelo afluxo cada vez maior de discípulos; os discípulos, no fim das contas, queriam a mesa posta; com honrosas exceções, não realizavam esforço algum, mas tinham a perspectiva de se engajar num movimento de caráter mundial e, além do mais, podiam ganhar dinheiro. É verdade que Freud não teria dispensado nenhum bom tratamento a seus discípulos; Reich relata uma conversa de corredor, no congresso de Berlim, em 1922, em que Freud perguntava a alguns circunstantes, quantos destes 150 participantes podem ser verdadeiramente analistas? E com os dedos de uma mão apontava não mais que cinco. Assim, destacam-se no interior da sociedade psicanalítica duas vertentes: uma que tenta descaracterizar, desfazer-se de tudo aquilo que não deixaria em pé o mundo tal qual ele era conhecido, sobretudo depois da descoberta da sexualidade infantil — e não há crueldade passível de se cometer contra a descoberta freudiana que chegue ao ponto de supor que depois dela o mundo permaneça o mesmo. Como permaneceria, se o pilar principal, a ridícula prepotência que negava a sexualidade infantil e transformava as crianças em anjos assexuados, ruiu?
Freud, porém, precisava fazer algumas concessões para salvar a doutrina e estas custaram de alguma maneira, segundo Reich, a própria saúde de Freud. Reich dizia em 1924, depois da exposição de “O ego e o id” por Freud, como ele estava magnífico, que era um orador estupendo e de uma lógica férrea; somente um gênio seria capaz de uma afirmação como a de que o ego era tão inconsciente como o próprio inconsciente. Depois disso, Freud retira-se de todos os congressos e passa a ficar isolado, o que leva Reich a fazer uma biografia terrível, mas científica, na qual trata de rastrear inclusive o câncer que acaba afetando a Freud. Reich vai render essa homenagem biográfica não de maneira apologética, mas buscando a compreensão da origem do câncer em Freud (e em todos): a resignação. Freud resignou-se. Alguns sinais dessa resignação seriam a retirada e isolamento, o querer dizer e ter de tragar-se — e daí Reich interpreta que o hábito de Freud de fumar vinte charutos por dia era como se ele tivesse de inalar tudo aquilo que gostaria de dizer. Salvo alguns discípulos, exatamente os que pensavam com independência, e se desenvolveram a si mesmos, pelos quais Freud tinha um enorme apreço, como Abraham, a outros, por exemplo, Federn, votava um grande desprezo; deste, disse Freud certa vez que tinha “um olhar parricida”; no entanto, Federn foi presidente da Sociedade Psicanalítica de Viena até 1933, com o advento do nazismo.[3]
Reich nutria profundo desdém pelo político; qualquer possibilidade de mudança jamais passará pelo político, sempre e apenas pelo campo prático, porque os políticos se aferram a brechas do sistema, que lhes permitam uma posição cômoda e vantagens secundárias. A irracionalidade política, então, desrealiza o real, as fontes vitais, a racionalidade. Essa desrealização se concretiza na couraça, que por sua vez alimenta a irracionalidade política. Círculo vicioso.
Reich aponta na direção em que a Psicanálise não está voltada às pessoas cultivadas e bem pensantes, mas é gênero de primeira necessidade para aqueles que tratam de lutar para sobreviver. Reich resume seu conflito com Freud, originado nessa reunião e depois nas seguintes, desta maneira: este não passaria de um reflexo do conflito entre o mundo cultivado e o mundo das pessoas que lutam para sobreviver. Isso, que pode parecer uma frase grandiloquente, na verdade resume uma postura. A postura de Reich é sempre levar as coisas para o terreno prático, quer dizer, para a vida do cotidiano e os seus procedimentos. Sua obsessão é separar o racional, que é expansão, o arranque do desejo do desprazer ao prazer, o arranque do desejo do terror à realização da vida, daquilo que se lhe opõe, o irracional, que está rigorosamente a favor não só da manutenção do status quo, quanto de todos os detalhes mais regressivos das vidas das pessoas.
Reich se pergunta: como Stalin e Hitler puderam dominar 800 milhões de pessoas? São perguntas como essa que retiram a Psicanálise do campo do privado e a colocam no campo daquilo que pode vir a ser uma revolução; seguramente, não uma revolução política. E ele responde: as pessoas fraturadas, tornadas dependentes desde o momento do nascimento, tratadas com absoluto desrespeito, sadicamente, em relação às suas demandas de expansão vital, remetidas a uma situação em que o único que possuem é um enorme passado de angústia e de infelicidade, não podem ser qualquer outra coisa além de reprodutores de uma ordem social sádica; ao mesmo tempo, são dependentes de uma figura que vez por outra surge, para configurar um totalitarismo. Em vez de que Hitler tenha dominado o povo alemão, há que se reconhecer que o povo alemão, em determinado momento, fabricou sistematicamente seu Hitler. De tal maneira que, enquanto não se alterar, de acordo com princípios racionais, a estruturação dos seres humanos, não se pode considerar que as ditaduras, por mais cruéis que se apresentem, sejam acidentes. Muito pelo contrário, os períodos de não-ditadura é que são as exceções, porque no meio da neurose, que é finalmente essa miséria afetiva e emocional de grandes massas, não se pode deixar de supor que o surgimento de algumas falas completamente imaginárias, irracionais e contraditórias, como as de um Goebbels e um Stalin, consigam arrastar consigo as multidões. Apenas o fascismo, de vez em quando, consegue algumas palavras de ordem que incendeiam a chispa e desencadeiam um sistema que está sempre, de qualquer maneira, insinuado, desenhado; pronto a ser refeito a qualquer momento.
Reich descreve a peste emocional. Para o pestífero, cunha o termo Modju, uma combinação de Mocenigo com Djugachvili. Mocenigo foi o tipo que denunciou Giordano Bruno à Inquisição, sendo que, no final de um processo de oito anos, Bruno foi incinerado. Djugachvili é Stalin, que desmantelou e se aproveitou completamente da perspectiva de uma democracia social proposta por Lenin. Reich resume seu projeto político: o meu projeto político não interessa a nenhum político, pois colocaria a política de ponta-cabeça; porque a única política que aceito como tal é aquela que reconhece as minhas necessidades, as tuas necessidades, as das crianças e as das mães, e que isso não seja fraturado jamais.
Para saber a que política se opõe Reich, tomemos emprestado de Wittfogel o seu esquema das canalizações no modo de produção asiático, as canalizações para irrigação do arroz e a distribuição das terras não passavam de representações gráficas da sociedade de castas; finalmente, no topo, existe alguém tão dependente e amarrado às bases quanto as bases ao topo, de maneira que está criado um sistema de hierarquias rígido, com todos os seus chefinhos, chefetes, burocracia e coisas desse tipo. O essencial é que se mantenham as condições básicas da couraça, sua rigidez, ausência de contato emocional, a afirmação de renúncia a toda esperança e a sua naturalização: a vida é assim mesmo, qualquer outra coisa não passa de uma mera utopia de sonhadores estúpidos.
Reich pagou caro por seus projetos. Foi processado, julgado e finalmente condenado por suas idéias. Uma jornalista norte-americana publicou dois artigos em que ela lançava suas dúvidas sobre o tratamento de orgon e as idéias sexuais de Reich. A partir daí começou a investigação da Food and Drug Administration. Reich, com sua brilhante diplomacia, não recebeu os inspetores em seu instituto, simplesmente não reconhecia a autoridade deles para investigá-lo e foi condenado por desacato. Reich foi de um extremo a outro: ou na marginalidade, visionário, para além de tudo aquilo que já se imaginou e ancorado nas conclusões lógicas e racionais de algumas constatações freudianas, ou, de outro lado, pego numa armadilha, confinado no universo carcerário ao qual, por fim, sucumbiu.[4]
A peste emocional consiste nestas derivações da descrição da couraça: sempre que um produz, há um emocionalmente perturbado que se aproveita. Nos indivíduos empesteados, chama a atenção como sabem sempre muito bem o que fazer, enquanto nós temos dúvidas; onde alguém pesquisa, alguém está só com certeza; se há alguém fazendo alguma coisa, existe alguém administrando. Na própria microscopia da vida cotidiana, verificamos como, no mesmo ato, alimentamos o trabalho e os parasitas do trabalho e, por enquanto, sempre vencem estes, nas suas erupções fascistas. Assim Reich, que já nos tinha ofendido, chamando-nos a todos de neuróticos, diz mais: de qualquer maneira, somos todos fascistas, exatamente porque estamos todos mergulhados nessa sistemática de apreensão das nossas energias desde o primeiro momento, a serviço da manutenção de determinado sistema que passa a funcionar fora e dentro de nós. E sustentamos ainda toda sua carga ideológica, inclusive com a naturalização de que os seres humanos são maus mesmos, o animal humano é realmente agressivo e, afinal, cada um deve fazer o que deve ser feito.[5]
Reich se postula simplesmente: o que desejam as pessoas? As pessoas desejam apenas ser felizes. Isso quer dizer, amar e ser amado e ponto. Como no longo discurso de Chaplin para Ana, no final de O grande ditador.
Reich tinha um amigo, a quem prezava muito, chamado Zadnicker, um jovem torneiro mecânico; era dele a opinião: as únicas coisas que talvez valham a pena ser ditas, são as coisas que todos podem entender. Reich dizia essas coisas que todos podem entender. A tentativa de tornar isso simplório significa, para ele, mergulharmos nas complicações neuróticas, na extrema complicação que sentimos em manifestar as nossas emoções, tão penetrados e confundidos por essa ordem encouraçada estamos. Se esse é o desejo de toda a humanidade, por que isso não se realiza? A resposta recai novamente em dois fatores: apesar do aumento de informação, ainda existe um abismo extraordinário entre aquilo que se deseja e aquilo que nossas estruturas encouraçadas nos permitem fazer; segundo, a onipresença do irracional e a sua cristalização na couraça e peste emocional. Se rastrearmos, como Reich, a peste emocional em todos os detalhes da vida cotidiana, vamos verificar que, no final de vinte e quatro horas, podemos contar. nos dedos de uma mão os momentos em que nos sentimos expandidos e tranqüilos; e não temos dedos suficientes para assinalar todas as agressões que praticamos e que se praticaram sobre nós. Se esta separação entre amor e ódio é dada por uma configuração que reproduz a si mesma, com uma intensidade fruto de todas as nossas intensidades libidinais; se tais energias estão a serviço da couraça e minimamente a serviço do arranque do desprazer ao prazer, no fim dessa espiral, podemos concluir o seguinte: “somente a liberação da capacidade natural de amor nos seres humanos pode dominar sua destrutividade sádica”.
Reich aponta na direção de três princípios. Primeiro, a auto-regulação: muito ao contrário de sermos intrinsecamente seres caóticos, desvairados, que, se tivermos todas as nossas potencialidades liberadas, efetivamente o mundo vai ficar de ponta-cabeça (isto é verdade, mas não do ponto de vista do caos), existe efetivamente um princípio regulador; seríamos auto-regulados em tantos fatores da vida, por exemplo, o crescimento, a alimentação e, no entanto, em todos eles, mesmo aqueles que não tocam, diretamente na energia amorosa, sexual, a auto regulação é negada. Nas palavras de Reich:
Nenhum elemento de minha teoria atraiu sobre meu trabalho e minha existência tantos perigos como a afirmação de que a auto-regulação é possível, existe atualmente e é suscetível de ser universalmente estendida.
É compreensível. O que seria do poder político se o fruto do trabalho dos seres humanos ficasse com eles e não nas magníficas obras faraônicas, se o trabalho não fosse mais o lugar de esgotamento dos corpos e criatividade dos trabalhadores e sua transformação em escravos voluntários ou não, mas o lugar de crescimento e desenvolvimento de suas habilidades e potencialidades.
É compreensível a Blitzkrieg contra os recém-nascidos; o assalto à fortaleza sexual que os homens têm em comum com todos os seres vivos. Alguém já disse: dê-me um bebê dos zero aos cinco anos e depois podem ficar com ele para sempre, ele permanece meu.
A luta deve ser decidida rapidamente, auto-regulação ou regulação social da sexualidade; orgasmo ou couraça, e, depois, o resultado consolidado na adolescência e no adulto jovem.
Ao se transpor a auto-regulação para as relações sociais de trabalho, teríamos a democracia do trabalho, que seria a devastação dos chefinhos, chefetes, representantes, contra os trabalhos inúteis, as organizações de trabalho massa-crantes e industriais. No outro extremo disso, temos um Auschwitz de seres humanos ou um Auschwitz de toda a natureza. Na democracia do trabalho, não há mais a figura do administrador; alguns críticos do Estado soviético dizem que este se desmantelou numa burocracia exatamente quando se retiraram as melhores cabeças que chefiavam os trabalhadores e os tornaram administradores de trabalho. A burocracia tornou-se incontrolável a serviço de um estado de canalizações cada vez mais rígido, inclusive o estado policial, como o Gulag descrito por Soljenitzin. Alguns trabalhos são em si irracionais. Oppenheimer contava que, às vésperas da detonação da bomba atômica, não havia nenhum preceito teórico garantindo que aquela explosão cessaria e não se tornaria contínua e, ainda assim, eles apertaram o botão. Obviamente, o trabalho é um dos setores da vida mais visados pela apropriação das forças irracionais. Desenvolve-se a partir de uma enorme criatividade e dedicação dos seres humanos; no entanto, quais são as motivações subjacentes e, portanto, qual o destino do seu produto, a favor da vida, ou da manutenção da couraça? A mesma crítica que Reich teve a coragem de fazer no âmago da Sociedade Psicanalítica, poderia ser estendida a qualquer setor, corno, por exemplo, uma comunidade de cientistas. Hoje em dia, quando Peter Duesberg deflagra teses que colocam sob suspeita as conclusões e procedimentos de pesquisas que responsabilizam o vírus HIV como causador da Aids, o que primeiro acontece é que ele passa a ser denegrido como cientista, tratado como um marginal apenas porque tem opiniões solitárias, enquanto os outros, claro, o coro dos que estão em sólidos empregos e concorrem a todos os prêmios de virologia, devidamente subvencionados para isso, é que são os respeitáveis. E, por último, não se discutem cientificamente suas teses.
Em todos os detalhes de nossa vida podemos surpreender o racional e aquilo que o destrói. O irracional torna-se efetivamente atuante através da couraça e terminamos por nos submeter a ele, já que se traveste de todos os sinais exteriores de respeitabilidade; como já dizia Freud em O fetichismo , abalar o Trono, a Igreja ou o Exército remete as pessoas a um estado de confusão intolerável. Reich, no fim de sua vida, dizia que as pessoas dependem de suas couraças para seguir vivendo. Gerações se passarão até que a degradação biológica dos seres humanos diminua. É preciso reconhecer que, se retirássemos, hoje, a couraça, milhões de pessoas entrariam em completo pânico, porque suas vidas, inclusive biologicamente, dependem da manutenção desse sistema de cordéis que as move, explora e nutre no mesmo ato.
Freud, em um de seus raros arroubos épicos, dizia dos desejos infantis:
[…] estes desejos sempre alertas, por assim dizer imortais, de nosso inconsciente, que lembram os titãs da saga sepultados desde os tempos primordiais sob pesadas massas rochosas que uma vez lhes atiraram os deuses triunfantes e que ainda agora, de tempos em tempos, são sacudidas pelas convulsões de seus membros.
Vez por outra, as couraças tremem e com redobrados esforços tratam de aprimorar-se, para não mais tremer. No 1984, de Orwell, a televisão explicava claramente: “aboliremos o orgasmo”.
Se no interior das forças produtivas temos de descobrir o irracional, o conhecimento passa a ser a grande esperança. Mas o conhecimento também tem a sua dupla face: embora pela primeira vez, a partir de Freud, se possa ter alguma esperança na inteligência, porque esta tem a via de poder perceber a si mesma, de observar os fenômenos que ocorrem dentro do próprio homem, de outra parte este carrega também o irracional no seu próprio íntimo; se o intelectual nos permite captar e expressar emoções tão profundas e aumentar nosso contato emocional, eventualmente o intelecto serve para a rigidificação das relações, frieza de contato e de comunicação, e para este recolhimento dos sábios a um linguajar que só eles podem entender, inclusive para protegê-los do contato consigo mesmos e com os demais. Afinal, ninguém escapa ao próprio encouraçamento, que nos une na desgraça e nos aponta a uma tarefa descomunal.
Concluindo com Reich em O assassinato de Cristo: nunca houve uma civilização, talvez possamos começar algo passível desse nome.
Notas
[1] O pano de fundo deste debate está dado pelos textos de Sigmund Freud, “El porvenir de una ilusión” e “El malestar en la cultura”, in Obras completas, Buenos Aires, Amorrortu, 1979, v. XXI, e o texto de Wilhelm Reich, La función del orgasmo, Buenos Aires, Paidós, 1962.
[2] Um capítulo inteiro do livro de Roger Dadoun, Cent fleurs pour Wilhelm Reich, Paris, Payot, 1975, é dedicado ao irracional na obra de Wilhelm Reich.
[3] Em Wilhelm Reich, Reich habla de Freud, Barcelona, Anagrama, 1970.
[4] Uma detalhada apresentação do julgamento de Reich está em Jerome Greenfield, Wilhelm Reich vs. USA, New York, W. W. Norton, 1974.
[5] José Angelo Gaiarsa apresenta ideias potencialmente férteis sobre o tema em Tratado geral sobre a fofoca, São Paulo, Summus, 1978.